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QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
CONSEQUÊNCIAS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Sumário
I - A declaração da insolvência como culposa tem quatro consequências, cumulativas e automáticas, previstas no n.º 2 do art. 189 do CIRE: a inibição dos afetados para administrarem patrimónios de terceiros por período de 2 a 10 anos; a respetiva inibição para o exercício do comércio por idêntico período e para ocupação de cargo em sociedade, associação, fundação, empresa pública ou cooperativa; a perda de créditos sobre a insolvência ou a massa insolvente; e a condenação a indemnizar os credores do insolvente “no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados.” II - As duas primeiras, asseguram finalidades essencialmente punitivas e representam afetações da capacidade de exercício de direitos. Indiretamente asseguram finalidades securitárias ou de prevenção. III - A terceira das consequências da qualificação tem natureza mista, sancionatória (pela privação da vantagem que o afetado poderia invocar sobre a insolvência ou a massa ou obrigando-o a repor a que tivesse recebido em bens ou direitos) e reconstitutiva (pelo efeito reflexo do reforço da massa, com a qual se dará pagamento mais substancial aos créditos reconhecidos). IV - A quarta consequência é claramente ressarcitória, pois à massa insolvente (enquanto património autónomo afeto por natureza à satisfação dos créditos reconhecidos na insolvência) faz acrescer a expetativa de ressarcimento à custa dos patrimónios dos afetados, em moldes próximos aos da reversão fiscal. V - Na determinação da medida concreta do período de inibição releva o grau de culpa do administrador (lato sensu) da insolvente e o contributo que essa sua conduta culposa teve para a situação de Insolvência (para a sua criação ou para o seu agravamento). VI - A nova redação da alínea e) do n.º 2 do art. 189 evidencia que o “montante dos créditos não satisfeitos” funciona apenas como o limite máximo da indemnização e não como o elemento definidor da indemnização nem como mero ponto de partida ou padrão para o cálculo da indemnização. VII - Para esse efeito (cálculo da indemnização), há que atender à contribuição causal do sujeito afetado – ou, havendo vários, de cada um deles – para a ocorrência dos danos. VIII - A condenação das pessoas afetadas pela qualificação pode ser genérica, o que sucederá, designadamente, quando não for ainda possível liquidar o montante dos créditos não satisfeitos, por não estarem ainda concluídas as fases processuais da verificação de créditos, da apreensão de bens, das impugnações dos atos de resolução de negócios em benefício da massa insolvente e, em especial, da liquidação do ativo. IX - Em tal hipótese, impõe-se que o juiz fixe, de forma rigorosa, os critérios a observar na ulterior liquidação da indemnização.
Texto Integral
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I.
1). Por sentença de 25 de setembro de 2023, foi declarada a insolvência da sociedade comercial EMP01..., Unipessoal, Lda., nomeada administradora de insolvência, fixado em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos e agendada, para o dia 28 de novembro de 2023, a assembleia de credores.
Depois de apresentado, pela administradora de insolvência, o relatório previsto no art. 155 do CIRE, realizou-se, na data indicada (28 de novembro de 2023), a assembleia de credores, na qual foi deliberado, por unanimidade, o prosseguimento dos autos para a liquidação.
Entretanto, por despacho de 11 de dezembro de 2023, foi deferido o requerimento de prorrogação do prazo previsto no art. 188/1 do CIRE pelo “período adicional de 20 dias.”
Por requerimento apresentado no dia 4 de março de 2024, a administradora de insolvência apresentou, por apenso aos autos de insolvência, requerimento em que se pronunciou no sentido da qualificação da insolvência como culposa, indicando, como pessoa a afetar por tal qualificação, o gerente da insolvente, AA.
Alegou, em síntese, que: a insolvente incumpriu a obrigação de manter contabilidade organizada, com prejuízo relevante para a compreensão da sua situação patrimonial e financeira; a insolvente incumpriu o dever de colaboração.
Na sequência, o Ministério Público emitiu parecer, em que aderiu ao requerimento da administradora de insolvência, e procedeu-se à notificação da insolvente e à citação do seu gerente para se oporem, no prazo de 15 dias.
Decorrido esse prazo, apenas o gerente da insolvente apresentou oposição, pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita, para o que alegou, em síntese, que: prestou todos os esclarecimentos que lhe foram solicitados pelo administrador da insolvência; não ocultou nem dissipou património da insolvente; tudo fez para evitar a situação de insolvência, inexistindo, assim, qualquer nexo de causalidade entre o seu comportamento e a situação de insolvência.
Foi proferido despacho a: afirmar tabularmente a verificação dos pressupostos processuais; fixar em € 30 000,01 o valor processual; definir o objeto do litígio; enunciar os temas da prova; e agendar a audiência final.
Realizou-se a audiência final e foi proferida sentença, datada de 26 de julho de 2024, em que, depois de afirmar que “os factos apurados permitem a subsunção da conduta do gerente da insolvente, AA na previsão das als. h) e i) do n.º 2 e [da] al. b) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE”, a 1.ª instância decidiu: (i) qualificar a insolvência como culposa; (ii) declarar afetado pela qualificação o identificado gerente da insolvente; (iii) fixar em três anos e seis meses o período de inibição do afetado pela qualificação para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; (iv) determinar a perda de quaisquer créditos do afetado pela qualificação sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente; (v) condenar o afetado pela qualificação a indemnizar os credores da insolvente “até ao limite das forças dos respetivos patrimónios e até ao máximo dos créditos reclamados, mas em quantia concreta a ser liquidada em incidente de liquidação/execução de sentença.”
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2). Inconformado com a sentença, o gerente da insolvente afetado pela qualificação da insolvência como culposa (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
“1ª Em termos de ilicitude e culpa a actuação do recorrente situa-se num patamar médio/baixo;
2ª Ainda que seja ao gerente que incumbe manter a contabilidade organizada, o mesmo referiu em audiência que entregou toda a documentação ao anterior contabilista, e foi obrigado a mudar de contabilidade em virtude da inércia/falta de contabilidade;
3ª Do testemunho do actual contabilista resulta que o recorrente não só não tinha noção da insolvência da empresa, como foi por seu conselho que deu entrada do processo de insolvência;
4ª Do depoimento do actual contabilista resulta claro que a dívida da segurança social provem de pelo menos 24 meses anteriores, ou seja: 2021;
4ª Uma inibição de três anos é mais proporcional e adequada à factualidade provada (e não provada) nos presentes autos;
5ª O que resulta do nº3 do artigo 186º do CIRE é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação de administradores, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do artigo 186º, nº1, do CIRE, ou seja: que a insolvência foi causada ou agravada em consequência da conduta do gerente;
6ª O quantum indemnizatório deve aproximar-se da regra geral da responsabilidade civil nos termos do disposto no artigo 483º do Código Civil;
7ª Não só não foram fixados os critérios para fixação do valor indemnizatório, como, para além disso, não foi apurada a diferença entre a situação ilícita criada pelo recorrente e a que existiria sem essa ilicitude;
8ª Deve a decisão a quo ser revogada e substituída por outra que condene o recorrente numa inibição de três anos; e bem assim na fixação dos critérios determinantes do valor indemnizatório a liquidar em execução de sentença;
9ª Foram violadas, entre outras, as seguintes normas jurídicas: artigos 483º e seguintes, 562º 563º, do Código Civil; artigos 189º, nº2, alínea e) e nº4 do CIRE; artigo 20º, nº1 da C.R.P;
10ª Assim, deve o despacho recorrido ser revogado por violação dos princípios da adequação, proporcionalidade e proibição do excesso, assim se fazendo Justiça!”
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2). Apenas o Ministério Público apresentou resposta no sentido da improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.
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3). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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4). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC[1]). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final,ex vi do art. 663/2, parte final).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3).
Tendo isto presente, as questões que se colocam nas conclusões formuladas pela Recorrente podem ser sintetizadas nos seguintes termos, de acordo com a ordem lógica do seu conhecimento:
1.ª Saber se a sentença recorrida enferma de erro na decisão da matéria de facto por não terem sido considerados como provados os enunciados discriminados nas conclusões 2.ª, 3.ª e 4.ª;
2.ª Saber se a sentença recorrida, ao fixar em três anos e seis meses o período de inibição do Recorrente para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa e ao condenar o afetado pela qualificação a indemnizar os credores da insolvente “até ao limite das forças dos respetivos patrimónios e até ao máximo dos créditos reclamados, mas em quantia concreta a ser liquidada em incidente de liquidação/execução de sentença” incorreu em erro de interpretação das normas jurídicas indicadas na conclusão 9.ª.
Como se constata, estão afastados do objeto do recurso os segmentos em que foi decidido: (i) qualificar a insolvência como culposa, (ii) declarar o Recorrente afetado pela qualificação; e (iii) determinar a perda de quaisquer créditos do Recorrente pela qualificação sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente.
Daqui decorre que, quanto a esses segmentos, a sentença recorrida transitou em julgado, o que obsta, de acordo com o disposto no art. 635/5 do CPC, a que este Tribunal ad quem a coloque em causa, nessa parte, com fundamento em questões situadas a montante, ainda que estas sejam (rectius, fossem)do conhecimento oficioso, como se afigura ser a da ultrapassagem do prazo perentório previsto no art. 188/1 do CIRE, na redação da Lei Lei n.º 9/2022, de 11.01, para o administrador da insolvência alegar, por escrito, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa. A propósito, vide RG 18.01.2024 (1731/23.2T8GMR-J.G1), do presente Relator, e RL 14.11.2023 (619/22.9T8AGH-B.L1-1), relatado por Nuno Teixeira. Funciona aqui uma espécie de proibição de reformatio in melius (Lebre de Freitas / Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, III, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 34), com o que se pretende significar que o recorrente não pode obter no recurso mais do que a revogação e a substituição da decisão recorrida no âmbito do objeto do recurso que por si próprio foi indicado, sob pena de o tribunal de recurso estar a julgar ultra petita, o que lhe está vedada pelo disposto no n.º 1 do art. 609, ex vi do art. 663/2, ambos do CPC.
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III.
1). Antes de avançarmos com a resposta às questões enunciadas, respigamos a fundamentação de facto da sentença recorrida, começando pelos enunciados que foram considerados como provados (transcrição):
“1. A insolvente é uma sociedade por quotas constituída em setembro de 2017, com sede registada na Travessa ..., ..., ..., ... Guimarães e dedicou-se à atividade de confeção de têxteis e vestuário exterior.
2. À data da declaração da insolvência constava inscrito no registo comercial, como gerente da insolvente, AA, contribuinte fiscal número ...98 e residência na Travessa ..., ..., ..., ... Guimarães.
3. Dando cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 24.º do CIRE, a devedora procedeu, até à elaboração do relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, à junção dos seguintes documentos/elementos: Certidão permanente; Balancete geral de agosto de 2023; Relação de credores; Relações de ações e execuções pendentes; IES referentes aos anos de 2020 e 2021; Senhas de acesso ao Portal das Finanças e da Segurança Social Direta.
4. Desde a data da sua constituição, a sociedade dedicou-se à atividade de confeção de têxteis e vestuário exterior, encontrando-se inscrita junto da AT com o seguinte: CAE Principal: 14131-R3 – Confeção de outro vestuário exterior em série.
5. Foram reclamados e reconhecidos créditos no montante global de €450.362,48 (quatrocentos e cinquenta mil trezentos e sessenta e dois euros e quarenta e oito cêntimos).
6. Da análise à informação contabilística disponível da sociedade e tendo em conta os valores constantes da tabela supra, constata-se que a insolvente apresenta um volume de negócios em crescendo de 2020 para 2021, não foi apresentada qualquer informação contabilística do exercício de 2022 que era fundamental por ser o exercício imediatamente anterior ao ano da apresentação à insolvência e o balancete de agosto de 2023, desacompanhado dos elementos do exercício anterior, não permite uma análise realista da evolução do volume de negócios no período mais próximo que antecede a apresentação à insolvência.
7. Os gastos e perdas da sociedade são inferiores ao volume de negócios nos anos de 2020 e 2021, anos que foram especialmente difíceis para a maioria dos operadores económicos, o que permite concluir pelo bom desempenho da devedora, facto que torna a ausência de elementos contabilísticos do anos de 2022 ainda mais critica, por corresponder ao exercício em que se terá invertido a tendência de crescimento dos exercícios anteriores, impedindo desse modo a compreensão da evolução da situação financeira da devedora que levou à insolvência.
8. A devedora apresentou resultados líquidos positivos nos exercícios económicos de 2020 e 2021 não sendo possível averiguar, por falta de elementos contabilísticos, o que se passou no exercício de 2022 e 2023 que levou à situação de insolvência.
9. A rubrica de ativos fixos tangíveis é composta por máquinas e equipamentos de transporte.
10. Nos exercícios de 2020 e 2021 a sociedade apresentava valores elevados na rubrica de clientes que não estão refletidos no balancete de 2023 e cujo rasto teria que ser encontrado no exercício de 2022, do qual não foram apresentados elementos da contabilidade.
11. O capital próprio da devedora apresenta valores positivos em 2020 e 2021 não tendo sido facultados elementos contabilísticos dos exercícios de 2022 e 2023.
12. Em 13/10/2023, aquando da deslocação ao local da sede da insolvente, foi concretizada a apreensão de bens que se encontram descritos no auto de apreensão junto aos autos em 27/10/2023 com a referência ...49, cujo valor estimado ascende a €1.839,79.
