NULIDADE DA SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
COMPRA E VENDA
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
REDUÇÃO DO PREÇO
Sumário


I - Nos contratos sinalagmáticos, como a compra e venda e a empreitada, a denominada exceção de não cumprimento do contrato, por importar apenas um retardamento da prestação a cuja realização está obrigada a parte que dela beneficia, até cessar o incumprimento da outra parte, tem como consequência a condenação do réu a cumprir contra a realização da contraprestação (a denominada condenação Zug um Zug).
II - Não é, por isso, confundível com a redução da prestação a cargo do réu, de modo a restabelecer o equilíbrio económico entre esta e a contraprestação a que está obrigado o autor, como sucede com a redução do preço na compra e venda de coisa defeituosa, mas que o comprador compraria de qualquer forma, ainda que por preço inferior, a qual, conduzindo à modificação do contrato, tem como consequência a improcedência, em definitivo, da ação, na sua exata medida.
III - Se o réu se limitar a invocar, na contestação, a exceção de não cumprimento do contrato, para assim justificar a mora em que se encontra quanto ao pagamento do preço devido ao autor, o tribunal não pode conhecer da redução do preço.
IV - Se o fizer, a sentença será nula por excesso de pronúncia.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) EMP01..., Materiais de Construção, Lda., apresentou requerimento de injunção em que pediu a notificação de EMP02..., Lda., para proceder ao pagamento da quantia de € 6 068,29, assim discriminada: Capital: € 5 618,15; juros de mora: € 98,14; ogutras quantias: € 250,00; Taxa de justiça paga: € 102,00.
Depois de ter identificado o contrato de que emerge o seu crédito como relativo ao “fornecimento de bens e serviços” e de ter indicado, como data da sua celebração, o dia 9 de setembro de 2022, alegou, em síntese, que: no exercício da atividade a que se dedica (comércio por grosso de materiais de construção, nomeadamente artigos sanitários), forneceu à Ré diverso material que esta lhe havia encomendado, designadamente painéis, bases, cabines e resguardos de duche; esse material foi recebido pela Ré, que o achou conforme à encomenda feita; a Ré não procedeu ao pagamento do preço entre ambas convencionado, no montante de € 5 618,15, depois de ter recebido as faturas, encontrando-se, assim, em situação de mora.
Notificada, a Ré apresentou oposição, na qual disse, também em síntese, que: os cinco resguardos de duche que lhe foram entregues pela Autora, no valor de € 1 886,55, acrescido de IVA à taxa legal, não tinham as medidas que lhe foram previamente indicadas, pelo que não encaixavam nas bases onde deveriam ter sido aplicados; essa situação foi prontamente comunicada à Autora, quer por telefone, quer por escrito; assiste-lhe o direito de, nessa parte, “excecionar o pagamento dos resguardos”, “nos termos e para os efeitos do art. 428 do Código Civil.”
Remetidos os autos à distribuição, como ação especial destinada ao cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, a Autora apresentou resposta, em que impugnou o alegado pela Ré e concluiu pela improcedência da “exceção de não cumprimento” invocada.
Realizou-se a audiência final e, após, foi proferida sentença, datada de 23 de fevereiro de 2024, em que se decidiu julgar a ação parcialmente procedente, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 3 228,42, “acrescida de juros de mora comerciais, desde a data de vencimento de cada uma das faturas até efetivo e integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.”

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2) Inconformada com a sentença, na parte em que absolveu a Ré, a Autora (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso no qual, depois de discriminar as passagens dos depoimentos testemunhais proferidos na audiência final e os documentos que, no seu entender, impõem decisão diversa quanto aos enunciados de facto considerados como provados sob os n.ºs 5 e 6 e de dizer que a 1.ª instância não podia determinar a redução do preço pelo qual foram vendidos os bens, por se tratar de instituto jurídico “não alegado nem invocado pela Ré”, sendo, assim, a “sentença nula por força do art. 668/1, c), e), do CPC” (sic), concluiu nos seguintes termos (transcrição):

I - A prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento não permite que se dê como provado o teor da redação dos factos 5.º e 6.º da matéria de facto provada.
II - O teor da redação da matéria de facto dada como provada o artigo 5.º e 6.º encontra-se em contradição com a prova produzida em sede de audiência de julgamento, assim como com os fundamentos da sentença proferida – desde já, se consignando expressamente serem estes os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados para efeitos de alteração pelo tribunal ad quem, nos termos do artigo 640.º e 662.º do cpc;
III - Não pode, por conseguinte, subsistir a sentença recorrida, pelo que cumpre conhecer do mérito da causa em substituição (artigo 715.º do código de processo civil), e nessa conformidade, dar como não provado o teor da redação dos factos 5.º e 6.º da matéria de facto provada.
IV - Em resumo impugna-se a matéria de facto considerada como provada na sentença, designadamente a redação que foi dada aos factos 5 e 6.; os mesmos devem ser substituídos por outros que correspondam de à prova produzida, defendendo-se a inclusão dos seguintes factos no catálogo de factos provados com a seguinte redação: “5. as cabines duche infra discriminadas, apresentavam-se de acordo com as medidas encomendadas pela cliente da ré: - cabine duche Sicília angular 78,5x99, no valor de 384,85€ + iva (23%) - cabine duche Sicília angular 88,5x118,5, no valor de 391,28€+ iva (23%) - cabine duche Sicília angular 88,5x118, no valor de 391,28€+ iva (23%) - cabine duche Sicília angular 99x79,5, no valor de 363,34€+ iva (23%) - cabine duche Sicília angular 99,5x79, no valor de 363,34€+ iva (23%) 6. as medidas dos resguardos foram tiradas pela autora em obra na presença do dono da obra (cliente da ré) e de acordo com as medidas e resguardos escolhidas por aquele.“
V - Trata-se de um erro notório na apreciação da prova, vício que se verifica “quando da factualidade provada se extraiu uma conclusão ilógica, irracional e arbitrária ou notoriamente violando as regras da experiência comum.”
VI - A matéria de direito encontra-se erroneamente aplicada ao caso sub judice, uma vez que o tribunal a quo procedeu a uma errada interpretação do instituto do ónus da prova previsto nos artigo 342.º do cc e 414.º do cpc.
VII - Errou ainda o tribunal a quo ao proferir uma sentença ultra petitum, em clara violação dos artigos 264º, nºs 1 e 2, 660° e 661º, n.º 1, do c.p.c.
VIII - A douta decisão do tribunal a quo viola, assim, os artigos 342º, do cc, 264.º, 414.º, 660.º e 661º do cpc.
IX- Com a observância das mencionadas normas, concluirá o tribunal ad quem pela nulidade da decisão e pela sua substituição por outra onde se condene a ré na totalidade do pedido da a., ou seja, quantia de € 6 068,29, dos quais 5 618,15, a título de capital, € 98,14a titulo juros vencidos e €51 a título de taxa de justiça paga, e 250,00€, a título de outras quantias; repondo-se, assim, a legalidade, justiça e igualdade do nosso estado de direito democrático!”
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3) A Ré (daqui em diante, Recorrida) não apresentou resposta.
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4) O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo.
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5) Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3).
Sem prejuízo, as conclusões da alegação do recorrente, como qualquer ato postulativo, estão sujeitas a interpretação, à luz dos cânones dos arts. 236 e 238 do Código Civil, aspeto que aqui assume especial importância quando constatamos que nelas a Recorrente incorre em dois equívocos manifestos.
O primeiro ao enquadrar a questão nas normas dos arts. 264/1 e 2, 660, 661/1 e 668/1, c), e e), do CPC, cujas epígrafes são, no diploma em vigor desde o dia 1 de setembro de 2013, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06 – respetivamente, “Alteração do pedido e da causa de pedir por acordo”, “Efeitos da impugnação de decisões interlocutórias” e “Falta ou impedimento dos juízes.”
Se atentarmos nos argumentos expendidos, sintetizados na Conclusão VI., onde a Recorrente alude a uma nulidade da sentença decorrente de condenação ultra petita, podemos, não obstante, concluir que o apontado equívoco resulta de a Recorrente fazer referência a preceitos do revogado CPC de 1961, aprovado pelo DL nº 44 129, de 28.12.1961, os quais correspondem, grosso modo, aos que constam dos arts. 5.º, 608, 609 e 615/1, c) e e), do diploma atual, respetivamente.
