PROCESSO DE INVENTÁRIO
PROVA PERICIAL
AVALIAÇÃO
PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Sumário

SUMÁRIO (art. 663º, n.º7, do CPC):
I. A avaliação prevista no art. 1114º, n.º1, do CPC, não corresponde a um direito incondicional, estando a sua realização dependente de o requerente indicar as razões porque discorda do valor pelo qual os bens estão relacionados.
II. O cumprimento de tal ónus não exige a indicação do valor que deve ser atribuído ao bem.
III. Nos casos em que está em causa o relacionamento de participações sociais pelos seus valores nominais, o cumprimento do aludido ónus basta-se com a alegação de que os mesmos não correspondem ao valor de mercado das mesmas.

Texto Integral

acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO.
Nos autos de inventário n.º 4316/17.9T8FNC-B, instaurados ao abrigo do art. 740º, n.º1 e 2, do CPC, figuram como interessados, além de outros:
1. A …, que desempenha as funções de cabeça-de-casal;
2. B ….
A interessada A …, por requerimento junto a 17-05-2024, convocando o disposto no art. 1114º do CPC, requereu que se procedesse à avaliação das quotas sociais que constituem as verbas n.º 1 e 2 da relação dos bens a partilhar, alegando que os valores constantes das respectivas verbas não reflectem o valor patrimonial dos respectivos negócios.
As verbas referidas têm a seguinte descrição:
- Verba n.º1: “Uma quota com o valor nominal de €8.909,04 (oito mil novecentos e nove euros e quatro cêntimos) no capital da sociedade comercial " C …, Lda", com sede na Rua …, n.e t- …, Largo do Poço, freguesia e concelho de Câmara de Lobos, que gira com o capital social de €26.727,12 (vinte e seis mil setecentos e vinte e sete euros e doze cêntimos) matriculada na Conservatória de registo comercial de Câmara de Lobos sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva …/...  - Doc n.º 1. --------------------------------------€8.909,04”;
- Verba n.º2: “Uma quota com o valor nominal de €5.000 euros (cinco mil euros) no capital da sociedade comercial " D …, Lda", com sede na Rua da …, n. …- …, Largo do Poço, freguesia e concelho de Câmara de Lobos, que gira com o capital social de €15.000,00 (quinze mil euros) matriculada na Conservatória de Registo Comercial de Câmara de Lobos sob o numero único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva …- Doc. n.º 2. ------------------------------------------- €5.000,00.
Notificados de tal requerimento, os demais interessados nada disseram.
A 25-06-2024, foi proferido despacho com os seguintes termos, no que à apreciação do requerimento mencionado respeita:
“Pelos motivos invocados, e por ser tempestivo o pedido (artigo 1114.º n.º 1 do CPC), defiro o requerido e determino que a secretaria solicite à Ordem dos Revisores Oficiais de Contas a indicação dos avaliadores.
Notifique.”.
O despacho mencionado foi notificado, com cópia, aos Ilustres Mandatários dos interessados acima referidos por mensagem electrónica remetida a 26-06-2024, como se afere da versão informática do processo de inventário.
A 05-07-2024, foi proferido despacho com os seguintes termos:
“Para a realização da avaliação deferida pelo despacho de 25/06/2024, nomeio os revisores oficiais de contas indicados na conclusão que antecede.
Notifique.”
O despacho referido foi notificado, com cópia, aos Ilustres Mandatários dos interessados acima referidos por mensagem electrónica remetida a 09-07-2024, como se afere da versão informática do processo de inventário.
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Por requerimento junto aos autos a 24-07-2024 e remetido electronicamente nessa data, o interessado B … interpôs recurso das decisões referidas, quer a proferida a 25-06-2024 quer a proferida a 05-07-2024, pugnando, a final, por o despacho datado de 25-06-2024, que deferiu o pedido de avaliação, ser revogado e substituído por outro que indefira o pedido por falta de pressupostos legais do artigo 1114º, por falta de fundamentação, e em violação do disposto nos arts. 475º e 476º do CPC, e, em consequência, pela revogação do despacho de 05-07-2024
Apresenta as seguintes conclusões, que se transcrevem:
A. O presente Recurso tem por objeto o Despacho datado de 25/06/2024 Ref.ª Citius …, que deferiu o pedido de avaliação nos termos do art. 1114º do CPC, e no seguimento, o Despacho de 05/07/2024 Ref.ª Citius …, que procedeu à nomeação dos peritos
B. Entende o Recorrente, que o pedido de avaliação requerido pela Recorrida e o Despacho que determinou a avaliação das ditas verbas não cumprem com os pressupostos legalmente exigidos e previstos no artigo 1114º, por força dos artigos 475º e 476º do CPC.
C. A Recorrida fundamentou o pedido de avaliação sustentando somente que os valores indicados nas referidas verbas não refletem o valor patrimonial dos respetivos negócios. O que no entender do Recorrente não cumpre minimamente o pressuposto legal “da razão sobre a não aceitação do valor que lhes é atribuído”, como exigido pelo artigo 1114º do CPC, principalmente porque foi a Recorrida quem indicou o valor dos bens na dita Relação de Bens.
D. Não foram indicados o objeto e as questões da perícia de avaliação dos bens, tanto no requerimento da Recorrida como no Despacho datado de 25/06/2024 Ref.ª Citius …, fazendo tábua rasa às mais elementares normas processuais previstas nos artigos 467º e seguintes do Código de Processo Civil - também aplicável por maioria de razão à avaliação de bens prevista no artigo 1114º -, especificamente ao estabelecido nos artigos 475º e 476º do CPC.
E. Assim, deve o Despacho datado de 25/06/2024 Ref.ª Citius … ser revogado e substituído por outro que indefira o pedido de avaliação por falta de verificação dos requisitos legais, e consequentemente proceder-se à revogação do Despacho de 05/07/2024 Ref.ª Citius … por maioria de razão.
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Por requerimento junto a 17-09-2024, a cabeça-de-casal respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência e apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
A) No âmbito do novo regime do inventário introduzido pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, foi adoptado um modelo procedimental que assenta numa definição de fases processuais relativamente estanques, assentando num princípio de concentração, em que determinado tipo de questões deve ser necessariamente suscitado em certa fase processual e não nas posteriores.
B) Sendo o processo de inventário um processo especial, o regime de recursos introduzido pelo art. 1123.º também o é e não pode deixar de ser interpretado dentro do contexto em que decorre processualmente, o processo de inventário.
C) Nesse sentido e por forma a dar conteúdo à nova estrutura do processo que se pretende célere e estanque nas suas fases processuais, só seria admissível recurso da decisão de saneamento a que se refere o art. 1110.º do CPC, nos termos da al. b), do n.º 2 do art. 1123.º do CPC, face ao que, seria de rejeitar o presente recurso, por extemporaneidade.
D) Efectivamente, quando o n.º 1 do art. 1123.º do CPC refere que “aplicam-se ao processo de inventário as disposições gerais do processo de declaração sobre a admissibilidade, os efeitos, a tramitação e o julgamento dos recursos” quer-se seguramente referir às decisões que admitem recurso a que alude o art,. 629.º do CPC enquanto disposição geral do CPC e não ao art. 644.º do CPC, invocado pelo recorrente, uma vez que, para o inventário e para a sua estrutura procedimental especial deste processo, aplicar-se-á a norma especial do art.1123.º do CPC sob
epígrafe “regime de recursos”.
E) O ora recorrente foi notificado da peça processual do cabeça de casal que requeria a realização de prova pericial e a ele não reagiu contra a sua alegada falta de fundamentação, conformando-se com o seu teor. Não é o presente recurso o meio idóneo, para, em prima facea, reagir contra a sua fundamentação.
F) O n.º 1 do artigo 1097.º do CPC determina que o processo de inventário, que se destina a fazer cessar a comunhão hereditária, tem início com a entrada em juízo do requerimento inicial, apresentado pelo cabeça de casal a que deve juntar, nos termos da al. c), do n.º 2 desse mesmo normativo, a relação de todos os bens sujeitos a inventário.
