INSOLVÊNCIA
LISTA DE CRÉDITOS RECONHECIDOS E NÃO RECONHECIDOS
INCUMPRIMENTO DO PRAZO PELO ADMINISTRADOR
NOTIFICAÇÃO AOS CREDORES DA LISTA DE CRÉDITOS
CONTAGEM DO PRAZO PARA IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITOS
Sumário


Caso o administrador de insolvência incumpra o prazo para a junção da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos (art.º 129º, n.º 1 do CIRE), impõe-se que o mesmo, em obediência ao princípios do contraditório e da igualdade de armas, enquanto decorrências do direito a um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do art.º 20º da CRP, proceda à notificação da lista de créditos, não apenas aos interessados referidos no n.º 4 do art.º 129º, como a lei já impõe, mas também aos credores reconhecidos que tenham reclamado os seus créditos e ao devedor/insolvente, contando-se o prazo de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 130º do CIRE a partir dessa notificação.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

1. Relatório
Por sentença de 10/05/2024, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de EMP01..., Lda. e fixado em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos.

A 10/05/2024 foi publicado o Anúncio a que se refere o art.º 37º, n.º 7 do CIRE.

A 04/09/2024, por apenso aos autos de insolvência, o Sr. AI juntou a lista definitiva de créditos, prevista no art.º 129º do CIRE.

A 06/09/2024, nos autos principais, foi lavrado “TERMO DE APENSAÇÃO” dos autos de Reclamação Créditos.

A 30/09/2023 a insolvente apresentou impugnação de créditos.

As titulares dos créditos impugnados responderam à impugnação.

A 21/10/2024 foi proferido o seguinte despacho:
Dispõe o artigo 129º, nº1 CIRE que nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos.
O artigo 130º, nº 1 CIRE, por sua vez, estipula que nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no nº 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.
No caso em apreço, a lista foi apresentada a 4-9-2024 e a insolvente veio apresentar impugnação à lista de créditos reconhecidos a 30-9-2024, e as credoras vieram apresentar resposta 14-10-2024.
Assim, quando foi apresentada a impugnação de 30-9-2024 já haviam decorrido os 10 dias para impugnar os créditos.
Pelo exposto, tem de ser julgada a impugnação extemporânea, dela não conhecendo, nos termos do disposto no artigo 131º, nº3, in fine do CIRE.
Notifique.
           
A insolvente requereu a reforma do despacho nos termos do art.º 616º do CPC, dizendo que, apesar de a Lista definitiva de créditos ter sido apresentada no Citius a 04/09/2024, a Insolvente apenas foi notificada da mesma a 17/09/2024, pelo que, quando apresentou a impugnação a 30/09/2024, fê-lo dentro do prazo de 10 dias.

E com o requerimento juntou cópia de uma notificação electrónica efectuada a 17/09/2024 pelo Sr. AI à Ilustre Mandatária da devedora, à qual está anexa uma carta do Sr. AI em que o mesmo declara: “…vem dar conhecimento a V.Exas da relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, prevista no art.º 129º do CIRE, junta aos autos a 04-09-2024.” e a lista de créditos reconhecidos.

Terminou requerendo que fosse considerada tempestiva a impugnação.

Foi proferido despacho a ordenar a notificação do Sr. AI para se pronunciar.

Não consta que o mesmo se tenha pronunciado.

