PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
DIREITO À PROVA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
INCIDENTE DE INSTÂNCIA NÃO TIPIFICADO
APRESENTAÇÃO DE PROVA
PODER INQUISITÓRIO
Sumário


I Quando o art.º 3º, n.º 4, do anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98 de 1/9, refere que “As provas são oferecidas na audiência (…)”, reporta-se ao início da audiência, sem prejuízo da sua apresentação em momento anterior, e do previsto noutras disposições legais que sejam aplicáveis aos procedimentos ali regulados.
II O pedido de condenação da parte como litigante de má-fé é um verdadeiro incidente da instância, não tipificado, que corre nos próprios autos, relativamente ao qual impõe-se cumprir o princípio da defesa e do contraditório, nomeadamente permitindo a apresentação de prova.
III Estando em causa a má-fé substancial (art.º 542º, n.º 2, a) e b), C.P.C.), porque se invoca a infração do dever de verdade, a matéria a que respeita, é a matéria da causa, não é exclusiva do incidente, configurando uma questão controvertida acessória e secundária relativamente ao objeto da ação.
IV Deve ser admitido, por tempestivo, um requerimento de contraprova relativamente a essa matéria, suscitado após o momento temporal definido em I, sem prejuízo de se aferir da pertinência e necessidade das diligências requeridas, bem como e em concreto dos requisitos de admissibilidade das mesmas.
V Para além da questão da oportunidade temporal, no âmbito dos poderes deveres previstos no art.º 411º do C.P.C., cabe ao Tribunal aferir da pertinência e necessidade de meios probatórios suscitados pelas partes, tendo em vista o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer, nomeadamente os instrumentais que resultem da instrução da causa, nela incluída a produção de prova documental.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I RELATÓRIO (através de consulta eletrónica dos autos principais).

A EMP01..., S.A., autora nos autos (A.), propôs procedimento de injunção contra a ré EMP02..., Lda (R.), pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia global de € 13.160,57, sendo € 7.672,23 de capital, € 4.771,34 de juros, € 615,00 de custas razoáveis com o processo, e € 102,00 de taxa de justiça paga.
Alegou o fornecimento de bens, respetivas faturas, valor, data de emissão e vencimento.

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A R. apresentou oposição, invocando a ineptidão do requerimento, e pedindo a sua absolvição da instância; invoca a prescrição dos juros e nega dever qualquer quantia à A., pedindo, por estes fundamentos, a sua absolvição dos pedidos.
Em 21/12/2021 as partes foram notificadas do envio do processo à distribuição.
Em 8/1/2022 a A. veio requerer, além do mais, a junção de 11 documentos referidos no seu requerimento injuntivo.
Em 13/1/2022 a R. veio, além do mais, dizer:
“Tendo sido notificada do requerimento apresentado pela Autora (Ref.ª ...95); relega para momento ulterior, qualquer reação que a documentação ali apresentada possa merecer-lhe; e quando notificada para o efeito pelo tribunal, por se considerar inegavelmente que existe questão prévia a que o tribunal deverá responder; até porque a junção ora ocorrida, em nada afasta o vício verificado em sede de Injunção, que não pode assim ficar sanado; existindo factos que obstam à apreciação do mérito da acção, nomeadamente a excepção de ineptidão da petição inicial, devido à falta de indicação – nos requisitos exigidos por lei – da causa de pedir, o que se arguiu, oportunamente, nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 2 al. a) do Código de Processo Civil; o que sempre implicará a Absolvição da Requerida/Ré da Instância.”
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De seguida foi proferido despacho concedendo à A. o exercício do direito ao contraditório relativamente à exceção invocada pela R..
A A. pronunciou-se pugnando pela sua improcedência.
Foi proferido despacho que julgou a nulidade decorrente da dita ineptidão improcedente, mais se determinando:
“Ao abrigo do disposto no artigo 17º, n.º 3 do D.L. n.º 269/98, de 01.09 (na redação conferida pela Lei n.º 117/2019, de 13/09), e antes do mais, convido a Requerente a apresentar articulado, onde concretize circunstanciadamente os factos que invoca, designadamente o tipo de contrato, quando teve o seu início, o que foi contratado, em que termos, preços e condições, isto porque sendo certo que as faturas juntas poderão valer como documento para prova do alegado, não substituem, contudo, a sua alegação.
Vindo, notifique a ré para, querendo, exercer o seu direito ao contraditório, impugnando, se for o caso, a factualidade alegada pela autora.”
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A A. apresentou petição inicial corrigida, referindo quanto aos meios de prova a junção dos 11 documentos, e ainda, respeitante a “Por confissão”, pediu o depoimento de parte do gerente da R. à matéria ínsita nos artigos 1º a 23º, e respeitante a prova “Testemunhal”, indicou três testemunhas.
A R. pronunciou-se, concluindo pela sua absolvição do pedido.
Nessa sequência, a A. apresentou requerimento em que diz que face ao facto de a R. assentar a sua estratégia na inidoneidade das faturas juntas como meio de prova, ao abrigo do princípio da cooperação ínsito no art.º 7º do C.P.C., requer que se ordene a notificação da R. para informar os autos, com junção dos respetivos documentos contabilísticos devidamente comprovativos, se incorporou ou não na sua contabilidade as ditas faturas.
Sobre este requerimento incidiu o seguinte despacho, proferido em 28/4/2022:
“Referência ...03
Considerando que o articulado em apreço dirigido aos autos pela autora não tem suporte legal, nem resulta do convite efetuado pelo Tribunal, desentranhe-se os mesmos e devolva ao apresentante. – artigo 1.º e 3.º DL 269/98 de 01/09.”
Foi marcada audiência de julgamento e foi dito ainda:
“Sem prejuízo do disposto no artigo 3.º, n.º 4 do DL 269/98 de 1 de setembro, por razões de celeridade e economia processual e com vista a um melhor andamento dos trabalhos no decurso da audiência final, convido, desde já, as partes a juntarem aos autos toda a prova documental que pretendam juntar.”
Em 14/6/2022 a A. apresentou requerimento, juntando 30 documentos.
Na data marcada para audiência de julgamento, em 15/6/2022, e conforme ata redigida, consta:
“Declarada aberta a audiência à hora designada, pelos Ilustres Mandatários das partes foi dito que prescindem da gravação dos requerimentos, respostas e despachos a proferir nesta audiência.