13. Um grupo de trabalhadoras a que se referem os requerimentos com as referências Citius 47038075 e 47225239 vieram indicar a existência de outros bens utilizados na laboração da sociedade, a saber: •1 máquina de fazer bainhas em aberto com aparelho “... ...” – no valor de 3.000,00€; •1 máquina de fazer bainhas em fechado “... – ...” - no valor de 5.500,00€; •1 máquina de ponto corrido “BB 9000 ...” - no valor de 600,00€; • 2 máquinas de corte e cose de remate automático “... ...” - no valor de 2.500,00€ cada uma; •1 máquina de golas “... – ... 100” - no valor de 5.500,00€; •2 máquinas de clorete no valor de 500,00€, cada uma; •3 máquinas de recobrimento no valor de 1.000,00€, cada uma; •1 carrinha comercial da marca ... para transporte de obra; •Cerca de 10.000 cones de linha, no valor de pelo menos 5.000,00€.
14. O gerente não comprovou a titularidade destes bens.
15. Até à presente data, a insolvente não procedeu à junção de quaisquer documentos contabilísticos referentes aos exercícios de 2022 e apenas foi junto um balancete reportado ao mês de agosto de 2023, este último facultado pelo atual contabilista certificado CC.
16. O atual contabilista certificado apenas exerce funções desde o início do ano de 2023, tendo declarado que o anterior contabilista, DD, não procedeu à entrega das demonstrações financeiras relativas ao ano de 2022, nomeadamente a IES, nem procedeu à entrega dos elementos ao atual contabilista, apesar de notificado para o efeito.
17. Consequentemente, não foi possível compaginar os bens localizados e apreendidos com o imobilizado registado na contabilidade.
18. A insolvente alienou o veículo com a matrícula ..-UM-.., que se encontra registado desde ../../2023 a favor do adquirente EMP02..., Lda.
19. O gerente da Insolvente declarou que na data da alienação o veículo já estava totalmente liquidado à financeira Banco 1..., SA e que o alienou porque estava com o motor avariado e a insolvente já não tinha condições para suportar os respetivos encargos.
20. Mais declarou que foi faturada a venda e depositado o preço na conta da insolvente, mas não facultou a fatura da venda, nem comprovativo do pagamento/depósito do preço conta bancária da insolvente, apesar que notificado para o efeito.
21. Sucede que, apesar de notificado, o contabilista certificado não prestou qualquer esclarecimento no prazo de que dispunha para o efeito e o gerente da insolvente não procedeu ao levantamento da notificação, furtando-se ambos, assim, ao esclarecimento do solicitado.
22. Foi requerida e deferida a repetição da notificação de ambos, desta vez com cominação de multa, o que também não surtiu efeito, tendo ambos rececionado as notificações do tribunal e se colocado deliberadamente numa situação de omissão de colaboração.
23. No passado dia 15.02.2024, já decorrido o prazo que lhe havia sido fixado, o contabilista da devedora veio juntar mapa de depreciações de 2021 e 2022, afirmando que o de 2022 não estava devidamente validado porque “o cliente não nos enviou os extratos bancários para podermos encerrar e prestar as contas ao mesmo referente ao ano de 2022, foi solicitado em 05/04/2023, os quais, até à data não nos foi entregue, E como o cliente no primeiro semestre de 2023 informou que tinha outro contabilista certificado que lhe estava a tratar da contabilidade, pensei eu e o meu irmão (…) que o mesmo encerrasse o ano, visto que não enviou os elementos necessários para o seu encerramento”.
24. Até ao momento o gerente da insolvente não prestou qualquer dos esclarecimentos nem juntou qualquer dos documentos solicitados.
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2). Como não provados, foram considerados os seguintes enunciados (transcrição):
“- Destino da venda obtida com o bem referido sob 18.
- •1 carrinha da marca ... de 9 lugares para transporte das funcionárias pertencesse à insolvente.”
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III.
1).1.1. Isto posto, avançamos com a resposta à 1.ª questão, começando por dizer que os enunciados que o Recorrente pretende ver aditados ao rol dos factos provados não foram alegados em qualquer uma das peças processuais em que as partes[2] expuseram, previamente à sentença recorrida, os seus argumentos de facto e de direito.
Esta circunstância não constituía, porém, obstáculo à sua consideração pelo tribunal a quo, em especial para efeitos de graduação do grau de responsabilidade do Recorrente– única questão jurídica que, grosso modo, no recurso está em discussão –, desde que sobre eles fosse possível formar uma convicção positiva.
A primeira parte da afirmação acabada de fazer parte da consideração de que o incidente de qualificação da insolvência é enformado pelo princípio do inquisitório, conforme resulta do disposto no art. 11 do CIRE, onde se pode ler que, em tal incidente, à semelhança do que sucede no processo de insolvência, “a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes”, assim se consagrando um desvio à regra do art. 5.º/1 e 2 do CPC, a qual se apresenta como um corolário do princípio do dispositivo. Significa isto que, nesta sede, os poderes de cognição do tribunal não dependem do cumprimento de nenhum ónus de alegação das partes, isto quer estejam em causa factos individualizadores da causa de pedir ou das exceções (os ditos factos essenciais), quer estejam em causa factos meramente complementares ou concretizadores daqueles, na medida em que, à semelhança do que sucede nos processos de jurisdição voluntária, pode conhecê-los oficiosamente, investigando-os por sua iniciativa, ou em consequência da alegação dos interessados, com uma concreta finalidade concreta: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio. A propósito da aplicação prática do princípio do inquisitório no incidente de qualificação da insolvência, vide RG 11.07.2024 (6145/22.9T8VNF-C.G1), relatado pelo Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte, em que intervieram, como Adjuntos, os Juízes Desembargadores Pedro Maurício e Fernando Manuel Barroso Cabanelas, onde se nota também, com o que concordamos, que a aplicação do princípio do inquisitório pela Relação está limitada pelos factos assentes e pela prova produzida, seja em 1.ª instância, seja através da apresentação de documento superveniente, sem prejuízo, acrescentamos, da renovação da prova, em caso de dúvida séria sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento (art. 662/2, a) do CPC) ou da produção de novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada (art. 662/2, b), do CPC).
A segunda parte da afirmação (“desde que sobre eles fosse possível formar uma convicção positiva”) dá-nos o mote para a questão enunciada e que pode ser reformulada nos seguintes termos: o tribunal a quo podia (rectius, devia) ter formado uma convicção positiva sobre os enunciados em questão.
A resposta a esta questão só será, porém, possível se o recurso passar pelo crivo do art. 640/1 do CPC, onde se estabelecem os requisitos do conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto.
Diz este preceito que, “[q]uando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
A isto acresce que, nos termos do n.º 2 do preceito, “[q]uando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.”
Resulta daqui que o recorrente que impugne a decisão da matéria de facto deve, sob cominação de rejeição do recurso, delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, indicar os concretos meios probatórios em que se estriba, precisando com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso; e deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada.
Como ensina António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 201-202), estas exigências, verdadeiros ónus, vêm “na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes”, “impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Sobre os termos a observar no cumprimento de tais ónus, sufragamos o expendido no Acórdão desta Relação de 12.10.2023 (605/21.6T8VCT-C.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Maria João Matos e em que interveio, como 2.º Adjunto, o presente Relator, que aqui respigamos:
“Somando-se, porém, a este ónus de impugnação, encontra-se um outro, o ónus de conclusão, previsto no art.º 639.º, n.º 1, do CPC, onde se lê que o “recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.
“Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299” (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1).
“Entendeu-se que, exercendo os recursos a função de impugnação das decisões judiciais”, não só fazia sentido que o recorrente “expusesse ao tribunal superior as razões da sua impugnação, a fim de que o” mesmo “aprecie se tais razões procedem ou não”, como, podendo “dar-se o caso de a alegação ser extensa, prolixa ou confusa”, deveria no fim, “a título de conclusões”, indicar “resumidamente os fundamentos da impugnação”, fazendo-o pela “enunciação abreviada dos fundamentos do recurso” (Professor Aberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, pág. 359…).
Contudo, acresce ainda a este objetivo (de síntese das razões que estão subjacentes à interposição do recurso) um outro, não menos importante, de definição do seu objeto. Lê-se, a propósito, no art.º 635.º, n.º 4, do CPC, que nas “conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso”; e, por isso, se defende que as “conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág.118).
Logo, pretende-se que o recorrente indique de forma resumida, através de proposições sintéticas, os fundamentos de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão, para que seja possível delimitar o objeto do recurso de forma clara, inteligível, concludente e rigorosa (neste sentido, Ac. do STJ, de 18.06.2013, Garcia Calejo, Processo n.º 483/08.0TBLNH.L1.S1). Compreende-se, por isso, que se afirme que, para “o bom julgamento do recurso não é suficiente que a alegação tenha conclusões. Estas deverão ser precisas, claras e concisas de modo a habilitar o tribunal ad quem a conhecer quais as questões postas e quais os fundamentos invocados” (Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, pág. 179).
Está-se aqui perante uma das concretizações do princípio da autorresponsabilidade das partes.”
No mesmo aresto, versando sobre as consequências do incumprimento dos referidos ónus, escreve-se que:
“Incumprindo o recorrente o ónus de impugnação previsto no art.º 640.º, n.º 1 do CPC (especificação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados, dos concretos meios probatórios que impõem que sobre eles seja proferida uma decisão diferente - incluindo as exatas passagens da gravação dos depoimentos em que se estriba - , e da decisão alternativa que deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas), e tal como aí expressamente afirmando, terá o seu recurso que ser rejeitado (“sob pena de rejeição”).
“Incumprindo o recorrente o ónus de impugnação previsto no art.º 640.º, n.º 1 do CPC (especificação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados, dos concretos meios probatórios que impõem que sobre eles seja proferida uma decisão diferente - incluindo as exatas passagens da gravação dos depoimentos em que se estriba - , e da decisão alternativa que deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas), e tal como aí expressamente afirmando, terá o seu recurso que ser rejeitado (“sob pena de rejeição”).
Com efeito, e ao contrário do que sucede com o recurso relativo à decisão sobre a matéria de direito (previsto no art.º 639.º, n.º 2 e n.º 3, do CPC), no recurso relativo à matéria de facto (previsto no art.º 640.º, do CPC) não se admite despacho de aperfeiçoamento.
“Esta solução é inteiramente compreensível e tem a sustentá-la a enorme pressão (geradora da correspondente responsabilidade) que durante décadas foi feita para que se modificasse o regime de impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliassem os poderes da Relação a esse respeito, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitiria corrigir. Além disso, pretendendo o recorrente a modificação da decisão da 1ª instância e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção de prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas. Enfim, a comparação com o disposto no art. 639º não deixa margem para dúvidas quanto à intenção do legislador de reservar o convite ao aperfeiçoamento para os recursos da matéria de direito” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 128).
Aliás, o entendimento da não admissibilidade de despacho de aperfeiçoamento face ao incumprimento, ou ao cumprimento deficiente, do ónus de impugnação da matéria de facto, já era generalizadamente aceite no âmbito do similar art.º 690.º-A do anterior CPC, de 1961 (conforme Carlos Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Almedina, pág. 203).
Do mesmo modo se deverá proceder quando, pese embora indicada a matéria de facto impugnada no corpo das alegações de recurso, essa indicação não seja depois reiterada nas respetivas conclusões, tendo o recorrente limitado desse modo o seu objeto.
Com efeito, importa distinguir a natureza, e as consequências, das diversas atuações possíveis do recorrente: uma primeira (relativa a um ónus primário), que contende com a delimitação do objeto do seu recurso, e que deixa absolutamente omissa, nas respetivas conclusões, a indicação da matéria de facto impugnada (limitando desse modo o recurso, e inexoravelmente, à sindicância da matéria de direito); e uma segunda (relativa aos ónus secundários), que contende com a análise jurídica do cumprimento do ónus de impugnação previsto no art.º 640.º, do CPC, e que deixa absolutamente omissa, nas mesmas conclusões de recurso - e ao contrário do que previamente fizera no corpo das respetivas alegações -, a indicação dos concretos meios probatórios que imporiam decisão diferente, da decisão alternativa pretendida, e das exatas passagens da gravação que o fundariam.
Compreende-se que assim seja, já que, nesta segunda situação, a impugnação da matéria de facto - bem ou mal feita - faz parte do objeto do recurso; e “o prazo de interposição do recurso é pela lei fixado em função do modo como o recorrente concebe o respetivo objeto” (Ac. da RG, de 07.04.2016, José Amaral, Processo n.º 4247/10.3TJVNF.G1).”