Sendo isto perfeitamente compreensível, serão estes os considerados.
A Recorrente incorre no segundo equívoco ao classificar a patologia que imputa à sentença recorrida na categoria da condenação ultra petita e não na do conhecimento de questão de que o tribunal não podia conhecer.
Com efeito, a condenação ultra petita, cuja proibição é justificada pelo facto de a jurisdição do tribunal ser balizada pelo pedido e de ser também em face dele – e do seu efeito jurídico – que o réu é chamado a contestar e apresentar a sua defesa, ocorre quando o tribunal condena em quantidade superior ou em objeto diverso do que foi pedido pelo autor, assim infringindo o disposto no n.º 1 do art. 609 do CPC. Ocorre também quando o tribunal absolve de um pedido que o autor não formulou. Apesar de a norma falar apenas em condenação, esta equiparação justifica-se pois , como escrevem Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 715, “o réu não pode ser absolvido de um pedido que o autor contra ele não deduziu, o que teria a consequência, por via da formação de caso julgado (art. 619/1 do CPC), de impedir o autor de, em nova ação, pedir aquilo que o réu fosse absolvido de reconhecer ou prestar (art. 580/1 do CPC), embora não tivesse constituído objeto da primeira ação.”
Não é a isto, mas ao conhecimento indevido de uma questão (redução do preço), por esta não ter sido suscitada na contestação, que alude a Recorrente, o que constitui antes uma infração ao disposto no art. 608/2, parte final, do CPC, sendo causa de nulidade da sentença nos termos previsto no art. 615/1, d), 2.ª parte, do mesmo diploma.
Está aqui em causa uma patologia que afeta os elementos constitutivos da pretensão e, bem assim, quando colocada sob o prisma da defesa, os elementos impeditivos, extintivos e modificativos dela.
Não havendo dúvida quanto ao propósito da recorrente e seus fundamentos, tratando-se de uma mera questão de qualificação jurídica, será neste enquadramento – e apenas neste (nulidade por excesso de pronúncia) – que apreciaremos a pretensão recursiva.
Tendo isto presente, as questões que se colocam nas conclusões formuladas pela Recorrente podem ser sintetizadas nos seguintes termos, de acordo com a ordem lógica do seu conhecimento:
1.ª Nulidade da sentença recorrida por ter conhecido de questão (redução do preço) não suscitada na oposição ao requerimento de injunção e, em caso de resposta afirmativa, forma do seu suprimento;
2.ª Erro no julgamento quanto aos enunciados de facto dos pontos 5. e 6. do rol dos factos que na sentença recorrida foram considerados como provados;
3.ª Repercussões da pretendida modificação da matéria de facto no aspeto jurídico da causa e, dependendo do resultado daquela aferição, dos termos em que devem funcionar as regras de distribuição do ónus da prova em caso de non liquet quanto ao “desfasamento dos frisos dos resguardos” e “aos limites das bases de chuveiro”.
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III.
1) Antes de avançarmos com a resposta às questões enunciadas, respigamos a fundamentação da sentença recorrida.
Assim, foram ali considerados como provados os seguintes factos (transcrição, com destaque para os enunciados cuja decisão é objeto de impugnação):

“1 - A Autora, enquanto sociedade comercial, dedica-se à atividade de Comércio por grosso de materiais de construção, nomeadamente artigos sanitários, com intuito lucrativo.
2 - A Ré dedica-se, entre outras, à atividade de Comércio por grosso de materiais e construção (exceto madeira) e equipamento sanitário, com intuito lucrativo.
3 – A autora, no exercício da sua atividade, no período de 09/09/2022 a 05/12/2022, a A, a pedido da Ré, procedeu ao fornecimento de vários materiais, designadamente,
- Painel de duche 120x200 perfil cromado;
- Base de duche Slate 80x150 HORMIGON COM VDA;
- Base de duche Slate 80X190 GRIS PLATA COM VDA;
- Base de duche Slate 90x180 GRIS OLIVA COM VDA;
- Frontal Praga2P, 76,5cm cromo, transparente, Medida superior: 76cm; medio: 76,5cm; inferior: 76,5cm, ao nível do Chão, .... Frente;
- Cabine duche Sicília Angular 78,5x99, cr. trp. FAB. ESP;
- Resguardo retranqueado; ao nível do chão; Conf. Foto, ... Banho social;
- Cabine duche Sicília Angular 88,5x118,5, cr. trp. FAB.;
- Resguardo retranqueado; ao nível do chão; Conf. Foto, ... Suite
- Cabine duche Sicília Angular 99x79,5, cr. trp. FAB. ESP., Resguardo retranqueado; ao nível do chão; Conf. foto, ...;
- Cabine duche Sicília Angular 99,5x79, cr. trp. FAB. ESP.
- Resguardo retranqueado; ao nível do chão; Conf. Foto, ...;
- Frontal Praga ARTICULADA, 99,5cm Cromo, transparente
- TUBO.40X40 TUBO 40X40, ao nível do chão, conforme foto, ... Banho social
- Cabine duche Sicília Angular 88x118, cr. trp. FAB. ESP., Resguardo retranqueado; ao nível do chão; Conf. Foto, ... suite;
- Frontal Praga2P, 76cm cromo, transparente, Medida superior: 76cm; médio: 76cm; inferior: 75,5 cm Ao nível do chão, .... frente
- Cabine duche Sicília Angular 99x79,5, cr. trp. FAB. ESP., Resguardo retranqueado; ao nível do chão; Conf. Foto Sr. AA, ...
- Cabine duche Sicília Angular 99,5x79, cr. trp. FAB. ESP., Resguardo retranqueado; ao nível do chão; Conf. Foto ...;
- Montagem e assistência
4. O material referido no número anterior consta das faturas:
a) n.º ...24, no valor de €177,86, com data de emissão a 9.9.2022 e vencimento a 8.11.2022
b) n.º ...70, no valor de €513,29, com data de emissão a 22.9.2022 e vencimento a 21.11.2022
c) n.º ...72, no valor de €309,25, com data de emissão a 13.10.2022 e vencimento a 12.12.2022
d) n.º ...05, no valor de €653,57, com data de emissão a 12.10.2022 e vencimento a 12.12.2022
e) n.º ...97, no valor de €3890,38, com data de emissão a 22.11.2022 e vencimento a 21.1.2023, onde além dos mais foram faturados os resguardos:
- Cabine duche Sicília Angular 78,5x99, no valor de 384,85€+ iva (23%)
- Cabine duche Sicília Angular 88,5x118,5, no valor de 391,28€ + iva (23%)
- Cabine duche Sicília Angular 88,5x118, no valor de 391,28€ + iva (23%)
- Cabine duche Sicília Angular 99x79,5, no valor de 363,34€ + iva (23%)
- Cabine duche Sicília Angular 99,5x79, no valor de 363,34 + iva (23%)
f) n.º ...84, no valor de €73,80 (iva incluído), com data de emissão a 5.12.2022 e vencimento a 3.2.2023.
5. As cabines duche infra discriminadas, apresentavam desconformidade das medidas encomendadas, pois não acompanhavam os limites das bases de duche:
- Cabine duche Sicília Angular 78,5x99, no valor de 384,85€ + iva (23%)
- Cabine duche Sicília Angular 88,5x118,5, no valor de 391,28€ + iva (23%)
- Cabine duche Sicília Angular 88,5x118, no valor de 391,28€ + iva (23%)
- Cabine duche Sicília Angular 99x79,5, no valor de 363,34€ + iva (23%)
- Cabine duche Sicília Angular 99,5x79, no valor de 363,34€ + iva (23%)
6. As medidas dos resguardos foram tiradas pela autora em obra.
7. A ré recebeu as faturas referidas em 4.
8. A ré procedeu à substituição dos resguardos referidos no artigo anterior.”
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2) Foi considerado como não provado que (transcrição):

“A. A ré aceitou que com a colocação portas de correr nos resguardos referidos em 5, estes ficassem desfasados do limite da base de chuveiro.”