De seguida, a R. pediu prazo para exercício do contraditório, e apresentou uma testemunha. A A. disse não se opor a que não se dê início aos trabalhos.
Foi proferido o seguinte despacho:
“Admite-se a prova documental junta pela autora e, face à extensão da mesma (31 documentos), concede-se ao Ilustre Mandatário da ré o prazo de vista, por se entender, face ao volume dos documentos, não lhe ser exigível que tome posição sobre os mesmos de imediato.
No mais, e face à não oposição da autora quanto ao início dos trabalhos no dia de hoje, face à necessidade de contraditório dos referidos documentos, relegar-se-á a produção da demais prova para data a designar.
Admite-se a prova testemunhal apresentada pela autora e pela ré, sem prejuízo de, na data que vier a ser designada, as partes se fazerem acompanhar de mais testemunhas, face à prova documental ora apresentada.
Para a produção da prova testemunhal fica já designada, de acordo com as agendas dos Ilustres Mandatários, o dia 14 de Setembro de 2022, às 14:15 horas.”
A R. pronunciou-se, mais pedindo a condenação da A. como litigante de má-fé, e pretendendo que se extraia da prova documental natureza confessória.
Em resposta à litigância de má-fé, em 11/7/2022, e “Face á posição da Ré sobre os documentos juntos pela Autora e ao que ora peticiona contra ela Autora”, a A. requereu que se procedesse a perícia singular com vista a apurar se as faturas e recibos foram ou não incorporados na contabilidade da R. em 2013/2014, requereu que se notificasse a R. ao abrigo do art.º 7º do C.P.C. para informar se incorporou os mesmos na sua contabilidade, e pediu a notificação do Banco 1... e da ATA para juntar documentos e prestar informações, respetivamente. Juntou dois documentos.
Em nova data de realização de audiência de julgamento (14/9/2022) foram apresentados requerimentos/resposta por ambas as partes, pugnando a R., além do mais, pela intempestividade da prova junta. Foi proferido despacho no sentido de que a questão seria decidida por despacho.
Por requerimento de 16/9/2022, referindo-se ao art.º 3º, n.º 4, do anexo ao DL n.º 269/98 (invocando que está em tempo de oferecer as suas provas) e ao art.º 411º do C.P.C. (invocando que compete ao juiz ordenar oficiosamente as diligências que considere pertinentes ao objeto do litígio e à descoberta da verdade material), a A. veio reiterar os seus pedidos de diligências de prova (invocando os art.ºs 7º e 417º, C.P.C., e 4º, n.º 5, do anexo ao DL n.º 269/98), e acrescentar, ao abrigo do art.º 417º do C.P.C., novos pedidos de informação à “EMP03..., Lda.”, à Câmara Municipal ..., à ATA, bem como apresentar quesitos relativos à perícia singular.
A R. pronunciou-se pela inadmissibilidade dos reajustes na sua versão que a A. pretende fazer.
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De seguida foi proferido o seguinte despacho:
“Por requerimentos de 11/07/2023 (Ref.ª ...67) e de 16/09/2022 (ref.ª ...86), veio a Autora requerer um conjunto de prova.
Ora, art.º 3.º, n.º 4 do regime anexo ao Decreto-Lei nº 269/98, de 01/09, ao referir que “[a]s provas são oferecidas na audiência”, quer significar que o oferecimento das provas deve ocorrer no início da audiência.
Compulsados os autos, constata-se que, em 15/06/2022, foi iniciada a audiência, tendo sido admitida a prova arrolada quer pela Autora, quer pela Ré, somente não se dando “início aos trabalhos”, ou seja, à produção de prova testemunhal, “face à necessidade de contraditório” dos documentos juntos pela Autora a 14/06/2022 (ref.ª ...60) – cfr. ata de audiência de discussão e julgamento com a ref.ª ...56.
Isto posto, não tendo a Autora, no início de tal audiência, requerido o conjunto de prova suprarreferido, logo se conclui que tal pedido é extemporâneo, razão pela qual, por ora, vai o mesmo indeferido.
Notifique.
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Compulsados os autos, constata-se que, efetivamente, parte das guias de remessa juntas aos autos pela Autora a 14/06/2022 (ref.ª ...60) se encontram ininteligíveis.
Assim, antes de mais, notifique a Autora para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos os originais de tais guias de remessa, sendo certo que, após, o Tribunal determinará os ulteriores termos do processo, pronunciando-se relativamente aos requerimentos efetuados em 14/09/2022 (ref.ª ...79).
Notifique.”
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Inconformada, a A. apresentou recurso com alegações (consultadas nos autos principais) que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem, consultadas nos autos principais)

“1. O presente recurso visa a reapreciação do indeferimento dos requerimentos probatórios de 11.07.2022 (Ref.ª ...67) e de 16.09.2022 (ref.ª ...86):
2. Ora, independentemente do texto do disposto no n.º 4 do artigo 3.º do Anexo ao D.L. n.º 269/98, de 01 de setembro, o mesmo deve ser interpretado sistemicamente, tendo em conta sempre o princípio da justiça e do inquisitório que aponta sempre para o apuramento da verdade material e da justa composição do litígio, e, bem assim, o princípio da igualdade de armas entre as partes.
3. Com efeito, atentas determinadas circunstâncias, as provas possam ser oferecidas quer antes, quer até ao encerramento da discussão da causa, em primeira instância.
4. Tal como, de resto, aconteceu no presente caso, com o tribunal a sugerir isso às partes, antes do início da audiência.
5. Assim, quanto ao requerimento de 11.07.2022 (Ref.ª ...67), o mesmo foi junto em resposta ao Requerimento da Ré de 11.07.2022 (com a Ref.ª ...67), o qual, por sua vez, veio em resposta ao requerimento probatório da Autora, feito a convite do próprio tribunal, no qual a Ré peticionou, entre o mais, a condenação da Autora como litigante de má-fé.
6. Perante esse pedido, independentemente do momento em que é feito, tem a Autora direito ao contraditório e a oferecer provas, para evitar a sua condenação, que foi o que fez, antecipando convite do tribunal para o efeito (cfr. artigo 3.º, n.º 3 do CPC)
7. Assim, para além de os referidos elementos probatórios serem admissíveis e pertinentes para o apuramento da verdade e justa composição do litígio e, por conseguinte, passíveis de serem mesmo admitidas ao abrigo do disposto no artigo 411.º do CPC, os mesmos deveriam ser admitidos no estrito contexto da defesa do ataque da Ré, sobre a litigância de má-fé da Autora, por força do princípio da igualdade de armas.
8. Uma vez que a Autora não poderia adivinhar previamente que a Ré iria desferir esse ataque.
9. Sem prescindir, a sessão de 15 de junho p.p.º abriu-se, mas apenas para se pronunciar sobre a questão do requerido prévio contraditório da Ré aos documentos previamente juntos pela Autora.
10. Pelo que, tendo ficado a sessão por aí, o Mmo Juiz da causa nem sequer se chegou a pronunciar sobre os requerimentos probatórios previamente requeridos pela Autora – quer o rol de testemunhas, quer os documentos que foram juntos ao logo de vários requerimentos.
11. Simplesmente foi suspensa a audiência nesse preciso momento, sem que o tribunal se pronunciasse sobre a dita prova, e sem dar oportunidade à Autora de apresentar outra prova complementar que entendesse por conveniente.
12. Pelo que não pode a Autora ser coartada de oferecer a sua prova, mesmo que se considere que a audiência foi aberta, mas logo, e sem mais, suspensa.
13. Pelo que também por esta razão não poderia ser indeferido o requerido. Por outro lado,
14. Quanto ao requerimento de 16.09.2022 (ref.ª ...86), o mesmo surgiu no seguimento dos novos requerimentos e argumentos esgrimidos pela Ré para insistir no pedido de litigância de má-fé da Autora, que integram a ata da audiência de 14.09.2022.
15. Ora, perante o conteúdo dos mesmos, entendeu a Autora reforçar a sua defesa, no que concerne à requerida perícia, e ainda requerer que se oficiassem a entidades externas para juntarem aos autos prova que estava em seu poder.
16. Ou seja, a audiência ter sido aberta apenas para tratar dos requerimentos orais reproduzidos na ata, e logo encerrada.
17. Pelo que, para além de se ter prosseguido sem dar oportunidade á Autora para requerer a produção da sua prova, a verdade é que foi requerida por via escrita, através do requerimento em epígrafe, se mostrava absolutamente pertinente, quer por via do princípio do contraditório, quer do inquisitório, quer da igualdade de armas e da descoberta da verdade material.
18. Assim, e ambos os casos, a Autora, para além de ainda estar em tempo, mesmo que assim não se entendesse, viu-se obrigada a defender-se do referido duplo ataque da Ré quanto a uma questão novo que suscitou nos autos – litigância de má-fé -, abrindo assim a oportunidade da Autora em poder defender-se de acordo com os meios e armas processual que tinha ao seu dispor, a saber, a produção de prova para demostrar a sua probidade, lealdade e boa-fé na lide.
19. Assim, tendo sido violado o disposto nos termos conjugados do artigo 3.º, n.º 3, 7.º e 411.º do CPC, tal como os princípios da igualdade de armas, do contraditório e da descoberta da verdade material, deverá a decisão de que se recorre ser revogada, em sua substituição, se a admitida a requerida prova, ínsita nos referidos requerimentos”.
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Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal, conforme despacho proferido pela relatora.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos art.ºs 608º, n.º 2, 609º, n.º 1 (ex vi 663º, n.º 2), 635º, n.º 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos. Todavia, não pode o Tribunal conhecer questões que não tenham prévia e/ou oportunamente sido suscitadas, uma vez que o nosso sistema recursivo visa apenas (re)apreciar decisões proferidas, com respeito pelo trânsito em julgado que sobre as demais tenha recaído –art.ºs 627º e 628º do C.P.C..
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-se os requerimentos probatórios apresentados pela A. em 11/7/2022 (e não 2023 como por lapso se refere no despacho recorrido) e 16/9/2022 devem ser admitidos.
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III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Assim delimitado o objeto da apelação, os factos a atender são os que constam do relatório e que se reportam à tramitação processual (e teor dos requerimentos e despachos indicados), que decorre da consulta do processo principal.
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IV MÉRITO DO RECURSO.

O mérito dos presentes autos prende-se com a vertente processual do exercício do direito à prova, matéria já tratada em anteriores decisões da mesma relatora e que por isso será aqui abordada nos mesmos termos.
Começamos por abordar a questão em geral, e depois no caso particular dos autos, iniciados através de requerimento injuntivo.
No que concerne ao direito à prova, começa por dispor o art.º 341º do C.C. que as provas têm como função a demonstração da realidade dos factos.
O direito à prova decorre da garantia constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva que emana do art.º 20º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. Concretamente no seu n.º 4 diz-se que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.”
O direito à prova implica que as partes têm o direito a utilizar a prova em seu benefício e como fundamento das suas pretensões ou defesas. Têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal, bem como o direito à contraprova –veja-se o Ac. desta Relação de 25/11/2021 (relatora Margarida Almeida Fernandes, www.dgsi.pt).
O direito à prova constitui por isso também uma vertente do princípio do contraditório, e exige que à parte seja, em igualdade, facultada a proposição de todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa. E por força do contraditório as partes têm também direito à admissão de todas as provas relevantes para o objeto da causa, pelo que o juiz não pode, em despacho de admissão das provas ou na fase da instrução, rejeitar um meio de prova por irrelevância, baseado na convicção que já tenha formado quanto à não verificação do facto que se pretende provar através desse meio; apenas é admissível que o faça quando, ao invés, esteja já convencido da verificação do facto que a parte pretende provar, sem que haja meios de prova ainda a produzir que possam vir abalar essa convicção –José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, pág. 213 da 3ª edição. Os mesmos autores destacam as dúvidas face a juízos de constitucionalidade da concessão ao juiz do poder de recusar meios de prova desnecessários (cfr. art.ºs 443º, n.º 1, e 411º a contrario, do C.P.C.).
O procedimento probatório respeita ao esquema dos atos processuais relativos à utilização dum meio de prova, e desenvolve-se ao longo das fases de fixação do objeto da atividade probatória, fixação dos meios de prova, produção de prova e apreciação da prova –Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 206; Castro Mendes, “Do Conceito de Prova em Processo Civil”, pág. 193.
A instrução é orientada pelos factos necessitados de prova e pela incumbência do juiz de realizar ou ordenar mesmo oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer (-pode tratar-se de factos principais -essenciais e complementares-, e factos instrumentais), devendo tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las (art.ºs 410º, 411º e 413º, C.P.C.). Acresce que dispõe ainda o art.º 6º, n.º 1, do C.P.C. que cabe ao juiz recusar o que for impertinente ou meramente dilatório.
Desta conjugação resulta que à requerente, rectius às partes, tal como ao tribunal, importa a realização da verdade material.
A requerente pode ter interesse na obtenção de documentos/informações. Uma parte pode ter interesse na junção de documentos em poder da parte contrária ou de terceiro (art.ºs 429º e 432º do C.P.C.), buscando-se a justificação da pertinência do pedido ao interesse para a decisão da causa. Igual consideração resulta do disposto no art.º 436º do C.P.C., que atribuiu ao tribunal a incumbência de (por sua iniciativa ou a requerimento) requisitar informações (…) ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade.
Também no que respeita à prova pericial, conforme decorre do art.º 388º do C.P.C., recorre-se à mesma quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial. O art.º 476º do C.P.C. volta a recorrer à impertinência e carácter dilatório como fundamento de rejeição da mesma, podendo o juiz alargar o seu objeto ao que for pertinente para os autos, tal como pode ordenar oficiosamente a realização da perícia (art.º 477º do C.P.C.).
Assim, para apreciar do interesse para a decisão da causa de meios de prova requeridos somos remetidos para a aferição da sua pertinência e necessidade.
Veja-se ainda o disposto no art.º 438º, n.º 2, do C.P.C., que sanciona a parte que requereu que se requisitassem documentos que se vem a apurar não assumirem aquele relevo –pertinência e necessidade-, sendo o seu comportamento censurável.
A impertinência resulta do facto de se destinar a provar ou infirmar facto irrelevante para a decisão da causa; será desnecessária se se destinar a provar (ou infirmar) facto já provado.
Já Alberto dos Reis (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. IV, pág. 58) dizia a propósito de provas documentais que “documentos impertinentes são os que dizem respeito a factos estranhos à matéria da causa; documentos desnecessários são os relativos a factos da causa, mas que não importa apurar para o julgamento da acção”.
E em igual tema, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág. 512, dizem que “são desnecessários os documentos que, atento o estado da causa, sejam insusceptíveis de acrescentar um elemento probatório que se repercuta no desfecho da lide, ou por dizerem respeito a factos que já se mostram devidamente comprovados, ou por dizerem respeito a factos que não constam do elenco a apurar na causa, ou ainda por já constar no processo documento de igual ou superior relevo”.
O dever de colaboração ou cooperação do juiz com as partes nunca poderia ir ao ponto de ultrapassar ou fazer letra morta do princípio do dispositivo e do princípio do ónus da prova (art.ºs 3º C.P.C. e 342º C.C.), substituindo o poder do tribunal ao “trabalho” das partes, uma vez que, como dizem António Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Pires de Sousa em anotação ao art.º 436º -“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 508- e remetendo também para o “Processo Civil Declarativo” do segundo autor citado, págs. 372 e 373 da 2ª edição, o princípio do inquisitório não é pretexto para as partes delegarem ou confiarem, sem mais, no tribunal a realização de diligências probatórias, recaindo pois sobre elas o ónus da iniciativa da prova; as competências instrutórias outorgadas ao juiz estão longe de constituir mera faculdade legitimadora de inércia.
De facto, os poderes/deveres inquisitórios do juiz não são ilimitados quanto à determinação de provas. “Se fosse este o alcance, então teríamos de admitir que as partes estavam dispensadas de indicar provas, já que o juiz tinha o dever de procurá-las, de diligenciar, por exemplo, quem residia nas imediações onde ocorreram os factos para verificar se alguém os tinha constatado, ou procurar entre familiares e amigos das partes as possíveis provas que poderiam existir e, claro está, as contraprovas” -cfr. Ac. da Rel. de Coimbra de 12/3/2019 (relator Alberto Ruço, www.dgsi.pt).
Também o Ac. da Rel. de Lisboa de 4/6/2020 (mesmo endereço, relatado por Pedro Martins) refere: “O art.º 411.º do CPC não pode nem deve servir para afastar as regras processuais que disciplinam a produção de prova, impondo prazos, ónus e preclusões à atividade das partes para se vir a obter um resultado probatório formalmente válido da verdade das alegações de facto que as partes fizeram. (…) a responsabilidade probatória do juiz” tem “uma natureza meramente complementar ou acessória” e a respetiva “atividade não pode ter lugar com prejuízo para o sistema de ónus e preclusões previstos no código.” E ainda: “em regra deve ser perante a prova já produzida que se deve manifestar a necessidade objetiva da prática do ato de obtenção de prova pelo juiz, e não perante o conteúdo de uma sugestão feito nesse sentido por uma parte, depois da fase dos articulados, sem nada ter ocorrido entretanto, apenas porque a parte quer que seja o tribunal a obter a prova, ou não quer pagar a multa devida pela apresentação tardia da mesma, ou porque já perdeu o direito de a requerer. Isto é, a atividade instrutória do tribunal não é nem deve ser uma forma de suprir a atividade que a parte devia ter tido e que não teve porque não quis ou não soube ou não cuidou ou não se preocupou em ter antes. Ainda de outro modo: o art. 411 do CPC não pode nem deve servir para afastar todas as regras processuais que disciplinam a produção de prova, impondo prazos, ónus e preclusões à atividade das partes, de modo a vir a obter-se um resultado probatório formalmente válido da verdade das alegações de facto que as partes fizeram. (…) o princípio do inquisitório (art. 411 do CPC) não pode ser utilizado para auxiliar uma das partes, prejudicando a outra, permitindo àquela introduzir no processo documentos que não apresentou atempadamente nos termos do art.º 423 do C.P.C.. O princípio da verdade material”, muitas vezes invocado a propósito desta norma e nestes casos, não é uma varinha mágica que sirva para ultrapassar as regras legais. A verdade é só uma e só pode ser obtida validamente com observância daquelas regras.”
Idênticas cautelas estão patentes no Ac. da Rel. do Porto de 20/2/2024 (relatado por Rui Moreira, também em www.dgs.pt).
O prof. Miguel Teixeira de Sousa, na publicação on line da anotação ao C.P.C., e concretamente ao art.º 411º, publicada em novembro último, diz: “(b) O poder inquisitório não só não visa assegurar a igualdade das partes, como cria necessariamente uma situação de desigualdade entre elas, porque a prova que pode ser obtida através do exercício desse poder há-de necessariamente beneficiar uma das partes e prejudicar a outra. Esta circunstância não coloca em causa a imparcialidade do juiz, antes é consequência dessa imparcialidade: o juiz deve promover o apuramento da verdade e a justa composição do litígio qualquer que seja a parte beneficiada (e a parte prejudicada) com o exercício do seu poder inquisitório.