Acrescenta-se que:
“Ainda que com naturais oscilações - nomeadamente, entre a 2.ª Instância e o Supremo Tribunal de Justiça - (muito bem sumariadas no Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1, e no Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo n.º 157/12-8TVGMR.G1.S1) -, vêm sendo firmados os seguintes entendimentos:
. os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.04.2014, Abrantes Geraldes, Processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria Graça Trigo, Processo n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1, Ac. do STJ, de 06.06.2018, Pinto Hespanhol, Processo n.º 552/13.5TTVIS.C1.S1, Ac. do STJ, 12.07.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1, Ac. do STJ, de 13.11.2018, Graça Amaral, Processo n.º 3396/14, ainda inédito, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2);
. dever-se-á usar de maior rigor na apreciação cumprimento do ónus previsto no n.º 1, do art.º 640.º, do CPC (primário ou fundamental, de delimitação do objeto do recuso e de fundamentação concludente do mesmo, mantido inalterado), face ao ónus previsto no seu n.º 2 (secundário, destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1);
. a exigência de especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, só se satisfaz se essa concretização for feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Maria dos Prazeres Beleza, Processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1);
. a apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a), do n.º 2, do art.º 640.º, do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Maria dos Prazeres Beleza, Processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1); nem o faz o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem uma única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.05.2015, Granja da Fonseca, Processo n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1); e igualmente não cumpre a exigência legal a simples indicação do momento do início e do fim da gravação de um certo depoimento (neste sentido, Ac. do STJ, de 05.09.2018, Gonçalves Rocha, Processo n.º 15787/15.8T8PRT.P1.S2, Ac. do STJ, de 18.09.2018, José Rainho, Processo n.º 108/13.2TBPNH.C1.S1, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2);
. servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, mas bastando quanto aos demais requisitos que constem de forma explícita na motivação do recurso (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, Ac. do STJ, de 04.03.2015, Leones Dantas, Processo n.º 2180/09.0TTLSB.L1.S2, Ac. do STJ, de 01.10.2015, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ac. do STJ, de 03.12.2015, Melo Lima, Processo n.º 3217/12.1TTLSB.L1-S1, Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo n.º 157/12-8TVGMR.G1.S1, Ac. do STJ, de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, Ac. do STJ, de 21.04.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 449/10.0TTVFR.P2.S1, Ac. do STJ, de 28.04.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, Ac. do STJ, de 31.05.2016, Garcia Calejo, Processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1, Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1, Ac. do STJ, de 13.10.2016, Gonçalves Rocha, Processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, Ac. do STJ, de 16.05.2018, Ribeiro Cardoso, Processo n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1, Ac. do STJ, de 06.06.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1, Ac. do STJ, de 06.06.2018, Pinto Hespanhol, Processo n.º 552/13.5TTVIS.C1.S1, Ac. do STJ, 12.07.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1, Ac. do STJ, de 31.10.2018, Chambel Mourisco, Processo n.º 2820/15.2T8LRS.L1.S1, Ac. do STJ, de 13.11.2018, Graça Amaral, Processo nº 3396/14, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2);
. não cumprindo o recorrente os ónus impostos pelo art.º 640º, n.º 1, do CPC, dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art.º 639.º, n.º 3, do CPC (nesse sentido, Ac. da RG, de 19.06.2014, Manuel Bargado, Processo n.º 1458/10.5TBEPS.G1, Ac. do STJ, de 27.10.2016, Ribeiro Cardoso, Processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Ac. da RG, de 18.12.2017, Pedro Damião e Cunha, Processo n.º 292/08.7TBVLP.G1, Ac. do STJ, 27.09.2018, Sousa Lameira, Processo n.º 2611/12.2TBSTS.L1.S1, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2);
. não deve ser rejeitado o recurso se o recorrente seguiu um determinado entendimento jurisprudencial acerca do preenchimento do ónus de alegação quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art.º 640.º, do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1);
. a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1).
Logo, a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 128 e 129 (…).”
Precisando o ónus previsto na alínea c) do n.º 2 do art. 640, o STJ proferiu, recentemente, Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (Acórdão de 17.10.2023, no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1), com a seguinte fórmula uniformizadora: “Nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”
***
1).1.2. Analisando o requerimento recursivo à luz das precedentes considerações, constatamos que o Recorrente indicou, tanto nas alegações, como nas conclusões, os enunciados que, no seu entender, deviam ter sido incluídos no rol dos factos provados, louvando-se da prova oralmente produzida na audiência final.
Impunha-se, portanto, que indicasse, com exatidão, as passagens da gravação de tal ato processual em que funda o seu entendimento, ónus que não observou, nem nas conclusões, nem as alegações.
Recordando que a impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão, temos de concluir que o incumprimento destes ónus, obstando a que a Relação leve a cabo a sua função de reapreciação da matéria de facto, nos termos em que esta é gizada pelo legislador, tem como consequência inevitável a rejeição do recurso que recai sobre a matéria de facto.
***
1.2).1. Sem prejuízo do que antecede, importa dizer que a narrativa factual constante da sentença recorrida enferma de uma patologia que, não a tornando deficiente, obscura nem contraditória, prejudica a sua clareza quanto aos seguintes enunciados incluídos no rol dos factos provados:
Ponto 3: “Dando cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 24.º do CIRE (…);
Ponto 6: “Da análise à informação contabilística disponível da sociedade e tendo em conta os valores constantes da tabela supra, constata-se que (…)”; “que era fundamental por ser o exercício imediatamente anterior ao ano da apresentação à insolvência (…)”; e “(…) não permite uma analise realista da evolução do volume de negócios no período mais próximo que antecede a apresentação à insolvência”;
Ponto 7: “(…) que permite concluir pelo bom desempenho da devedora, facto que torna a ausência de elementos contabilísticos do[s] anos de 2022 ainda mais critica, por corresponder ao exercício em que se terá invertido a tendência de crescimento dos exercícios anteriores, impedindo desse modo a compreensão da evolução da situação financeira da devedora que levou à insolvência (…)”;
Ponto 8: “(…) por falta de elementos contabilísticos (…)”;
Ponto 9: “(…) elevados (…)”;
Ponto 11: “(…) cujo rasto teria que ser encontrado no exercício de 2022 (…)”;
Ponto 17: “Consequentemente (…)”;
Ponto 21: “21. Sucede que, apesar (…)” e “(…) furtando-se ambos, assim, ao esclarecimento do solicitado”;
Ponto 22: “(…) o que também não surtiu efeito (…)” e “(…) se colocado deliberadamente numa situação de omissão de colaboração.”
Todos estes enunciados, construídos à base de adjetivos e advérbios de modo – e não de substantivos –, redundam em conclusões relacionadas com o thema decidendum – a contribuição do devedor para a situação de insolvência; o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada; o incumprimento do dever de colaboração com o administrador de insolvência; e a dissipação de património do devedor –, antecipando a valoração que ao juiz compete fazer na parte da fundamentação jurídica. São, por isso, impróprios para descrever a realidade ontológica.
Com efeito, do n.º 4 do art. 607 do CPC resulta que o tribunal só deve responder aos factos que julga provados e não provados, o que exclui a pronúncia, nessa sede, sobre questões de direito, sendo que, tradicionalmente, se englobam neste conceito, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos, os quais são, no dizer de Helena Cabrita (A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, pp. 106-107), “ aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa” ou, dito de outro modo, aqueles que se fossem considerados provados ou não provados levariam a que toda a ação ficasse resolvida, em termos de procedência ou improcedência, com base nessa única resposta.
A título de exemplo, cita-se STJ de 28.09.2017 (809/10.7TBLMG.C1.S1), no qual se entendeu que, “[m]uito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito.”
Este entendimento estrito tem sido objeto da crítica da doutrina, em especial de Miguel Teixeira de Sousa, “Anotação ao Acórdão do STJ de 28.9.2017, processo n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1”, Blog IPPC, Jurisprudência 784[3], https://blogippc.blogspot.com/, que, a propósito, escreve que, “[e]nquanto no CPC/1961 se selecionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.º CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra (…)
A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. Por exemplo: se o tribunal disser que a parte atuou com dolo, porque, de acordo com o depoimento de várias testemunhas, ficou provado que essa parte gizou um plano para enganar a parte contrária, não se percebe por que motivo isso há de afetar a prova deste plano ardiloso (nem também por que razão a qualificação do plano como ardiloso há de afetar a sua prova). O exemplo acabado de referir também permite contrariar uma ideia comum, mas incorreta: a de que factos juridicamente qualificados não podem constituir objeto de prova. A ideia é, efetivamente, incorreta, porque cabe perguntar como é que sem a prova do dolo (através dos respetivos factos probatórios) se pode aplicar, por exemplo, o disposto no art. 483.º, n.º 1, CC quanto à responsabilidade por facto ilícito. É claro que o preceito só pode ser aplicado se, no caso de o dolo ser um facto controvertido, houver prova desse facto. Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova. A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.”
***
1).2.2. Da nossa parte, entendemos que é preferível um entendimento equilibrado da questão. Com efeito, tal como se expende no Ac. de 9.11.2023 (175/21.5T8VNF-B.G2), do presente Relator, o mesmo STJ notou, em Acórdão de 13.11.2007, 07A3060, ainda na vigência do CPC de 1961, que “[t]orna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.” E acrescentou que “não pode perder‑se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar‑se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”
Já no âmbito do CPC de 2013, o STJ, em Ac. de 22.03.2018 (1568/09.1TBGDM.P1.S1), considerou que a inexistência no CPC de 2013 de um preceito como o do art. 646/4 do CPC de 1961 “não pode deixar de ter implicações no que concerne à atual metodologia no que concerne à descrição na sentença do que constitui matéria de facto e matéria de direito.” Escreveu-se ali que “[n]o que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova, tarefas relativamente às quais foram introduzidas no CPC importantes alterações que visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia usualmente aplicada no âmbito do CPC de 1961 (…) A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória do CPC de 1961 (…)”
O relator deste Acórdão, Juiz Conselheiro António Abrantes Geraldes, renovou este entendimento na sua obra Recursos em Processo Civil (7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 354-355), ao escrever que, em resultado da modificação formal da produção de prova em audiência, que passou a ter por objeto temas de prova, e da opção da integração da decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença, “deve existir uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais em torno do que seja matéria de direito ou matéria conclusiva que apenas sirva para provocar um desajustamento entre a decisão final e a justiça material do caso (...) A patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como matéria de facto provada pura e inequívoca matéria de direito…”
Sem prejuízo, como salientado no Acórdão desta Relação de 11.11.2021, 671/20.1T8BGC.G1, “não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir “factos provados” para esse efeito as afirmações que “numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido”… De facto, se a opção legislativa tem subjacente a possibilidade de com maior maleabilidade se fazer o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que agora ambos (decisão da matéria de facto e da matéria de direito) se agregam no mesmo momento, a elaboração da sentença, tal não pode significar que seja admissível a “assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”…”
No mesmo sentido, o Acórdão desta Relação de 31.03.2022 (294/19.8T8MAC.G1) sintetiza a questão nos seguintes termos: “[a]figura-se-nos que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor.” E, sufragando RP 07.12.2018 (338/17.8YRPRT), acrescenta que: “Acaso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto. Se, pelo contrário, o objeto da ação não girar em redor da resposta exata que se dê às afirmações feitas pela parte, as expressões utilizadas, sejam elas de significado jurídico, valorativas ou conclusivas, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efetua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais.”
Deste modo, tendo presente que a linha divisória entre o facto e o direito não é linear, tudo dependendo, no dizer de Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, Coimbra: Almedina, 1982, p. 270, “em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa: o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes”, há sempre que verificar se o facto, mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo que importa para uma decisão justa.
Na verdade, como se salienta em STJ 14.07.2021 (19035/17.8T8PRT.P1.S1), citando um outro aresto do mesmo Tribunal, este de 13.11.2007, “torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.
Aliás, não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”
Isto sem esquecer que, como refere a declaração de voto de vencido da Conselheira Luísa Geraldes ao Acórdão do STJ de 28.01.2016 (1715/12.6TTPRT.P1.S1), “ainda que relativamente a alguns deles se pudesse afirmar a sua natureza conclusiva, nem assim se justificava a eliminação pura e simples, de tais pontos de facto, devendo a Relação fazer uso dos poderes conferidos enquanto Tribunal de instância que conhece da matéria de facto, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º do CPC.”
Deste modo, aquelas afirmações devem ser, pura e simplesmente, expurgadas da fundamentação de facto, assim se observando a lição de Manuel Tomé Soares Gomes (“Da Sentença Cível”, AAVV, O Novo Processo Civil. Textos e Jurisprudência, CEJ: Lisboa, 205, pp. 329-387) que aqui respigamos:
“Os enunciados de facto devem ser expressos numa linguagem natural e exata, de modo a retratar com objetividade a realidade a que respeitam, e devem ser estruturados com correção sintática e propriedade terminológica e semântica. A adequação dos enunciados de facto deve pautar-se pela exigência de evitar que esses enunciados se apresentem obscuros (de sentido vago ou equívoco), contraditórios (integrados por termos ou proposições reciprocamente excludentes) e incompletos (de alcance truncado), vícios estes que figuram como fundamento de anulação da decisão de facto, em sede de recurso de apelação, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC.
(…)
(…) as partes tendem a adestrar a factualidade pertinente no sentido estrategicamente favorável à posição que sustentam no seu confronto conflitual, daí resultando enunciados, por vezes, deformados, contorcidos ou de pendor mais subjetivo ou até emotivo.
Cumprirá, por sua vez, ao juiz, na formulação dos juízos de prova, expurgar tais deformações, sendo que, como é entendimento jurisprudencial corrente, não se encontra adstrito à forma vocabular e sintática da narrativa das partes, mas sim ao seu alcance semântico. Deve, pois, adotar enunciados que, refletindo os resultados probatórios, sejam portadores de um sentido semântico, o mais consensual possível, de forma a garantir que a controvérsia se desenvolva em sede da sua substância factual e não no plano meramente epidérmico dos seus modos de expressão linguística.”
Nesta sequência, poderia ser lançada mão do já referido princípio do inquisitório para que as expressões identificadas fossem substituídas pelos seus factos substanciadores. A propósito, escreve-se no já citado RG 11.07.2024 (6145/22.9T8VNF-C.G1) que, “[t]endo a matéria conclusiva sido objecto dos temas da prova, a sua eliminação da decisão de facto conjugada com o disposto no art.º 11º do CIRE, gera uma situação que se aproxima da deficiência da decisão de facto, no sentido em que se gera uma situação de “falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares (…) de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso.” E acrescenta-se: “Ora, nos termos da alínea c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC, a Relação deve, mesmo oficiosamente: c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.” Em conformidade, conclui-se que, “tendo sido formulado um tema da prova relativamente a matéria alegada de forma conclusiva, desde que os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente o permitam, a Relação deverá alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, eliminando a matéria conclusiva e substituindo-a pelos factos concretos.”