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3) A decisão da matéria de facto foi motivada nos seguintes termos:

“O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e global dos documentos juntos aos autos e no depoimento das testemunhas inquiridas, tendo em consideração as regras da experiência.
A factualidade provada resultou do acordo das partes, atenta a posição vertida nos respetivos articulados.
Com efeito, BB, legal representante da Ré admitiu a globalidade dos trabalhos realizados pela autora e respetivos valores, que confessou não estarem pagos, apesar de ter recebido as faturas juntas aos autos, alegando para tanto que relativamente a 8 resguardos, os mesmos tiverem de ser feitos por medida, sendo que as medidas feitas pela autora em 5 desses 8 resguardos estavam incorretas pois os perfis não acompanhavam os limites da base do chuveiro.
Resultou incontroverso de todas as testemunhas e declarações de parte que, efetivamente, 8 resguardos tiveram de ser feitos por medida.
A única matéria controvertida consiste em saber se o autor ao aceitar que em 5 desses 8 resguardos fossem colocadas portas de correr, igualmente aceitou que os perfis dos resguardos não acompanhassem os limites da base do chuveiro.
Começando pela análise de prova documental, em concreto, a troca de e-mails entre autora e ré, cujo teor não foi sindicado, resulta do mail enviado pela autora à ré a 25.10.2022 as soluções apresentadas pela primeira à segunda para os 8 resguardos a fazer por medida.
Por mail de 3.11.2022, a ré encomenda os resguardos, mas não especifica qual a opção escolhida (porta de correr ou porta de fole).
Nesse mesmo dia a autora, igualmente por mail, pergunta se a encomenda se refere aos resguardos retranqueados (com portas de correr).
Por mail de 2.12.2022, a ré apresentou reclamação relativamente a 5 dos 8 resguardos aplicados (desconformidade das medidas entre o limite do chuveiro e os perfis dos resguardos).
Por mail de 5.12.2022, a autora responde à ré declinando a sua responsabilidade pelos defeitos reclamando, alegando que a escolha de portas de correr havia sido feita pela ré.
Por mail de 6.12.2022, a ré responde à autora, alegando, em suma, que nunca lhe foi dito que a opção pelas portas de correr implicavam desfasamento entre a base de chuveiro e o resguardo a aplicados.
Assim, pela prova documental não foi possível esclarecer se a autora referiu que as soluções das portas de correr implicava o desfasamento dos frisos dos resguardos e os limites da base de chuveiro.
No que concerne à prova testemunhal, CC Assistente administrativa da autora, esta afiança que, telefonicamente, após o mail de 3.12.2022, advertiu o legal representante da ré de que a solução pelas portas de correr levava a um desfasamento entre os limites da base de chuveiro e os resguardos encomendados.
Por seu turno, o legal representante da ré nega que alguma vez tenha sido alertado para tal facto.
Assim, à mingua de outros elementos, a dúvida quanto à verificação de um facto resolve-se contra a parte a quem aproveita (cf. art 414.º CPC), no caso a autora, que enviou para o autor as medidas colhidas no local pela testemunha DD, com[o] esta admitiu, sendo evidente da fotografia de fls. 38 o referido desajuste entre a base e o resguardo (defeito), pelo que tendo sido a autora a tirar as medidas e inexistindo qualquer registo de que o autor aceitou que o resultado final fosse o que vem ilustrado a fls 38, a dúvida resolver-se-á em desfavor da autora, pois ao autor cumpria alegar e provar o defeito (desiderato que cumpriu) e à ré que o mesmo não procedia de culpa sua, o que nos termos doa art. 414 não logrou fazer, pois a dúvida desfavorecê-la-á.
O depoimento da testemunha AA, dono na obra onde foram instalados os resguardos, serviu, essencialmente, para o Tribunal dar como provado que 5 dos resguardos feitos por medida não coincidiam com os limites das bases de duche, confirmando que o resultado final é o retratado na fotografia de fls 38.
Já pelo depoimento de DD, o Tribunal formou convicção de que as medidas para colocação dos resguardos feitos por medida foram tiradas por si, a pedido da autora.
O envio das faturas e respetiva data de vencimento, bem como os valores, resultaram do cotejo dos documentos 1 a 6, admitidos pelo legal representante da ré.
Por fim, do cotejo do depoimento do legal representante da autora com o da testemunha AA resultou para o tribunal que os 5 resguardos que aprestavam desconformidade com a medida da base de chuveiro foram por estes substituídos.” (sic)
***
4) Em termos de fundamentação jurídica, escreveu-se, na sentença recorrida, após considerações genéricas sobre o contrato de empreitada e os direitos que no regime deste assistem ao dono da obra em caso de defeitos da obra, o seguinte (transcrição parcial):

“O dono da obra tem apenas de provar a existência de defeitos, ónus que a ré não cumpriu, cabendo ao empreiteiro (autora) a prova de que tal exercício não foi feito no prazo estabelecido por lei ou acordado pelas partes se exceder aquele (ónus que a autor[a] não cumpriu).
Na responsabilidade contratual do empreiteiro por defeitos da obra, tem aplicação a regra do art. 799º, n.º 1 do CC, isto é, o dono da obra, beneficia da presunção da existência de culpa, respondendo o empreiteiro pelos atos dos seus representantes, trabalhadores e colaboradores (art. 800º, n.º 1 do CC).
Para afastar tal presunção o empreiteiro teria que provar ou a reparação do defeito ou a que a causa do mesmo lhe é estranha, pois que, só assim se exonerará da responsabilidade pelo defeito existente na obra.
Ora, no caso dos autos a Ré não logrou fazer essa prova, pelo que a falta de cumprimento presume-se culposa, sendo que, nos termos do disposto no artigo 798.º, do Código Civil, o devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação a que estava adstrito torna-se responsável pelos prejuízos que causar ao credor (cf. artigo 798.º do Código Civil).
Não cumprindo a autora esse ónus, há que averiguar quais os direitos da ré - dono da obra.
(…)
A Ré pretende prevalecer-se da exceção do não cumprimento, para não pagar à A. o preço por esta reclamado, sustentando que foi defeituosa a execução da obra relativa a 5 resguardos de duche, melhor identificados no artigo 5 da factualidade provada.
De acordo com o art. 428° do Código Civil, se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
(…)
Perante estas considerações, impõe-se, desde logo, a conclusão, que no caso não pode a Ré valer-se da invocada exceção de não cumprimento do contrato.
Com efeito, como se afirmou, a exceção de não cumprimento do contrato não é senão a recusa temporária do devedor – credor de uma prestação não cumprida no âmbito de um contrato sinalagmático – que assim retarda, legitimamente, o cumprimento da sua prestação, enquanto o credor não cumprir a prestação que lhe incumbe.
Logo, para paralisar o efeito da exceptio e a Ré poder continuar a recusar o pagamento das faturas em causa, teria de dar oportunidade à A./empreiteira de eliminar ou estar em posição de poder eliminar os defeitos que invoca.
Porém tal não resultou provado, antes se apurando que os alegados defeitos já foram eliminados pela ré, tornando-se tal prestação impossível.
Assim, não podendo ser eliminados os alegados defeitos, não pode, agora, a Ré opor a exceptio.
(…)
Os supostos direitos da Ré só podem encontrar amparo na redução do preço (art. 1222°, n°l, do Código Civil), já que resolução do contrato está fora de causa (pois não é alegado nem provado que a obra se torna inadequada ao fim a que se destina).
(…)
A redução do preço, não integra uma forma de ressarcimento dos danos, mas antes o reajustamento das prestações evitando desequilíbrio contratual.
Ora in casu, resultou provado que apenas cerca 5 resguardos feitos por medida padeciam de defeitos (medidas incorretas), pelo que entendemos ser de reduzir o preço na exata proporção dos defeitos, ou seja, a €2329,73 (dois mil trezentos e vinte e nove euros e setenta e três cêntimos) e respetivo IVA (23%), e apenas à fatura ...97 onde se faturam os bens com defeito.
(…)
A autora pediu, ainda a condenação da ré no pagamento de 250,00€. a título de outras quantias.