Entretanto a insolvente interpôs recurso do despacho 21/10/2024, pedindo a sua revogação e a substituição por outro que considere tempestiva a impugnação da Lista Definitiva de Créditos a 30/09/2024, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. Em 04/09/2024, o Sr. Administrador de Insolvência submeteu via Citius, a respetiva Lista Definitiva de Créditos – cfr. referência Citius (16595157).
B. Apesar da Lista definitiva de créditos ser apresentada no Citius a 04/09/2024,
a verdade é que a Insolvente apenas foi notificada da referida Lista de créditos em 17/09/2024, cfr. Ref.: ...07.
C. Destarte, a mandatária da insolvente foi notificada da Lista Definitiva de Créditos em 17/09/2024, apresentou a respetiva impugnação da Lista Definitiva de Créditos em 30/09/2024, no prazo concedido pela Lei, de 10 dias.
D. Em 04/09/2024, a Insolvente não foi notificada da Lista Definitiva de Créditos.
E. Verifica-se, assim, que o despacho recorrido enferma de erro ao considerar que a Insolvente foi notificada da Lista Definitiva de Créditos no dia 04/09/2024.
F. O artigo 248.º do CPC estabelece de forma semelhante que “os mandatários
são notificados nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 132.º, devendo o sistema informático certificar a data da elaboração da notificação, presumindo-se esta feita no terceiro dia posterior ao da elaboração, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja”.
G. Deste modo, sendo considerado que a Insolvente apenas foi notificada da lista de créditos em 17/09/2024 e apresentando a impugnação em 30/09/2024, a mesma é tempestiva, porquanto foi apresentada no prazo legal de 10 dias.
H. Deverão V. Ex.as, concluir assim, pela tempestividade do requerimento apresentado de Impugnação da Lista Definitiva de Créditos a 30/09/2024, com a necessária revogação do despacho que o indeferiu por extemporâneo.
I. A douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 132º, 248º do CPC, entre outros.

Não consta que tivessem sido apresentadas contra-alegações.

O tribunal a quo não se pronunciou sobre o pedido de reforma.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139, sendo o sublinhado nosso).

Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, pelo que não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida.

A única questão que cumpre apreciar é a de saber se a impugnação de créditos apresentada pela recorrente deve ser considerada tempestiva.

3. Fundamentação de facto

As incidências fácticas relevantes para a decisão são as indicadas no antecedente relatório e que aqui se dão por reproduzidas.

4. Fundamentação de direito
4.1. Enquadramento jurídico

Dispõe o art.º 128.º, n.º 1 do CIRE, que, dentro “do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvente, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual indiquem:….”

E dispõe o n.º 2 que o requerimento é endereçado ao administrador da insolvência e apresentado por transmissão eletrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 17.º.

Nos termos do disposto na alínea j) do n.º 1 do art.º 36º do CIRE, na sentença que declarar a insolvência, o juiz:
j) Designa prazo, até 30 dias, para a reclamação de créditos;

E dispõe o n.º 1 do art.º 129º do CIRE que nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos…

Destarte, o prazo de 15 dias para o administrador apresentar na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos começa a correr logo que termine o prazo para a apresentação dos requerimentos de reclamação de créditos, o qual é fixado na sentença (art.º 36º, n.º 1, alínea j) do CIRE).

Tal prazo corre continuamente e não se suspende durante as férias judiciais, por estar em causa um processo urgente (artigos 9º, nº 1, e 17º, do CIRE, e 144º, nº 1, do CPC) (cfr. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 524 e Ac. da RL de 15/02/2011, proc. 3083/10.1T2SNT-C.L1-7, consultável in www.dgsi.pt/jtrl).

Nos termos do disposto no art.º 3º, n.º 1 da Portaria n.º 246/2016, de 07 de Setembro - que regulamenta o acesso ao sistema informático de suporte à atividade dos tribunais pelos administradores judiciais e pela Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça e o documento de identificação profissional que atesta a qualidade de administrador judicial -, a apresentação de peças processuais e documentos pelos administradores judiciais é efetuada exclusivamente por via eletrónica.

E nos termos do n.º 3 do mesmo normativo, as comunicações dos administradores judiciais destinadas a mandatários realizadas por via eletrónica são efetuadas e rececionadas através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, acessível nos termos previstos na Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto.

Como decorre do disposto no art.º 129º, n.º 4, as referidas listas só são notificadas aos credores não reconhecidos, bem como àqueles cujos créditos forem reconhecidos sem que os tenham reclamado, ou em termos diversos dos da respetiva reclamação, sendo essa notificação efectuada aos credores que tiverem constituído mandatário nos termos do n.º 2 do artigo anterior (por transmissão eletrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 17.º) ou, no caso de credores não patrocinados, pelos meios previstos no artigo 249.º do Código de Processo Civil.