Cremos, porém, que tal não é necessário: o que sobra da fundamentação de facto contém já os enunciados substanciadores das expressões conclusivas que são, enquanto matéria de facto, necessários à valoração e à aplicação do direito.
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1).2.3. Impõe-se, porém, acrescentar, ao rol dos factos provados, que o ora Recorrente foi designado como único gerente da sociedade insolvente no ato de constituição desta, situação que se manteve até à declaração de insolvência, conforme resulta da certidão do registo comercial apresentada com a petição inicial da ação de insolvência, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzidos, e que constitui documento autêntico.
O aditamento deste facto visa dar cumprimento ao disposto no art. 607/4 ex vi do art. 663/2, ambos do CPC.
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1).2.3. Em corolário do que antecede, reproduzimos a fundamentação de facto, devidamente decantada e organizada de acordo com a sequência lógica e cronológica que é conforme à realidade histórica que é suposto retratar[4]:
(1) (1.) A insolvente é uma sociedade por quotas constituída em setembro de 2017, com sede registada na Travessa ..., ..., ..., ... Guimarães e dedicou-se à atividade de confeção de têxteis e vestuário exterior.
(2) (4.) Desde a data da sua constituição, a sociedade dedicou-se à atividade de confeção de têxteis e vestuário exterior, encontrando-se inscrita junto da AT com o seguinte: CAE Principal: 14131-R3 – Confeção de outro vestuário exterior em série.
(3) (2.) AA foi designado como único gerente da sociedade insolvente no ato de constituição desta, situação que se manteve até à declaração de insolvência.
(4) (6.) A insolvente apresenta um volume de negócios em crescendo de 2020 para 2021.
(5) (6.1.) Não foi apresentada qualquer informação contabilística do exercício de 2022.
(6) (7.) Os gastos e perdas da sociedade são inferiores ao volume de negócios nos anos de 2020 e 2021.
(7) (8.) A devedora apresentou resultados líquidos positivos nos exercícios económicos de 2020 e 2021.
(8) (9.) A rubrica de ativos fixos tangíveis é composta por máquinas e equipamentos de transporte.
(9) (10.) Nos exercícios de 2020 e 2021 a sociedade apresentava valores na rubrica de clientes que não estão refletidos no balancete de 2023 e cujo rasto teria que ser encontrado no exercício de 2022, do qual não foram apresentados elementos da contabilidade.
(10) (11.) O capital próprio da devedora apresenta valores positivos em 2020 e 2021
(11) (3.) A devedora procedeu, até à elaboração do relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, à junção dos seguintes documentos/elementos: Certidão permanente; Balancete geral de agosto de 2023; Relação de credores; Relações de ações e execuções pendentes; IES referentes aos anos de 2020 e 2021; Senhas de acesso ao Portal das Finanças e da Segurança Social Direta.
(12) (5.) Foram reclamados e reconhecidos créditos no montante global de €450.362,48 (quatrocentos e cinquenta mil trezentos e sessenta e dois euros e quarenta e oito cêntimos).
(13) (12.) Em 13/10/2023, aquando da deslocação ao local da sede da insolvente, foi concretizada a apreensão de bens que se encontram descritos no auto de apreensão junto aos autos em 27/10/2023 com a referência ...49, cujo valor estimado ascende a €1.839,79.
(14) (13.) Um grupo de trabalhadoras a que se referem os requerimentos com as referências Citius 47038075 e 47225239 vieram indicar a existência de outros bens utilizados na laboração da sociedade, a saber: •1 máquina de fazer bainhas em aberto com aparelho “... ...” – no valor de 3.000,00€; •1 máquina de fazer bainhas em fechado “... – ...” - no valor de 5.500,00€; •1 máquina de ponto corrido “BB 9000 ...” - no valor de 600,00€; • 2 máquinas de corte e cose de remate automático “... ...” - no valor de 2.500,00€ cada uma; •1 máquina de golas “... – ... 100” - no valor de 5.500,00€; •2 máquinas de clorete no valor de 500,00€, cada uma; •3 máquinas de recobrimento no valor de 1.000,00€, cada uma; •1 carrinha comercial da marca ... para transporte de obra; •Cerca de 10.000 cones de linha, no valor de pelo menos 5.000,00€.
(15) (14.) O gerente não comprovou a titularidade destes bens.
(16) (17.) Não foi possível compaginar os bens localizados e apreendidos com o imobilizado registado na contabilidade.
(17) (18.) A insolvente alienou o veículo com a matrícula ..-UM-.., que se encontra registado desde ../../2023 a favor do adquirente EMP02..., Lda.
(18) (19.) O gerente da Insolvente declarou que na data da alienação o veículo já estava totalmente liquidado à financeira Banco 1..., SA e que o alienou porque estava com o motor avariado e a insolvente já não tinha condições para suportar os respetivos encargos.
(19) (20.) Mais declarou que foi faturada a venda e depositado o preço na conta da insolvente.
(20) (20.1.) Não facultou a fatura da venda, nem comprovativo do pagamento/depósito do preço conta bancária da insolvente, apesar que notificado para o efeito.
(21) (11.1.) Não foram facultados elementos contabilísticos dos exercícios de 2022 e 2023.
(22) (15.) Até à presente data, a insolvente não procedeu à junção de quaisquer documentos contabilísticos referentes aos exercícios de 2022 e apenas foi junto um balancete reportado ao mês de agosto de 2023, este último facultado pelo atual contabilista certificado CC.
(23) (16.) O atual contabilista certificado apenas exerce funções desde o início do ano de 2023, tendo declarado que o anterior contabilista, DD, não procedeu à entrega das demonstrações financeiras relativas ao ano de 2022, nomeadamente a IES, nem procedeu à entrega dos elementos ao atual contabilista, apesar de notificado para o efeito.
(24) (21.) Apesar de notificado, o contabilista certificado não prestou qualquer esclarecimento no prazo de que dispunha para o efeito e o gerente da insolvente não procedeu ao levantamento da notificação, furtando-se ambos, assim, ao esclarecimento do solicitado.
(25) (22.) Foi requerida e deferida a repetição da notificação de ambos, desta vez com cominação de multa, tendo ambos rececionado as notificações do tribunal.
(26) (23.) No passado dia 15.02.2024, já decorrido o prazo que lhe havia sido fixado, o contabilista da devedora veio juntar mapa de depreciações de 2021 e 2022, afirmando que o de 2022 não estava devidamente validado porque “o cliente não nos enviou os extratos bancários para podermos encerrar e prestar as contas ao mesmo referente ao ano de 2022, foi solicitado em em 05/04/2023, os quais, até à data não nos foi entregue, E como o cliente no primeiro semestre de 2023 informou que tinha outro contabilista certificado que lhe estava a tratar da contabilidade, pensei eu e o meu irmão (…) que o mesmo encerrasse o ano, visto que não no enviou os elementos necessários para o seu encerramento”.
(27) (24.) Até ao momento o gerente da insolvente não prestou qualquer dos esclarecimentos nem juntou qualquer dos documentos solicitados.
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2).1. Passamos para a 2.ª questão, na qual não está em causa a qualificação da insolvência como culposa, com fundamento no art. 186/1, 2, alíneas h) e i), e 3, alínea b), do CIRE, nem a afetação do Recorrente, enquanto gerente da insolvente, por essa qualificação, mas apenas a medida da inibição do Recorrente para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa e a (não) fixação dos critérios determinantes do valor da indemnização em cujo pagamento o Recorrente foi condenado.
Em jeito de enquadramento, que nos ajudará na resposta, começamos por dizer que a insolvência é necessariamente qualificada como culposa ou como fortuita (art. 185). Ainda que o incidente de qualificação não seja aberto, o art. 233/6 estatui que o caráter fortuito da insolvência deve ser declarado na decisão de encerramento prevista no art. 230. Já a declaração da insolvência como culposa pressupõe a abertura do incidente de qualificação.
Considera-se que a insolvência é culposa “quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” (art. 186/1).
Pressupõe-se, deste modo, um comportamento de certos sujeitos – o devedor ou os seus administradores, de direito ou de facto, na aceção do art. 6.º –, dentro de um certo limite temporal (três anos anteriores ao início do processo de insolvência, sem prejuízo do disposto no art. 4.º/2), a existência de dolo ou culpa grave e, finalmente, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Os conceitos de causalidade, dolo e culpa grave devem ser entendidos, na falta de indicação em contrário, nos termos gerais de Direito, conforme referem Carvalho Fernandes / João Labareda (CIRE Anotado, II, Lisboa: Quid Iuris, 2005, p. 14).
É ponto assente que, para a existência de causalidade entre o facto e o dano (rectius, a situação de insolvência ou o agravamento desta),não basta que aquele tenha sido em concreto causa deste em termos de conditio sine qua non; é necessário que, em abstrato, seja também adequado a produzi-lo, segundo o curso normal das coisas (vide, por todos, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2001, p. 708).
A averiguação da adequação abstrata do facto a produzir o dano só pode ser realizada a posteriori (prognose póstuma). A doutrina da adequação, tratada sobretudo a propósito da responsabilidade civil e da responsabilidade criminal, aceita que essa avaliação tome por base não apenas as circunstâncias normais que levariam um observador externo a efetuar um juízo de previsibilidade, mas também circunstâncias anormais, desde que recognoscíveis ou conhecidas pelo agente. É esta a teoria que se encontra consagrada no art. 563 do Código Civil: a introdução, na norma, do advérbio provavelmente faz supor que não está em causa apenas a imprescindibilidade da condição para o desencadear do processo causal, exigindo-se ainda que essa condição, de acordo com um juízo de probabilidade, seja idónea a produzir um dano (cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 326. Na jurisprudência, STJ 15.01.2002, CJ-STJ, IX, t. 1, pp. 36 a 38).
Mais que o nexo de imputação objetiva da situação de insolvência à conduta do insolvente, o legislador exige o dolo ou a culpa grave como pressuposto da qualificação da insolvência.
Recorrendo, também neste ponto, à teoria geral do direito das obrigações, diremos que a conceção tradicional da culpa como o nexo de imputação do ato ao agente, que se considerava existir sempre que o ato resultasse da sua vontade – ou seja, quando lhe fosse psicologicamente atribuível (Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa: Centro de Estudos Fiscais, 1968, p. 321) –, foi substituída por uma definição de culpa em sentido normativo como um juízo de censura ao comportamento do agente. A culpa, ensina Menezes Leitão (ob. cit., p. 296), éatualmente, entendida como o juízo de censura ao agente por ter adotado a conduta que adotou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adotar conduta diferente. “Deve, por isso, ser entendida em sentido normativo, como a omissão da diligência que seria exigível ao agente de acordo com o padrão de conduta que a lei impõe. Nestes termos, o juízo de culpa representa um desvalor atribuído pela ordem jurídica ao facto voluntário do agente, que é visto como axiologicamente reprovável.”
É sabido que existem duas formas de culpa: o dolo e a negligência (cf. art. 483/1 do Código Civil). O dolo corresponde à intenção do agente de praticar o facto. Já na negligência, não se verifica essa intenção, mas o comportamento do agente não deixa de ser censurável em virtude de ter omitido a diligência a que estava legalmente obrigado.
A apreciação do grau de diligência exigível – e, logo, do grau de censura que a conduta do agente merece – pode ser feita por um de dois critérios: (i)) um que aponta para a apreciação da culpa em concreto, exigindo ao agente a diligência que ele põe habitualmente nos seus próprios negócios ou de que é capaz; (ii)) um que aponta para a apreciação da culpa em abstrato, exigindo a lei ao agente a diligência padrão dos membros da sociedade, a qual é naturalmente a diligência do homem médio ou, como diziam os romanos, do bonus pater familias (Menezes Leitão, ob. cit., p. 302).
O Código Civil prevê, no art. 487/2, o critério de apreciação da culpa na responsabilidade delitual – que vale, também, para a responsabilidade obrigacional (art. 799/2). Segundo o texto, a “culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, segundo as circunstâncias do caso” - ou seja, o legislador civil aponta para o critério da apreciação da culpa em abstrato, não deixando de exigir, todavia, uma análise das circunstâncias do caso, ou seja, do circunstancialismo da situação e do tipo de atividade em causa (Menezes Leitão, ob. cit., p. 303).
No art. 186/1 do CIRE, à semelhança do que sucede com alguns preceitos do Código Civil (v.g., arts. 494, 490, 497/1, 507/2 e 570), o legislador alude à ideia de graduação da culpa, implicando o recurso à denominada teoria das três culpas, aceite no nosso direito antigo, que, dentro da culpa stricto sensu, distinguia entre culpa grave, leve e levíssima. Como dá nota Pessoa Jorge (Ensaio…, p. 357), na formulação mais generalizada, que vem dos romanos, a culpa levíssima corresponde ao grau menos grave de culpa, traduzindo a negligência em que só não cai um homem excecionalmente diligente, o diligentissimus pater famílias; a culpa leve corresponde à negligência que seria evitada pelo homem mediano, o bonus pater familias; a culpa grave (também chamada de lata) traduz-se na negligência grosseira, só cometida por um homem excecionalmente descuidado (culpa lata est non intelligere quod omnes intelligunt, na expressão latina). Tradicionalmente, considerava-se aplicável à culpa grave o regime do dolo (culpa lata dolo aequiparatur).