O art. 7.º do DL 62/2013 de 10/5,confere ao credor o direito a receber do devedor um montante mínimo de € 40,00, sem necessidade de interpelação, a titulo de indemnização, pelos custos de cobrança da divida,
Deste modo, tendo em consideração que a autora não teria de recorrer aos meios judiciais e, consequentemente, não teria de pagar os custos administrativos com o presente processo se a ré tivesse pago as prestações mensais nos termos contratualizados, tem a mesma direito a ser ressarcida pelo montante de 40,00, improcedendo quanto ao remanescente (210€), pois não foi feita prova de despesas que excedam a previsão legal.
Uma nota final para referir que não cumpre conhecer em sede de sentença do montante de €51,50 peticionado pela autora a título de pagamento de taxa de justiça, devendo o mesmo ser aferido em sede de nota justificativa, a título de custas de parte, nos termos do artigo 25.º do Regulamento de Custas processuais.”
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IV.
1).1. Avançamos com a resposta à 1.ª questão.
A  sentença – e, por extensão legal, os despachos judiciais (art. 613/3 do CPC) – pode estar viciada por duas causas distintas: por padecer de um erro no julgamento dos factos e do direito – o denominado error in iudicando –, sendo a consequência a sua revogação pelo tribunal superior; por padecer de um erro na sua elaboração e estruturação ou por o julgador ter ficado aquém ou ter ido além daquilo que constituía o thema decidendum, sendo a consequência a nulidade, conforme previsto no art. 615 do CPC. Nas situações do primeiro tipo, estão em causa vícios intrínsecos do ato de julgamento; nas do segundo, vícios formais, extrínsecos ao ato de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites. Neste sentido, inter alia, RG 4.10.2018 (1716/17.8T8VNF.G1), RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), RG 15.06.2022 (111742/20.8YIPRT.G1), RG 12.10.2023 (1890/22.1T8VCT.G1).
Com interesse, diz a alínea d) do n.º 1 do art. 615 do CPC que é nula a sentença quando “[o] juiz (…) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
Está em causa o denominado excesso de pronúncia que ocorre quando o juiz conhece de questões de que não podia tomar conhecimento por violação da segunda parte do n.º 2 do art. 608, por força do qual, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, “não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes.”
Não haverá excesso de pronúncia se a questão que o tribunal decidiu, sem que tal lhe tivesse sido pedido, for do conhecimento oficioso. Também não haverá excesso de pronúncia se o tribunal, para decidir, usar fundamentos jurídicos diferentes dos invocados pelas partes, uma vez que o art. 5.º/3 estabelece o princípio iura novit curia e, muito menos, se o tribunal, na fundamentação, aduzir argumentos que a parte não apresentara, já que uma coisa são as questões e, outra, são os argumentos que suportam a sua resolução.
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1).2. Pondo de parte as questões colocadas, pela lei, ao conhecimento oficioso do tribunal, diremos que as questões a que alude o art. 608/2 do CPC – aquelas de que o tribunal deve conhecer e às quais deve restringir o seu conhecimento – são as que constituem as causas de pedir invocadas pelo autor e as exceções deduzidas pelo réu. Dito de outra forma, são os pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões.
Mais concretamente quanto ao réu, sabemos que é na contestação que este deve fazer uso de todos os meios de defesa previstos no art. 572 do CPC, designadamente deduzir exceções dilatórias e perentórias. Essa função é desempenhada, no procedimento de injunção, pela oposição do requerido (ut art. 15 do anexo ao DL n.º 269/98, de 1.09), cuja apresentação implica a transmutação do procedimento em ação declarativa (arts. 16/1 e 17/1 do mesmo diploma).
É ampla a liberdade do réu para estruturar sua defesa segundo a estratégia que mais lhe aprouver. Poderá mesmo aduzir fundamentos de defesa que se apresentem relativamente contraditórios entre si, desenvolvendo uma argumentação escalonada, de modo que o acolhimento de um deles prejudique o conhecimento do subsequente e assim sucessivamente, mediante o denominado sistema da eventualidade da defesa, assim chamado porque os fundamentos sucessivos só serão conhecidos se ocorrer o evento de o precedente ser afastado pelo juiz (cf. Cândido Rangel Dinamarco, Teoria Geral do Novo Processo Civil, 2.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2016, pp. 120-121).
Com mais rigor, diremos que o réu – e, por identidade de razões, o requerido que deduza oposição em procedimento de injunção – tem o ónus de assim proceder, como resulta do disposto no art. 573/1 do CPC, onde se estabelece que “[t]oda a defesa deve ser deduzida na contestação”, salvo se os seus fundamentos forem supervenientes, consagrando-se o princípio da concentração da defesa, cujo corolário é a preclusão. A esta luz, compreende-se que Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado cit., p. 566) escrevam que “[o] réu tem o ónus de, na contestação, impugnar os factos alegados pelo autor, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória (com a única exceção das que forem supervenientes) (…) Se não o fizer, preclude a possibilidade de o fazer.”
Daqui decorre que a eventualidade se apresenta como uma consequência do princípio da concentração da defesa na contestação. É por ter o ónus de alegar todos os fundamentos de defesa de que dispõe, concentrando-os na contestação, sob pena de não mais os poder invocar (preclusão), ainda que eles sejam incompatíveis entre si, que o réu deve observar uma ordem de conhecimento sucessiva.
Ao defender-se mediante a introdução de factos que vão além da simples impugnação da pretensão do requerente, importando, nos termos da lei adjetiva, a impossibilidade de conhecer dela (exceções dilatórias) ou, nos termos da lei substantiva, um seu efeito impeditivo, modificativo ou extintivo (exceções perentórias), o requerido submete novas questões à apreciação do tribunal.
Estas – e só estas –, são, juntamente com os fundamentos do pedido formulado pelo autor e os seus termos, as questões que devem ser conhecidas pelo tribunal na sentença. Não podendo o tribunal conhecer de outras para além delas, será nula a sentença em que o fizer (art. 615/1, d)).
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1).3. A nulidade da sentença (designadamente por excesso de pronúncia) tem um regime próprio de arguição, previsto no n.º 4 do art. 615. De acordo com este, (a) se a sentença admitir recurso ordinário, a nulidade deve ser arguida como fundamento autónomo deste, perante o tribunal ad quem; (b) se a sentença não admitir recurso ordinário, a nulidade deve ser arguida perante o tribunal que proferiu a sentença, através de reclamação.
Conforme se explica em RG 15.02.2024 (548/22.6T8VNF.G1), do presente Relator, na primeira hipótese, interposto o recurso em que é arguida a nulidade, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso (art. 617/1, 1.ª parte).
Nesta sequência, se o juiz indeferir a arguição não cabe recurso dessa decisão, prosseguindo o recurso para apreciação da questão (art. 617/1, 2.ª parte). Já se o juiz suprir a nulidade, considera-se o despacho proferido como complemento ou parte integrante da sentença, ficando o recurso interposto a ter como objeto a nova decisão (art. 617/2). Neste caso, o recorrente pode, em dez dias, desistir do recurso, alargar ou restringir o respetivo âmbito, em conformidade com a alteração introduzida, permitindo-se que o recorrido responda a tal alteração, em igual prazo (art. 617/3). Se o recorrente, por ter obtido o suprimento pretendido, desistir do recurso, pode o recorrido, no mesmo prazo, requerer a subida dos autos para decidir da admissibilidade pretendida (art. 617/4). Como referem Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2019, p. 746), o termo admissibilidade é incorreto: “o tribunal superior pronunciar-se-á, sim, sobre o conteúdo da alteração, isto é, sobre o novo conteúdo da sentença (que a alteração integra) e não sobre se era admissível alterar a sentença.”
Na segunda hipótese, arguida a nulidade perante o juiz que proferiu a sentença, por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada; no entanto, se a alterar, a parte prejudicada com a alteração pode recorrer, mesmo que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal, não suspendendo o recurso a exequibilidade da sentença (art. 617/6, 1.ª parte).