Relativamente ao último, a remissão deve considerar-se feita para o n.º 1, o qual, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 87/2024, de 07 de Novembro, dispõe que se a parte não tiver constituído mandatário, as notificações são efetuadas: a) Por via eletrónica, por meio de disponibilização da notificação em área digital de acesso reservado ao mesmo, associada ao seu endereço de correio eletrónico, nos termos previstos no diploma a que se refere o n.º 3 do artigo 230.º-A; b) Por via eletrónica, através de interoperabilidade entre o sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais e o sistema de informação utilizado pela notificanda; c) Por via postal, através do envio de carta registada, dirigida para a sua residência ou sede ou para o domicílio escolhido para o efeito de as receber.

Refira-se ainda que nos termos do n.º 5 do art.º 249º, [a] notificação considera-se feita no terceiro dia posterior ao do envio da notificação para a área reservada ou sistema de informação do notificando ou no terceiro dia posterior ao do registo da carta, ou, em qualquer dos casos, no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja.

A lei não prevê a notificação da apresentação das listas ao devedor/insolvente, nem os credores reconhecidos.

E, nessa medida entendeu-se já que este regime impõe ao devedor/insolvente e aos restantes credores “um particular ónus no acompanhamento da marcha do processo; certo que só a sua especial diligência e atenção lhes dará a garantia de conhecer, com rigor, os tempos próprios dos actos e, por conseguinte, situar nos momentos ajustados e tempestivos o exercício das faculdades processuais que lhes sejam concedidas” (cfr. Ac. da RL de 15/02/2011, proc. 3083/10.1T2SNT-C.L1-7, consultável in www.dgsi.pt/jtrl).

Continuando e tendo em vista o que releva para o objecto do recurso, dispõe o n.º 1 do art.º 130º do CIRE, cuja epígrafe é “Impugnação da lista de credores reconhecidos”:
1 - Nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.
(…)

Em primeiro lugar impõe-se evidenciar que não oferece dúvidas que a expressão “qualquer interessado” abrange, nomeadamente, o devedor/insolvente (neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3º edição, pág. 527 onde afirmam que “… interessados devem considerar-se, além do insolvente, os credores em relação aos quais exista possibilidade de conflito com o titular do crédito reconhecido, segundo os termos concretos em que o reconhecimento se verificou. “).

Em segundo lugar, decorre deste normativo, em abstracto, que o prazo geral (e, portanto, para o devedor/insolvente, que a lei não prevê que seja notificado da apresentação das listas) para a impugnação de créditos (de 10 dias) se inicia logo que termine o prazo de 15 dias para o administrador da insolvência apresentar na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, o qual, por sua vez, se inicia com o termo do prazo para a apresentação das reclamação de créditos.

Por isso se diz que estamos perante “um sistema de prazos legais sucessivos em que o início do prazo seguinte tem lugar logo após o termo do prazo que o precede sem necessidade de intermediação por notificação dos actos objecto de contraditório (isto é, o novo prazo desencadeia-se automaticamente, sem qualquer outra qualquer dependência, no desencadeamento da respectiva contagem, que não seja, e apenas, a do expirar do outro e precedente prazo).” (cfr. Ac. da RG de 03/03/2022, proc. 4054/20.5T8VNF-H.G1 em que é Relatora a aqui 1ª Adjunta consultável in www.dgfsi.pt/jtrg).

O que justifica que se afirme que “[a] fase de verificação e graduação de créditos que se abre com a decretação da insolvência é integrada, (…) por uma cadeia organizada de atos, para a prática de cada um dos quais a lei fixa um determinado prazo. Apesar de autónomo dos demais, cada um desses prazos encontra-se diretamente dependente do prazo imediatamente anterior, ao mesmo tempo que condiciona o prazo que imediatamente se lhe segue”; e ainda que “ em qualquer regime processual informado pela regra segundo a qual cada prazo seguinte tem como momento a quo o momento ad quem do prazo imediatamente anterior, o conhecimento do ato que com que é desencadeado o decurso do primeiro dos prazos que integram a cadeia  no caso, a sentença que declara a insolvência  constitui, em princípio, uma condição simultaneamente necessária e suficiente para o estabelecimento do termo inicial de todos os demais que se lhe seguem: por força da relação de interdependência que liga os prazos em sucessão, é possível determinar, a partir do conhecimento do primeiro deles, tanto o dies a quo quanto o dies ad quem de qualquer um daqueles que se lhe seguem, tanto imediata como mediatamente.” (cfr. Acórdão do TC nº 16/2018 de 10 de janeiro de 2018, consultável in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180016.html).