6 (a) O poder inquisitório comporta duas vertentes: (i) numa vertente passiva, o poder inquisitório permite que o tribunal aceite que a parte proponha ou requeira uma prova quando tal já não era admissível; (ii) numa vertente activa, o poder inquisitório permite que o tribunal promova a produção da prova de um facto (dif. RG 12/10/2017 (227/07)). (b) Na medida em que as máximas da experiência e os usos do tráfego ou do comércio jurídico necessitem de ser provados, o poder inquisitório do tribunal também se estende a essas máximas e a esses usos.
7 (a) Na vertente passiva, o poder inquisitório permite que o tribunal aceite que seja proposta uma prova pré-constituída ou requerida uma prova constituenda quando, em função do estado do processo, tal já não podia acontecer. P. ex.: o tribunal pode aceitar a junção de fotografias antigas que mostram o estado dos edifícios antes das obras (RP 8/9/2020 (2856/15); também RP 11/1/2021 (549/19)). (b) O tribunal deve certificar-se de que a parte actua sem negligência e de boa fé, ou seja, de que a parte propõe ou requer uma prova que não era exigível que antes tivesse proposto ou requerido.
8 (a) Na vertente activa, o poder inquisitório pode ser exercido de duas formas: (i) de uma forma directa, o tribunal promove a produção da prova de um facto através de um meio de prova; (ii) de uma forma indirecta, o tribunal adverte as partes de que há factos que ainda não estão provados (como decorre do disposto no art. 602.º n.º 2, al. e)) ou de que a instrução da causa mostrou que, além dos factos que integravam os temas da prova, há outros factos que também devem ser provados. (b) O exercício pelo tribunal do poder inquisitório de forma directa não pode ser substituído pelo pedido de comparência da parte para a prestação de esclarecimentos (art. 7.º, n.º 2 e 3). Esta prestação destina-se a aclarar a matéria de facto alegada pela parte, pelo que não tem uma finalidade probatória e, por isso, não substitui a utilização pelo tribunal de poderes inquisitórios em matéria de prova. (c) O dever de advertência do tribunal é consequência do dever de cooperação do tribunal com as partes (art. 7.º, n.º 1) e também encontra consagração no disposto no art. 607.º, n.º 1, 2.ª parte.
9 (a) Na vertente activa, o poder inquisitório do tribunal pode ser exercido, em qualquer momento da tramitação da causa, até ao encerramento da discussão em 1.a instância (art. 611.º, n.º 1, p. an.). P. ex.: nada impede que o tribunal, durante a audiência prévia, requisite um documento que se encontra em poder de terceiro (art. 436.º). (b) Se tal se mostrar conveniente, o poder inquisitório pode conjugar-se com a gestão processual (art. 6.º, n.º 1) e a adequação formal (art. 547.º).
10 (a) O poder de controlo e o poder inquisitório têm um limite externo: esses poderes só podem incidir sobre factos de que o tribunal possa conhecer. (b) Para os processos regidos pela disponibilidade das partes, o enunciado é demasiado amplo, dado que, a propósito da instrução nesses processos, o que faz sentido é considerar, não os factos de que o tribunal pode conhecer, mas antes os factos que integram os temas da prova (art. 410.º). O tribunal pode conhecer igualmente dos factos instrumentais (ou probatórios) e complementares que resultem da instrução da causa (art. 5.º, n.º 2, al. a) e b)). (…)
16 (a) Num processo submetido à disponibilidade das partes, o poder inquisitório só pode ter uma expressão complementar da actividade de instrução por elas desenvolvida (RG 18/2/2016 (2734/10)). O exercício do poder inquisitório torna-se necessário em função da prova que for produzida por qualquer das partes. O poder inquisitório é um poder circunstancial que deve ser exercido numa certa oportunidade, não um poder incondicional que o tribunal deve exercer em qualquer situação.” (fim de citação).
Igualmente vigorando no processo civil o princípio da cooperação – art.º 7º- este impõe-se a todos os intervenientes processuais - “Cada parte, sem prejuízo das naturais divergências que se mantenham quanto à matéria de facto ou quanto à solução jurídica do caso, deve encarar o processo como um simples instrumento necessário à busca da solução justa” – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, obra citada, pág. 33.
Uma das suas manifestações encontra-se precisamente no dever de o juiz providenciar pela remoção dos obstáculos que qualquer das partes encontre quando se trata de obter algum documento ou informação ou exercer algum direito, ónus ou dever processual –cfr. o n.º 4 do art.º 7º.
São os temas da prova que delimitam o âmbito da instrução; mas a instrução terá como objeto os factos naturalísticos em que se traduzem ou desdobram e sobre os quais incidirá o juízo probatório, nos termos do art. 607º, n.ºs 3 e 4 do C.P.C.; conforme Ac. desta Relação de 5/5/2022 (relator Pedro Maurício, www.dgsi.pt) “…já os factos a provar são os factos essenciais ou principais da causa, que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as excepções invocadas, que deverão ser alegados pelas partes (cfr. art. 5º/1 do C.P.Civil de 2013), os factos instrumentais e os factos «complementares e concretizadores», desde que resultem da instrução da causa e relativamente aos quais inexiste qualquer vinculação temática [cfr. art. 5º/2a) e b) do C.P.Civil de 2013], tudo sem prejuízo dos casos excepcionais em que o juiz pode oficiosamente introduzir factos principais na causa [cfr. art. 5º/2c) do C.P.Civil de 2013].”.
Os temas da prova na sua função delimitadora, visam evitar “excessos” de modo a que seja permitido às partes a discussão das matérias, mas são os factos alegados que limitam o conhecimento do Tribunal (cfr, a propósito o Ac. da Rel. de Porto de 23/11/2021 (relator Rui Moreira, wwwdgsi.pt).