Não procedendo a parte prejudicada de qualquer um desses modos, permite que a nulidade em questão fique sanada. A propósito, RG 18.01.2024 (1731/23.2T8GMR-J.G1), do presente Relator. Diga-se, aliás, que não se trata, em rigor, de uma nulidade, mas de uma anulabilidade, uma vez que o Tribunal não pode conhecer dela ex officio. Este entendimento – do não conhecimento oficioso das referidas nulidades previstas nas alíneas b) a e) do n.º 1 do art. 615 do CPC – estriba-se na circunstância de várias disposições legais (arts. 614/1, 615/2 e 4 e 617/1 e 6, todos do CPC) preverem, em determinadas circunstâncias, a possibilidade do seu suprimento oficioso, assim indicando que o conhecimento do vício constituirá a exceção e não a regra e que, em contrapartida, há necessidade de alegação. Neste sentido, STJ 30.11.2021, (1854/13.6TVLSB.L1.S1), RG 1.02.2018 (1806/17.7T8GMR-C.G1), RG 17.05.2018 (2056/14.0TBGMR-A.G1), RG 4.10.2018 (4981/15.1T8VNF-A.G1), RG 7.02.2019 (5569/17.8T8BRG.G1), RG 19.01.2023 (487/22.0T8VCT-A.G1); na doutrina, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado cit., pp. 735-736, e Rui Pinto, “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (arts. 613.º a 617.º do CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, p. 10.
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1).4.1. Isto dito, vejamos então a situação dos autos, começando por elencar as questões que as partes colocaram ao conhecimento do tribunal.
Assim, no requerimento de injunção, destinado à “exposição dos factos que fundamento a pretensão” (art. 10.º/1, d), do anexo ao DL n.º 269/98, de 1.09), a Recorrente alegou que, no exercício da sua atividade de comércio por grosso de materiais de construção, celebrou com a Recorrida um contrato (qualificado como de fornecimento de bens ou serviços) pelo qual se obrigou a entregar a esta os objetos que discriminou, mediante o pagamento de um preço. Esta obrigação não foi cumprida pela Recorrida, que assim ficou constituída em mora.
Na contestação, a Recorrida aceitou a celebração do referido contrato e o preço convencionado. Acrescentou, no entanto, numa espécie de raciocínio “Sim, mas”, característico das exceções perentórias, que parte (cinco resguardos) dos objetos que lhe foram entregues pela Recorrente não tinha as dimensões convencionadas, pelo que lhe é lícito recusar o cumprimento da obrigação de pagar o preço “nos termos e para os efeitos do art. 428 do Código Civil.”
Repare-se que a Recorrida não alegou ter interpelado a Recorrente para substituir os objetos em questão em determinado prazo. Também não alegou que, por qualquer razão, perdeu o interesse nessa substituição. Não alegou, também, uma recusa firme e categórica por parte da Recorrente em os substituir. O que alegou foi, apenas, a existência de uma causa de exclusão da ilicitude da situação de incumprimento em que assumiu encontrar-se, enquadrando-a juridicamente no art. 428 do Código Civil, preceito que, sob a epígrafe “Exceção de não cumprimento do contrato”, diz, no seu n.º 1, que[,] “[s]e nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.”
Daqui decorre que, interpretando a contestação, podemos concluir, sem margem para tergiversações, que a Recorrida invocou, como único fundamento de defesa, a denominada exceptio non adimpleti contractus.
Assim, as questões que as partes colocaram à consideração do tribunal foram, por parte da Recorrente, a celebração do dito contrato e a mora da Recorrida quanto ao cumprimento da obrigação de pagar o preço; por parte da Recorrida, a exceção de não cumprimento do contrato.
Como se sabe, esta figura da exceção do não cumprimento do contrato (e.n.c.c.) deve a sua origem à bona fides do direito romano e com ela pretende-se evitar que, num contrato de prestações recíprocas, aquele que não cumpre a sua prestação possa exigir o cumprimento à outra parte: inadimplenti non adimplendum. Como escreve José João Abrantes (A Exceção do não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português, Coimbra: Almedina, 1986, p. 39), “a moderna configuração dos contratos sinalagmáticos assenta na ideia de interdependência entre obrigações que deles reciprocamente emergem para ambas as partes.
O respeito pela intenção destas no momento da sua celebração, pretendendo efetuar uma troca de prestações, e a justiça comutativa supõem que o devedor de cada uma dessas obrigações possa ser compelido a executá-la se o devedor da outra também cumprir. Por isso, a lei cria um vínculo de interdependência entre tais obrigações, tendo em vista precisamente a realização daquela ideia de justiça comutativa. Cada uma delas é contrapartida de outra, uma não nasce sem a outra e nenhum dos devedores tem de cumprir sem que o outro cumpra igualmente.”
O dever de cumprimento simultâneo das obrigações sinalagmáticas – que recai sobre cada um dos contraentes e que é função da exceção assegurar – é imposto pela sua interdependência funcional, o que nos leva a dizer que fora do vínculo sinalagmático não há lugar à exceção (Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 406; José João Abrantes, ob. cit., pp. 53 a 55).
Por outro lado, a e.n.c.c. tem como limite o mesmo princípio fundamental que constitui o seu fundamento – o princípio da boa fé enunciado no art. 762/2, do Código Civil –, o que pressupõe, desde logo, uma exigência de proporcionalidade entre a inexecução que se invoca para justificar o exercício da exceção e esta própria (José João Abrantes, ob. cit., p. 123). “Os deveres acessórios de lealdade, ensina António Menezes Cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil, 2.ª reimpressão, Coimbra: Almedina, 2001, p. 606), obrigam as partes a, na pendência contratual, absterem-se de comportamentos que possam falsear o objetivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações por elas consignado.” Entre esses deveres acessórios de lealdade inclui-se o de não acionar, de modo desproporcionado, a e.n.c.c. O exercício da e.n.c.c. em termos desproporcionados constitui uma atuação de má fé, como tal ilegítima. A boa fé tem, assim, dois papéis importantes: “o de, através da determinação precisa dos deveres das partes, firmar a estrutura real do sinalagma e o de, sob cominação de abuso, exigir que a exceção seja movida apenas por perturbações sinalagmáticas materiais e não formais” (António Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 847).
Finalmente, a e.n.c.c. é o exemplo nítido de uma exceção dilatória de direito material: de direito material porque é um “contra direito” que permite recusar o cumprimento de uma prestação; dilatória  porque apenas o faz por um algum tempo: os seus efeitos cessam quando a contraprestação é oferecida (cf. António Menezes Cordeiro, ob. cit., pp. 735 – 736). [A qualificação da exceção como dilatória é, por isso, feita com um sentido substantivo, diferente do que resulta do art. 576/2 do CPC para distinguir, em termos adjetivos, as exceções dilatórias das exceções perentórias.]
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1).4.2. Enunciadas as questões que ao tribunal a quo cabia conhecer, vejamos agora as questões de que o mesmo conheceu na sentença recorrida.
Esse processo de conhecimento pode ser cindido em três atos.
No primeiro ato, o tribunal a quo, qualificou a relação contratual estabelecida entre Recorrente e Recorrida, cujos termos de facto já estavam adquiridos por acordo das partes, como integrando um contrato típico de empreitada.
No segundo ato, o tribunal a quo começou por afirmar que a Recorrente (a empreiteira) executou defeituosamente a obra que estava obrigada a realizar e, de seguida, centrou a sua análise na consequência jurídica que a Recorrida daí pretendeu retirar – o funcionamento da dita e.n.c.c. –, tendo concluído que esta carece de sentido por se ter apurado que “os alegados defeitos” já tinham sido eliminados pela Recorrida (dona da obra) – facto que, notamos, não foi alegado nos articulados –, tornando assim impossível a correção da prestação a cargo da Recorrente (empreiteira), com a consequente quebra do sinalagma que existia entre esta e a prestação de pagar o preço que recaía sobre a Recorrida.
No terceiro ato, o tribunal a quo, afirmando que “[o]s supostos direitos da Ré só podem encontrar amparo na redução do preço (art. 1222°, n° l, do Código Civil), já que resolução do contrato está fora de causa (pois não é alegado nem provado que a obra se torna inadequada ao fim a que se destina)”, acabou por decretar esta, assim reduzindo o montante da prestação cujo cumprimento foi reclamado pela Recorrente no requerimento de injunção e julgando, nessa medida, a improcedência parcial da ação.