Uma vez que, como vimos, o art. 487/2 só considera como culposa a omissão da diligência do bom pai de família, a categoria da culpa levíssima é agora inócua no domínio da responsabilidade civil. A distinção entre a culpa grave e a culpa leve continua a revestir interesse prático: para além do art. 186/1 do CIRE, exigem aquela para responsabilizar o agente o art. 1323/4 do Código Civil e o art. 10.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (Menezes Leitão, ibidem).
Como resulta do art. 342/1 do Código Civil, a prova dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa constitui, em regra, ónus de quem sufraga esse entendimento, muito embora o juiz possa fundar a sua decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes, como resulta do art. 11 do CIRE, preceito no qual se consagra, nesta sede, o princípio do inquisitório e que tem implícita a faculdade de o juiz, por sua própria iniciativa, investigar livremente os factos, bem como recolher as provas e informações que entender convenientes (cf. Carvalho Fernandes / João Labareda, CIRE Anotado, I, Lisboa: Quid Iuris, 2005, p. 102).
Para facilitar essa tarefa, o legislador prevê um duplosistema de presunções (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 549), as quais permitem qualificar como culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham adotado um dos comportamentos aí descritos, o que se aplica também à atuação da pessoa singular insolvente e seus administradores (art. 186/4). E, como resulta do art. 350/1 do Código Civil, a presunção implica uma inversão do ónus da prova – que passa a correr pelo insolvente ou pelos seus administradores.
Neste sentido, o art. 186/2, na sua atual redação, resultante da Lei n.º 9/2022, de 11.01, diz que “[c]onsidera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º.”
E o n.º 3 acrescenta que “[p]resume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”
Como a jurisprudência e a doutrina têm vindo a entender, o n.º 2 consagra presunções inilidíveis ou iuris et de iure: as situações descritas nas várias alíneas determinam, inexoravelmente, a atribuição de carácter culposo à insolvência, o que significa também que as presunções são simultaneamente de culpa e de causa. Na jurisprudência, inter alia, STJ 15.02.2023, 822/15.8T8VNG-C.P2.S1; RG 1.06.2017, 109/14.3TBCHV-A.G1; 4.11.2021, 5250/19.3T8GMR-A.G1; 17.12.2022, 5015/20.0T8VNF-C.G1; RP 1.06.2017, 35/16.1T8AMT-A.P1. Na doutrina, Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, Revista da Ordem dos Advogados, 2006, II, pp. 653 e ss.; Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 288, Alexandre de Soveral Martins, Um Curso cit., pp. 567-568. De um ponto de vista mais teórico, alguma jurisprudência vem entendendo, na sequência do Acórdão do Tribunal Constitucional de 26.11.2008, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 9, de 14.01.2009, que as alíneas transcritas não consagram, em rigor, presunções, tal como estas são definidas no art. 349 do Código Civil, mas factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa. Neste sentido, RP 15.07.2009, 725/06.7TYVNG-C, e 7.12.2016, 262/15.9T8AMT-D, podendo ler-se no primeiro que, “[d]e todo o modo, sejam presunções ou factos-índice, o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa. Na doutrina, Rui Estrela de Oliveira, “Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência”, Julgar, n.º 11, mai.-ago. de 2010, pp. 199-249, sublinha que nas hipóteses do n.º 2 do art. 186 “não estamos perante presunções que facilitam a prova de um dos pressupostos da qualificação, mas perante presunções que facilitam o próprio sentido da decisão.”
Provada qualquer uma das situações enunciadas nas citadas alíneas, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. O n.º 3 do mesmo artigo apresenta, por seu turno, um conjunto de situações de presunção de culpa grave. Trata-se, contudo, de presunções juris tantum, ilidíveis por prova contrária. A culpa grave, assim presumida, não implica, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa, mas apenas que, ao omitir-se o cumprimento desses deveres, se atuou com culpa grave. Com efeito, como nas hipóteses do n.º 3 já se não presume o nexo de causalidade de que a omissão dos deveres aí descritos determinou a situação de insolvência da empresa, ou que para ela contribuiu, agravando-a, além da prova desses comportamentos omissivos, deve provar-se o nexo de causalidade, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram.”
Sintetizando, pode dizer-se que a qualificação da insolvência como culposa pressupõe que fique demonstrado que a atuação do devedor foi causa da situação de insolvência ou do seu agravamento. Sem prejuízo, verificada uma das situações do n.º 2 do artigo 186, presume-se, iuris et de iure, a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa.
Importa, porém, precisar que as alíneas h) e i) do n.º 2 contemplam, no dizer de Catarina Serra (Lições cit., p. 301), verdadeiras ficções legais, dado que a factualidade nelas descrita não é de molde a fazer presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência.
De forma semelhante, Rui Estrela de Oliveira (“Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência”, Julgar, n.º 11, mai.-ago. de 2010, pp. 199-249), entende aquilo que está em causa nas referidas alíneas “é um comportamento do visado que impediu e/ou impede que se determine o valor da sua contribuição e responsabilidade na produção e/ou agravamento da situação de insolvência. Sendo assim, mostra-se justificado que aquele que impediu a descoberta da verdade material não beneficie mais do que o responsável que não impediu tal descoberta” (. Na sequência, o autor conclui que “estamos aqui perante sanções quase diretas: deve ser sancionado quem impediu que se desenvolvesse uma normal discussão factual sobre os pressupostos da insolvência culposa”, pelo que, “para fazer funcionar as presunções, apenas deve ser alegada e provada a literal factualidade com virtualidade para preencher a hipótese normativa das alíneas, não sendo necessário invocar qualquer facto para preencher os pressupostos de insolvência culposa constantes da noção geral do n.º 1. Designadamente, o nexo de causalidade entre tais comportamentos e a produção e/ou agravamento da situação de insolvência.” Como contraponto, nem todos os comportamentos são suscetíveis de levar à qualificação da insolvência como culposa com fundamento nas referidas alíneas. Subsiste margem para um juízo casuístico do julgador à luz do circunstancialismo do caso concreto. É o que resulta da utilização da expressão “em termos substanciais”, na alínea h), e da expressão “de forma reiterada”, na alínea i). Neste sentido, STJ 2.03.2021, 3071/16.4T8STS-F.P1.S1, e 5.07.2022, 15973/18.9T8SNT-A.L1.S1; RG 12.01.2017, 2253/15.0T8GMR-A.G1, e 7.06.2023, 2670/21.7T8VNF-B.G1.
Já se apenas estiver verificada uma das situações previstas no n.º 3, presumindo-se a culpa grave, mas facultando-se ao insolvente a faculdade de ilidir essa presunção iuris tantum, para a insolvência ser declarada culposa, é necessário que fique demonstrado que a atuação com culpa grave criou ou agravou a situação de insolvência. Antes da Lei n.º 9/2020 discutia-se se a presunção era apenas de culpa grave ou de insolvência culposa, abrangendo, portanto, também, o nexo de causalidade. A doutrina e jurisprudência maioritárias perfilhavam o 1.º entendimento. A título de exemplo, na jurisprudência, STJ 29.10.2019, 434/14.3T8VFX-C.L1.S1, RL 11.06.2019, 2278/17.1T8BRR-B.L1-1, RP 11.04.2019, 521/18.9T8AMT-F.P1, RG 1.02.2018, 5091/16.0T8VNF-B.G1, RG 19.09.2019, 4778/15.9T8VNF-B.G1; na doutrina, Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, pp. 296 e 297., p. 287; Adelaide Menezes Leitão, “Insolvência culposa e responsabilidade dos administradores na Lei n.º 16/2012, em Catarina Serra (org.), I Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2013, pp. 269-281. O 2.º entendimento, sufragado por Catarina Serra, “Decoctor ergo fraudator? – A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções – anotação ao Ac. do TRP de 7.01.2008, Proc. n.º 4886/07”, CDP, n.º 21, 2008, pp. 54-71, e Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, pp. 301-302, ficou definitivamente afastado com a introdução, pela citada Lei, do advérbio “unicamente” no corpo do n.º 3 do art. 186, o que, como a autora reconheceu em artigo recente (“O incidente da qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2022”, Julgar, n.º 48, set.-dez. de 2022, pp. 11-38), teve o propósito de “esclarecer que a presunção (relativa) aí consagrada respeita apenas ao requisito da culpra grave e a mais nenhum.”
Há que acrescentar também que, conforme RP 29.09.2022, 2367/16.0T8VNG-H.P1, os fundamentos das presunções ou factos-índice referidos não se presumem; têm de ser provados, recaindo o correspondente ónus sobre quem os invoca, por força do disposto no art. 342/1 do Código Civil. “O que se presume é a culpa na insolvência (e o nexo causal nas situações do n.º 2) – conforme acima exposto – a partir da prévia demonstração dos factos-índice. Sem a prova destes, a presunção (iuris et de iure) não funciona.”
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2).2. Como escrevemos, na sentença recorrida o Tribunal a quo concluiu estarem verificados os factos pressupostos nas alíneas h) e i) do n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do art. 186 e, tendo imputado a responsabilidade pelos factos ao Recorrente, na sua qualidade de gerente da insolvente, inibiu-o para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa durante um período de três anos e seis meses e condenou-o a indemnizar os credores da insolvente “até ao limite das forças dos respetivos patrimónios e até ao máximo dos créditos reclamados, mas em quantia concreta a ser liquidada em incidente de liquidação/execução de sentença.”
Na redação original do n.º 2 do art. 189 do CIRE, previa-se, na alínea a), que a qualificação afetasse outros sujeitos que não apenas o insolvente, entendendo-se, a partir da conjugação da norma com a do art. 186/1, que estavam em causa os administradores de direito ou de facto.
Nas alíneas seguintes, enunciavam-se as consequências da qualificação da insolvência como culposa: a inabilitação das pessoas afetadas pela qualificação por um período de 2 a 10 anos (alínea b)); a inibição das pessoas afetadas para o exercício do comércio por um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa (alínea c)); a perda de quaisquer créditos sobre a massa insolvente detidos pela pessoas afetadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos (alínea d)).
A norma que previa a inabilitação das pessoas afetadas pela qualificação foi objeto de sucessivos julgamentos de inconstitucionalidade, por violação do arts. 26 e 18/2 da CRP, na medida em que consistia numa restrição à capacidade civil com finalidades punitivas, ilegítimo à luz da natureza do instituto, concebido para a proteção dos interesses do próprio inabilitado. Acabou por ser declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 173/2009, de 2.04, apenas na medida em que impunha que o juiz, na sentença que qualificasse a insolvência como culposa, decretasse a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente, o que significava que os insolventes pessoas singulares e os seus administradores, bem como os administradores de insolventes que não fossem pessoas singulares nem sociedades comerciais continuassem sujeitos ao efeito da inabilitação. Subsequentemente, foi declarada inconstitucional também quando aplicada às pessoas singulares pelos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 578/2011, de 29.11, e 409/2011, de 14.09.
Não foi, por isso, de estranhar que o legislador interviesse na matéria, o que fez através da Lei n.º 16/2012, de 20.04, que introduziu uma nova redação no texto do n.º 2 do art. 189.
Assim, na alínea a), foi ampliado o âmbito dos sujeitos que podem ser afetados pela qualificação da insolvência como culposa, através da enunciação exemplificativa, não apenas dos administradores de direito ou de facto, mas também dos técnicos oficiais de contas e dos revisores oficiais de contas; também na alínea a), foi estabelecido o dever de o juiz fixar o grau de culpa de cada um dos sujeitos afetados pela insolvência culposa; na alínea b), foi substituída a inabilitação das pessoas afetadas pela qualificação pela inibição para a administração de patrimónios de terceiros; na alínea e), passou a prever-se a condenação das pessoas afetadas na obrigação de indemnizarem os credores do insolvente no montante dos créditos não satisfeitos.
Passaram, assim, a estar tipificadas quatro consequências, cumulativas e automáticas, como claramente decorre do proémio do n.º 2 do art. 189, da qualificação da insolvência como culposa: a inibição dos afetados para administrarem patrimónios de terceiros por período de 2 a 10 anos; a respetiva inibição para o exercício do comércio por idêntico período e para ocupação de cargo em sociedade, associação, fundação, empresa pública ou cooperativa; a perda de créditos sobre a insolvência ou a massa insolvente; e a condenação a indemnizar os credores do insolvente “no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados.”
As duas primeiras, não tendo qualquer relação com os valores e interesses de natureza essencialmente patrimonial e privada que estruturam o processo de insolvência, asseguram finalidades essencialmente punitivas e representam afetações da capacidade de exercício de direitos. Indiretamente asseguram finalidades securitárias ou de prevenção. Como se escreve no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 280/2015, de 20.05, tendo um alcance simultaneamente repressivo e preventivo, só se compreendem pela necessidade de proteger “o interesse público da segurança e confiança do tráfego económico e comercial” ou a credibilidade da vida comercial (…) comungando, assim, da mesma teleologia normativa que justifica a tipificação penal dos crimes de insolvência dolosa e negligente”, constituindo, apesar dessa similitude, um “regime punitivo sancionatório civil, integrado por medidas restritivas de direito privado ou sanções civis de natureza pessoal.”
A terceira das consequências da qualificação tem natureza mista, sancionatória (pela privação da vantagem que o afetado poderia invocar sobre a insolvência ou a massa ou obrigando-o a repor a que tivesse recebido em bens ou direitos) e reconstitutiva (pelo efeito reflexo do reforço da massa, com a qual se dará pagamento mais substancial aos créditos reconhecidos).