G) O n.º 1, do art.1098.º do CC, determina que na relação de bens, o cabeça-de-casal indica o valor que atribui a cada um dos bens, sendo que, no que ao caso interessa, o valor das participações sociais é o respectivo valor nominal, ditame que a cabeça-de-casal cumpriu ao descrever as participações sociais (verbas 1 e 2 da relação de bens), indicando o seu valor, que é o valor nominal, que consta do respectivo registo comercial competente.
H) No processo de inventário a forma de corrigir o valor dos bens relacionados é a reclamação contra o valor atribuído.
I) A abertura das licitações constitui o termo final para a dedução do requerimento de avaliação de bens (art. 1114º do CPC).
J) A partilha pretende-se equitativa e justa; a justa determinação do valor constitui regra de imperativa aceitação, pois é mercê dela que vai atribuir-se a cada um aquilo a que tem legítimo direito.
K) Deve o Tribunal ad quem confirmar os despachos em sindicância seja por inadmissibilidade legal do presente recurso nos termos do art. 1123.º n.º2 al. b), por extemporaneidade e bem assim, caso não se entenda, por oportuno e fundamentado requerimento de perícia.
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A 23-09-2024, foi proferido despacho que não admitiu o recurso
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O interessado B …, por requerimento junto a 09-10-2024, apresentou reclamação do despacho referido, com fundamento no art. 643º, n.º1, do CPC, pugnando pela admissão do recurso por si apresentado.
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Por decisão desta Relação proferida a 06-11-2024, decidiu-se deferir a reclamação e, em consequência, considerou-se sem efeito o despacho reclamado e determinou-se a subida do recurso de apelação interposto, caso no Tribunal recorrido nenhum outro obstáculo exista à sua admissão e remessa.
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Por despacho proferido a 14-11-2024, determinou-se a remessa do recurso a esta Relação.
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II.
1.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635º, n.º4, 636º e 639º, n.º1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608º, n.º2, parte final, ex vi do art. 663º, n.º2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, no caso, atendendo às conclusões transcritas, a intervenção deste Tribunal de recurso é circunscrita à seguinte questão, considerando a sua dependência:
- Saber se a avaliação requerida pela interessada A … a 17-05-2024 deve, ou não, ser realizada.
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2.
A factualidade a ponderar na presente decisão é a que resulta da marcha do processo, acima descrita, que aqui se dá por reproduzida.
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3.
Os presentes autos respeitam a processo especial de inventário movido, ao abrigo dos arts. 740º e 1135º do CPC, por apenso a processo executivo instaurado contra um dos ex-cônjuges, sendo a obrigação exequenda apenas da sua responsabilidade, onde foi penhorado património comum do casal. Estão sujeitos ao regime constante dos arts. 1133º, 1082º e ss. do mesmo código (cf., a propósito, o art. 1084º, n.º2, do CPC).
De acordo com o disposto no art. 1114º, n.º1, do CPC, até à abertura das licitações (em sede de conferência de interessados), qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.
Tendo a interessada A … requerido, ao abrigo do aludido preceito, que se procedesse à avaliação das quotas sociais, a 25-06-2024 foi proferida a decisão impugnada que, acolhendo os motivos invocados, deferiu o peticionado, determinando a realização da avaliação mencionada, e, nessa sequência, a 05-07-2024, foi proferida nova decisão, também impugnada, no sentido da nomeação de peritos para a realizarem.
Os motivos invocados na decisão de 25-06-2024 para determinar a realização da aludida avaliação de quotas são, atenta a remissão nela feita, os invocados pela interessada requerente, que se reconduzem à existência de discrepância entre os valores das cotas constantes da relação dos bens a partilhar e o seu valor de mercado ou venal.
O recorrente entende que o alegado pela interessada A … para sustentar o pedido de avaliação das quotas sociais mencionadas, assumido na decisão que o deferiu, não cumpre a exigência, consagrada no art. 1114º, n.º1, do CPC, de invocação das razões da não aceitação do valor atribuído aos bens a avaliar na relação de bens.
Conforme referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (CPC Anotado, vol. II, 2ª edição, Livraria Almedina, 2024, p. 634, nota 6), a avaliação consagrada no preceito aludido não corresponde a um direito incondicional, estando essa pretensão “sujeita a controlo judicial, tendo em vista evitar os efeitos dilatórios que poderiam emergir de uma indiscriminada avaliação de bens”. Na esteira do referido pelos aludidos autores, entende-se que mostra-se necessário que “o requerente indique as razões porque discorda do valor pelo qual os bens estão relacionados, sob pena de indeferimento de tal pretensão”, ainda que não seja imprescindível a indicação de qualquer valor alternativo, que, a ocorrer, não vincula o perito, que, segundo os critérios que adoptar, apresentará o valor que atribui aos bens.
Como se assume no acórdão do TRP de 30-06-2022 (processo n.º 609/20.6T8SJM.P1, acessível em www.dgsi.pt), referente a situação semelhante à que se aprecia, “não se exige aqui uma alegação de pendor contabilístico justificativa da diferença entre o valor do bem constante da relação de bens e o valor que, na perspetiva do requerente, lhe deve ser atribuído. O interessado não é um perito, nem se debate aqui um negócio numa ação declarativa comum, onde se pretenda a condenação de um réu no pagamento do valor de um bem cujas caraterísticas devam ser descritas na causa de pedir. O que se visa aqui não é mais do que influenciar o tribunal sobre necessidade de proceder à avaliação do bem.”
No caso dos autos, a avaliação requerida pela interessada A … respeita a duas participações sociais, sendo que os valores constantes da relação de bens são os respectivos valores nominais, como decorre do disposto no art. 1098º, n.º1, do CPC.
Os valores nominais das participações sociais (tal como os valores matriciais dos imóveis) não correspondem, necessariamente, aos seus valores reais ou de mercado, sendo frequente a ocorrência de discrepância entre ambos.
Entende-se, face ao referido, que a alegação da interessada A … no sentido de que os valores das participações sociais constantes da relação de bens não correspondem aos respectivos valores patrimoniais (não reflectem o valor patrimonial dos respectivos negócios), cumpre a exigência consagrada no art. 1114º, n.º1, do CPC.
Tendo a decisão impugnada de 25-06-2024 assumido a discrepância alegada pela interessada para determinar a realização da avaliação, tem-se a mesma como respeitadora da norma consagrada no art. 1114º, n.º1, do CPC, não merecendo, por isso, reparo a esse propósito.
Por outro lado, a avaliação determinada na decisão referida encontra-se sujeita ao regime da prova pericial consagrado nos arts. 467 e ss. do CPC, salvo no que contenda com o disposto no art. 1114º, n.º 3 e 4, do CPC (cf., no mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Livraria Almedina, Julho de 2020, p. 115, nota 5).
Por força do disposto no art. 475º, n.º1, do CPC, a parte que requerer a perícia deve logo indicar o seu objecto, sob pena de rejeição.
Por sua vez, o juiz, no despacho que ordene a perícia, deve fixar o seu objecto, nos termos do estatuído no art. 476º, n.º2, do CPC.
No caso dos autos, a interessada A …, no requerimento onde pediu a realização da avaliação, indicou as duas participações sociais acima mencionadas como seu objecto, assim cumprindo o ónus consagrado no art. 475º, n.º1, do CPC, a que estava sujeita. Razão porque se entende que o fundamento para a rejeição da avaliação requerida previsto no preceito mencionado não ocorre.
Da decisão impugnada proferida a 25-06-2024 afere-se, plenamente, ainda que por referência ao requerimento que aprecia, que o objecto da avaliação a realizar respeita às duas participações sociais mencionadas, em integral cumprimento do disposto no art. 476º, n.º2, do CPC.
Pelo exposto, a decisão impugnada proferida a 25-06-2024 e, consequentemente, a decisão, também impugnada, de 05-07-2024, devem ser mantidas e a avaliação de ser realizada.
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Conclui-se, assim, pela improcedência do recurso.
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4.
Considerando a improcedência da apelação, o recorrente deverá suportar as custas do recurso (art. 527º, n.º1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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III.
Em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o Colectivo desta 2ª Secção em julgar o recurso improcedente e, em consequência, manter as decisões recorridas.
Custas do recurso pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique.

Lisboa, 19-12-2024.
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Caetano Besteiro
Arlindo Crua
António Moreira