Como se constata, tendo a Recorrida invocado, na contestação, apenas a e.n.c.c., exceção dilatória de direito material, como explicámos, o tribunal a quo, depois de dela conhecer, julgando-a improcedente, conheceu de uma outra exceção – a redução do preço – que, sendo também de direito material, não tem, porém, a mesma consequência.
Na verdade, a e.n.c.c., por importar apenas um retardamento da prestação a cuja realização está obrigada a parte que dela beneficia, até cessar o incumprimento da outra parte, tem como consequência a condenação do réu a cumprir contra a realização da contraprestação (a denominada condenação Zug um Zug), conforme entendido em RP 19.09.2006 (0622150), anotado favoravelmente por José João Abrantes (“Contrato de empreitada e exceção e não cumprimento do contrato”, Cadernos de Direito Privado, n.º 18, abr./jun. de 2007, pp. 46-58), e, na doutrina, por Ana Taveira da Fonseca (“Art. 428º, AAVV, José Carlos Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Lisboa: UCE, 2021, p. 126). Para quem entender que o CPC não admite esta figura, por o facto de que fica dependente a condenação ainda não estar verificado no momento do encerramento da discussão de facto (cf. art. 611/1), a solução terá de ser encontrada no art. 621. Esta norma prevê, como fundamento da absolvição do pedido, a situação em que o facto condicionante do direito não está verificado, considerando-a impeditiva da constituição de caso julgado que obste à renovação do pedido quando a condição se verifique. Como notam Lebre de Freitas / Montalvão Machado / Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 684), “quando o juiz constate que a condição suspensiva, estipulada pelas partes (art. 270 do Código Civil) ou estabelecida por lei (…), de que depende o direito invocado, não está verificada, na última data a que pode atender (…), o direito não pode ser reconhecido ou constituído e o réu há de ser absolvido do pedido. Em nova ação com o mesmo objeto, ou com objeto relativamente ao qual este seja prejudicial, o caso julgado é invocável se a situação se mantiver, continuando por verificar a condição. Mas, se esta, entretanto, se verificar, já o caso julgado não obsta a que o tribunal profira nova decisão de mérito, reapreciando a questão anteriormente decidida com base em pressupostos que se revelam alterados. Tal acontecerá, quer o autor tenha, na primeira ação, alegado a verificação da condição, quer não o tenha feito; no primeiro caso, a causa de pedir da nova ação é integrada exatamente pelos mesmos factos (designadamente, o negócio jurídico e a verificação da condição), enquanto que, no segundo, sendo a mesma a causa de pedir (o negócio jurídico), um novo facto constitutivo (que a complementa) surge de novo.” Regime idêntico vale quando, depois do encerramento da discussão de facto em 1.ª instância, se verifique um facto em cuja falta se tenha fundado a absolvição do pedido. Lebre de Freitas / Montalvão Machado / Rui Pinto (ibidem) dão um exemplo desta situação: “Se (…) for julgada improcedente uma ação de prestação de contas entre ex-cônjuges, proposta com fundamento em mandato exercido por um deles (art. 1161, d), do Código Civil) relativamente a bens móveis que tenham sido comuns e de que o mandatário tinha a administração (art. 1682/2 do Código Civil), o que levaria a ter por aplicável o disposto nos arts. 1682/4 e 1689/3 com fundamento em não ter sido revista e confirmada em Portugal a sentença de divórcio decretada em tribunal estrangeiro (…), a absolvição do pedido não impede a ulterior propositura de nova ação de prestação de contas, após a revisão e confirmação da sentença em Portugal”. O mesmo acontece quando seja julgada procedente uma exceção dilatória de direito material, como é o caso dos exemplos referidos por Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1983, pp. 132-133) da exceção de não cumprimento do contrato ou do direito de retenção, previsto no art. 754 do mesmo diploma (o autor realizou a sua prestação ou pagou a prestação devida). É que, o critério de distinção entre exceções dilatórias e perentórias é o de ser ou não definitiva a recusa de atendimento da pretensão do autor. Perante as primeiras, tal recusa é definitiva; quando se trate das segundas, então a ação pode vir a ser repetida com êxito.
Pelo contrário, a redução do preço, por levar, em definitivo, à modificação do contrato, tem como consequência a improcedência da ação na sua exata medida.
Para melhor se compreender esta afirmação, importa ter presente que, na empreitada, tipo no qual o tribunal a quo enquadrou o contrato celebrado entre as partes, a redução potestativa do preço, baseada na existência de defeitos da obra, quando invocada pelo dono da obra, em ação de cumprimento intentada pelo empreiteiro, configura uma exceção perentória. Na jurisprudência, RP 10.09.2024 (80995/23.2YIPRT-A.P1), relatado por João Ramos Lopes. Na doutrina, João Cura Mariano (Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 125) e Pedro Romano Martinez (Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coimbra: Almedina, 1994, p. 407). O mesmo sucede na compra e venda de bens onerados que o comprador teria adquirido de qualquer forma, mas por preço inferior e na venda de coisas defeituosas (art. 905 e 913/1 do Código Civil). Compreende-se que assim seja: em tal situação, está em causa a mera modificação da fonte da obrigação cujo cumprimento é pedido pelo autor, à semelhança do que sucede com a redução do negócio jurídico nulo ou anulável (art. 292 do Código Civil).
Em qualquer caso, a redução do preço depende da vontade do contraente titular do correspondente direito, pelo que, na falta dela – ou, melhor dizendo, da sua declaração, que pode ser efetuada por qualquer meio (cf. art. 219 do Código Civil), tendo natureza receptícia –, não pode ser conhecida e decretada oficiosamente pelo tribunal (art. 579 do CPC).
Isto permite-nos concluir que assiste razão à Recorrente: ao julgar verificados os pressupostos de que dependia a redução do preço, repercutindo os efeitos desse seu entendimento na decisão, o tribunal a quo conheceu de uma exceção perentória que não havia sido invocada pela Recorrida e que, por isso, não fazia parte do elenco das questões colocadas à sua apreciação. Nesta parte, a sentença é, pois, nula por excesso de pronúncia.
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1).4.2. Verificada a nulidade, cabe ao Tribunal ad quem supri-la, salvo se não dispuser dos elementos necessários para esse efeito, por força do disposto no art. 665 do CPC, onde se diz que[,] “[a]inda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação” (n.º 1), acrescentando-se que, se “o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, deve delas conhecer no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários” (n.º 2) e que, neste caso, “o relator, antes de ser proferida decisão, ouvirá cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias” (n.º 3).
Daqui resulta que o Tribunal da Relação, quando reconheça razão ao recorrente que arguiu a nulidade da sentença, em vez de a declarar formalmente e ordenar a baixa do processo à 1.ª instancia para o respetivo suprimento, com a prolação de nova decisão final e, eventualmente, novo recurso de apelação, supera esta vertente meramente cassatória do sistema, substituindo-se ao tribunal recorrido e, após a declaração da nulidade, conhece diretamente do objeto do recurso, ou seja do mérito da apelação, conforme explica Luís Filipe Espírito Santo (Recursos Civis. O Sistema Recursório Português. Fundamentos, Regime e Atividade Judiciária, Lisboa: Cedis, 2020, pp. 265-266).
Deste modo, no caso, em que está em causa uma nulidade por excesso de pronúncia, há que declará-la e, de seguida, conhecer do restante objeto do recurso, reconstituindo a decisão de mérito sem, para esse efeito, considerar a questão indevidamente apreciada pelo tribunal a quo.
Para esse efeito, não há necessidade de observar o contraditório. Este apenas faz sentido, em ato subsequente à declaração de nulidade, quando se constate que, por causa desta, o tribunal a quo deu uma solução ao litígio que o levou a considerar prejudicado o conhecimento de outras questões que as partes colocaram à sua apreciação. Quando assim suceda, o conhecimento destas questões pelo tribunal ad quem, imposto pela declaração de nulidade da sentença, ocorrerá em termos inovadores, justificando-se, assim, a possibilidade de as partes se pronunciarem, o que mais não é que um corolário do princípio da proibição das decisões-surpresa.
