INSOLVÊNCIA CULPOSA
CRIME DE INSOLVÊNCIA DOLOSA
CONDENAÇÃO
MEDIDAS SANCIONATÓRIAS
GERENTE
PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE
Sumário

1. O confronto entre a insolvência culposa no âmbito dos procedimentos previstos no CIRE (arts. 185.º a 191.º) e a insolvência dolosa prevista no art.º 227.º do Código Penal, permite claramente concluir que estamos perante figuras que têm um alcance distinto, não se sobrepondo nem na sua regulação, nem nos seus efeitos constituindo, pois, dois sistemas sancionatórios em paralelo, mas de diferente cariz.

2. Ponderando as medidas fixadas na sentença recorrida em cumprimento do disposto no art.º 189.º do CIRE e as sanções aplicadas aos gerentes da sociedade insolvente no processo crime que correu termos e no qual foi proferida decisão penal condenatória pela prática do crime p. e p. no art.º 227.º do Cód. Penal, não há qualquer sobreposição de medidas sancionatórias, não se estando perante decisões iguais, ao contrário do que os apelantes alegam, sendo que não foi obviamente violado o princípio ne bis in idem: os efeitos do caso julgado da decisão penal condenatória fazem-se aqui valer relativamente aos afetados pela qualificação nos precisos temos que especificamente resultam do disposto no art.º 623.º do CPC.

3. São pressupostos da qualificação da insolvência como culposa que:
- O devedor – ou o seu administrador, na aceção do art.º 6º do CIRE –, pratique ato que tenha criado ou agravado a situação de insolvência;
- O ato seja praticado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, relevando o disposto no art.º 4º do CIRE;
- Que o devedor – ou o administrador – tenha agido com dolo ou culpa grave.

4. O nº 2 do art.º 186.º do CIRE consagra presunção inilidível ou iuris et de iure (art.º 350.º nº 2, in fine, do Cód. Civil), como decorre da letra do preceito, cujo alcance se estende não apenas à existência de culpa, mas também à existência do nexo causal entre a atuação do devedor insolvente e a criação ou agravamento do estado de insolvência.

(Da responsabilidade do relator (art.º 663.º, n.º 7 do CPC)).

Texto Integral

Acordam os Juízes da 1ª secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
(i) Os presentes autos incidentais correm por apenso ao processo de insolvência (apenso C), processo este iniciado a requerimento de credor, no dia 26 de outubro de 2004, tendo sido proferida sentença de declaração da insolvência da sociedade V…, Lda. em 24 de junho de 2005, transitada em julgado e em que foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência com carácter pleno.

(ii) Em 20-10-2005 o administrador da insolvência pronunciou-se quanto à qualificação da insolvência, pugnando pela sua qualificação como culposa com afetação das administradoras da insolvente, MC, HS e MP, por terem sido violados os deveres previstos nos termos do artigo 186.º, n.º 2, alíneas a), b), e g), e n.º 3, alínea a) do CIRE. 
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de a insolvência ser considerada culposa, por terem sido violados os deveres previstos na alínea a) do n.º 3 do art.º 186º do CIRE, bem como nos termos do artigo 186.º, n.º 2, alíneas a), b), e g), com afetação das administradoras da insolvente MC, HS e MP.
As credoras Iberográfica - Importação e Exportação, Lda. e Kodak Polychrome Graphics – Portugal também se pronunciaram no sentido da qualificação da insolvência como culposa.

(iii) Foram notificadas as propostas afetadas, que não deduziram oposição. 

(iv) Procedeu-se ao saneamento do processo após o que se realizou audiência de julgamento e, em 28-05-2024 foi proferida sentença com o seguinte segmento dispositivo:
“Pelo exposto, qualifica-se como culposa a insolvência da V…, Lda., declarando afetadas pela mesma MC, HS e MP.
Em consequência:
a) Declara-se a inibição, pelo período de 7 anos, de MC, HS e MP para:
- Administrar patrimónios de terceiros;
- O exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.
b) Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por MC, HS e MP.
c) Condena-se MC, HS e MP a indemnizar os credores da insolvente V…, Lda. até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças do seu património.
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Custas pelas requeridas MC, HS e MP – artigo 303.º a contrario do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.
*
Registe e notifique.
Após trânsito, cumpra o disposto no artigo 189.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.
 