Já não será assim para os credores não reconhecidos, bem como para aqueles cujos créditos foram reconhecidos sem que os tenham reclamado, ou em termos diversos dos da respetiva reclamação, pois, como vimos supra, têm, necessariamente, de ser notificados pelo administrador da junção das listas e o prazo para a impugnação conta-se da data em que a respectiva notificação produz efeitos (cfr. n.º 1 do art.º 248º do CPC relativamente à notificação dos credores que constituíram mandatário e n.º 5 do art.º 249º quanto à notificação dos credores que não constituíram mandatário).

No entanto, tem-se colocado a questão de saber quando é que se inicia o prazo para os interessados que não são notificados da apresentação das listas – como sucede com o devedor/insolvente -, as impugnarem quando o administrador apresentar as referidas listas posteriormente ao termo do prazo de 15 dias fixado no n.º 1 do art.º 129º.

É que, desde logo, como decorre da natureza das coisas, só é possível impugnar listas que sejam conhecidas.

A questão tem sido tratada na jurisprudência (a análise será feita por ordem cronológica).

No já citado Ac. da RL de 15/02/2011, proc. 3083/10.1T2SNT-C.L1-7, consultável in www.dgsi.pt/jtrl, considerou-se (sublinhado nosso) que “no caso de o administrador só juntar as listas para lá dos 15 dias concedidos pela lei o prazo para a impugnação dos interessados apenas iniciará na data da respectiva junção” acrescentando-se que “[h]á-de aqui funcionar, de modo particular, o ónus da diligência e do acompanhamento atento, por parte dos credores, da marcha do processo e da efectiva consulta dos actos nele praticados”, referindo-se ainda, em nota, que “[s]obressai aqui o princípio de auto-responsabilização dos interessados; preteridos os ónus que sobre eles impendem, haverão de suportar as desvantajosas consequências.”

No entanto, o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 16/2018 de 10 de janeiro de 2018, consultável in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180016.html decidiu “julgar inconstitucional, por violação do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, em conjugação com o n.º 2 do respetivo artigo 18.º, a norma extraída do n.º 1 do artigo 130.º do CIRE, de acordo com a qual o insolvente não deve ser notificado da lista de credores reconhecidos, quando essa lista for apresentada para lá do decurso do prazo que resulta do que tiver sido fixado na sentença que declarou a insolvência.”

E na sua fundamentação consta: “(…) sempre que o administrador da insolvência apresentar as listas dos créditos reconhecidos e não reconhecidos depois de volvido o prazo de quinze dias de que para o efeito dispõe, contado a partir do termo final do prazo para a reclamação de créditos fixado na sentença declaratória da insolvência, a regra do desencadeamento automático do prazo seguinte a partir do esgotamento do prazo imediatamente anterior deixa de poder funcionar; neste caso, o prazo para a impugnação da lista dos créditos reconhecidos só poderá iniciar-se com a prática do ato correspondente ao da sua efetiva apresentação na secretaria judicial e a possibilidade de o insolvente determinar, a partir da mera notificação da sentença que declara a insolvência, o termo inicial do prazo de que dispõe para exercer a faculdade prevista no n.º 1 do artigo 130.º do CIRE é, obviamente, eliminada.”

E mais adiante afirmou:
“Em hipóteses como esta, a notificação da lista entregue pelo administrador da insolvência surge como a única forma de, através do processo, assegurar o conhecimento pelo insolvente do dies a quo do prazo para impugnação dos créditos reconhecidos, colocando-o em condições de exercer o seu direito de defesa face às pretensões dos credores reclamantes que considere não deverem proceder. Se tal notificação for dispensada, o insolvente apenas conseguirá inteirar-se do termo inicial do prazo de 10 dias de que dispõe para contestar os créditos pelos quais entenda não dever responder, pelo menos em momento compatível com o aproveitamento de todo ele, se se deslocar diariamente à secretaria judicial para verificar se a lista já foi entregue, e se o fizer ao longo de tantos dias quantos aqueles em que persistir a delonga do administrador da insolvência, face ao que se dispõe no artigo 129.º, n.º 1, do CIRE.”

E ponderou ainda:
“Ao comprometer determinantemente o exercício pelo insolvente da faculdade de impugnação dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência, a dispensa de notificação consentida pela norma impugnada afeta, em suma, uma projeção nuclear do princípio da proibição da indefesa, que assenta na inadmissibilidade de prolação de qualquer decisão sem que ao sujeito processual pela mesma afetado seja previamente conferida a possibilidade de discutir e contestar a pretensão que nela obtém procedência e se intensifica perante o efeito cominatório e/ou preclusivo associado à inação processual”.

E desde este Ac. do TC que os tribunais da Relação têm vindo a considerar que, no caso de o administrador incumpra o prazo para a junção da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, impõe-se que o mesmo, em obediência ao princípios do contraditório e da igualdade de armas, enquanto decorrências do direito a um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do art.º 20º da CRP, proceda à notificação da lista de créditos não apenas aos interessados referidos no n.º 4 do art.º 129º, como a lei já impõe, mas também aos credores reconhecidos que tenham reclamado os seus créditos e ao devedor/insolvente, contando-se, assim, o prazo de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 130º a partir dessa notificação.

Neste sentido o Ac. da RL de 26/11/2019, processo 14966/17.8T8SNT-F.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl, onde se afirma:
“Nesse contexto, de incumprimento do prazo para junção da lista de créditos pelo Administrador da Insolvência, impõe-se que seja este a obviar às consequências do seu próprio incumprimento, procedendo à notificação da lista de créditos a todos os que nela constam inscritos, pois que só assim resulta potenciado o pretendido efetivo exercício do contraditório na medida em que, naquele cenário, não podem aplicar-se as regras (de prazos sucessivos e ausência de notificações) previstas pelos arts. 130º, nº 1 e 131º, nº 1 e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Assim, o que é expectável e devido, por legalmente previsto, é que a lista de créditos seja apresentada pelo Administrador da Insolvência até ao termo do prazo legal para o efeito previsto. Quando assim não suceda e quando aquele incumprimento não é colmatado com a notificação da lista de credores simultaneamente com a junção (tardia) da mesma aos autos, ocorre violação do principio constitucional do acesso à justiça previsto pelo art. 20º da CRP traduzida em omissão perturbadora do pleno e efetivo exercício do contraditório que, nos termos do art. 195º do CPC e caso não seja sanada até à prolação da sentença, produz a nulidade desta por idónea a influir no exame ou na decisão da causa.”

Também o Ac. da RP de 28/10/2021 proferido no processo 2422/20.1T8AVR-A.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp, depois de citar extensivamente o Ac. do TC já referido, entendeu que “ocorrendo incumprimento pelo Administrador da Insolvência do prazo para a apresentação da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos e importando esse incumprimento (tenha ele a duração que tiver) a impossibilidade de o insolvente (…) poder determinar com a devida segurança e certeza o início do prazo de 10 dias para efeitos de impugnação da lista de créditos reconhecidos (…), não será, de todo, (…) proporcional e adequado impor-se ao insolvente o ónus de consultar diariamente o processo para se inteirar da apresentação daquelas listas (consulta diária essa que se pode prolongar por todo o período temporal de mora do Administrador) e para assim aferir ele próprio a data de início e termo do prazo de que dispõe para a impugnação dos créditos reconhecidos.
Ao invés, nesta hipótese, que ora se verifica, como se mostra devidamente salientado no citado Acórdão do Tribunal Constitucional, a notificação da lista entregue pelo administrador da insolvência surge como a única forma de, através do processo, assegurar o conhecimento pelo insolvente do dies a quo do prazo para impugnação dos créditos reconhecidos, colocando-o em condições de exercer o seu direito de defesa face às pretensões dos credores reclamantes que considere não deverem proceder e em igualdade de condições relativamente a todos os demais credores que, nos termos do artigo 129º, n.º 4, do CIRE, têm que ser obrigatoriamente notificados daquelas listas, sendo certo que inexiste entre aquelas duas categorias de intervenientes no processo de reclamação e verificação de créditos nenhuma diferença substancial, do ponto de vista dos seus interesses, que justifique um tratamento tão radicalmente distinto e, ademais, a lei associa à inexistência de impugnação um significativo efeito cominatório.”