Não é isto o que sucede no caso vertente: todas as questões que as partes colocaram à apreciação do tribunal – e que definiram os limites dos seus poderes de cognição – foram apreciadas na sentença recorrida. A audição das partes recairia, assim, sobre questões já apreciadas, redundando num ato inútil, como tal de prática proibida (art. 137 do CPC).
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2). Na sequência do que antecede, cumpriria agora conhecer da impugnação da decisão da tribunal a quo sobre os enunciados de facto constantes dos pontos 5. e 6. do rol dos factos provados.
Acontece que, quando atentamos, a um tempo, nas posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados, e, a outro, no objeto do recurso, concluímos pela inutilidade desse conhecimento.
Explicando melhor, diremos que a Recorrida aceitou, na sua contestação, a celebração do contrato fonte do direito de crédito alegado pela Recorrente no requerimento de injunção, bem como a mora quanto ao cumprimento da correspondente obrigação. Na sua defesa, invocou apenas, como causa de exclusão da ilicitude decorrente da mora, a e.n.c.c., substanciando esta com a alegação dos enunciados de facto que vieram a ser transpostos para os pontos 5. e 6. do rol dos factos provados.
A discussão ficou restrita a esta questão, única que poderia obstar ao procedimento integral da pretensão da Recorrente.
Ora, como vimos, o tribunal a quo pronunciou-se, na sentença recorrida, especificamente sobre a e.n.c.c., julgando-a improcedente.
Este segmento decisório, desfavorável à Recorrida, podia ter sido por esta questionado, a título subsidiário, através da ampliação do âmbito do recurso, conforme previsto no art. 636/1 do CPC, assim prevenindo a hipótese de procedência da nulidade da sentença por excesso de pronúncia arguida pela Recorrente. Na verdade, como ensina António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 150), “[a] letra da lei alude apenas aos casos em que exista pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa. Apesar disso, também encontram sustentação na ratio do preceito os casos em que na ação ou na defesa tenha sido apresentado um único fundamento que foi julgado improcedente, sendo, ainda assim, a ação decidida favoravelmente a essa parte a partir de fundamentos oficiosamente recolhidos.” Em conformidade, o autor acrescenta que, em tais casos, “na eventualidade de ser interposto recurso, a parte a quem a decisão foi favorável não tem legitimidade para recorrer. Mas não lhe pode ser negada a possibilidade de enxertar no recurso (…) interposto pela contraparte (parte vencida) o único fundamente em que sustentou a sua pretensão ou a sua defesa, a fim de se proteger contra uma eventual resposta contrária que (…) venha a ser dada pelo tribunal superior à fundamentação que oficiosamente foi empregue na decisão recorrida.”
Ora, não tendo a Recorrido lançado mão desta faculdade (nem sequer respondeu ao recurso), a resposta negativa que o tribunal a quo deu à e.n.c.c. ficou consolidada, não integrando o objeto do presente recurso.
Tendo sido esse o único fundamento invocado pela Recorrida para obstar ao pedido de condenação no cumprimento da referida obrigação adrede formulado pela Recorrente, daqui decorre que não resta outra solução que não seja a da procedência total dessa pretensão, independentemente de qualquer modificação dos indicados pontos da decisão da matéria de facto.
Nesta medida, consideramos prejudicado, por inútil, o conhecimento da 2.ª questão enunciada.
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3).1. O que antecede serve de mote para a 3.ª questão.
Como escrevemos, a Recorrente veio pedir a condenação da Recorrida no pagamento do preço convencionado como contrapartida pelos diversos objetos que lhe forneceu.
Esta afirmação, que a Ré aceitou na oposição ao requerimento de injunção, ficando, assim, adquirida, foi transposta para o ponto 3. do rol dos factos provados, transmitindo-nos a imagem de que o objeto negocial consistiu na transmissão da propriedade sobre um conjunto de coisas – os referidos objetos –, tendo como contrapartida o pagamento de um preço. Isto leva-nos, prima facie, a qualificar o contrato celebrado entre as partes como uma compra e venda (art. 874 do Código Civil).
Esta imagem fica, porém, algo nublosa quando atentamos que o tribunal a quo deu como provado que a Recorrente procedeu à montagem dos referidos objetos e, na sequência, dando relevo, se bem percebemos, a esta prestação de facere, qualificou – de forma automática e sem o esboço do mínimo esforço argumentativo, o contrato como uma empreitada (art. 1207 do Código Civil).
Neste contexto, não se nos afigura arriscado dizer que estamos na fronteira entre o contrato de compra e venda e o contrato de empreitada.
Expliquemos porquê.
Como se sabe, os contratos de compra e venda e de empreitada divergem, quer na sua estrutura, quer no seu regime legal.
A compra e venda é, na definição do art. 874 do Código Civil, “o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.”
O escopo do comprador é a aquisição de um direito sobre determinada coisa, direito esse que, em princípio, pré-existe na esfera jurídica do vendedor.
Na perspetiva do vendedor, a finalidade do contrato é o recebimento do preço, entendido este como a expressão do valor da coisa em dinheiro.
Da referida definição legal, resultam desde logo os efeitos do contrato, depois discriminados no art. 879 do Código Civil, a saber: i) um efeito real: a transferência da titularidade de um direito; ii) dois efeitos obrigacionais: a obrigação, que impende sobre o vendedor, de entregar a coisa; e a obrigação, que impende sobre o comprador, de pagar o preço.
Da interpretação dos arts. 408, 874 e 879 do Código Civil decorre que a compra e venda é um contrato real quod efectum, na medida em que o direito real se transmite por mero efeito do acordo de vontades, sem necessidade de um subsequente ato alienatório. Sem prejuízo, valendo, no nosso direito, a regra de que os direitos reais, designadamente o direito de propriedade, se transmitem “por mero efeito do contrato” (art. 408/1), temos, no entanto, que são várias as exceções que ela comporta. No caso da compra e venda, contrato translativo por excelência, destacam-se, entre outras, a venda de coisa futura, em que a propriedade se transfere com o termo do ato de produção, a venda de coisa alheia, em que a propriedade se transfere com a aquisição da propriedade pelo vendedor, a venda de coisa genérica, em que a propriedade se transfere com a concentração ou especificação, a venda de coisa indeterminada, em que a propriedade se transfere com a determinação, ou a venda de parte integrante, em que a propriedade se transfere com a separação. Sobre a questão, vide Carlos Ferreira de Almeida, “Transmissão Contratual da Propriedade – Entre o mito da consensualidade e a realidade de múltiplos regimes”, Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano VI (2005), n.º 11, pp. 5 e ss..
A compra e venda é também um contrato oneroso, pois cada um dos contraentes sofre um sacrifício patrimonial, e bilateral ou sinalagmático, na medida em que da sua celebração resultam obrigações para ambos os contraentes, existindo entre elas um nexo de correspetividade – i. é, uma é a razão de ser da outra.
Já a empreitada, constitui uma das modalidades do contrato de prestação de serviço (art. 1155), sendo definido, no art. 1207, como “o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço.”
O objeto da obrigação principal que emerge da celebração da empreitada é, para o empreiteiro, uma prestação de resultado (a realização de certa obra). O outro contraente (dono da obra) obriga-se a pagar ao empreiteiro um preço, que mais não é que a expressão pecuniária do valor da obra realizada (cf. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra, 1997, p. 867).
Os efeitos essenciais da empreitada são de natureza obrigacional: para o empreiteiro, a obrigação de realizar a obra; para o dono da obra, a obrigação de pagar o preço.
Existe, entre as referidas obrigações, um nexo de correspetividade, o que nos permite dizer que, à semelhança da compra e venda, a empreitada é um contrato bilateral ou sinalagmático.
Assim caracterizados, ainda que com a brevidade que se impõe, os dois tipos contratuais, a distinção entre um e outro é fácil de fazer. Quando deixamos o plano abstrato e passamos à análise de situações concretas, a distinção torna-se, porém, mais difícil. Basta que se pense no caso de alguém adquirir um aparelho, por exemplo um elevador, que se destina a ser instalado na sua residência pelo vendedor. Qual o regime a aplicar a esse contrato que, em termos pouco rigorosos, podemos qualificar como de fornecimento e instalação?