 (v) Não se conformando, a “V… e outros” apelaram, formulando as seguintes conclusões:
“a) Existe excepção caso julgado
1. A sentença recorrida viola os princípios do CIRE
2. Pois não existe qualquer dolo, ou lesão dos interesses dos credores
3. O prejuízo que eventualmente os credores poderiam ter sofrido consiste na desvantagem económica diversa do simples vencimento de juros, que não são a consequência normal do incumprimento
4. O prejuízo a que se refere o art.º 238.  n. 1 alínea d) deverá corresponder a um prejuízo concreto que, nas concretas circunstâncias do caso, tenha sido efetivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso à apresentação a insolvência
5. Cabia aos credores, o dever de virem reclamar tais prejuízos o que não aconteceu
6. Alias nenhum dos credores levantou este assunto em processo.
7. A recorrente estava e sempre esteve de boa-fé
8. Não sonegou bens, não os factos, o que poderia fazer caso estive a atua de má-fé ou de forma dolosa
9. Tanto mais que nenhum credor foi prejudicado
Nestes termos e nos demais requer-se a V. Exa que seja revogada a sentença que decretou a insolvência como dolosa por não se encontrarem reunidos os pressupostos legais para o efeito com as legais consequências legais
ASSIM SE FARÁ A ACOSTUMADA JUSTIÇA” [ [1] ].

O Ministério Público apresentou contra-alegações, propugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

Cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de 1ª instância deu como assente a seguinte factualidade:
 1. A V..., Lda., pessoa coletiva n.º …., com sede na Av. … , Sintra, foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 24 de junho de 2005, transitada em julgado, tendo sido nomeado para assumir as funções de administrador da insolvência o Sr. Dr. DD. 
2. O processo de insolvência teve início no dia 26 de outubro de 2004, a requerimento da credora Iberográfica - Importação e Exportação, Lda.
3. A V..., Lda. tem por objeto o comércio de produtos e materiais para desenho, publicidade e artes gráficas.
4. A V..., Lda. foi constituída a 10 de abril de 1986, sendo, na sequência de aumento, em 2002, o capital social de €75.000, dividido em três quotas, no valor de €25.000 cada, pertencentes, respetivamente, a MC, HS e MP, suas gerentes, que a administravam e geriam nos seus atos e contratos.
5. Por sentença de 5 de janeiro de 2016, confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º 1309/06.5TYSNT, que correu termos na Instância Local de Sintra, MC, HS e MP foram condenadas pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, previsto e punido nos termos do artigo 227º, n.º 1, a) e b), do Código Penal, cujo teor se dá por integralmente reproduzido [ [2] ].  
6. Conforme demonstrado no âmbito do processo referido em 5., em síntese e com relevo para os presentes:
a) Para o exercício da sua atividade, a V..., Lda. dispunha de instalações devidamente equipadas, contando com diversos computadores, telefax, telefones, mobiliário de escritório, bem como uma frota de viaturas próprias compostas por, pelo menos, três veículos, dois deles comerciais, da marca Volkswagen e um outro de transporte de mercadorias da marca Citroen;
b) Sucede que, em face das dificuldades económicas que a sociedade vinha enfrentando, nomeadamente no pagamento dos impostos devidos, as suas gerentes MC, HS e MP, juntamente com VF, idealizaram, em momento anterior, ou, pelo menos, durante o ano de 2003, um plano com vista a dissipar todo o património da sociedade, para dessa forma, numa previsível situação de insolvência, inviabilizarem o pagamento aos mais diversos credores, quer fosse o Estado quer fosse aos fornecedores privados da sociedade;
c) MC, HS e MP criaram no mês de julho de 2003 a sociedade H2F – Distribuidores de Equipamento e Consumíveis Gráficos, Lda., da qual passaram a ser gerentes, com a mesma sede social da V..., Lda., tendo por objeto social o comércio de consumíveis equipamentos para artes gráficas, produtos para embalagens, artigos para escritório e de informática;
d) A 3 de maio de 2004, no Tribunal Arbitral da Faculdade de Direito de Coimbra, a sociedade Triunfo, S.A. alegou que a sociedade V..., Lda.  tinha celebrado com ela um contrato de promessa de compra e venda, em 28 de novembro de 2003, de um imóvel sito no Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Coimbra, tendo a sociedade V..., Lda. prometido comprar tal fração pelo preço de €150.000, com o compromisso de a escritura ser celebrada até 31 de dezembro de 2003, não tendo, ainda, naquela data procedido à realização da escritura de compra e venda, conforme prometera;
e) Foi, então, homologado por acordo no Tribunal Arbitral de Coimbra a transferência da propriedade da fração para a sociedade V..., Lda., sendo adjudicada à Triunfo, S.A. a totalidade dos créditos vencidos e vincendos que a V..., Lda. tinha sobre os seus clientes, até ao montante da dívida, que seria o valor da parte restante do preço (€135.000);
f) O que não foi mais do que ficção, não tendo havido qualquer transação de verbas, nomeadamente a título de sinal, dadas as dificuldades de tesouraria e de liquidez em contas bancárias e dificuldades de acesso aos créditos por que a V..., Lda. passava já no final de 2002, além de não cumprir os pagamentos devidos à administração tributária, a título de IRC;
g) No dia 10 de setembro de 2004, por escritura pública, MC, HS e MP cederam as respetivas quotas no capital social da V..., Lda. a PP, renunciando à gerência, a qual nomeou como gerente VF;
h) Tal transação da sociedade por parte de MC, HS e MP para PP constituiu um mero e aparente ato de cessão de quotas, sem qualquer troca de verbas, como forma de MC, HS e MP, a partir daquela data, 10 de setembro de 2004, deixarem de assumir ou se subtraírem a qualquer responsabilidade sobre as dívidas da empresa;
i) Data a partir da qual a V...,Lda. deixou de ter atividade regular, encerrando as suas instalações;
j) VF, conluiado com MC, HS e MP, logrou dissipar verbas e património que ainda restava à V..., Lda., até à data em que renunciou à gerência, 14 de fevereiro de 2005;
k) Concretizando, no fim de semana imediatamente seguinte, 11 e 12 de setembro de 2004, MC, HS e MP retiraram das instalações da sociedade todo o equipamento eletrónico, informático, material de escritório e arquivo, bem como todos os veículos pertencentes à frota da sociedade;
l) VF, na qualidade de novo gerente da V..., Lda. enviou cartas a diversos credores para que procedessem ao pagamento dos respetivos créditos já não à V..., Lda. mas à Triunfo, S.A.;
m) Na sequência dessas missivas, a empresa Estúdio Gráfico XXI – Artes Gráficas, Lda., à data credora da sociedade V...,Lda., emitiu o cheque n.º…, do Finibanco, a 17 de novembro de 2004, no valor de €1.999,18, à ordem da sociedade Triunfo, Alimentos Compostos, S.A., e a empresa Graforim Estúdio Gráfico XXI – Artes Gráficas, Lda., à data credora da sociedade V...,Lda., emitiu o cheque n.º…, do BPI, a 15 de novembro de 2004, no valor de €2.176,14, à ordem da Triunfo, Alimentos Compostos, S.A.;
n) Com tal expediente, MC, HS e MP e VF conseguiram que alguns dos créditos da sociedade V..., Lda. fossem desviados e recebidos em proveito próprio, mas com a aparência de pagamento a outra sociedade;
o) No decurso do mês de agosto de 2004, um mês antes do encerramento das instalações, MC, HS e MP procederam à venda de mercadoria que tinham em stock, por preços inferiores aos de aquisição, realizando, desse modo, montantes de um modo rápido e que reverteram na totalidade em seu favor;
p) Para além do envio de missivas e recebimentos dos montantes pagos pelos credores da sociedade V..., Lda., a função de gerência assumida por VF serviu ainda para assinar a escritura de compra e venda de um imóvel, objeto de locação financeira entre o BCP Leasing e a sociedade, por contrato firmado no dia 6 de fevereiro de 2002;
q) Logo no decurso do mês de setembro de 2004, VF, na qualidade de gerente da V..., Lda., enviou uma missiva ao BCP Leasing, S.A., a solicitar a marcação de escritura de compra e venda do referido imóvel a favor de CS;
r) Essa venda haveria de se concretizar, no dia 17 de janeiro de 2005, pelo valor de € 68.989,35, acrescido de € 7.580.96 – valor em dívida ao BCP Leasing, S.A. por parte da V..., Lda., o que perfez um total de €76.570.31, liquidados na integra pelo comprador CS;
s) A venda desse imóvel foi efetuada sem compensação da sociedade V..., Lda. relativamente ao valor das rendas pagas ao BCP Leasing no âmbito do contrato de leasing (e que perfaz o valor da diferença do valor da venda face ao valor de aquisição do imóvel - €91.726,60 por parte da V...,Lda.);
t) As ações descritas levadas a cabo por CS, MC, HS e MP e VF, concretizadas na dissipação e dissimulação do património da sociedade V..., Lda., foram causa direta e necessária da posterior decisão judicial de declaração de falência da sociedade;
u) MC, HS e MP e VF agiram livre, voluntária e conscientemente com o propósito de fazer desaparecer parte do património e diminuir ficticiamente o ativo da sociedade, para desse modo, obstar a que os credores da sociedade conseguissem obter a cobrança coerciva dos seus legítimos créditos à custa dos bens respetivos.     
*
O tribunal de 1ª instância fez ainda consignar como segue:
“Não resulta demonstrada qualquer outra factualidade relevante para apreciação do mérito da causa, nomeadamente que MC, HS e MP, solicitaram à credora Kodac Polychrome Graphics que só apresentasse a pagamento a partir do dia 17 de Setembro de 2004 os cheques, com vencimento a 30 de Agosto de 2004 e 31 de Agosto de 2004, que lhe entregou para pagamento da mercadoria vendida até Setembro de 2004, no valor total de €183.393,45, que, apresentados a pagamento, foram devolvidos por falta de provisão, para, nesse intervalo, esvaziarem o património da insolvente e o seu, já que avalistas”.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635.º e 639.º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5.º, nº 3 do mesmo diploma.
No caso, impõe-se apreciar:
- Da verificação da exceção do caso julgado;
- Da verificação dos pressupostos para a qualificação da insolvência como culposa e da afetação dos respetivos gerentes, ponderando o disposto no art.º 186.º do CIRE, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem e considerando o período juridicamente relevante, de 26-10-2001 a 26-10-2004, extensível até 26-10-2005 (art.º 4.º, nº2), relevando aferir (i) dos pressupostos genéricos para a qualificação e (ii) concretamente, da subsunção dos factos apurados à tipologia enunciada nos números 2 e 3 do referido preceito, considerando estritamente a delimitação feita na decisão recorrida e o teor das conclusões de recurso.