A quarta consequência é claramente ressarcitória, pois, como explica José Manuel Branco (Responsabilidade Patrimonial e Insolvência Culposa, Coimbra: Almedina, 2015, versão e-book, p. 12), “à massa insolvente (enquanto património autónomo afeto por natureza à satisfação dos créditos reconhecidos na insolvência) faz acrescer a expetativa de ressarcimento à custa dos patrimónios dos afetados, em moldes próximos aos da reversão fiscal. Esta nova consequência da qualificação da insolvência é a pedra de toque que permite afirmar a existência de uma responsabilidade patrimonial insolvencial por acréscimo e ao lado das duas outras tradicionais modalidades de responsabilização.”
O legislador voltou a intervir na matéria através da Lei n.º 9/2022, de 11.01, entrada em vigor 90 dias após a sua publicação (cf. art. 12.º). O art. 2.º introduziu a atual redação da alínea e) do n.º 2, do seguinte teor: “Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.” (destacado nosso)
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2).3.1. Centremos agora a atenção nas consequências da qualificação da insolvência decretadas no caso que nos ocupa e cujos termos de aplicação, na sentença recorrida, são questionados pelo Recorrente.
Sobre a primeira – a inibição para o exercício do comércio e para a ocupação de certos cargos durante um período de 2 a 10 anos –, diremos que está em causa uma medida que não é inédita na lei portuguesa. O art. 148/2 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo DL n.º 132/93, de 23.04, previa uma consequência semelhante para as pessoas singulares declaradas falidas e para os “gerentes, administradores ou diretores” de “sociedade ou pessoa coletiva” cuja falência fosse declarada, estes apenas quando tivessem contribuído para a situação de insolvência (arts. 126-A, 126-B e 148/2, na redação do DL n.º 315/98, de 20.10).
Com esta consequência, o legislador, preocupado com a segurança do comércio e do tráfico jurídico em geral, mais não pretende que evitar que quem contribuiu para a situação de insolvência ou para o seu agravamento pratique atos de comércio, direta ou indiretamente, realizados em nome próprio ou em nome alheio, ou atos praticados enquanto comércio profissional.
A inibição da prática de atos de comércio não constitui uma incapacidade para o exercício do comércio, mas uma incompatibilidade absoluta, fruto da qualificação da insolvência como culposa.
Entre os termos da previsão da medida nos dois diplomas nota-se uma diferença quanto ao âmbito subjetivo da inibição, que resulta da substituição da expressão “gerentes, administradores e diretores” pela expressão “administradores” (cf. art. 186/1 do CIRE). A diferença é, porém, irrelevante pois, como escreve Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência cit., p. 158), as duas expressões “devem ser entendidas, não em sentido técnico, mas em sentido amplo, significando titulares do órgão de administração”, o que encontra arrimo, no âmbito do CIRE, no disposto no art. 6.º/1 do diploma.
Quanto à duração da inibição, o CIRE fixa um limite mínimo e um limite máximo. Como se escreve no citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 280/2015, a determinação da medida concreta “deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes” da qualificação da insolvência. No mesmo sentido, na jurisprudência das Relações, RG 20.09.2018 (7763/16.0T8VNF-A.G1), relatado por Pedro Damião e Cunha, RP 13.04.2021 (252/20.0T8AMT-A.P1), relatado por Rodrigues Pires, e RG 16.03.2023 (6160/19.0T8VNF-A.G1), relatado por José Alberto Moreira Dias, nos quais se entendeu, grosso modo, que, na determinação da medida concreta do período de inibição releva o grau de culpa do administrador (lato sensu)da insolvente e o contributo que essa sua conduta culposa teve para a situação de Insolvência (para a sua criação ou para o seu agravamento) e que o período de inibição relativamente às pessoas afectadas pela qualificação da insolvência deve ser graduado em função da gravidade do seu comportamento e da sua relevância na verificação da situação de insolvência, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e a moldura abstrata da inibição prevista pelo legislador. Na doutrina, Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência cit., p. 154), Alexandre de Soveral Martins (Um Curso cit., p. 580), Carvalho Fernandes / João Labareda (CIRE Anotado, II, Lisboa: Quid Iuris, 2005, pp. 28-29), e Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 166), que acrescenta que “a gravidade do comportamento poderá ser aferida em função do preenchimento do n.º 2 ou do n.º 3.”
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2).3.2. No que tange à obrigação de indemnização dos credores, a redação inicial da norma da alínea e) do n.º 2 do art. 189 suscitou diversas dúvidas interpretativas decorrentes da sua desconformidade com a do n.º 4 do mesmo preceito: enquanto a primeira previa a condenação das pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no “montante dos créditos não satisfeitos”, a segunda previa – e continua a prever – a hipótese de não ser possível fixar o valor das indemnizações “em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos.”
Esta desconformidade era ultrapassada por alguns autores, como Adelaide Menezes Leitão (Direito da Insolvência, Lisboa: AAFDL, 2017, p. 204), dando prevalência à primeira norma, pelo que o quantum indemnizatório corresponderia, automaticamente, ao montante dos créditos não satisfeitos. Este entendimento foi adotado por parte da jurisprudência, indicando-se, a título de exemplo, RC 10.12.2020 (6099/16.0T8VIS-S.C1), relatado por Maria João Areias.
Henrique Sousa Antunes (“Natureza e funções da responsabilidade civil por insolvência culposa”, AAVV, Catarina Serra (coord.), V Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2019, pp. 150 e ss.), por seu turno, entendia que não tinha aplicação nas relações entre os credores da insolvência, mas apenas nas relações internas entre os vários sujeitos afetados pela declaração de insolvência culposa. Neste sentido, na jurisprudência, RG 24.09.2020 (8502/17.3T8VNF-A.G1), relatado por Conceição Sampaio, no qual se escreveu que “[a] fixação do grau de culpa estabelecida na al. a) do nº 2 do artigo 189.º do CIRE, assume relevância para os casos em que existam várias pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa em que é preciso definir, nas relações internas - já não em face dos credores-, o grau de culpa de cada uma dessas pessoas.”
Uma outra corrente, inspirada na fundamentação do citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 280/215, onde se escreveu que “a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias (…) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização (…) deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos”, procurou harmonizar as duas normas. Para esse efeito, considerou que, na fixação da indemnização, deviam ser ponderadas certas circunstâncias, designadamente o grau de culpa, a gravidade da ilicitude, o nexo de causalidade entre a conduta e o dano ou a situação patrimonial do sujeito, o que tudo encontrava arrimo no princípio da proporcionalidade. Neste sentido, podem ver-se, inter alia, STJ 9.06.2021 (1338/17.3T8STS-A.P1.S1) e STJ 22.06.2021 (439/15.7T8OLH-J.E1.S1), ambos relatados por António Barateiro Martins, e na jurisprudência das Relações, RL 27.04.2021 (540/19.8T8VFX-C.L1-1), relatado por Isabel Fonseca, RP 25.03.2021 (54/13.0TYVNG-C.P1), relatado por Paulo Dias da Silva, RG 18.11.2021 (6145/19.6TVNF-A.G1), relatado por Maria João Pinto de Matos, RG 5.03.2020 (301/18.1T8VNF-C.G1), relatado por Rosália Cunha, RG 23.09.2021 (5783/17.6T8VNF-A.G1) e RG 9.07.2020 (2622/19.7T8VNF-B.G1), estes últimos relatados por José Alberto Moreira Dias.
Por expressiva, destacamos a seguinte passagem do citado STJ 22.06.2021 (439/15.7T8OLH-J.E1.S1), a propósito da aplicação do princípio da proporcionalidade neste contexto: “a obrigação de indemnizar consagrada no art. 189.º/2/e) do CIRE tem também uma dimensão punitiva ou sancionatória, pelo que a observância do principio da proporcionalidade não exige que a indemnização imposta tenha que ser avaliada como justa, adequada, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num controlo mais lasso, que a indemnização não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável.”
Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência cit., pp. 161-163) propunha uma forma diferente de harmonizar as duas normas: entendia que a da alínea e) do n.º 2 consagrava uma dupla presunção iuris tantum – a um tempo, a presunção de que a conduta do sujeito causava um dano aos credores e, a outro, a presunção de que o montante dos danos correspondia ao montante dos créditos insatisfeitos – e que a do n.º 4, confirmando que tais presunções eram relativas, permitia que os sujeitos afetados pela declaração de insolvência provassem que a sua conduta não havia causado dano aos credores ou que o dano causado era inferior ao montante dos créditos não satisfeitos, hipótese em que a indemnização seria calculada exclusivamente por referência ao montante dos prejuízos sofridos. Deste modo, se as presunções não fossem ilididas, seguir-se-ia a da alínea e) do n.º 2; se fossem ilididas, seguir-se-ia a do n.º 4, devendo então a sentença de qualificação fixar as indemnizações devidas atendendo à proporção em que o comportamento das pessoas afetadas tivesse contribuído para a insolvência. No mesmo sentido, Nuno Pinto de Oliveira (“Responsabilidade civil dos administradores pela violação do dever de apresentação à insolvência”, Revista de Direito Comercial, 2018, pp. 577 e ss., disponível em www.revistadedireitocomercial.com) e, na jurisprudência, RC 16.12.2015 (1430/13.3TBFIG-C.C1), relatado por Maria Domingas Simões.
Na nova redação da alínea e) do n.º 2 o legislador fez uso da proposição até, por referência ao montante dos créditos não satisfeitos, assim vincando que este funciona apenas como o limite máximo da indemnização e não o elemento definidor da indemnização nem como mero ponto de partida ou padrão para o cálculo da indemnização. Daqui decorre que, de entre as três leituras que vinham sendo feitas da norma e da sua (não) harmonização com a do n.º 4, o legislador optou pela segunda que expusemos, conforme é reconhecido por Catarina Serra (“O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2022 – Algumas observações ao regime com ilustrações de jurisprudência”, Julgar, n.º 48, set./dez. 2022, pp. 11-38), que acrescenta que “[a]o montante dos créditos não satisfeitos resta imputar uma única função: a de limitar o montante da indemnização, o que significa que em nenhum caso (seja qual for o montante dos danos) a indemnização poderá ser superior àquele montante” e que, resultado da alteração, “o regime da responsabilidade por insolvência culposa perde grande parte da sua dimensão punitiva ou sancionatória (em que havia um espaço de responsabilidade sem causalidade) e (re)aproxima-se do regime geral da responsabilidade civil, com um desvio atendendo à fixação de um (do tal) máximo. Traduz-se isto, em suma, na máxima de que devem ser indemnizados (só) os danos (cf. art. 483.º do CC) mas não necessariamente todos os danos.”
Nesta medida, a nova redação deve ser qualificada como lei interpretativa, pelo que, na ausência de uma disposição transitória especial que estabeleça o regime da sua aplicação no tempo (cf. art. 10.º da Lei n.º 9/2022, de 11.01), há que recorrer à norma transitória geral do art. 13 do Código Civil e, considerando o conteúdo interpretativo da nova redação da alínea e), estabelecer a sua aplicação aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor, desde que, claro está, sejam ulteriores à entrada em vigor da lei interpretada (Lei n.º 16/2012), atento o caráter inovador desta. A propósito, STJ 27.10.2020 (814/13.1TYVNG-A.P1.S1), relatado por Henrique Araújo, e RL 13.09.2024 (1361/07.6TYLSB-B.L1-1), relatado por Paula Cardoso.
De forma algo semelhante, Alexandre de Soveral Martins (Um Curso cit., p. 587) escreve, face à atual redação da alínea e) do n.º 2, que “[o] montante máximo a pagar pode ir até ao montante dos créditos não satisfeitos, mas pode ficar abaixo desse valor. Esta alteração introduzida no preceito permite dizer que na fixação do valor da indemnização devem ser tidas em conta as circunstâncias do caso. Entre elas estão a culpa (dolo ou culpa grave) e as forças dos patrimónios afetados. Sendo apenas um o afetado, pode ser condenado a pagar uma indemnização que atinja o montante dos créditos não satisfeitos.”
Este tem sido também o entendimento da jurisprudência ulterior à Lei n.º 9/2022, do que são exemplo os seguintes arestos:
STJ 16.09.2023 (1937/21.9T8CBR-A.C1.S1), relatado por Ana Resende;
STJ 12.12.2023 (3146/20.5T8VFX-B.L1.S1), relatado por Olinda Garcia;
RC 15.02.2022 (135/20.3T8SEI-C.C1), relatado por Maria Catarina Gonçalves;
RP 21.04.2022 (3668/18.8STS-B.P1), relatado por Paulo Dias da Silva;
RP 26.09.2022 (3475/16.2T8STS-B.P1), relatado por Fernanda Almeida;
RP 13.10.2022 (2272/20.5T8AVR-H.P1), relatado por João Venade;
RG 16.03.2023 (6160/19.0T8VNF-A.G1), relatado por José Alberto Moreira Dias;
RC 14.03.2023 (1937/21.9T8CBR-A.C1), relatado por Maria Catarina Gonçalves;
RG 12.10.2023 (2548/22.7T8VCT-C.G1), relatado por Rosália Cunha;
RP 7.11.2023 (452/21.5T8VNG-B.P1), relatado por Alexandra Pelayo;
RP 19.03.2024 (4221/22.7T8VNG-B.P1), relatado por João Diogo Rodrigues;
RP 18.06.2024 (2663/22.7T8VNG-D.P1), relatado por João Diogo Rodrigues;
RP 10.07.2024 (2755/20.7T8OAZ-D.P1), relatado por Anabela Dias da Silva;
RL 13.09.2024 (8/14.9T8VNF.3.G1), relatado por Maria Amélia Rebelo;
RL 13.09.2024 (2024/13.9TYLSB-A.L1-1), relatado por Manuela Espanadeira Lopes;
RG 19.09.2024 (1349/23.0T8VNF-A.G1), relatado por Maria João Pinto de Matos;
RL 1.10.2024 (1408/23.9T8PDL-D.L1-1), relatado por Renata Linhares de Castro;
RP 22.10.2024 (1535/23.2T8STS-G.P1), relatado por João Proença.
Em sentido diverso, Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência cit., pp. 172-173) continua a entender, do que discordamos, que, “não obstante a intenção clarificadora subjacente à alteração da redação do preceito, a questão (à luz da nova redação – “até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos”) continua a colocar-se (ficando apenas definitivamente esclarecido que o montante do passivo a descoberto constitui um limite máximo do quantum respondeatur). Pela natureza e função desta responsabilidade insolvencial, o montante indemnizatório deverá ser igual ao valor do passivo a descoberto e, apenas em casos absolutamente excecionais (em nome do princípio constitucional da proporcionalidade), deverá ser inferior, aproximando-se do montante dos danos concretamente causados.”
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2).3.2.1. Ainda relativamente à obrigação de indemnizar os credores, importa destacar seis aspetos.
O primeiro prende-se com a consideração do grau de culpa, que se afigura assumir reduzida relevância para efeitos de limitar o quantum indemnizatório, o que bem se compreende se tivermos em atenção que a prévia qualificação da insolvência como culposa pressupõe que os sujeitos afetados agiram com dolo ou culpa grave – ou seja, de uma forma particularmente reprovável – pelo que é de excluir possibilidade de limitação da indemnização, sob pena de se incorrer numa incoerência com o previsto no regime geral da responsabilidade civil, que apenas prevê a aplicação de semelhante medida, no art. 494 do Código Civil, nos casos de mera culpa. Neste sentido, Catarina Serra (O incidente de qualificação cit., p. 28), Nuno Pinto de Oliveira (Responsabilidade Civil dos Administradores cit., p. 222). Na jurisprudência, o citado STJ 22.06.2021 (439/15.7T8OLH-J.E1.S1), no qual se pode ler que “entre as circunstâncias com relevo para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar, encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência), mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o fator/grau de culpa da pessoa afetada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar, sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização (não se perdendo de vista, ainda se referiu, que a responsabilidade consagrada no art. 189.º/2/e) do CIRE tem uma função/cariz misto, pelo que a observância do principio da proporcionalidade não exige que a indemnização a impor tenha que ser avaliada como justa, adequada, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num controlo mais lasso, que a indemnização a impor não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável).”
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2).3.2.2. O segundo aspeto prende-se com o significado do segmento “forças dos respetivos patrimónios” da alínea e) do n.º 2 do art. 189.
Alexandre de Soveral Martins (Um Curso cit., p. 587) parece sugerir este é um dos fatores a tomar em consideração na fixação do montante da indemnização.
Luís Menezes Leitão (Direito da Insolvência cit., pp 296-297) entende que o segmento pretende impor um obstáculo à declaração de insolvência dos administradores na hipótese de estes não disporem de património que lhes permita o cumprimento integral desta obrigação indemnizatória.
Já Adelaide Menezes Leitão (loc. cit., p. 281), Catarina Serra (loc. cit., p. 29), Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência cit., p. 173), Rui Pinto Duarte (“Responsabilidade dos administradores: coordenação dos regimes do CSC e do CIRE”, AAVV, Catarina Serra (coord.), III Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2015, p. 165) e José Manuel Branco, (“Qualificação da Insolvência (evolução da figura)”, Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, 2016, pp. 22 e 23), consideram que o segmento limita-se a reiterar o que já resultaria do disposto no art. 601 do Código Civil – ou seja, que os sujeitos afetados respondem com os respetivos patrimónios.
Concordamos com este entendimento. Na verdade, a possibilidade de fazer refletir a situação patrimonial ou económica do obrigado no montante da indemnização, para que este seja inferior ao dano, apenas é admissível, no domínio da responsabilidade civil geral, nos casos de mera culpa (art. 494 do Código Civil), o que não é o que sucede aqui, em que a constituição da obrigação de indemnizar pressupõe, como vimos, o dolo ou a culpa grave.
Deste modo, como conclui Catarina Serra (idem), o fator que pode e deve ser ponderado e tem efeitos sensíveis na modelação do valor da indemnização, imprimindo-lhe proporcionalidade, é um único: a contribuição causal do sujeito afetado – ou, havendo vários, de cada um deles – para a ocorrência dos danos.
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2).3.2.3. O terceiro aspeto releva nos casos em que há mais do que um sujeito afetado. Assume então importância o segmento final da alínea e) do n.º 2 do art. 189, onde se estabelece o regime de solidariedade.
De acordo com Alexandre de Soveral Martins (Um Curso cit., p. 587), “[s]e a responsabilidade dos afetados pela qualificação é solidária, pode ser exigido de qualquer um deles todo o montante do valor da indemnização em que outro afetado tenha sido condenado (art. 519 do Código Civil). No mesmo sentido, Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência cit., pp. 171-172) escreve que se houver várias pessoas responsáveis pela declaração de insolvência vale a regra “um por todos e todos por um”, cabendo ao juiz repartir, no plano estritamente interno, para efeitos de direito de regresso, a medida da responsabilidade de cada uma delas.
Já para Catarina Serra (loc. cit., pp. 29-30), o segmento em causa apenas permite que seja exigido a um dos sujeitos afetados o pagamento da indemnização até ao valor que lhe foi fixado, “o que quer dizer que os termos distintos em que cada um está obrigado relevam logo nas relações externas, como permite o art. 512.º, n.º 2, do Código Civil”, solução cuja bondade a autora demonstra com um exemplo: não seria razoável que, “havendo um sujeito que causou a insolvência e outro sujeito que apenas contribuiu para o seu agravamento, ao último pudesse ser exigida toda a indemnização, restando-lhe a possibilidade de exercer o direito de regresso contra o primeiro.”
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2).3.2.4. O quarto aspeto tem a ver com a problemática da contribuição causal do sujeito afetado para a produção dos danos.
De acordo com Catarina Serra (loc. cit., p. 30), não basta a causalidade (provada ou presumida) entre a conduta da pessoa afetada e a criação ou o agravamento da insolvência, sendo sempre necessário verificar-se a causalidade entre a conduta e os danos. Está aqui em causa a summa divisio entre a causalidade fundamentadora e a causalidade preenchedora da responsabilidade. A primeira tem como função ligar o comportamento do sujeito à lesão do direito subjetivo ou do interesse; a segunda serve para estabelecer o nexo entre a lesão do direito ou do interesse e os danos subsequentes. A propósito, Mafalda Miranda Barbosa (“Causalidade fundamentadora e causalidade preenchedora da responsabilidade”, Revista da Faculdade de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto, 2017, n.º 10, pp. 14-36). A esta luz, há que notar que o art. 186, inclusive no seu n.º 2, contém normas de proteção, que se bastam com a ocorrência de um risco de danos – a criação ou o agravamento da situação de insolvência. É por esta razão que Henrique Sousa Antunes (“Natureza e funções da responsabilidade civil por insolvência culposa cit., pp. 138 e ss.) entende que a natureza inilidível das presunções consagradas na norma não deve abranger o efeito da responsabilidade, no quadro do qual, escreve, “a ameaça de lesão só é relevante com a sua materialização” e, portanto, será sempre admissível que a pessoa afetada ilida da presunção de causalidade, demonstrando que o dano é alheio ao seu comportamento. No mesmo sentido, Nuno Pinto de Oliveira Responsabilidade Civil dos Administradores cit., p. 249) sustenta que nº 4 do art. 189 opera uma correção da alínea e) do n.º 2, dando ao administrador “a faculdade de alegar e de provar que não há uma relação de condicionalidade entre o comportamento (ilícito) e o dano.”
Partindo daqui, presumindo-se, nos termos adrede expostos (2.1.), o nexo de causalidade entre a conduta e os danos tutelados pela norma, será de admitir, porém, que os sujeitos afetados aleguem e provem o facto contrário (art. 344/1 do Código Civil) – ou seja, que aleguem e provem, “se puderem, que a sua conduta não causou os danos ou não causou todos os danos invocados pelos credores” (Catarina Serra, loc. cit., p. 31), o que poderá passar pela demonstração de que houve outra causa que levou à produção dos danos – v.g., a conduta de outros sujeitos ou eventos fortuitos – ou que, pelo menos, contribuiu para eles. Neste sentido, na jurisprudência, STJ 6.09.2022 (291/18.0T8PRG-C.G2.S1), relatado por José Rainho, e RP 27.06.2023 (63/19.5T8AVR-A.P1), relatado por Rodrigues Pires.
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2).3.2.5. O quinto aspeto prende-se com a possibilidade de uma condenação genérica.
Esta ocorrerá, designadamente, quando não for possível liquidar, no momento da qualificação, o montante dos créditos não satisfeitos, por não estarem ainda concluídas as fases processuais da verificação de créditos, da apreensão de bens, das impugnações dos atos de resolução de negócios em benefício da massa insolvente e, em especial, da liquidação do ativo.
Em tal hipótese, impõe-se que o juiz fixe, de forma rigorosa, os critérios a observar na ulterior liquidação da indemnização.
Neste sentido, podem ver-se, na jurisprudência desta Relação, inter alia, RG 2.05.2019 (665/14.6TBEPS-E.G2), relatado por Margarida Sousa, RG 12.10.2023 (2548/22.7T8VCT-C.G1), relatado por Rosália Cunha, RG 26.10.2023 (3779/21.2T8GMR-B.G2), relatado por Alexandra Viana Lopes, e RG 19.09.2024 (1349/23.0T8VNF-A.G1), relatado por Maria João Pinto de Matos.
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2).3.26. O sexto aspeto prende-se a identificação dos credores com direito à indemnização.
Desde logo, parece axiomático que estão em causa apenas os credores da insolvência, assim reconhecidos por sentença transitada em julgado, cujos créditos tenham sido constituídos em data anterior à declaração de insolvência. Só em relação a estes haverá a necessária relação de causalidade, conforme notam Tânia Cunha / Maria João Machado (“A responsabilidade pela insolvência culposa”, Julgar Online, abril de 2023, p. 13). Sobre a distinção entre credores da insolvência e credores da massa insolvente e da relevância do momento da constituição do crédito para esse efeito, vide RG 3.10.2024 (2411/22.1T8VRLAB.G1), do presente Relator.
Não será necessária a formulação de pedido nesse sentido. Assim, Alexandre de Soveral Martins (Um Curso cit., p. 588).
Sem prejuízo, as quantias que assim forem obtidas na pendência do processo devem integrar a massa insolvente e só depois servir para pagar aos credores, na medida da insatisfação dos respectivos créditos e segundo a graduação fixada na sentença de verificação e graduação de créditos, o que encontra arrimo no art. 82/3, b), do CIRE. Não poderá haver qualquer pagamento directo pelo afectado aos credores, sob pena de violação do princípio da igualdade dos credores e do regime da graduação de créditos. Neste sentido, Alexandre de Soveral Martins, loc. cit., pp. 588-589) e Maria do Rosário Epifânio (loc. cit., pp. 174-175). Na jurisprudência, os citados RC 16.12.2015 (1430/13.3TBFIG-C.C1), RC 10.12.2020 (6099/16.0T8VIS-S.C1) e RG 19.09.2024 (1349/23.0T8VNF-A.G1).
Com o encerramento do processo, todavia, cessam as atribuições do administrador da insolvência (art. 233/1, b), do CIRE) e cada credor passa a poder exercer os seus direitos nos termos do art. 233/1, c) e d), do CIRE). Assim, Alexandre de Soveral Martins (idem), Maria do Rosário Epifânio (idem, nota 529) e Rui Pinto Duarte (loc. cit., p. 166). Na jurisprudência, RP 27.01.2020 (650/14.8TYVNG.1.P1), relatado por José Eusébio de Almeida, e RG 22.09.2022 (8/14.9T8VNF.3.G1), relatado por Rosália Cunha.
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2).4.1. Exposto o quadro legal a considerar, é tempo de analisarmos o caso dos autos, começando pela medida da inibição do Recorrido para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.
Na sentença recorrida justificou-se a fixação desta consequência da qualificação da insolvência como culposa com a seguinte argumentação: “Em face da factualidade demonstrada, apurou-se (…) que estamos em termos de ilicitude e culpa (…) num patamar médio baixo, não se tendo, todavia, descortinado exatamente a razão pela qual se deixou de elaborar a contabilidade e efetuar as declarações fiscais exigidas desde aquela data e até ao seu encerramento.
Os actos praticados revelam ainda uma actuação desconforme com as regras elementares de gestão empresarial, denotando desrespeito por deveres essenciais dos titulares dos órgãos sociais de administração de uma sociedade.” Quid inde?
Não podemos olvidar que, na base da qualificação da insolvência, esteve uma pluralidade de condutas, todas elas imputáveis ao Recorrente que, na sua qualidade de único gerente, de facto e de direito, da insolvente era quem formava e atuava a vontade deste ente societário. Na verdade, as sociedades comerciais – e as pessoas coletivas em geral –, carecidas de um organismo físico-psíquico próprio, não são mais do que uma fictio iuris destinada a facilitar a atividade económica de pessoas físicas, as únicas cuja personalidade jurídica é uma imposição decorrente da própria natureza das coisas.
As referidas condutas preencheram, conforme se concluiu na sentença, a previsão de várias das presunções dos números 2 e 3 do art. 186, entre as quais as das alíneas h) e i) do n.º 2.
Nestas duas estão em causa comportamentos graves e merecedores de especial censurabilidade.
Na primeira, estão em causa deveres elementares das sociedades comerciais.
Na verdade, como se sabe, as sociedades comerciais estão obrigadas a observar as regras do Sistema de Normalização Contabilística aprovado pelo DL n.º 158/2009, de 13.07 (art. 3.º/1, a)), o qual tem nítidos propósitos de uniformização de procedimentos a nível europeu (i), possibilitar uma imagem verdadeira e apropriada da posição financeira e do seu desempenho (ii), consagrando as bases para a apresentação de demonstrações financeiras (BADF) (iii), estabelecendo a necessária convergência entre contabilidade e fiscalidade (iv). As denominadas microentidades podem optar pela aplicação do regime simplificado previsto na Lei n.º 35/2010, de 2.09, concretizado no DL n.º 36-A/2011, de 9.03, o qual não prescinde dos propósitos de transparência e de observação de uma informação fidedigna.
Seguindo de perto a exposição de RL 23.03.2021, 1396/11.4TYLSB-B.L1, pode dizer-se que a referida obrigação pressupõe a organização diária e regular de todas as tarefas – os documentos têm que ser analisados e lançados, sendo as operações transcritas e ordenadas em relação a cada uma das contas a que respeitam, por forma a permitir o conhecimento do estado e situação de qualquer delas a cada momento. Com estes registos elabora-se o balancete, que permite ir verificando a igualdade das somas dos débitos e dos créditos e a soma dos saldos devedores e credores, que, depois de verificado e regularizado – sendo esse o trabalho de apuramento, no final do exercício –, dá lugar ao balancete final que serve de base à elaboração do balanço. O conjunto completo de demonstrações financeiras inclui o Balanço, a Demonstração dos resultados por naturezas, a Demonstração das alterações no capital próprio, a Demonstração dos fluxos de caixa pelo método direto e o Anexo (art. 11.º, a) a e), do n.º 1 do DL n.º 158/2009).
No dizer de Ana Maria Rodrigues / Rui Pereira Dias, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume I, IDET, Coimbra: Almedina, 2010, p. 769, “[a]s Demonstrações Financeiras são preparadas com base no disposto nas normas contabilísticas, criadas precisamente para estabelecer regras e procedimentos uniformes, com o intuito contabilístico de prover informações comparáveis, úteis e condicentes com as necessidades dos diferentes utentes. (…) A contabilidade, como sistema de informação que é, deve obedecer aos pressupostos, caraterísticas qualitativas e seus requisitos bem como aos constrangimentos subjacentes à preparação dessa informação financeira.”
Como aliás é enunciado no § 16 da Estrutura conceptual do Sistema de Normalização Contabilística, publicada no DR, 2.ª série, n.º 173, de 7.09.2009 (Aviso n.º 15652/2009 da Secretaria Geral do Ministério das Finanças), “[a] informação acerca da liquidez e solvência é útil na predição da capacidade da entidade para satisfazer os seus compromissos financeiros à medida que se vencerem. A liquidez refere-se à disponibilidade de caixa no futuro próximo depois de ter em conta os compromissos financeiros durante este período. A solvência refere-se à disponibilidade de caixa durante prazo mais longo para satisfazer os compromissos financeiros à medida que se vençam.”
A cessação dos trabalhos de contabilidade descritos – análise, lançamento, classificação, etc. – determina, logo que ocorre, a desatualização dos elementos da contabilidade e a impossibilidade de os diversos interessados, incluindo os próprios gerentes, mas também os demais, de obter informações úteis à tomada de decisões.
Como se nota em RP 29.09.2022, já citado, a obrigação em análise recai, no domínio societário, sobre os gerentes ou administradores, como resulta do art. 64 do Código das sociedades Comerciais, que estabelece um específico dever de diligência por parte dos gerentes ou administradores ao preceituar que “[o]s gerentes, administradores ou diretores de uma sociedade devem atuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos acionistas e dos trabalhadores”. No âmbito das sociedades por quotas, o art. 259 deste diploma diz mesmo que “[o]s gerentes devem praticar os atos que forem necessários ou convenientes para a realização do objeto social, com respeito pelas deliberações dos sócios”, sendo que o prosseguimento do objeto social de uma empresa implica a observância dos deveres legais impostos a essa mesma empresa, designadamente de ter uma contabilidade organizada e verdadeira.
Na alínea i) do n.º 2 do art. 186 está em causa a inobservância, de forma reiterada, dos deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83 até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.
A conformidade da norma com os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade foi afirmada no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 70/12, de 8.02, onde de pode ler que “no plano funcional dos interesses a tutelar, não há diferença substancial entre prevenir atos geradores da situação de insolvência, caracterizadamente censuráveis e ilícitos (e puni-los, uma vez praticados) e, após essa situação estar criada, prevenir e punir omissões que, para além de dificultarem ou obstaculizarem o regular andamento do processo, podem conduzir a um agravamento da insolvência.
Ademais – há que frisá-lo – a falta aos deveres de apresentação e de colaboração pode não resultar de um simples alheamento do processo, de desinteresse ou negligência, mas antes da intenção deliberada de não concorrer para o conhecimento de factos anteriores ao início do processo de insolvência que levariam à qualificação da insolvência como culposa, à luz de qualquer das restantes previsões. Um comportamento não colaborante do obrigado dificulta ou impossibilita o conhecimento de factos relevantes e essenciais para a qualificação da insolvência, pelo que, a não ser sancionado por uma norma como a da alínea i), poderia impedir a justificada aplicação do regime que cabe à insolvência culposa. Nessa medida, essa norma apresenta uma relevante conexão de sentido com as restantes do n.º 2 do art. 186, posicionando-se, se assim se pode dizer, como “norma de salvaguarda” da efetividade aplicativa daquele regime – o que justificará a sua integração sistemática no preceito.
Na verdade, ao adotar uma conduta reticente e obstativa do acesso a dados relevantes, o administrador, além do mais, descredibiliza-se para o exercício da função, pois pratica atos que desmerecem da confiança que o exercício do comércio postula.
Tendo em conta a gravidade destes comportamentos, a sua reiteração, patenteada nos factos provados dos pontos 15., 16., 20., 22. e 23., e, bem assim, o resultado dos mesmos (a impossibilidade de conhecer exatamente a situação da insolvente, o seu património e o que esteve na génese da impossibilidade de cumprir as suas obrigações), entendemos que a duração fixada para a referida inibição não se apresenta como desproporcionada à ilicitude e ao grau de censura que a conduta do Recorrente merece.
Ainda que os factos revelem a intervenção do TOC contratado pela insolvente, cuja afetação pela qualificação não foi pedida, sempre subsistem a culpa in elegendo e a culpa in vigilando do Recorrente.
Pelo exposto, improcedem, nesta parte, as conclusões do recurso.
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2).4.2. No que tange à indemnização aos credores, constatamos que na sentença recorrida, depois de se ter relegado a sua liquidação para momento ulterior, se estabeleceram dois únicos parâmetros a observar nessa sede: “as forças dos respetivos patrimónios” e “o máximo dos créditos reclamados.”
O primeiro destes parâmetros, mera cópia do texto legal, é inócuo pelas razões que indicámos no ponto 2).3.2.2.
O segundo pouco utilidade tem. Mais não faz que lembrar o limite máximo da indemnização, já definido pelo legislador.
A interpretação deste segmento é uma tarefa inglória, posto que a respetiva fundamentação não passa de uma consideração genérica sobre os fatores a considerar, revelando que o Tribunal a quo se demitiu de fazer a ponderação concreta que se impunha.
Suprindo esta deficiência da fundamentação da sentença recorrida, diremos, desde logo, que não ficou provada nem a origem, nem a causa (ou causas), da insolvência da sociedade, pelo que não pode imputar-se a mesma ao Recorrente. Na verdade, os únicos atos apurados conduzem-se, grosso modo, a um de dois tipos: no primeiro estão em causa os que obstaram ao conhecimento da real situação financeira da insolvente (factos provados 5., 6., 7., 9., 10. e 11. segundo a renumeração de facto a que procedemos); no segundo, os que obstaram ao conhecimento do património da insolvente à data da declaração de insolvência e à sua apreensão para a massa insolvente (factos provados 8., 13., 14., 15., 16., 17., 18. e 20., também segundo a numeração a que procedemos).
Centrando a atenção nos atos do primeiro grupo, acrescentaremos que os factos provados também não nos permitem concluir em que medida a falta de contabilidade organizada, que apenas foi reportada a partir do exercício de 2022, contribuiu para o agravamento da situação de insolvência. Como também não nos permite saber qual era a situação patrimonial da Insolvente no momento em que a apresentação devia ter sido feita (isto é, em que medida o activo de que então dispunha permitia satisfazer o passivo social coevo), por comparação com aquela que existia quando a apresentação se deu (sabendo-se apenas que, neste segundo momento o produto da liquidação do ativo não permite satisfazer os créditos reconhecidos).
De seguro temos apenas que o incumprimento culposo, por parte do Recorrente, do dever de manter organizada a contabilidade da sociedade insolvente permitiu a contração de novas dívidas junto de terceiros, o que resulta da constatação de que existem créditos reclamados e reconhecidos constituídos em momento ulterior a 1 de janeiro de 2022.
Deste modo, afigura-se-nos que o prejuízo causado aos credores com os factos ilícitos e culposos em questão neste primeiro grupo apenas nos permitem estabelecer um nexo de causalidade com o prejuízo decorrente da constituição de créditos em momento ulterior a 1 de janeiro de 2022.
Passando ao segundo grupo de atos, diremos que não está em causa uma perda concretizada de bens do património da insolvente, mas apenas a possibilidade de os credores – todos aqueles cujos créditos foram reconhecidos – conhecerem esse património e, mais concretamente, se os bens discriminados no facto provado 13. – ou, com mais rigor, o direito de propriedade sobre eles – estavam nele incluídos e, bem assim, a possibilidade de apurarem se existiam elementos capazes de suportar a decisão de resolver o negócio de venda do veículo automóvel identificado no facto provado 18., fazendo-o ingressar na massa insolvente. Nesta medida, o prejuízo sofrido pelos credores corresponde à perda da chance de obterem a satisfação dos seus créditos pelo produto de tais bens, pelo que deve ser quantificado nos valores respetivos, os quais apenas em parte são conhecidos.
Como é obvio, este parâmetro apenas assume relevo próprio no que tange aos credores cujos créditos foram constituídos antes de 1 de janeiro de 2022. No que respeita aos restantes, é absorvido pelo parâmetro anterior.
Em suma, são estes os parâmetros que deverão ser considerados na ulterior liquidação da indemnização, sem prejuízo do limite máximo que, em conformidade com a lei, se encontra estabelecido.
Nesta exata medida, procedem as conclusões do recurso.
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3). Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 527 do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado apenas parcialmente procedente e tendo sido o recorrente quem tirou proveito do processo, é o mesmo o responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso parcialmente procedente e, em consequência:
(1) Revogam a sentença recorrida no que tange à definição dos parâmetros a observar na liquidação da indemnização em cujo pagamento o Recorrente foi condenando, estabelecendo que tais parâmetros devem ser os seguintes: (i) a indemnização abrange a totalidade dos créditos reconhecidos que se constituíram do dia 1 de janeiro de 2022 em diante; (ii) quanto aos créditos que se constituíram em data anterior a 1 de janeiro de 2022, é limitada pelo valor de mercado, na data da declaração de insolvência, dos bens móveis descritos no facto provado 13. e do veículo automóvel identificado no facto provado 18.; (iii) o montante total da indemnização não pode ser superior ao montante máximo dos créditos reconhecidos;
(2) Confirmam em tudo o mais a sentença recorrida;
(3) Condenam o Recorrente no pagamento das custas do recurso.
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Guimarães, 18 de dezembro de 2024
Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
2.º Adjunto: Fernando Manuel Barroso Cabanelas
[1] Pertencem ao CPC vigente as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência. [2] Tendo em conta que o administrador de insolvência tem um papel fundamental no espoletar do procedimento destinado à qualificação da insolvência como culposa, seja requerendo ele próprio a abertura do incidente, em requerimento fundamentado, com a indicação das pessoas que devem ser afetadas (art. 188/1), seja emitindo aderindo à iniciativa de outro interessado no parecer previsto no art. 188/6, usamos o conceito de parte processual num sentido mais amplo que aquele que resulta do conceito puro de Giuseppe Chiovenda (Principi di Diritto Processuale Civile, Napoli: Jovene, 1980, p. 579), suscetível de abranger todos os titulares das posições jurídicas ativas e passivas inerentes à relação processual e que, por isso, participam do contraditório instituído perante o juiz, podendo pedir, alegar e provar. [3] O autor retomou o tema no escrito “Factos conclusivos": já não há motivos para confusões!”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2023/06/factos-conclusivos-ja-nao-ha-motivos.html [4] Inter alia, RG 10.07.2023 (4607/21.4T8VNF-A.G1), relatado pela Desembargadora Maria João Matos. No dizer de António Abrantes Geraldes, “A sentença cível”, disponível em Publicações - Supremo Tribunal de Justiça (stj.pt), pp. 10-11, “na enunciação dos factos apurados o juiz deve observar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Por isso, é inadmissível (…) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.”