No Ac. desta RG de 03/03/2022, processo 4054/20.5T8VNF-H.G1, já acima referido, o administrador apresentou as referidas listas posteriormente ao termo do prazo de 15 dias fixado no n.º 1 do art.º 129º e não procedeu à sua notificação.
Mas o interessado apresentou a impugnação no próprio dia que aquelas ficaram disponíveis no Citius.
A 1ª instância considerou a impugnação extemporânea.
O Acórdão considerou-a tempestiva porque “nem se encontrava cumprido o pressuposto da consagração do regime sucessivo e automático dos prazos de reclamação e verificação e créditos, nem a natureza urgente do processo de insolvência (que justificou aquele regime) se pode sobrepor à garantia constitucional de um processo equitativo.”

E acrescentou que “não tendo a Administradora da Insolvência cumprido o prazo legal de apresentação das listas de créditos reconhecidos e não reconhecidos (…) tornou impossível aos credores conhecer antecipadamente o momento em que o faria.
(…) mercê da sua prolongada omissão própria, também não diligenciou a Administradora da Insolvência pela notificação das listas que então apresentara a todos os credores dela constantes, sendo que, «neste contexto, de incumprimento do prazo para a junção da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, impõe-se que o Sr. Administrador obvie às consequências do seu incumprimento, procedendo à notificação da lista de créditos a todos os que nela se mostrem inscritos, contando-se, assim, o prazo de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 130º a partir da realização de tal notificação» (Ac. da RP, de 28.10.2021, Jorge Seabra, Processo n.º 2422/20.1T8AVR-A.P1).
(…)
Com efeito, não se considera proporcionalmente exigível que, cabendo ao administrador da insolvência o papel fundamental no que à reclamação, verificação e graduação de créditos diz respeito, incumprindo o mesmo o seu dever de oportuna apresentação das listas de créditos impugnados e não impugnados, seja exigível aos credores reclamantes (nomeadamente, aos patrocinados por advogados) que doravante passem a verificar diariamente os autos principais, com vista à deteção nos mesmos do termo de criação do apenso de reclamação de créditos (que se inicia, precisamente, com a recepção das ditas listas), o que (como os presentes autos documentam) se poderá manter por vários meses. Seria indevidamente onerá-los com encargos exclusivamente resultantes do incumprimento de outrem (o administrador da insolvência), e prejudicá-los com gravosas consequências (a omissão de impugnação) que de outro modo não sofreriam.” e concluiu pela tempestividade da impugnação.

Posteriormente, e tanto quanto vislumbramos, a jurisprudência consolidou-se.

Assim no Ac. da RP de 04/04/2022, processo 421/17.0T8BGC-R.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp, o administrador apresentou as referidas listas posteriormente ao termo do prazo de 15 dias fixado no n.º 1 do art.º 129º e não procedeu à sua notificação; a  impugnação foi apresentada no prazo de 10 dias após a data em que as mandatárias da insolvente tiveram acesso ao Citius; a 1ª instância considerou-a tempestiva, tendo o recurso sido interposto pela titular do crédito impugnado
E consta do respectivo sumário:
III - Contudo, em obediência ao princípio do contraditório, elevado, até a princípio constitucional, que tem, sempre, de ser observado e feito observar pelo juiz, caso o desrespeito de um prazo da cadeia impeça a determinação do início do prazo seguinte, impõem-se as notificações tendentes a despoletar o seu início, para, de modo proporcional, em igualdade e na plena e efetiva contraditoriedade, se poder definir o direito, nunca mecanismos materializadores de exigências de simplificação e celeridade processual prevalecendo sobre aquele princípio estruturante de um processo justo e equitativo. Quebrado um elo da cadeia, a contraditoriedade tem de ser assegurada da única forma possível – mediante notificação para o efeito;
IV - Destarte, tendo o Administrador da Insolvência apresentado a lista a que alude o nº1, do art. 129º, do CIRE, fora do prazo legalmente estabelecido e não tendo a insolvente sido notificada de tal apresentação, sequer os seus mandatários sido informaticamente associados ao apenso respetivo, em momento anterior aos 10 dias que antecedem a apresentação da impugnação, tempestiva é a impugnação apresentada pela insolvente.

Finalmente o Ac. da RC de 25/10/2024, processo 4512/23.0T8LRA-B.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc , cujo sumário tem o seguinte teor:
I – Ocorrendo incumprimento pelo Administrador da Insolvência do prazo para a apresentação da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos e importando esse incumprimento - tenha ele a duração que tiver - a impossibilidade de o insolvente - único que ora está em causa - poder determinar com a devida segurança e certeza o início do prazo de 10 dias para efeitos de impugnação da lista de créditos reconhecidos, não será, de todo, em nosso ver, em sentido contrário ao decidido pela 1.ª instância, proporcional e adequado impor-se à insolvente o ónus de consultar diariamente o processo para se inteirar da apresentação daquelas listas - consulta diária essa que se pode prolongar por todo o período temporal de mora do Administrador - e para assim aferir ele próprio a data de início e termo do prazo de que dispõe para a impugnação dos créditos reconhecidos.
II – Nesse contexto, de incumprimento do prazo para junção da lista de créditos pelo Administrador da Insolvência, impõe-se que seja este a obviar às consequências do seu próprio incumprimento, procedendo à notificação da lista de créditos a todos os que nela constam inscritos, pois que só assim resulta potenciado o pretendido efectivo exercício do contraditório na medida em que, naquele cenário, não podem aplicar-se as regras (de prazos sucessivos e ausência de notificações) previstas pelos arts. 130º, nº 1 e 131º, nº 1 e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Acompanha-se o entendimento que tem vindo a ser seguido a partir do Acórdão do TC nº 16/2018 de 10 de janeiro de 2018 e com os fundamentos nele exarados, ou seja, se o administrador incumprir o prazo para a junção da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, impõe-se que o mesmo, em obediência aos princípios do contraditório e da igualdade de armas, enquanto decorrências do direito a um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do art.º 20º da CRP, proceda à notificação da lista de créditos não apenas aos interessados referidos no n.º 4 do art.º 129º, como a lei já impõe, mas também aos credores reconhecidos que tenham reclamado os seus créditos e ao devedor/insolvente, contando-se o prazo de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 130º a partir dessa notificação, sendo, naturalmente e neste contexto, de  considerar tempestivas as impugnações que sejam apresentadas antes dessa notificação.

4.2. Em concreto
Como consta do Relatório supra, relativo às incidências processuais, por sentença de 10/05/2024 foi declarada a insolvência de EMP01..., Lda. e fixado em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos.

A 10/05/2024 foi elaborado o Anúncio a que se refere o art.º 37º, n.º 7 do CIRE, o qual dispõe que os demais credores e outros interessados são citados por edital, com prazo de dilação de cinco dias, afixado na sede ou na residência do devedor, nos seus estabelecimentos e no próprio tribunal e por anúncio publicado no portal Citius.

Neste contexto, o prazo para o Sr. AI apresentar as listas de credores reconhecidos terminava a 29/07/2024.

A 04/09/2024, por apenso aos autos de insolvência, o Sr. AI juntou a lista definitiva de créditos, prevista no art.º 129º do CIRE.