2. Da exceção do caso julgado
Os efeitos do caso julgado podem ser vistos numa dupla perspetiva, tratando-se de realidades distintas: a exceção de caso julgado, exceção dilatória a que alude o art.º 577.º, alínea i) do CPC, aferindo-se pela identidade dos sujeitos, pedido e causa de pedir (art.º 581.º do CPC), pressupondo a repetição de uma causa; trata-se de exceção de conhecimento oficioso e dá origem à absolvição da instância (arts. 578.º e 576.º, n.º 2); e a autoridade do caso julgado, que importa a aceitação de decisão proferida anteriormente, noutro processo, cujo conteúdo importa ao presente e que se lhe impõe, assim obstando que uma determinada situação jurídica ou relação seja novamente apreciada, considerando parte da jurisprudência e doutrina que, nesta aceção, não se exige a tríplice identidade [ [3] ].
Releva, no âmbito da ponderação do caso julgado, o disposto no art.º 185.º e, com relevância para a presente análise, o disposto no art.º 623.º do CPC, aplicável ex vi do disposto no art.º 17.º, n.º 1, salientando-se que se deram aqui como assentes todos os factos dados por provados no processo referido no número 5, sem impugnação desse julgamento para esta Relação, sendo que esses factos integram os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito penal em causa (art.º 227.º do Código Penal).
O confronto entre a insolvência culposa no âmbito dos procedimentos previstos no CIRE (arts. 185.º a 191.º) e a insolvência dolosa prevista no art.º 227.º do Código Penal [ [4] ], permite claramente concluir que estamos perante figuras que têm um alcance distinto, não se sobrepondo nem na sua regulação, nem nos seus efeitos constituindo, pois, dois sistemas sancionatórios em paralelo, mas de diferente cariz.
No âmbito do CIRE está fundamentalmente em causa a fixação de medidas sancionatórias civis às entidades afetadas pela qualificação: a inibição para a prática de determinados atos (art.º 189.º, n.º 2, alíneas b) e c), tendo em vista a proteção do comércio em geral, revelando-se “uma atitude de desconfiança quanto à atuação, na área económica, em relação a quem, pelo seu comportamento, com dolo ou culpa grave, de algum modo contribuir para a insolvência [ [5] ] e, ainda, medidas concretas de proteção dos credores da insolvência, nomeadamente de cariz indemnizatório (art.º 189.º, n.º 2, alíneas d) e e), estabelecendo-se regra específica no âmbito da responsabilidade insolvencial, para além do que sempre resultaria da regra geral vertida na lei civil (art.º 483.º do Cód. Civil).
No caso, verifica-se que não há qualquer sobreposição entre as medidas fixadas na sentença proferida no processo penal e as fixadas na sentença recorrida. Assim, do acórdão proferido pelo TRL em 04-10-2016 no âmbito do Processo Comum que correu termos sob o n.º 1309/06.5TASNT da Secção Criminal (Juiz 3) da Instância Local de Sintra da Comarca de Lisboa Oeste, referido sob o número 5 dos factos provados consta, expressamente, no relatório desse aresto, o seguinte:
“1. No Processo Comum (Julgamento com intervenção do Tribunal Singular) no 1309/06.5TASNT da Secção Criminal (Juiz 3) da Instância Local de Sintra da Comarca de Lisboa Oeste, no qual são arguidos MC, HS e MP e VF, foi a 5 de Janeiro de 2016 proferida a seguinte sentença:
Com os fundamentos expostos, julgo procedente, por provada, a pronúncia e, consequentemente:
I - Condeno o arguido VF pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 2, todos do Código Penal, na pena de 230 (duzentos e trinta) dias de multa à razão diária de e 7,00 (sete euros), no total de € 1.610,00 (mil, seiscentos e dez euros);
2-Condeno a arguida MM pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal, na pena de 420 (quatrocentos e vinte) dias de multa à razão diária de € 4,00 (quatro euros), no total de € I .680,00 (mil, seiscentos e oitenta euros);
3-Condeno a arguida HM pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal, na pena de 420 (quatrocentos e vinte) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros), no total de € 2.100,00 (dois mil e cem euros);
4-Condeno a arguida MR pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal, na pena de 420 (quatrocentos e vinte) dias de multa à razão diária de € 4,00 (quatro euros), no total de € 1.680,00 (mil, seiscentos e oitenta euros)
5-Mais condeno as arguidas solidariamente nas custas da acção penal, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 UC (artigo 514.º, n. º 2 do C.P.P. e artigo 8.º0, n. º 9 do R.C.P.).
Deposite (artigo 372.º, n.º 5 do C.P.P.) e notifique.
Após trânsito:
-Remeta boletins ao registo criminal;
-Comunique ao Exmo. Sr. Administrador da Insolvência".
Ou seja, ponderando as medidas fixadas na sentença recorrida em cumprimento do disposto no art.º 189.º, insiste-se, não há qualquer sobreposição de medidas sancionatórias, não se estando perante decisões iguais, ao contrário do que os apelantes alegam [ [6] ], sendo que não foi obviamente violado o princípio ne bis in idem: os efeitos do caso julgado da decisão penal condenatória fazem-se aqui valer relativamente aos afetados pela qualificação nos precisos temos que especificamente resultam do disposto no art.º 623.º do CPC.
Improcedem as conclusões de recurso.

3. Da verificação dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa
A insolvência é qualificada como culposa ou fortuita (art.º 185.º), sendo “culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” (art.º 186.º, nº1). Trata-se de noção que “vale indistintamente para qualquer insolvente” [ [7] ], independentemente, pois, de se tratar de pessoa singular ou coletiva.
Como corretamente se assinalou na decisão recorrida, são pressupostos da qualificação da insolvência como culposa que:
- O devedor – ou o seu administrador, na aceção do art.º 6.º–, pratique ato que tenha criado ou agravado a situação de insolvência;
- O ato seja praticado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, relevando o disposto no art.º 4.º;
- Que o devedor – ou o administrador – tenha agido com dolo ou culpa grave.
Exigindo-se “não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor e seus administradores, mas também um nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, consistente na contribuição desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência” [ [8] ]. 
Ponderando a dificuldade que por vezes reveste a aferição desses pressupostos, o legislador estabeleceu, nos números 2 e 3 do preceito, determinadas presunções (art.º 350.º do Cód. Civil), que se aplicam, com as necessárias adaptações, às pessoas singulares nos termos do nº4 do art.º 186.º.
Com referência ao nº2 do art.º 186.º, estamos perante presunção inilidível ou iuris et de iure (art.º 350.º nº 2, in fine, do Cód. Civil), como decorre da letra do preceito [ [9] ], cujo alcance se estende não apenas à existência de culpa, mas também à existência do nexo causal entre a atuação do devedor insolvente e a criação ou agravamento do estado de insolvência [ [10] ] [ [11] ] [ [12] ] [ [13] ].
Ao invés, deve ter-se a presunção do n.º 3 do art.º 186º como ilidível (juris tantum), admitindo-se, pois, o seu afastamento perante prova em contrário (art.º 350º, nº2 do Cód. Civil), considerando-se que o seu funcionamento apenas permite que se presuma um dos pressupostos da qualificação como culposa, a saber, a existência de culpa grave, mas não já o nexo de causalidade aludido [ [14] ].
Por último, resta referir que as alíneas a), b), c), d), e), f) e g) reportam-se a atos “destinados a empobrecer o património do devedor”; já as alíneas h) e i) reportam-se a situações de incumprimento de determinadas obrigações legais [ [15] ].
No caso, a sentença recorrida qualificou a insolvência como culposa convocando o disposto nas alíneas a), b) d) e e), número 2 do art.º 186.º e ainda a alínea a) do número 3 do mesmo preceito, com a afetação de MC, HS e MP na qualidade de gerentes.
Cumpre, pois, analisar dessa subsunção ponderando, no entanto, a delimitação que decorre das conclusões de recurso.

4.  Da subsunção do caso ao disposto nos números 2 e 3 do art.º 186.º
A primeira perplexidade que as alegações de recurso suscitam é que os apelantes não formulam qualquer crítica específica à subsunção feita pela 1ª instância, limitando-se, genericamente, à imputação de violação dos “princípios do CIRE” (1ª conclusão), pelo que, quanto a essa matéria, não se vislumbram quaisquer elementos no processo que suportem essa alegação.
Depois, os apelantes limitam-se a invocar que (i) não agiram com dolo nem (ii) ocorreu “lesão dos interesses dos credores”.
Vejamos.
Considerando a factualidade dada por assente, sem impugnação, entendemos, como a 1ª instância, que a conduta das gerentes se deve subsumir ao disposto nas alíneas a), b), d) e e) do n.º 2 do art.º 186.º, estando, pois, indiciado, nos moldes já referidos, que as gerentes agiram com culpa, na sua modalidade mais grave, o dolo, causando prejuízos à sociedade devedora e aos credores, bem como o nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência da devedora.
Mas tem de acrescentar-se que, independentemente dessa prova de cariz indiciário, temos por inequívoco que, no caso, se fez prova efetiva quer do dolo, quer do referido nexo de causal, porquanto ficou demonstrado à saciedade que as gerentes, ao praticarem os negócios jurídicos e atos descritos na factualidade dada por assente, todos realizados durante o ano de 2004, quiseram praticar os mesmos, sabendo que daí resultava prejuízo quer para a sociedade devedora, quer para os credores da sociedade, porquanto, com a realização desses negócios, descapitalizaram a empresa e dissiparam todo o seu património, sendo que é esse património que é garantia do pagamento das dívidas, agindo em conluio e de acordo com um plano previamente traçado – cfr. a factualidade dada como provada, nomeadamente, sob o número 6, em b), t) e u).
A referência constante das conclusões de recurso ao art.º 238.º, n.º 1 alínea d) é despropositada, porquanto estamos perante um incidente de qualificação da insolvência e não perante um incidente de exoneração do passivo restante, que nem sequer se concebe no presente caso, em que a insolvente é uma sociedade comercial.
Sendo que, ao contrário do que é referido nas conclusões de recurso, os credores vieram reclamar tais prejuízos e levantaram este assunto, tanto assim que:
- O valor dos créditos reclamados e reconhecidos pelo AI é superior a 500.000,00€ - cfr. a lista apresentada pelo AI em 03-04-2012 e a sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 21-09-2016, tudo no apenso G), sendo os créditos da “Fazenda Nacional” e do Instituo da Segurança Social IP no valor, respetivamente, de 62.424,62€ e de 3.136,28€;
- As credoras Iberográfica - Importação e Exportação, Lda. e Kodak Polychrome Graphics – Portugal também se pronunciaram, nos presentes autos incidentais, no sentido da qualificação da insolvência como culposa, conforme resulta dos requerimentos apresentados em 10-10-2005 e 12-10-2005, tendo tido intervenção ao longo do processo.
É, pois, evidente a falta de suporte factual e jurídico da alegação vertida nas conclusões 5ª a 9ª, que raiam a má-fé.
Assim sendo, e porque os apelantes não suscitaram qualquer outra questão, mormente tendo em conta as medidas fixadas no âmbito do art.º 189.º, n.º 2 mais não resta senão concluir que improcedem as conclusões de recurso, nem sequer se justificando análise acrescida quanto à subsunção da conduta das gerentes ao disposto no número 3 do art.º 186.º, relativamente ao qual, aliás, nada de pertinente foi indicado nas conclusões de recurso.
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Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes (art.º 527.º, nº 1 do CPC).
Notifique, sendo igualmente a própria credora Iberográfica – Importação e Exportação Lda.

Lisboa, 10-12-2024                                 
Isabel Maria Brás Fonseca
Nuno Teixeira
 Renata Linhares de Castro
  
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[1] Esta Relação procedeu à retificação dos erros de escrita que as alegações de recurso apresentam.
  
[2] Foi junta pelo AI ao processo, em 19-07-2023, cópia do acórdão proferido pelo TRL em 04-10-2026, no processo: 1309/06.5TASNT-L1.
[3] Acórdão do TRL de 10-10-2017, processo: 15446/15.1T8LSB.L1-1 (Relator: Isabel Fonseca).

[4] O artigo 227.º, sob a epígrafe “[i]nsolvência dolosa”, tem a seguinte redação:
“1 - O devedor que com intenção de prejudicar os credores:
a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património;
b) Diminuir ficticiamente o seu ativo, dissimulando coisas ou animais, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexata, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida;
c) Criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros; ou
d) Para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente;
é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - O terceiro que praticar algum dos factos descritos no n.º 1 deste artigo, com o conhecimento do devedor ou em benefício deste, é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, especialmente atenuada.
3 - Sem prejuízo do disposto no artigo 12.º, é punível nos termos dos n.ºs 1 e 2 deste artigo, no caso de o devedor ser pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva e houver praticado algum dos factos previstos no n.º 1”.   

[5] Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2015, Lisboa, Quid Juris, p. 695.
[6] Lê-se no corpo das alegações de recurso:
“A) As recorrentes veem invocar a cxepção do caso julgado
B) As recorrentes já foram condenadas no âmbito de processo crime
C) Cuja condenação já transitou em julgado vide doc. 1
D) Bem assim foram todos condenados por insolvência dolosa
E) Não pode o tribunal do comercio 20 anos depois vir a proferir decisão igual
F) Tanto mais que em doc. 2 se prova a posição do MP
G) Não poderia ter havido decisão proferida
H) Aliás viola a lei”

[7] Carvalho Fernandes e João Labareda, 2015, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Lisboa: Quid Juris, p. 680.

[8] Luís Menezes Leitão, 2019, Direito da Insolvência. Coimbra: Almedina, pp. 285-286.

[9] Assim:
Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: (…)” (sublinhado nosso). 

[10] No sentido de que o “nº 2 do art.º 186º do CIRE estabelece presunções iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade do comportamento do insolvente, para a criação ou agravamento da situação de insolvência” cfr., entre outros, o ac. STJ de 15-02-2018, processo:7353/15.4T8VNG-A.P1.S1 (Relator: José Rainho), acessível in www.dgsi.pt, como todos os demais arestos que aqui se referirem; no mesmo aresto considerou-se que “[a] presunção de culpa fundada na alínea d) do nº 2 do art.º 186º do CIRE aplica-se ao insolvente pessoa singular, sendo para o caso indiferente que não seja uma empresa ou que não seja comerciante”.
É esse, cremos, o entendimento largamente maioritário da jurisprudência, dando-se nota, relativamente a esta 1ª secção do TRL, dos acórdãos de 05-02-2019, processo 664/10.7TYLSB-C.L1-1 (Relator: Maria Adelaide Domingos) e de 23-03-2021, processo 1396/11.4TYLSB-B.L1-1 (Relator: Fátima Reis Silva).
Na doutrina, no mesmo sentido, considerando que verificados os factos tipificados no art.º 186º, nº2 o juiz terá necessariamente de decidir no sentido da qualificação da insolvência como culposa, cfr. Menezes Leitão, obr. e loc. citados e Carvalho Fernandes e João Labareda, obr. e loc. citados. 

[11] A propósito do nº 2 do art.º 186.º escreve Maria do Rosário Epifânio:
 “A doutrina e jurisprudência têm-se questionado acerca do alcance destas presunções: será que também se presume o nexo de causalidade entre a conduta legalmente tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência?
No direito espanhol, fonte direta da inspiração do nosso legislador, a doutrina tem considerado que a prática dos factos elencados é suficientemente gravosa para legitimar a presunção de tal nexo de causalidade. (…)
Tratando-se de presunções inilidíveis, quando se preencha alguns dos factos elencados no nº2 do art.º 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato” (2019, Manual de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, pp.154-155).   
[12] Há autores que distinguem entre a previsão contida nas alíneas a) a g) do nº 2 do art.º 186º, a contida nas alíneas h) e i) do mesmo nº 2 e a previsão do nº 3 do art.º 186º; os factos descritos nas alíneas a) a g) “correspondem indiscutivelmente a presunções (absolutas) de insolvência culposa (ou de culpa na insolvência)” (Catarina Serra, 2012, O Regime Português da Insolvência. Coimbra: Almedina, pp.140-141); cfr., ainda, o ac. STJ de 23-10-2018, processo: 8074/16.6T8CBR-D.C1.S2 (Relator: Catarina Serra).  

[13] O TC já se pronunciou quanto a questões atinentes à inconstitucionalidade da norma contida na alínea a) do nº 2 do art.º 186.º, concluindo não se justificar esse juízo de censura, como decorre, a título exemplificativo, do acórdão n.º 570/2008, de 26-11-2008, processo 217/08 (Relator: Vítor Gomes), podendo transpor-se essa avaliação para as demais alíneas do artigo, por identidade de razões. Cfr., ainda, sobre essas questões, quer na ponderação da culpa, quer do nexo de causalidade, o acórdão nº 136/20 de 03-03-2020, processo 804/19 (Relator: Lino Rodrigues Ribeiro). 

[14] Essa orientação é a que o legislador acolheu na Lei 9/2022 de 11-01, que introduziu alterações ao CIRE, que entrou em vigor a 11 de abril de 2022 (art.º 12.º do diploma) aplicando-se aos processos pendentes à data da entrada em vigor de acordo com o regime transitório fixado no art.º 10.º Assim, para além de alterar a redação do nº2, alínea i) do art.º 186.º, alterou-se igualmente o nº 3 do preceito, mediante a introdução do advérbio “unicamente”, passando a consignar-se que “[p]resume -se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido”; em suma, o legislador veio agora consagrar expressamente a orientação já acolhida quase unanimemente pela doutrina e jurisprudência. 

[15]  Menezes Leitão, obr. cit. p. 286.