É sempre sobre os factos que a produção de prova e respetivos meios incidirão, como se infere dos art.ºs 452º, n.ºs 1 e 2, 454º, 460º, 466º, n.º 1, 475º, 490º ou 495º, n.º 1, do C.P.C., e 341º do C.C., e não sobre os respetivos temas de prova enunciados; e são os factos que o art.º 607º do C.P.C. impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo julgador, na sentença. Os factos são os constantes dos articulados apresentados pelas partes, cabendo-lhes a alegação dos factos essenciais ou principais - causa de pedir e excepções – cabendo, quer ao juiz, quer às partes, fazer com que sejam adquiridos para o processo os factos instrumentais (cfr. maior desenvolvimento no Ac. da Rel. de Lisboa de 23/4/2015, relatora Ondina Carmo Alves, www.dgsi.pt).
Importa ainda ter presente que as normas de direito probatório material, designadamente a regra do ónus da prova decorrente do art.º 342º, bem como a do art.º 346º relativa à contraprova, ambos do C.C., relevam sobretudo na fase decisória, no momento da aplicação do direito substantivo aos factos; nesta operação é que importará determinar se a parte que pretendia fazer valer um determinado direito, provou a factualidade que lhe competia para preenchimento da respetiva norma de direito substantivo que o tutelava.
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No caso em apreciação o enfoque do Tribunal para justificar o indeferimento dos dois requerimentos probatórios apresentados pela recorrente foi a oportunidade da sua apresentação. O Tribunal não se pronunciou relativamente à sua pertinência ou necessidade, como bem nota a recorrente.
A apresentação de meios de prova pelas partes tem regras e prazos, cuja verificação prévia se impõe.
Isso remete-nos antes de mais para a tramitação do procedimento de injunção, porque é o que ao caso importa.
Importa também situar a decisão recorrida, atendendo à sequência dos requerimentos e despachos, tal como descrito no relatório supra.
Quanto ao processo de injunção, ultrapassada a questão da correção do uso deste procedimento, bem como decidida a alegada ineptidão do requerimento inicial, há que apelar ao Decreto-Lei n.º 269/98 de 1/9.
A providência de injunção, conforme resulta do art.º 7º do anexo ao diploma, pode ser requerida como forma de obter, de forma simplificada, título executivo destinado ao pagamento coercivo de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000,00, ou sem limite de valor, se se tratar de obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo DL n.º 62/2013 de 10/5 (cfr. art.º 13º).
De acordo com o art.º 16º do primeiro diploma, “Deduzida oposição ou frustrada a notificação do requerido, no caso em que o requerente tenha indicado que pretende que o processo seja apresentado à distribuição, nos termos da alínea j) do n.º 2 do artigo 10.º, o secretário apresenta os autos à distribuição que imediatamente se seguir.”.
Reportando diretamente ao nosso caso, se o requerido apresentar oposição e se tratar de injunção tendo por objeto obrigação pecuniária emergente de transação comercial, a tramitação subsequente dependerá do valor da dívida reclamada na injunção. Se esse valor exceder metade da alçada da Relação, a ação seguirá a forma do processo comum; caso contrário, a ação seguirá a forma da ação declarativa especial (AECOP ação para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000,00, metade da alçada do Tribunal da Relação), regulada no Anexo do Decreto-Lei n.º 269/98 de 1/9.
O valor do pedido deduzido pelo requerente é o elemento que determinará a forma processual declarativa a seguir-se após a dedução da oposição a injunção emergente de transação comercial.
Qual é então a tramitação processual a observar neste caso, uma vez deduzida pela requerida oposição ao procedimento de injunção: a acção declarativa destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000 (do Decreto-Lei n.º 269/98) ou a acção com forma de processo comum?
Dispõe o art.º 17º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 269/98 que “Após a distribuição a que se refere o n.º 1 do artigo anterior, segue-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 1.º e nos artigos 3.º e 4.º”. E dispõe o art.º 10º, n.º 2, do DL n.º 62/2013 que “Para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.”
Daí resulta que, sendo o valor não superior a € 15.000,00, como é o caso (valor desta ação: € 13.160,57), a forma a seguir é a prevista no n.º 4 do art.º 1, e nos artºs. 3º e 4º, o que significa que se segue o regime do Decreto-Lei n.º 269/98.
A doutrina e jurisprudência destacam o facto deste regime se aproximar muito da ação sumaríssima que vigorou no nosso C.P.C..
Nesta ação especial, finda a fase dos articulados (com petição inicial ou requerimento de injunção e com a oposição), se não for julgada procedente alguma exceção dilatória ou nulidade ou não for conhecido imediatamente o mérito da causa, segue-se a realização da audiência de julgamento em 30 dias, nos termos dos art.ºs 3º e 4º do anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98 de 01/09. A celeridade e simplicidade processuais estão subjacentes à adoção desta tramitação.
Não havendo lugar à fase de identificação do objeto do litígio e seleção de temas de prova, serão os articulados que orientarão a tarefa de produção de prova, que incidirá sobre os factos alegados. Também aqui sem prejuízo da consideração dos factos instrumentais e complementares, com especial pertinência uma vez que a estrutura do requerimento injuntivo presta-se a uma apresentação sucinta da causa (-muito embora neste caso tenha ocorrido o despacho de aperfeiçoamento, que permitiu à A. uma melhor clarificação da factualidade).
Passando diretamente para o regime probatório, dispõe o art.º 3 (destaque a negrito nosso): “4 - As provas são oferecidas na audiência, podendo cada parte apresentar até três testemunhas, se o valor da acção não exceder a alçada do tribunal de 1.ª instância, ou até cinco testemunhas, nos restantes casos.
5 - Em qualquer dos casos previstos no número anterior, não pode a parte produzir mais de três testemunhas sobre cada um dos factos que se propõe provar, não se contando as que tenham declarado nada saber.”
Com este artigo deve conjugar-se o n.º 5 do art.º 4º que dispõe: “Se ao juiz parecer indispensável, para boa decisão da causa, que se proceda a alguma diligência, suspenderá a audiência na altura que reputar mais conveniente e marcará logo dia para a sua realização, devendo o julgamento concluir-se dentro de 30 dias; a prova pericial é sempre realizada por um único perito.”
Percorrendo essas disposições (elencadas só as que são pertinentes para o caso) temos que:
-a prova testemunhal é apresentada pelas partes, não havendo lugar à sua notificação;
-não há adiamento da audiência por falta das testemunhas que a parte esteja obrigada a apresentar;
-a prova documental, seguindo a mesma regra, tem de ser apresentada na audiência;
-igualmente, os restantes meios de prova terão de ser requeridos em audiência.
A questão coloca-se no que se deve entender por “na audiência”.
Seguimos aqui o entendimento, também perfilhado em jurisprudência produzida de que é exemplo o Ac. da Rel. de Évora de 24/5/2018 (relator Francisco Xavier, www.dgs.pt), que o legislador está a reportar-se necessariamente ao início da audiência, sem prejuízo de apresentação em momento anterior, conforme Acs. da Rel. de Coimbra, de 08/04/2014 (proc. n.º 890/10.9TBACB.C1) e de 13/01/2015 (proc. n.º 1369/09.7TBACB.C1), disponíveis no mesmo endereço; aliás, como sucedeu no caso por força de despacho proferido ao abrigo do art.º 6º C.P.C..
Isso mesmo resulta dos termos da tramitação legalmente prevista, nomeadamente do facto de, aberta a audiência e frustrando-se a conciliação das partes, a mesma prosseguir com a produção da prova que ao caso couber, o que só é possível se no início da audiência as partes indicarem as provas que ali se propõem apresentar. Igualmente milita nesse sentido o facto de as causas de adimento da audiência serem apenas as estritamente previstas, mercê da pressuposta celeridade que se quer imprimir.
Essa leitura foi feita na doutrina por Salvador da Costa: “A Injunção e as Conexas Acção e Execução”, 6ª edição actualizada e ampliada, 2008, pág. 127).
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De não descurar também a aplicação do C.P.C.. O art.º 549º do C.P.C. prevê que “Os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum”.
O art.º 547º do C.P.C. diz que “O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo”, o que deve ser conjugado com o dever de gestão processual previsto no artº. 6º do C.P.C..
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Chega a fase de se proceder à aplicação dos princípios ao caso.
Importa notar que a recorrente situa os seus argumentos recursivos em duas ordens: o facto de, face aos atos ocorridos, ainda estar aberta a fase prévia ao início da audiência, e por isso em tempo de apresentar prova; a introdução do pedido de condenação por litigância de má-fé permite-lhe apresentar prova tendente a afastar a sua procedência; ao abrigo do art.º 411º do C.P.C. a prova devia ser admitida porque importa à descoberta da verdade material.
Em primeiro lugar, tendo em conta a sucessão dos atos processuais, no que concerne à notificação da R. para informar os autos, com junção dos respetivos documentos contabilísticos devidamente comprovativos, se incorporou ou não na sua contabilidade as ditas faturas, esse requerimento foi objeto de despacho de indeferimento proferido em 28/4/2022. Daí que, a nosso ver, a situação está coberta pelo caso julgado formal, por via do disposto no art.º 620º, n.º 1, C.P.C..
Só assim não será, se a questão se voltar a colocar num outro contexto, com base em diferentes pressupostos, não concretamente apreciados.
Na diligência de 15/6/2022, aberta a audiência, foram admitidos os meios de prova até então apresentados pelas partes (com exceção daquele item já indeferido). Não se percebe por isso que a recorrente diga que tal não sucedeu, uma vez que consta expressamente do despacho proferido na ata de 16/6/2022 a admissão da prova documental e testemunhal; todavia à testemunhal, ressalva-se a possibilidade de, face aos documentos ora juntos, as partes apresentarem mais testemunhas.
Conforme se refere no despacho recorrido, a prova devia ser junta nessa data, ou antes, como foi, face ao despacho de gestão do processo oportunamente proferido, e não tendo a A. apresentado qualquer alteração à indicação das testemunhas que fez no requerimento corrigido. Igualmente, na audiência de 15/6/2022 nada impediu a A. de alterar a sua prova ou apresentar outra. O Tribunal não tem de interpelar diretamente as partes para o efeito, as partes é que terão de apresentar requerimento em conformidade.
Portanto, à partida esgotou-se nessa data a oportunidade de apresentar prova. A tal não obsta, como também fez notar o Tribunal recorrido, o facto de não se ter procedido à inquirição das testemunhas e se ter permitido relegar a pronúncia da R. relativamente à prova documental junta pela A. para momento ulterior. Isso não invalida que se considere que a audiência já estava aberta, sendo as datas seguintes a sua continuação.
Assim sendo, a partir daí estava em curso este prazo de pronúncia da R. relativamente à prova documental.
O argumento recursório relativo ao facto de não se ter ainda esgotado o momento para apresentação das provas não colhe.
Sucede que, a R. introduziu nos autos, nessa resposta, a questão incidental da litigância de má-fé –art.º 542º do C.P.C.; cfr. Abrantes Geraldes (“Temas Judiciários”, Vol. I, pág. 337), qualificando como incidente da instância, não tipificado, que corre nos próprios autos.
Ora, quanto a esta matéria, era ainda permitido às partes arrolar prova a tal atinente (mormente para efeitos de fixação da quantia indemnizatória), já que se trata de um incidente novo para o processo, que pode ser suscitado em qualquer fase do processo (por qualquer das partes ou oficiosamente pelo juiz), dependendo do momento em que a imputada atuação por má-fé tem lugar (e até ao trânsito da decisão final) –cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, 2º Vol., pág. 458 da 3ª edição.
A respetiva matéria configura uma questão controvertida acessória e secundária relativamente ao objeto da ação, surgindo como ocorrência anormal no seio da relação jurídica processual, a qual se deverá pautar pela probidade, correção e cooperação intersubjetiva. Há uma verdadeira relação de acessoriedade da questão da litigância de má-fé relativamente ao objeto do processo, como salienta Abrantes Geraldes (“Temas Judiciários”, Vol. I, pág. 330).
Implicará a resolução de questões que não fazem parte do encadeado lógico necessário à resolução do pleito, tal como configurado, mantendo uma certa autonomia processual relativamente à questão principal, uma vez que apenas se encontra subordinada a esta do ponto de vista genético – Salvador da Costa, “Os Incidentes da Instância”, 6ª edição, pág. 8.
Obriga por isso ao respeito pelo direito à defesa e ao contraditório.
Essa alusão (prova da matéria do incidente de litigância) é feita pela A. no requerimento de 11/7/2022; não consta de todo do requerimento de 16/9/2022. 
Muito embora este instituto tutele primordialmente a conduta processual e não substantiva, ele tem dois campos: a má-fé substancial que respeita ao fundo da causa - art.º 542º, n.º 2, a) e b), C.P.C. -, e a má-fé instrumental que respeita ao comportamento processual, à infração do dever de cooperação ou ao uso manifestamente reprovável do processo – art.º 542º, n.º 2, c) e d), C.P.C.).
Em causa neste caso está a má-fé substancial, invocando-se a infração do dever de verdade.
A matéria a que respeita, como já vimos, é a matéria da causa, não é exclusiva do incidente, não tem autonomia face à matéria da causa.
Ora, à partida não podem por esta via serem “deturpadas” as regras de introdução de novos factos no processo (fora das hipóteses do art.º 5º do C.P.C. e dos art.ºs 588º e 589 do mesmo), como não podem ser por essa via introduzidos elementos probatórios que dizem respeito à causa fora dos parâmetros legais.
Note-se porém que quando o art.º 5º, n.º 2, a), do C.P.C. se refere à instrução da causa, esta pode abranger a prova documental. A instrução da causa é composta pela produção de todos os meios probatórios. Podem por isso surgir factos instrumentais de documentos oportunamente juntos.
Pretende a R., conforme resulta desse seu requerimento, que seja atribuída natureza confessória ao conteúdo de documentos apresentados pela A.. Não está em causa nenhum outro incidente respeitante ao teor da prova documental (por exemplo a sua falsidade).
Através do requerimento de 11/7/2022, à A./recorrente era permitido responder ao incidente de litigância de má-fé, exercendo o seu direito ao contraditório (art.º 3º, n.º 3, C.P.C.), como (também) fez.
Nessa medida e nessa sequência, também lhe era permitido oferecer contraprova tendente (pelo menos) a afastar a imputação de litigante de má-fé. E fá-lo num contexto diferente do que motivou a desconsideração do seu requerimento por despacho de 28/4/2022 (afastada por isso a violação de caso julgado).
Resulta do exposto que a montante desta questão da prova, pode colocar-se uma outra que respeita à admissibilidade da consideração dos factos que constam do requerimento, que são também da causa principal. Sem prejuízo, acrescenta-se (e repete-se) que podem ser “aproveitados” factos instrumentais, se como tal forem considerados.
Em suma, quanto ao requerimento de 11/7/2022, entendemos que é um requerimento de prova tempestivo, fora do contexto previsto no art.º 3º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 269/98.
Situação diversa é se os meios de prova são pertinentes e necessários, e se, face ao concretamente requerido e seus requisitos, se impõe a sua admissibilidade ou rejeição (caso da prova pericial), o que ainda caberá ao Tribunal recorrido apreciar, uma vez que a tempestividade do requerimento não é condição sine quo non para a realização das diligências requeridas, como já resulta, além do mais, do que se expôs.
Já o requerimento de 16/9/2022, é extemporâneo no que respeita à introdução de mais prova (já que em si mesmo e quanto à sua admissibilidade legal não é objeto do recurso).
A nível de apresentação de prova pelas partes, a situação tinha de estar e estava já estabilizada.
O nº 3 do artº. 423º, C.P.C., e apenas esse número, poderá também ter o seu campo de aplicação neste “processo especial” face ao disposto no citado art.º 549º (-contudo o Ac. da Rel. de Lisboa de 19/2/2024, relatado por Teresa Fonseca, não faz esta limitação, aplicando todo o artigo, o que para o nosso caso não alteraria a decisão, comungada que fosse a tese aí também defendida quanto ao modo de contagem do prazo previsto no n.º 2).
Dispõe: “3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.”
A “ocorrência posterior” (não estando em causa a outra hipótese), conforme referem os autores antes citados, agora na pág. 241, não é um facto principal (só possível de ser introduzido em articulado superveniente ou através de um incidente); terá de se tratar de um facto instrumental relevante para a prova dos factos principais. Ora, não estamos perante uma ocorrência (factual) posterior que se pretende introduzir, o que teve o seu momento no requerimento de 11/7/2022.
Em suma, e pelo prisma da oportunidade temporal, o requerimento probatório de 16/9/2022 não pode ser admitido, sob pena de se permitir uma sucessão de requerimentos de prova e contraprova “sem fim” e sem suporte legal.
Questão diversa é se o Tribunal, ao abrigo dos seus poderes deveres inquisitórios, tal como previsto no art.º 411º do C.P.C. (e quanto à prova pericial com consagração nos citados art.ºs 476º, n.º 2, e 477º), ainda encontrará pertinência e necessidade na realização das diligências (essas ou outras), passando o requerimento de 16/9/2022 a considerar-se uma sugestão da A., o que até ao encerramento da discussão da causa ainda pode suscitar. Cremos que o Tribunal de 1ª instância abriu essa possibilidade quando se diz no despacho recorrido que por ora vai indeferido.
Note-se ainda que o Tribunal, no despacho proferido em ata em 15/6/2022, deixou também em aberto que, face á prova documental então apresentada, as partes ainda pudessem apresentar prova testemunhal (não limitou sequer essa possibilidade à R.), o que à data nada tinha que ver com o incidente de litigância de má-fé que ainda não havia sido levantado. Não vemos razão para se focar na prova testemunhal e não em qualquer outra prova.
Nessa medida o Tribunal visará o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, tendo por norte os factos que lhe é lícito conhecer, nomeadamente os instrumentais que resultem da instrução da causa (se como tal forem entendidos), nela incluída a produção de prova documental.
Pelo exposto, entende-se que:
-o requerimento de prova apresentado em 11/7/2022 deve ser admitido porque tempestivo;
-o requerimento de prova apresentado em 16/9/2022 é extemporâneo.
O Tribunal deverá ainda aferir da pertinência e necessidade dos meios de prova apresentados no primeiro, bem como no segundo, neste caso ao abrigo do art.º 411º do C.P.C., e sem prejuízo das “limitações” com que tal poder deve ser usado e já enunciadas.
Deve por isso proceder parcialmente a apelação.
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As custas do recurso são a cargo da recorrente e da recorrida, face à procedência parcial do recurso, e tendo em conta que os requerimentos em apreço tiveram oposição da R./recorrida - cfr. art.º 527, n.ºs 1 e 2, C.P.C..
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso da A. parcialmente procedente, admitindo-se o requerimento probatório de 11/7/2022 por tempestivo, não se admitindo o requerimento de 16/9/2022 por extemporâneo, sem prejuízo em ambos os casos se aferir da pertinência e necessidade das diligências requeridas.
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Custas do recurso a cargo da A./recorrente e da recorrida na proporção de metade para cada parte (art.º 527º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 18 de dezembro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Gonçalo Oliveira Magalhães
2º Adjunto: José Alberto Moreira Dias
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)