E a 06/09/2024, nos autos principais, foi lavrado “TERMO DE APENSAÇÃO” dos autos de Reclamação Créditos.

A partir do momento em que as listas estão disponíveis para consulta no Citius, dir-se-á que os mandatários das partes associados ao processo podem ter acesso às referidas listas e, portanto, o prazo para as impugnar conta-se daquela junção.

Porém, como se viu em sede de enquadramento jurídico, não é, não pode ser assim.

A partir do momento em que o administrador não cumpre o prazo legal de apresentação das listas de créditos reconhecidos e não reconhecidos: i) a regra do desencadeamento automático do prazo seguinte, a partir do esgotamento do prazo imediatamente anterior, deixa de poder funcionar; ii) em tais circunstâncias, seria manifestamente excessivo e intolerável, exigir e impor aos interessados cuja notificação das listas não está prevista na lei (credores reclamantes reconhecidos e devedor/insolvente) que, não estando patrocinados, consultem diariamente a secretaria ou, estando patrocinados e os respectivos mandatários associados ao processo electrónico, que o consultem diariamente, tendo em vista verificar se as listas foram juntas, o que, como sucedeu no caso,  pode levar vários meses.

Sendo assim, o referido facto não deve ser considerado como possibilitando um efectivo conhecimento da junção das listas pelo administrador.

O certo é que no caso dos autos a recorrente alegou e não foi contestado por ninguém, nomeadamente pelo Sr. AI, que a 17/09/2024 o mesmo elaborou uma notificação electrónica tendo como destinatário a Ilustre Mandatária da devedora, à qual está anexa uma carta daquele - em que declara “…vem dar conhecimento a V.Exas da relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, prevista no art.º 129º do CIRE, junta aos autos a 04-09-2024” - e a dita relação de créditos reconhecidos.

Verifica-se, assim, que o Sr. AI, dando cumprimento aos princípios do contraditório e da igualdade de armas, enquanto decorrências do direito a um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do art.º 20º da CRP, notificou a insolvente da apresentação das listas, pelo que nestes autos está ultrapassada a questão da inconstitucionalidade da interpretação do art.º 130º do CIRE apreciada pelo Acórdão do TC n.º 16/2018.

Tal notificação mostra-se em conformidade com o disposto no art.º 3º, n.º 1 da Portaria n.º 246/2016, de 07 de Setembro que Regulamenta o acesso ao sistema informático de suporte à atividade dos tribunais pelos administradores judiciais e a Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto.

Nos termos do n.º 1 do art.º 248º do CPC, aplicável ex vi art.º 17º do CIRE, os mandatários são notificados por via eletrónica nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, devendo o sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais certificar a data da elaboração da notificação, presumindo-se esta feita no terceiro dia posterior ao do seu envio, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja.

Tendo a notificação em referência sido elaborada a 17/09/2024, a Ilustre mandatária da insolvente presume-se notificada a 20, sexta-feira.
Contando-se o prazo a partir de 21 (nos termos da alínea b) do art.º 279º do CC na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia, nem a hora, se o prazo for de horas, em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr) o prazo para deduzir impugnações terminava a 30/09/2024.

A 30/09/2023 a insolvente apresentou impugnação de créditos, pelo que, em face de tudo o exposto, a mesma é tempestiva.

Em consequência, a decisão recorrida não se pode manter, devendo ser revogada, dada a tempestividade da impugnação e, neste pressuposto, deverão os autos prosseguirem os seus termos em conformidade.

4.3. Custas

Dispõe o art.º 527º, n.º 1 do CPC que a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

No caso a recorrente obteve integral vencimento.

No não houve contra-alegações, pelo que não há vencido

Sendo assim, as custas devem ficar a cargo da recorrente, de acordo com o critério do proveito.

5. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem a 1ª Secção da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, dada a tempestividade da impugnação e, neste pressuposto, devem os autos prosseguir os seus termos em conformidade.

Custas pela recorrente

Notifique-se

*
Guimarães, 18/12/2024
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
           
Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Maria João Marques Pinto de Matos
Alexandra Maria Viana Parente Lopes