Acerca da distinção, em concreto, da compra e venda e da empreitada muito se tem escrito e muitas teses foram desenvolvidas na doutrina e na jurisprudência.
Não sendo este o local próprio para as enunciar [sobre a questão, podem ver-se Pires de Lima / Antunes Varela, ob. cit., pp. 865 e ss., e Pedro Romano Martinez, Contrato de Empreitada, Coimbra: Almedina, 1994, pp. 34 e ss.], limitamo-nos a dizer que não é possível estabelecer critérios rígidos, absolutos, sendo o elemento determinante da qualificação a vontade das partes em celebrar um ou outro tipo contratual, o que impõe uma análise casuística. De facto, a catalogação de um contrato como pertencendo a um determinado tipo, necessária para determinar qual o regime jurídico aplicável, é uma operação lógica subsequente à interpretação das declarações de vontade das partes e dela dependente. Constitui matéria de direito sobre a qual o tribunal se pode pronunciar livremente, sem estar vinculado à denominação adotada pelos contraentes. O nome com que estes batizaram o acordo celebrado poderá, quando muito, servir como um elemento, entre muitos outros, a ter em conta no esforço interpretativo para alcançar o real sentido das declarações de vontade, sendo bem possível que a conclusão atingida não coincida com o nomen utilizado pelas partes. Como escreve Inocêncio Galvão Telles (CJ, XVII, t. 2, p. 27), “a não adequação da designação adotada pelas partes à real natureza do contrato pode resultar de circunstâncias várias, ou de equívoco ou ignorância ou de o objeto de defraudar a lei, procurando enquadrar o negócio num modelo que não é o seu, para, através do uso da denominação específica de outro e da confusão assim estabelecida, tentar daí extrair consequências jurídicas favoráveis às partes ou a uma delas e que não são compatíveis com a índole e regime do negócio efetivamente desejado (...) Em qualquer dos casos, o regime a observar, em última análise, será o do próprio tipo negocial que vier a diagnosticar-se através das operações de interpretação e qualificação, afastando-se todas e quaisquer soluções para que apontasse a incorreta denominação usada pelas partes, mas que não sejam conciliáveis com a espécie contratual realmente celebrada.”
Assim, incidindo sobre o caso dos autos, podemos dizer que as coisas que a Recorrente forneceu à Recorrida estavam destinadas, pela sua natureza, a serem incorporadas, como foram, num prédio, passando a ser parte integrante dele. A obrigação de montagem, condição daquela incorporação, não pressupunha, porém, conhecimentos técnicos específicos, apresentando-se, no contexto negocial, como meramente acessória da obrigação de fornecimento. Isto ao contrário do que sucede, por exemplo, com o fornecimento e instalação de elevadores (STJ 6.04.1995, CJSTJ, 1995, t.2., p. 33) ou de equipamentos industriais, onde a obrigação de instalação, precisamente por exigir conhecimentos técnicos específicos, sobreleva no contexto negocial, ao ponto de a tornar a obrigação principal. Se ela não for cumprida pelo dono do know-how – o empreiteiro –, o dono da obra não tem como realizá-la pelos seus meios.
Deste modo, o facto de a Recorrente ter procedido à montagem das coisas fornecidas não descaracteriza o contrato como sendo uma compra e venda.
Discordamos, portanto, da qualificação jurídica do contrato que foi feita – diga-se que de forma automática e sem qualquer esforço argumentativo – na sentença recorrida.
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3).2. Da compra e venda resulta, para o comprador a obrigação de pagar o preço. É a mora quanto ao cumprimento desta que está em causa na ação.
O art. 4.º/3 do DL n.º 62/2013, de 10.05, estabelece, para as transações comerciais, como a que constitui objeto da ação, prazos supletivos de vencimento automático das obrigações comerciais pecuniárias (art. 4.º/3 d). A fixação de tais prazos foi feita em função de determinadas variáveis substantivo-temporais: assim, nas transações comerciais que sejam omissas relativamente à data ou ao prazo de vencimento da obrigação de pagamento, considera-se que tal obrigação de vence ex lege e automaticamente no prazo de 30 dias – ou seja, sem necessidade de qualquer aviso ou interpelação, constituindo, assim, o respetivo devedor em mora no termo desse prazo – contado após a data em que o devedor tiver recebido a fatura ou documento equivalente (art. 4.º/3, a)), após a data da receção dos bens ou da prestação dos serviços quando seja incerta a data da receção da fatura ou quando o devedor haja recebido esta última antes do fornecimento daqueles bens ou serviços (art. 4.º/3, b) e c)), ou após a data de aceitação do devedor quando haja lugar a uma declaração de conformidade dos bens ou serviços recebidos por parte deste e ele haja já recebido a fatura respetiva (art. 4.º/3, d)).
Assim, não estando questionado o prazo de vencimento da obrigação indicado pela Recorrente (as datas impropriamente denominadas de vencimento das faturas), temos de concluir que a Recorrida está constituída em mora desde então.
A mora, quando imputável ao devedor, como sucede quando este não ilide a presunção do art. 799/2, é fonte geradora da obrigação de indemnizar (art. 804 do Código Civil). Nas obrigações pecuniárias, como salienta Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 1992, p. 120), "o credor tem direito a indemnização, independentemente da prova da existência de danos e do nexo causal entre os danos indemnizáveis e o facto ilícito da mora", considerando a lei que o montante da indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (art. 806/1 e 2, do Código Civil).
Assim, tendo improcedido, como vimos, o único fundamento de defesa invocado na oposição – a e.n.c.c. – e não sendo possível a redução, ex officio, do preço convencionado, ao contrário do que entendeu, também sem qualquer explicação, o tribunal a quo, a Recorrida deve ser condenada no cumprimento da obrigação de pagar in totum o preço convencionado e, bem assim, no cumprimento da obrigação de pagar os juros de mora, computados sobre ele, calculados nos termos do art. 102, § 3.º, do Código Comercial.
Nesta parte, o recurso é, pelo exposto, procedente.
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3).3. A Recorrida pediu ainda que a sentença recorrida seja revogada também na parte em que foi julgada improcedente a pretensão de condenação da Recorrida no pagamento de “outras quantias” e na parte em que a pretensão de restituição da taxa de justiça paga com o requerimento de injunção foi relegada para outra sede (funcionamento do mecanismo das custas de parte).
Não aduziu, no entanto, qualquer razão justificativa do seu dissenso quanto ao decidido a esse propósito, pelo que, nesta parte, o recurso está condenado ao insucesso.
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4). Em resultado do que antecede, concluímos que o recurso procede na parte referida em 3).2. e improcede na referida em 3).3.
Sendo simultaneamente vencedoras e vencidas, Recorrente e Recorrida devem suportar as custas respetivas na proporção dos respetivos decaimentos (art. 527/1 e 2 do CPC), que são de 1/10 e 9/10, respetivamente.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência:
Declaram a nulidade, por excesso de pronúncia, da sentença recorrida na parte em que conheceu e julgou procedente a exceção perentória da redução do preço;
Suprem a nulidade, julgando a ação procedente também na parte sobre que havia incidido o conhecimento da exceção perentória da redução do preço e substituem o segmento condenatório exarado na sentença recorrida pela condenação da Recorrida, EMP02..., Lda., a pagar à Recorrente, EMP01..., Materiais de Construção, Lda., a quantia de € 5 618,15 (cinco mil seiscentos e dezoito euros e quinze cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal prevista no art. 102, § 3.º, do Código Comercial, contados desde as datas de vencimento indicadas em cada uma das faturas discriminadas no ponto 4. do rol dos factos considerados provados na sentença recorrida e até efetivo e integral pagamento;
Confirmam, no mais, a sentença recorrida;
Condenam Recorrente e Recorrida no pagamento das custas do recurso, na proporção dos respetivos decaimentos, que são de 1/10 e 9/10, respetivamente.
Notifique.
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Guimarães, 18 de dezembro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
2.º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte