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ACÇÃO EXECUTIVA
DÍVIDAS COMUNICÁVEIS
INCIDENTE DE COMUNICABILIDADE
INDIVISÃO PÓS-COMUNHÃO
AVAL EM BRANCO
Sumário
I - O incidente de comunicabilidade, previsto nos arts. 741 e 742 do CPC, constitui o meio processual adequado a permitir o prosseguimento da execução por uma dívida comum do casal também contra o cônjuge do executado, quando apenas este figura do título como devedor. II - Se o incidente for procedente, qualificando-se a dívida como comum do casal, ocorre um alargamento da eficácia subjetiva do título que inicialmente serviu de base à execução, passando a haver uma situação de litisconsórcio necessário superveniente entre o executado (inicial) e o seu cônjuge. III - Em decorrência, a execução prossegue, em primeira linha, sobre os bens comuns e, subsidiariamente, sobre os bens próprios de qualquer um dos devedores. IV - Não pode ser qualificada como comum do casal uma dívida constituída depois de o facto que determina a dissolução do casamento produzir os efeitos patrimoniais. V - A assinatura aposta, para valer como aval, num formulário de livrança que, nesse momento – o da subscrição e entrega a outrem –, não está preenchido quanto aos seus elementos (valor, data de emissão, local e data de pagamento), mas que poderá vir a sê-lo, em determinadas circunstâncias, de acordo com critérios previamente definidos entre o portador (credor) e os potenciais vinculados cambiariamente, sejam estes o subscritor/emitente (devedor) e os avalistas (garantes), não vale, em termos técnico-jurídicos, como aval, mas como subscrição para aval. VI - No hiato compreendido entre a subscrição para aval e o ato de preenchimento, o portador tem uma mera expetativa de aquisição do direito de crédito cambiário, a qual é equiparada à do credor sob condição suspensiva. VII - Se da interpretação da convenção de preenchimento resultar que a vontade das partes foi no sentido de a produção dos efeitos decorrentes da verificação do evento condicionante do preenchimento não retroagir a momento anterior, designadamente ao da subscrição para aval, o crédito do portador sobre o avalista apenas se constitui quando o título se forma qua tale. VIII - Em tais circunstâncias, o património comum do casal que foi constituído pelo avalista executado e pela requerida no incidente de comunicabilidade não responde pela dívida resultante do aval, se no momento do preenchimento da livrança já estavam cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, ainda que por facto ulterior à subscrição para aval.
Texto Integral
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I.
1) No dia 31 de janeiro de 2024, o Banco 1..., SA, intentou ação executiva, sob a forma comum ordinária para pagamento de quantia certa, contra AA, alegando, em síntese, que: é legítimo portador de uma livrança no valor de € 94 948,74, com data de emissão de 12 de fevereiro de 2021 e com data de vencimento de 19 de fevereiro de 2021, subscrita pela sociedade “EMP01..., Lda.” e avalizada, entre outros, pelo executado; essa livrança titula o montante que se encontra em dívida emergente de um financiamento que, no exercício da sua atividade bancária, concedeu à sociedade subscritora, através do contrato de mútuo identificado sob o n.º ...01, datado de 7 de julho de 2019; por força do incumprimento contratual definitivo verificado no aludido contrato de mútuo, procedeu à sua resolução e à subsequente interpelação da sociedade mutuária e dos seus avalistas, entre eles o aqui executado, para procederem ao pagamento dos valores que se encontravam em dívida; não tendo esse pagamento sido realizado, preencheu a livrança que caucionava as responsabilidades emergentes do referido contrato de mútuo, pelos valores de capital, juros, impostos e despesas; apresentada a pagamento na data do seu vencimento, a livrança em causa não foi paga por nenhum dos intervenientes obrigados; ao capital em dívida (€ 94 948,74) acrescem juros, à taxa do artigo 559 do Código Civil (4%), desde a data do vencimento da livrança e até integral pagamento, bem com o imposto de selo, no montante de € 447,43.
No mesmo ato, sob a epígrafe “Comunicabilidade da dívida ao cônjuge”, acrescentou, também em síntese, que: o executado é casado, segundo o regime de comunhão de adquiridos, com BB; o aval foi prestado no exercício da atividade comercial a que se dedica o executado, enquanto sócio e gerente da sociedade subscritora; é dessa atividade que provêm os rendimentos com que são suportadas as despesas do casal; assim, o pagamento da livrança constitui dívida comum do casal, nos termos previstos no art. 1691/1, d), do Código Civil.
Concluiu pedindo a intervenção desta BB “na qualidade de executada.”
Na sequência, foi proferido despacho, datado de 8 de fevereiro de 2024, a determinar a citação do identificado cônjuge do executado para, em vinte dias, “declarar se aceita a comunicabilidade da dívida.”
Dentro referido prazo, a citada apresentou requerimento, autuado por apenso, em que declarou, sempre em síntese, que: o casamento que a unia ao executado foi dissolvido, por divórcio por mútuo consentimento, decretado no dia 9 de março de 2020, com a consequente cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges; tendo em conta que a data de vencimento da livrança é ulterior a essa data, não pode ser responsabilizada pelo pagamento da dívida exequenda, pelo que não aceita a comunicabilidade desta.
O exequente respondeu sustentando, em síntese, que o aval foi prestado em branco no dia ../../2019, ainda na constância do casamento; sendo esse o momento que releva para efeitos de constituição da dívida, esta deve ser considerada comum.
No dia 10 de maio de 2024, foi proferido despacho a julgar “improcedente o presente incidente de impugnação da comunicabilidade” e a determinar “que a execução prossiga igualmente quanto à aqui Requerente BB.”
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2).1. Inconformada, a citada (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso em que, depois de ter identificado, como norma jurídica violada, a que consta do art. 1691/1, c), do Código Civil, formulou as seguintes conclusões:
1.ª A Recorrente foi casada com o Executado AA, entre ../../1977 e ../../2020, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio a ../../2020.
2.ª A ../../2020, com o decretamento do divórcio cessaram todos os efeitos patrimoniais inerentes ao casamento.
3.ª Conforme resulta do requerimento executivo dos autos principais, o título executivo é uma livrança emitida em 12/02/2021 e vencida a 19/02/2021, subscrita pela sociedade comercial EMP01..., Lda. e avalizada, entre outros, pelo ex-cônjuge da Requerente AA.
4.ª Do documento n.º 2 junto com o requerimento executivo resulta o contrato de mútuo celebrado entre a EMP01... e a Banco Exequente, onde consta como finalidade do mútuo a liquidação de responsabilidade perante o Banco por parte da mutuária EMP01..., Lda.
5.ª Resulta do documento n.º 3 junto com o requerimento executivo que, o contrato de mútuo celebrado inicialmente a 07/11/2019 foi alterado a 14/05/2020 e resolvido, por incumprimento da devedora originária (sociedade EMP01...) em 16/12/2020.
6.ª Tudo em datas posteriores à dissolução do casamento.
7.ª A alteração do contrato (14/05/2020);
8.ª O [incumprimento] pela devedora originária (16/12/2020);
9.ª A emissão da livrança dada como aval pelo ex-cônjuge da Recorrente e que serve de título executivo ao presentes autos (emissão a 12/02/2021 e vencimento a 19/02/2021).
10.ª A celebração do contrato de mútuo teve como finalidade a liquidação de responsabilidades da empresa perante o Banco e nunca o proveito comum do casal.
11.ª Até à data em que a Recorrente se divorciou (../../2020) não existiu qualquer incumprimento do contrato, qualquer dívida vencida ou título executivo cuja responsabilidade pudesse ser assacada à Recorrente por esta ser casada com sócio avalista!
12.ª O incumprimento das obrigações pecuniárias por parte da sociedade e o respetivo acionamento da garantia dada pelos sócios avalistas só sucede (muito) após a dissolução do casamento da Recorrente!
13.ª O título executivo dada à execução dos autos principais é uma livrança emitida a 12/02/2021 e vencida a 19/02/2021, titulada entre outros, pelo seu ex-cônjuge da Recorrente.
14.ª O título executivo é a livrança e não o contrato de mútuo de 2019!
15.ª É ambígua e contraditória e expressão usada na conclusão da fundamentação da decisão do Tribunal a quo quando diz que “é forçoso concluir que tal dívida é da responsabilidade de ambos os cônjuges”.
16.ª Não sendo assim clara e manifesta a conclusão jurídica resultante da fundamentação.
17.ª O mútuo de 2019 foi para a liquidação de responsabilidades que a EMP01..., Lda., tinha perante o Banco exequente.
18.ª Foi realizado pela empresa no seu único proveito e nunca em proveito comum do casal.
19.ª Não teve a Recorrente qualquer proveito com o contrato de mútuo, pois o valor mutuado foi para as necessidades correntes da empresa – como decorre dos documentos juntos com o requerimento executivo.
20.ª Deve por isso ser declarada a incomunicabilidade da dívida com todas as consequências legais, extinguindo-se assim os autos executivos contra a aqui Executada.”
Pediu que, na procedência do recurso, seja revogada a decisão recorrida e “declarada a incomunicabilidade da dívida com todas as consequências legais”, designadamente a extinção da execução no que a si concerne.
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2).2. O exequente (daqui em diante, Recorrido) respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
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2).3. O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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2).4. Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC[1]). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final,ex vi do art. 663/2, parte final).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3).
Tendo isto presente, a questão que se coloca nas conclusões formulada pela Recorrente pode ser sintetizada do seguinte modo: saber se a sentença recorrida incorreu em erro na interpretação da norma do art. 1691/1, c), do Código Civil quando, com base nela, qualificou a dívida exequenda como comum do casal que foi constituído pelo executado e pela Recorrente.
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III.
1).1. Antes de avançarmos com a resposta à questão enunciada, respigamos a fundamentação de facto da decisão recorrida (transcrição):
“a) Foi dada à execução (uma) livrança no valor de € 94.948,74 (noventa e quatro mil, novecentos e quarenta e oito euros e setenta e quatro cêntimos), emitida em ../../2021 e com data de vencimento em 19/02/2024, subscrita pela sociedade “EMP01..., Lda.” e avalizada por CC, DD e AA.
b) A livrança titula o montante que se encontra em dívida emergente de um financiamento que o Banco exequente, no exercício da sua atividade bancária, concedeu à sociedade subscritora da livrança, in casu, um contrato de mútuo, identificado sob o n.º ...01, datado de 07 de julho de 2019, nos termos do documento junto ao requerimento executivo.
c) A livrança dada à execução foi avalizada pelo executado AA no exercício da sua atividade comercial e enquanto sócio e gerente da sociedade mutuária e subscritora da livrança.
d) Foi através da atividade comercial do executado AA, designadamente, dos rendimentos provenientes dessa mesma atividade, enquanto sócio e gerente da sociedade mutuária “EMP01..., Lda.”, que o casal constituiu o património comum que possuem atualmente e fez face às despesas da sua vida conjugal.
e) Entre o qual consta a participação de que é titular no capital social da “EMP01..., Lda.”, entretanto, declarada insolvente.
f) A Executada BB foi casada com o também Executado AA, entre ../../1977 e ../../2020, tendo vigorado o regime da comunhão de adquiridos.
g) O casamento foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento a ../../2020.”
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1).2. Como se constata, o enunciado da alínea a) enferma de erro de escrita no que tange às datas de emissão e de vencimento apostas na livrança, que não são os dias 12 de abril de 2021 e 19 de fevereiro de 2024, mas os dias 12 de fevereiro de 2021 e 19 de fevereiro de 2021, respetivamente.
Estes erros de escrita são manifestos quando se atente, não apenas no teor da livrança, apresentada com o requerimento executivo – e, assim, sua parte integrante –, mas também na própria data em que este foi apresentado em juízo (31 de janeiro de 2024).
Sabemos que, com a prolação da sentença, o juiz deixa de poder pronunciar-se sobre o objeto da causa. É o que se designa por “esgotamento do poder jurisdicional” (art. 613/1, aplicável aos despachos, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito).
A sentença atinge o primeiro nível de estabilidade. Trata-se de uma estabilidade interna, restrita ao órgão que a proferiu (Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2021, p. 174). O segundo nível, já alargado, vinculando o tribunal e as partes, dentro do processo (art. 620), ou mesmo, fora dele, outros tribunais (art. 619), apenas será atingido quando a sentença transitar em julgado, nos termos do art. 628/1.
Aquele primeiro nível de estabilidade significa que, prolatada a sentença, o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais, fundada nos princípios da segurança jurídica e da imparcialidade do juiz. Como explica Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 127, “[q]ue o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.”
A regra comporta, todavia, ressalvas, conforme resulta, claramente, do n.º 2 do art. 613, onde se diz que “[é] lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.”
Estão em causa, portanto, as situações em que o juiz pode retificar erros materiais (art. 614), suprir nulidades (art. 615) e reformar a sentença (art. 616).
Sobre as primeiras (retificação de erros materiais) diz o art. 614/1 que “[s]e a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do art. 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.”
Deixando de lado a omissão de custas ou da indicação da proporção da responsabilidade a que se refere o n.º 6 do art. 607 do CPC, constatamos que a lei inclui no perímetro possível de retificações: o suprimento da omissão de indicação do nome das partes; a correção de erros de escrita ou de cálculo ou de quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.
O erro material é habitualmente caracterizado como uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada do juiz, o que o aproxima, em termos conceptuais, da figura do erro-obstáculo própria do direito civil (STJ 12.02.2009, 08A2680, Sebastião Póvoas[2]); RP 2.06.2014, 3953/12.2TBVNG-B-P1, Carlos Querido). Ocorre assim quando “o juiz escreveu uma coisa diversa daquela que queria escrever” (RC 10.03.2015, 490/11.6TBOHP-D.C2, Catarina Gonçalves). Distingue-se do erro de julgamento que ocorre quando há uma divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão. Nestes, o erro reside na própria vontade do juiz, sendo o remédio o recurso destinado a uma modificação ou alteração substancial da decisão (art. 627/1) ou, quando este não seja admissível, a reforma (cf. art. 616/2).
Reconhecendo a dificuldade em apurar a vontade real do juiz, a lei impõe um requisito para que o erro material releve qua tale: a sua natureza manifesta. Erro manifesto é aquele que facilmente se deteta e evidencia por si próprio e no contexto em que a declaração é exarada, à semelhança do que sucede com os erros de cálculo ou de escrita dos atos das partes (art. 146/1). Neste sentido, STJ 26.11.2015 (706/05.6TBOER.L1.S1, Maria dos Prazeres Beleza), onde se conclui que “[n]ão pode ser qualificada como retificação uma alteração da parte decisória do acórdão cuja incorreção material se não detetava da leitura do respetivo texto.” E evidencia-se não apenas para o juiz que proferiu na decisão, mas também para quem a lê (RC 10.03.2015, já citado).
Isto transmite claramente a ideia de que, não obstante o erro, quem lê a decisão percebe claramente qual o seu sentido, de modo que as alterações introduzidas não podem por definição, assumir natureza inovatória (RG 30.11.2022, 2273/07.9TBBCL-N.G1, José Alberto Moreira Dias). Só assim se compreende, de resto, que a retificação possa ter lugar a qualquer momento, oficiosamente ou a requerimento das partes, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão (RG 22.11.2018, 56/18.0T8BRG.G1, Ana Cristina Duarte).
É o que sucede no caso vertente, podendo a retificação ser feita, depois da subida do recurso, pelo Tribunal ad quem (cf. Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 732).
Ainda que assim não fosse entendido, sempre teria Tribunal de lançar mão do regime previsto no art. 662/1 do CPC, considerando que o documento em que o Tribunal a quo se baseou para dar como provado o enunciado em questão (a livrança apresentada) impõe decisão diversa no que tange às datas nele apostas como de emissão e vencimento. Este – a aposição das referidas datas – é um facto que faz parte materialidade do documento – ou, dito de outra forma, do denominado conteúdo extrínseco do documento (cf. Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 168) –, pelo que é abrangido pela força probatória plena que o art. 376/1 do Código Civil atribui a esta dimensão dos documentos particulares, a qual apenas pode ser contrariada pela arguição e prova da respetiva falsificação, designadamente a resultante da adulteração gráfica do texto.
De acordo com a lição de António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 335-336), a Relação deve proceder à modificação da decisão da matéria de facto, ex officio, quando constate o desrespeito, na decisão recorrida, da força plena de certo meio de prova. Está então em causa, apenas, a aplicação das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, o que encontra arrimo legal no art. 607/4 ex vi do art, 663/2, ambos do CPC, norma nos termos da qual o juiz deve tomar em consideração, na fundamentação do ato decisório, os factos admitidos por acordo e, bem assim, os plenamente provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.
Deste modo, o enunciado da alínea a) dos factos provados passa a ter a seguinte redação: “Foi dada à execução (uma) livrança no valor de € 94.948,74 (noventa e quatro mil, novecentos e quarenta e oito euros e setenta e quatro cêntimos), com data de emissão de 12 de fevereiro de 2021 e com data de vencimento de 19 de fevereiro de 2021, subscrita pela sociedade “EMP01..., Lda.” e avalizada por CC, DD e AA.
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1).3. Por outro lado, não consta do rol dos factos provados a data em que o executado apôs a sua assinatura no verso da livrança apresentada como título executivo nem a adesão do executado ao pacto de preenchimento, factos que foram alegados no requerimento executivo, no qual foi suscitada a questão da comunicabilidade da dívida, com arrimo no anexo ao documento 2 (Contrato de mútuo) adrede apresentado, não tendo sido objeto de qualquer impugnação, tendo-se, assim, como adquiridos, o primeiro por acordo das partes, nos termos do disposto no art. 293/3 do CPC, o segundo em resultado da força probatória do mencionado documento.
Dispomos, portanto, dos elementos necessários para suprir a apontada deficiência, o que se impõe fazer, nos termos do disposto nos já citados arts. 662/1 e 607/4, ex vi do art. 663/2 do CPC.
Assim, serão também considerados os seguintes factos, numerados como c).1. e c).2: c).1. A livrança foi assinada, no seu verso, pelo executado, na qualidade referida em a), no dia ../../2019. c).1. Na mesma data, o executado assinou, por si e na qualidade de gerente da sociedade subscritora da livrança, um escrito dirigido ao exequente do seguinte teor: “Assunto: Garantia de responsabilidades – contrato de mútuo – Envio de livrança – Autorização de preenchimento Exmos. Srs. Nos termos acordados com V. Exas., enviamos uma livrança em branco, por nós subscrita, e avalizada pelas pessoas abaixo identificadas, destinada a permitir o pagamento de todos os valores que por nós se mostrarem em dívida a V. Exas., por via de um contrato de mútuo, no valor de € 100 000,00, acrescido dos respetivos juros, despesas, encargos e comissões, desde já autorizando V. Exas. a completá-la com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento (…) e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização”, tudo conforme documento 2 apresentado com o requerimento executivo, cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido.
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IV.
1).1. Isto dito, avançamos com a resposta à questão enunciada.
Em jeito de enquadramento, começamos por dizer que a questão surge nesta sede incidental uma vez que o Recorrido alegou, no requerimento executivo, que a dívida exequenda, apesar de ter sido contraída apenas pelo executado – o único dos (ex-)cônjuges que, em conformidade, consta do título como devedor e que, por isso, é também o único que tem legitimidade passiva inicial para a ação executiva, ut art. 53/1 do CPC –, é comunicável ao património comum do casal que foi constituído por este e pela Recorrente, pelo que, nos termos do direito substantivo, tendo vigorado no casamento o regime supletivo da comunhão de adquiridos, respondem por ela, em primeira linha, os bens comuns e, subsidiariamente, na falta ou insuficiência daqueles, os bens próprios de cada um dos (ex-) cônjuges (art. 1695/1 do Código Civil).
O meio processual adequado a pôr termo a este desfasamento entre o regime processual – que apenas permite a propositura da ação executiva contra o (ex-)cônjuge que consta como devedor do título – e o regime substantivo – nos termos do qual, alegadamente, ambos os (ex-cônjuges) são responsáveis pelo pagamento da dívida – é, precisamente, o denominado incidente de comunicabilidade da dívida constante de título diverso de sentença, previsto nos arts. 741 e 742 do CPC vigente, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06. É através dele que o legislador dá “expressão processual” (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 627) ao regime substantivo da responsabilidade por dívidas comuns, o qual contém solução quer para o caso de o regime de bens comportar uma massa de bens comuns, como sucede nos regimes legais ou convencionais de comunhão (art. 1695/1 do Código Civil), quer para o caso de o regime de bens ser o da separação (art. 1695/2 do Código Civil). Compreende-se, por esta razão, que se afirme (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil cit., p. 627) que, ao contrário do regime previsto no art. 740 do CPC, a observar nas hipóteses de execução movida contra um dos cônjuges (por dívida própria) em que sejam penhorados bens comuns – e que, por isso, apenas faz sentido se existir um património comum –, o incidente de comunicabilidade da dívida “é aplicável qualquer que seja o regime de bens do casamento.”
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1).2. O incidente em questão pode ser suscitado tanto pelo exequente (art. 741 do CPC) como pelo cônjuge executado (art. 742 do CPC), interessados em alegar a comunicabilidade da dívida, contra o cônjuge do executado.
É pressuposto comum às duas hipóteses que a dívida conste de título diverso de sentença (art. 741/1 e 742/1). Significa isto, a contrario, que se o título executivo for uma sentença, não deve ser admitida, em sede executiva, a alegação da comunicabilidade. Nesse caso, sendo a dívida comum, restará ao credor a possibilidade de propor nova ação declarativa contra o cônjuge não condenado, tendente a demonstrar a comunicabilidade da dívida (RG 9.05.2019, 204/16.4T8CHV-D.G1, António Barroca Penha) e ao cônjuge condenado a de reclamar, no momento da partilha, a compensação devida ao seu património próprio pelo pagamento de uma dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges (cf. art. 1689/1 do Código Civil).
Compreende-se esta limitação quando se considere que qualquer um dos interessados já poderia ter suscitado a questão da comunicabilidade da dívida na prévia ação declarativa, conseguindo nela a obtenção de título executivo contra ambos os cônjuges: o credor demandando não apenas o devedor, mas também o seu cônjuge (art. 34/3 do CPC); o devedor, demandado isoladamente, mediante a intervenção principal provocada do seu cônjuge suportada na alegação e prova dos pressupostos da comunicabilidade da dívida (art. 316 do CPC). Sendo esta a ratio da limitação, foi já entendido que, não obstante a letra da lei, “se os termos do processo declarativo não permitirem ou não se compaginarem com este incidente, como sucede no inventário, a comunicabilidade pode ser admitida na execução, mesmo que o título executivo seja a sentença, neste caso a homologatória da partilha” (RC 3.12.2019, 342/09.0TBCTB-J.C1, Carlos Moreira).
É também pressuposto comum às duas hipóteses que a execução tenha sido “movida apenas contra um dos cônjuges”, o que está em conformidade com a própria razão de ser do incidente, que mais não visa, nos termos já referidos, que o alargamento do âmbito subjetivo do título executivo (Maria José Capelo, “Os pressupostos processuais gerais na ação executiva”, Themis, ano IV, n.º 7, 2003, pp. 79-104), de modo a conferir legitimidade passiva subsequente ao cônjuge do executado.
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1).3. Centrando a atenção nos termos do incidente quando suscitado pelo exequente, resulta da parte final do n.º 1 do art. 741 do CPC que o pedido de comunicabilidade da dívida pode ser formulado num de dois momentos: ou no próprio requerimento executivo ou subsequentemente à apresentação deste, até ao início das diligências para venda e execução, sendo que, neste caso, deve constar de requerimento autónomo, a autuar por apenso. Conforme explicam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual cit., p. 627), “não se trata de conceder ao exequente uma opção quanto ao momento de alegação da comunicabilidade da dívida, mas antes de permitir a sua alegação superveniente (em relação ao momento da apresentação do requerimento executivo) quando o exequente tenha tido um conhecimento superveniente dessa comunicabilidade (nomeadamente, porque só durante a execução o exequente se apercebeu de que o executado era casado).”
No requerimento com dê origem ao incidente, o exequente tem o ónus de alegar, de forma substanciada, os factos de que depende a qualificação da dívida como comum – v.g., factos que permitam suportar um juízo valorativo no sentido de a dívida ter constituído um “encargo normal da vida familiar”, ter sido contraída “em proveito comum”, estar “nos limites dos seus [do cônjuge] poderes de administração” ou ter sido contraída no “exercício do comércio” –, assim observando a regra geral que consta do art. 5.º/1 do CPC.
A este propósito, é de notar que, como é entendimento jurisprudencial unânime, “[o] proveito comum do casal não se presume, tendo o autor de o provar, alegando e comprovando os factos que o traduzem” (STJ 12.07.2005, 05B1710, Ferreira Girão); trata-se de “uma questão mista ou complexa, envolvendo uma questão de facto e outra de direito, consistindo a primeira em averiguar o destino dado ao dinheiro representado pela dívida, enquanto a segunda é de valoração sobre se, perante o destino apurado, a dívida foi contraída no interesse comum do casal, preenchendo o conceito legal”, pelo que, assim sendo, “a expressão legal proveito comum traduz-se num conceito de natureza jurídica a preencher através dos factos materiais indicadores daquele destino” (STJ 11.11.2008, 0B3302, Alves Velho; RC 21.10.2014, 582/12.4TBCTB-A.C1, Arlindo Oliveira).
Na sequência, o cônjuge do executado é citado para, no prazo de 20 dias, declarar se aceita a comunicabilidade da dívida, baseado no fundamento alegado, com a cominação de que, se nada disser, a dívida será considerada comum, sem prejuízo da oposição que contra ela venha a deduzir (art. 741/2).
Uma vez citado, o cônjuge do executado pode tomar uma de várias atitudes: (i) nada declarar, o que tem como consequência, por força de uma confissão ficta, a qualificação da dívida como comum, assim se constituindo “automaticamente um título executivo extrajudicial contra o cônjuge, que passa, com base nele, a ser também executado” (Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Coimbra: Geslegal, 2017, pp. 259-260); (ii) declarar que aceita a comunicabilidade da dívida, o que produz o efeito referido e, ademais, valendo como confissão expressa feita à parte contrária, tem efeitos externos (arts. 352, 355/3 e 358/2 do Código Civil) (Lebre de Freitas, A Ação Executiva cit., pp. 259-260); (iii) impugnar a comunicabilidade da dívida, o que se admite que possa fazer também em oposição à execução (Marco de Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 365) ou, tacitamente, através de um pedido de separação de bens comuns que, entretanto, tenham sido penhorados (Lebre de Freitas, A Ação Executiva cit., p. 260).
Na última hipótese, que foi a ocorrida no caso que nos ocupa, seguem-se os termos gerais dos incidentes da instância (arts. 292 a 295 do CPC). Se, a final, a dívida for qualificada como comum, os efeitos serão semelhantes aos previstos na primeira hipótese: a execução prosseguirá também contra o cônjuge, que adquire, por esta via, o estatuto de executado, assim ficando composto um litisconsórcio necessário superveniente (Rui Pinto, A Ação Executiva, reimpressão, Lisboa: AAFDL, 2020, p. 528). A execução deverá prosseguir, em primeira linha, sobre os bens comuns e, subsidiariamente, sobre os bens próprios de qualquer um dos cônjuges. Se antes da qualificação tiverem sido penhorados bens próprios do executado inicial, este poderá requerer a respetiva substituição por bens comuns.
Note-se que a decisão final, que apenas produz efeitos dentro do processo quanto à qualificação da dívida, por força da regra geral da 1.ª parte do n.º 2 do art. 91 do CPC, não constitui, só por si, título executivo, posto que nada declara quanto à existência e valor da obrigação exequenda. Daí que seja entendido que, nestes casos, passa a haver um complexo documental (Rui Pinto, idem), formado pelo título executivo diverso de sentença apresentado pelo exequente e pela decisão judicial de comunicação da dívida ao cônjuge não executado (inicial) e, inerentemente, de extensão da responsabilidade subjetiva pela dívida. No mesmo sentido, na jurisprudência, RG 20.04.2020, 5281/17.8T8GMR-B.G1, José Alberto Moreira Dias. De modo aproximado, Nuno Andrade Pissarra (“O incidente de comunicabilidade de dívidas conjugais”, O Direito, ano 146.º (2014), III, pp. 737‑787), escreve que “[a] decisão do incidente não forma um novo título executivo contra o cônjuge do executado, antes alarga a eficácia subjetiva do título que inicialmente serviu de base à execução. O facto constitutivo da dívida comum encontramo‑lo no título inicial e a decisão do incidente nunca é condenatória.”
Estas considerações permitem-nos uma primeira conclusão: o incidente tem início com o requerimento (inserido no requerimento executivo ou apresentado autonomamente) do exequente e, em caso de procedência, culmina com a decisão de qualificação da dívida como comum. Não sendo esta, portanto, uma pré-existência, afigura-se impróprio, salvo o devido respeito, que é elevado, que o tribunal, na decisão, em lugar de julgar procedente o incidente de comunicabilidade, julgue improcedente o “incidente de impugnação da comunicabilidade.” Este trata-se, porém, de um mero pormenor, que não prejudica em nada a interpretação da decisão recorrida e a compreensão do seu sentido decisório (a qualificação da dívida como comum.
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2).1. Com o que antecede, está dado o mote para entrarmos no cerne da questão decidenda: a qualificação da dívida cujo pagamento coercivo o exequente pretende obter como comum do casal (que foi) constituído pelo executado e pela Recorrente enferma de um error in iudicando?
Antes de avançarmos impõe-se notar que a Recorrente, na oposição que apresentou ao requerimento do Recorrido de comunicabilidade da dívida, não impugnou nenhum dos factos alegados. Mais concretamente, não impugnou a celebração do casamento entre si e o executado, sem convenção antenupcial; a subscrição do aval – ou, com mais rigor, como veremos, da vinculação para aval –, por parte do executado, na constância do casamento; a prática desse ato na qualidade de sócio e gerente da sociedade subscritora; o destino dos rendimentos provenientes desta atividade (suportar as despesas do casal). Na verdade, limitou a sua defesa à alegação de um único facto: a dissolução do casamento, por divórcio, em momento que, apesar de ulterior à subscrição para aval, é anterior ao do preenchimento da livrança apresentada como título exequendo.
Isto explica que, estando o divórcio comprovado documentalmente, como tinha de estar, o Tribunal a quo tivesse considerado como adquiridos todos os factos alegados pelo Recorrido e, nessa medida, centrado a discussão na questão (que é de direito) de saber se, resultando a dívida exequenda do aval dado, pelo executado, numa livrança em branco, o momento que releva para a constituição da dívida exequenda e, consequentemente, para a sua comunicabilidade ao património comum do casal, é o da emissão do título ou o do seu preenchimento. É também esta, pelas razões enunciadas em II., a única questão que constitui objeto do presente recurso.
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2).2.1. Feito este ponto de ordem, prosseguimos dizendo que as dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, qualquer que seja o regime de bens vigente no casamento, são as que se enquadrem nas previsões dos arts. 1691, 1692, b), 2.ª parte, 1693/2 e 1694/1 do Código Civil, que nos permitem distinguir entre dívidas comuns e dívidas comunicáveis.
As dívidas comuns são as que resultam de um ato de vontade negocial de ambos os cônjuges, ainda que anterior ao casamento, ou de um facto praticado por ambos (art. 1691/1, a), 1.ª parte, do Código Civil). As dívidas comunicáveis são as que, resultando de facto praticado apenas por um dos cônjuges, vinculam o outro em resultado da natureza comum dos bens que oneram ou da função económica (comum) que têm na vida do casal.
As dívidas comunicáveis por oneração real são as “que oneram bens comuns (…), quer se tenham vencido antes, quer depois da comunicação dos bens” (art. 1694/1 do Código Civil). São também as que oneram bens doados, herdados ou legados, que tenham ingressado no património comum por força do regime de bens (art. 1693/2 do Código Civil). Como tal, apenas são concebíveis nos regimes de comunhão.
Já as dívidas comunicáveis pela função são: as que resultam de um ato voluntário – o consentimento – do cônjuge que não contraiu a dívida (art. 1691/1, a), 2.ª parte, do Código Civil); na ausência de um ato dessa natureza, ope legis, as que tenham sido contraídas: (i) antes do casamento por qualquer um dos cônjuges em proveito comum; (ii) por qualquer dos cônjuges, antes ou depois da celebração do casamento, para ocorrer aos encargos normais da vida familiar; (iii) na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração; (iv) por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens (art. 1691/1, a) a d)).
Aqui importa abrir um parêntesis para dizer, pelo interesse para a situação decidenda, que o legislador, não obstante proibir que os cônjuges participem na mesma sociedade, em termos de ambos responderem pessoal e ilimitadamente pelas dívidas sociais (arts. 1714/3 do Código Civil e 8.º do Código das Sociedades Comerciais), permite que, vigorando um dos regimes de comunhão, as dívidas comerciais singulares responsabilizem os bens comuns e subsidiária e solidariamente os bens próprios de qualquer um deles (arts. 1691/1, d), e 1695/1).
Constatando isto, Cristina Araújo Dias (Do Regime da Responsabilidade (Pessoal e Patrimonial) por Dívidas dos Cônjuges (Problemas, Críticas e Sugestões, Braga: EDUM, 2007, pp. 328-329) coloca a hipótese de um dos cônjuges ser sócio de uma sociedade de responsabilidade limitada (até o sócio único de uma sociedade por quotas unipessoal), não respondendo, por isso, pessoalmente face aos credores pelas dívidas da sociedade, e de o credor, para garantia da sua posição, exigir a garantia pessoal do seu devedor (p. ex., com a prestação de fiança ou o aval), caso em que não só passa a responder o cônjuge sócio, como também a sua meação no património comum, se casado em regime de comunhão, podendo mesmo suceder que, demonstrando-se que a dívida integra as c) e/ou d) do n.º 1 do art. 1691, sejam responsabilizados os bens comuns e mesmo que o outro cônjuge venha a responder na totalidade pela dívida. Em resultado, conclui que existe uma desarticulação entre este regime da responsabilidade por dívidas decorrente do art. 1691/1, d), com a proibição de os cônjuges constituírem ou participarem em sociedades onde assumam responsabilidade ilimitada.
Encerrado o parêntesis, concluímos este ponto dizendo que uma dívida que não seja enquadrável em qualquer uma das apontadas previsões é, necessariamente, da responsabilidade própria do cônjuge que a contraiu (art. 1692 do Código Civil), o que permite afirmar que “a responsabilidade subjetiva própria do cônjuge que deu causa à dívida é, primariamente, residual perante a responsabilidade subjetiva comum” (Rui Pinto, A Ação Executiva cit., p. 505).
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2).2.2. Por outro lado, como resulta do art. 1690/2 do Código Civil, onde se escreve que “[p]ara a determinação da responsabilidade dos cônjuges, as dívidas por eles contraídas têm a data do facto que lhes deu origem”, o momento relevante é o da constituição da dívida.
Daqui decorre que as dívidas contraídas antes da dissolução do casamento, mas executadas depois, mantêm a qualidade própria ou comum com que nasceram. Neste caso, se os cônjuges estiverem casados em regime de separação de bens, respondem os mesmos bens que responderiam antes; se estiverem casados em regime de comunhão de bens, os bens comuns conservam essa natureza até ao momento da partilha.
Já as dívidas contraídas depois da dissolução do casamento são da exclusiva responsabilidade do (ex-)cônjuge contraente.
Ressalvam-se, porém, desta regra as dívidas “correspondentes a rendas a pagar no âmbito de um arrendamento urbano, em que não pode tomar-se como referência a data da celebração do respetivo contrato, porque, como é sabido, no arrendamento urbano o direito do locador ao pagamento de cada renda – de todas as rendas que vierem a ser devidas por todo o tempo que se mantiver o contrato – vai surgindo com o decurso do tempo, valendo como período supletivo para os sucessivos vencimentos o prazo de um mês” (STJ 3.04.2008, 07B1329, Maria dos Prazeres Beleza).
Por outro lado, nos termos do art. 1688 do Código Civil, as relações patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução do casamento. O divórcio dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da dissolução por morte, salvas as exceções consagradas na lei (art. 1788). Esses efeitos produzem-se com o trânsito em julgado da sentença que decreta o divórcio. No que tange às relações patrimoniais entre os cônjuges, retrotraem-se à data da propositura da ação (art. 1789/1 do Código Civil). Podem ainda retroagir à data em que se deu a sua separação de facto, desde que esta esteja provada no processo (art. 1789/2 do Código Civil). Quanto a esta questão, Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, III, 6.ª ed., Coimbra: Almedina, 2015, p. 261) defende que “não se afigura que tenha consistência a opinião segundo a qual esta retroação de efeitos ainda possa ter lugar no próprio processo de inventário. Na verdade, não pode ir-se para além do que o próprio preceito estabelece, e é indubitável que a “sentença” e a prova “no processo” ali referidas se reportam tão-só à ação de divórcio e não ao processo de inventário (…).” Em sentido diverso, João Espírito Santo, “O divórcio, a fixação da cessação da coabitação conjugal e o critério legal da partilha”, ROA, ano 77, jan.-jun. 2017, pp. 221-239.
Os efeitos patrimoniais do divórcio só podem, porém, ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença (art. 1789/3 do Código Civil).
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2).2.3. Perguntar-se-á com que bens respondem os ex-cônjuges por dívida comum que apenas vem a ser executada depois da dissolução do casamento, nos casos de divórcio ou separação.
Tendo vigorado o regime da separação de bens, a resposta não tem qualquer dificuldade: respondem os mesmos bens que responderiam antes da separação.
Nos regimes de comunhão, importa distinguir dois momentos: o anterior à partilha; e o subsequente à partilha.
No primeiro, os bens integrados na comunhão mantêm a sua natureza comum.
Na verdade, como se sabe, a comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade coletiva. Trata-se de uma situação jurídica que, manifestamente, não cabe na compropriedade dela se distinguindo de forma clara e inequívoca. Essa distinção assenta, além do mais, no facto de o direito dos contitulares não incidir sobre cada um dos elementos que constituem o património – mas sobre todo ele, como um todo unitário.
Aos titulares do património coletivo não pertencem diretos específicos – designadamente uma quota – sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente, pelo que, na partilha dos bens destinada a pôr fim à comunhão, os respetivos titulares apenas têm direito a uma fração ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objeto da partilha, o que bem se compreende, visto que existe um direito único sobre todo o património.
Até à respetiva divisão, sob a forma de partilha, os cônjuges são, pois, detentores de uma pars quota sobre uma universalidade em titularidade indivisa, uma quota ideal cujo conteúdo se concretiza em pars quanta depois da divisão.
A situação de indivisão (pós-comunhão), embora por natureza transitória, destinada que está à liquidação, com a qual cada um dos ex-cônjuges adquirirá a sua meação nos bens comuns, pode perdurar indefinidamente, suscitando os problemas próprios das relações de contitularidade, pelo que se justifica, quanto à respetiva administração, a aplicação das regras da compropriedade, por força do disposto no art. 1404 do Código Civil, certo como é que já não vigoram as regras próprias do direito de família que disciplinam os regimes de comunhão.
Isto não significa, porém, que com a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, na sequência do divórcio (ou da separação judicial de pessoas e bens), a comunhão se converte, ipso facto, numa situação de compropriedade; até que seja feita a partilha, existe uma situação de indivisão do património, tendo cada um dos ex-cônjuges direito a uma meação desse todo (indivision post-communautaire) e não a uma quota ideal de cada um dos bens que o compõem, atomisticamente considerado. A propósito, na doutrina, Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 485; Francisco Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Coimbra: UC, 2016., p. 767; Cristina Araújo Dias, Do Regime da Responsabilidade cit., pp. 922-923; Esperança Pereira Mealha, Acordos Conjugais para Partilha dos Bens Comuns, Coimbra: Almedina, 2004, pp. 77-78; Eva Dias Costa, “Breves considerações acerca do regime transitório aplicável às relações patrimoniais dos ex-cônjuges entre a dissolução do casamento e a liquidação do património do casal”, Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Ano 2 (2013), n.º 13, pp. 14813-14837, disponível em www.cidp.pt. Na jurisprudência: STJ 29.06.2004, 04A2062, Azevedo Ramos; STJ 26.04.2012, 33/08.9TMBRG.G1.S1, Serra Baptista; RC 8.11.2011, 4931/10.1TBLRA.C1, Henrique Antunes; RC 11.06.2016, 3146/12.9TBLRA.C1, Luís Cravo; RP 15.04.2021, 17294/18.8T8PRT-A.P1, Filipe Caroço; e RP 18.11.2021, 1403/20.0T8PVZ.P1, Paulo Dias da Silva; RG 19.01.2023 (191/21.7T8CMN.G1), relatado pelo Juiz Desembargador Pedro Maurício, aqui 1.º Adjunto.
Após a partilha, se a dívida não for considerada nessa sede, não havendo já património comum (os bens comuns ingressaram, por efeito deste ato, no património próprio de cada um dos ex-cônjuges), várias hipóteses são cogitáveis, conforme expõe Cristina Araújo Dias, Do Regime da Responsabilidade cit., pp. 813-817. Uma hipótese será a de recorrer à solução prevista no art. 1689/2 e 3 do Código Civil para a partilha, ou seja, não havendo bens comuns responderão pela dívida os bens próprios de cada um dos cônjuges de acordo com as regras do regime de bens – solidariamente se era de comunhão ou conjuntamente se o regime era o de separação de bens, donde resulta que, na primeira hipótese, cada um dos cônjuges responde solidariamente pela dívida, podendo, se um deles respondeu integralmente, ter direito de regresso face ao outro cônjuge (e tratar-se-á aqui, por não haver património comum, de estabelecer créditos entre cônjuges), e que, na segunda, o credor apenas poderá exigir a cada um dos cônjuges o pagamento de metade. Outra hipótese, será a de aplicar, por analogia com a partilha sucessória, o art. 2098 do Código Civil. Outra ainda será a de responsabilizar solidariamente os cônjuges por recurso às regras da liquidação das sociedades civis, ou seja, nos termos do art. 997 do Código Civil, e, assim, tal como os sócios respondem pessoal e solidariamente pelas dívidas sociais, responderão os cônjuges solidariamente pelas dívidas comuns ainda não pagas depois de se efetuar a partilha do património comum.
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3).1. O que antecede permite-nos compreender, a um tempo, a importância da resposta à questão de saber em que momento foi contraída, pelo executado, a dívida exequenda e, a outro, a relevância da qualificação da dívida para efeitos da subsequente tramitação da ação executiva, isto apesar de já ter ocorrido a dissolução do casamento entre o executado e a Recorrente.
Prosseguindo, diremos que está em causa aquilo que, em termos gerais, podemos descrever como a assinatura aposta, para valer como aval, num formulário de livrança que, nesse momento – o da subscrição e entrega a outrem –, não está preenchido quanto aos seus elementos (valor, data de emissão, local e data de pagamento), mas que poderá vir a sê-lo, em determinadas circunstâncias, de acordo com critérios previamente definidos entre o portador (credor) e os potenciaisvinculados cambiariamente, sejam estes o subscritor/emitente (devedor) e os avalistas (garantes).
A utilização do verbo poder no futuro do indicativo evidencia que, em semelhantes situações, um formulário de livrança com as características apontadas não está destinado a desempenhar, quando preenchido com os elementos essenciais em falta, a função que é própria dos títulos de crédito, decorrente da sua abstração – a circulação, através de endosso –, mas uma outra, relacionada com as circunstâncias que permitem que o portador proceda ao seu preenchimento.
Quando, como sucede no caso, essas circunstâncias consistem no incumprimento da obrigação que recai sobre a sociedade subscritora/emitente, de que os avalistas são sócios e gerentes, de restituir ao portador o tantundem resultante de um contrato de mútuo entre ambos celebrado, sendo este o parâmetro a observar no preenchimento, percebemos que a função desempenhada pelo formulário é, afinal, a de servir de garantia (lato sensu) do cumprimento daquela obrigação, por duas vias: em primeiro lugar, através da pressão que a posse e a possibilidade de preenchimento do formulário exerce sobre a subscritora e os avalistas – sócios e gerentes daquela e, portanto, as pessoas físicas responsáveis pela sua administração e, bem assim, pela formação e exteriorização da sua vontade – para que a obrigação seja cumprida (função coerciva); em segundo lugar, através da vinculação dos avalistas, com o seu património pessoal (cf. art. 601 do Código Civil), ao cumprimento da obrigação da subscritora (função de garantia stricto sensu).
Estamos, portanto, perante um exemplo do fenómeno habitualmente designado como livrança-garantia ou livrança-caução, comum no tráfico bancário, o qual, como explica Filipe Cassiano dos Santos (“Livrança em branco, pacto de preenchimento e aval”, Revista de Direito Comercial, Liber Amicorum, 2020, pp. 191-319), embora não seja estruturalmente uma caução ou uma garantia, permite o reforço da posição credora do banco. Chamando a atenção para as vantagens do mecanismo, não apenas para o banco, mas também para a sociedade financiada e respetivos sócios, vide Pedro Pais de Vasconcelos, “Aval em branco”, Revista de Direito Comercial, 2018, pp. 373-421.
Compreende-se que assim seja: uma vez preenchido o formulário com os elementos essenciais exigidos para que se assuma como uma livrança (art. 76 da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, resultante das Convenções de Genebra de 7.06.1930, aprovada para ratificação pelo Decreto n.º 23 721, de 29.03.1934, aplicável às livranças ex vi art. 77, último §), o aval passa a desempenhar a função que lhe é própria: a de garantia pessoal das obrigações, típica dos títulos de crédito, designadamente das letras, das livranças e dos cheques, no que apresenta uma similitude com a fiança. Tal como sucede com esta garantia pessoal, no aval é todo o património do garante que se torna responsável pelo pagamento de uma dívida alheia (arts. 601 e 617/1 do Código Civil).
Ademais, o aval, na medida em que não constitui uma obrigação acessória da obrigação garantida, mantendo, em relação a ela, uma certa autonomia, ao contrário do que sucede com a fiança, apresenta um beneficio acrescido. Na verdade, a obrigação do fiador, por ser acessória da obrigação principal (art. 627/2 do Código Civil), acompanha a invalidade e a extinção desta (arts. 632 e 651 do Código Civil), pelo que o fiador pode invocar perante o credor os meios de defesa do afiançado (art. 637 do Código Civil). A acessoriedade é uma característica intrínseca da fiança, tanto assim que não pode ser afastada por vontade das partes, sob pena de ser posta em causa a própria natureza do instituto (cf. Paulo Sendim / Evaristo Mendes, A natureza do aval e a questão da necessidade ou não de protesto para acionar o avalista do aceitante, Coimbra: Almedina, 1991, p. 37). O avalista, apesar de “obrigado da mesma maneira” que o subscritor avalizado (art. 32, § 1.º, da LULL), não pode invocar que a obrigação principal (a que liga o subscritor avalizado ao portador do título de crédito) é “nula por qualquer razão que não seja um vício de forma” (art. 32, § 2.º, da LULL). Considerando que o segmento “por qualquer razão” traduz com pouca técnica a realidade concernente à não existência de obrigação cambiária do avalizado, ou porque se constituiu e é nula ou foi anulada, ou porque nem se chegou a constituir, dele retiramos que o aval, apesar de acessório do negócio cambiário avalizado, não obedece em termos substantivos à regra accessorium sequitur principale, o que nos permite concluir, com recurso à terminologia de Ferrer Correia (Direito Comercial, III, Coimbra: Almedina, 1966, p. 204), que a referida acessoriedade é imperfeita: a obrigação derivada do aval é materialmente autónoma relativamente à obrigação do avalizado, embora dependente desta última quanto ao aspeto formal – e apenas quanto a este.
A autonomia do aval traduz-se num regime segundo o qual o avalista é responsável pelo pagamento da obrigação cambiária própria como avalista, que se define pela do avalizado, “mas que vive e subsiste independentemente desta” (Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial – Títulos de Crédito, Lisboa: AAFDL, 1990, p. 127), o que leva mesmo a que Paulo Sendim / Evaristo Mendes (ob. cit., p. 51 e ss.), secundados por Romano Martinez / Fuzeta da Ponte (Garantias de Cumprimento, Coimbra: Almedina, 1994, p. 46), questionem a verdadeira natureza do aval como garantia pessoal, pois o avalista passa a responder como devedor de uma obrigação própria.
Independentemente da questão, de natureza essencialmente teórica, sempre decorre dessa autonomia que o avalista não pode opor ao portador do título as exceções fundadas na relação subjacente, ainda que esse portador e o obrigado cambiário avalizado estejam entre si no plano das relações imediatas (cf. art. 17). Como a propósito escreve Pinto Furtado (Títulos de Crédito, Coimbra: Almedina, 2000, pp. 153–154), “o subscritor avalizado, que esteja em relação imediata com o portador, poderá opor-lhe todos os meios de defesa que se baseiem na relação fundamental, ao passo que o avalista, apesar de obrigado da mesma maneira da pessoa avalizada, não poderá invocar esses meios, porque não é sujeito de tal relação e não estará, assim, em relação imediata com o portador, pelo só facto de ser avalista de um obrigado imediato do portador.” No mesmo sentido, Paulo Sendim (Letra de Câmbio, II, Porto: UCP, 1980, p. 842) nota que “o adquirente da letra, mesmo como portador imediato, em relação à operação avalizada, está sempre em situação de portador mediato, face ao seu aval, que o garante com um valor correspondente, mas independente, livre das exceções que, porventura, se formem na operação garantida”. A explicação é simples: sendo a obrigação do avalista autónoma da do avalizado, aquele é alheio à relação que existe entre este e o portador imediato do título, desde logo por decorrência do princípio da relatividade das obrigações (art. 406/2 do Código Civil).[3]
O que antecede evidencia que existem aqui dois momentos relevantes: o da subscrição do formulário, assim se exprimindo a vontade de vinculação como avalista, uma vez verificada a condição de preenchimento prevista no acordo – que Evaristo Mendes (“Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade de sócio. Apontamento”, Revista de Direito das Sociedades, ano VII (2015), 3/4, pp. 587-616) denomina de vinculação jurídica de pré-aval e Carolina Cunha (Aval e Insolvência, Coimbra: Almedina, 2017, p. 21) de simples embrião de uma vinculação cambiária; e o do preenchimento.
No hiato entre os dois momentos não há livrança propriamente dita. Como salienta Evaristo Mendes (loc. cit., pp. 597-598), “a própria LULL afirma expressamente que tais documentos de livrança, enquanto não tiverem inscrito o montante a pagar, não valem como livranças (artigo 76) – isto é, não são títulos de crédito (especificamente títulos cambiários), sujeitos ao regime nela estabelecido. E, portanto, as declarações de aval também não valem, em termos técnico-jurídicos, como avales, com as características e o regime a que a LULL os sujeita. Quando muito, poderá falar-se em títulos provisoriamente incompletos, em livranças em formação ou pré-livranças, e em avales em formação ou pré-avales.”
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3).2. O referido fenómeno da livrança-garantia ou livrança-caução tem suscitado várias questões jurídicas, em especial no que tange à possibilidade de desvinculação (unilateral) por parte do avalista que deixou, no ínterim entre a subscrição e o preenchimento, de ser sócio da sociedade avalizada, as quais estiveram na génese do AUJ n.º 4/2013, Revista n.º 5903/09.4TVLSB.L1.L1.S1, relatado por Gabriel Catarino, e publicado no DR, Série I, de 21 de janeiro de 2013,.
A exegese desta aresto, feita à luz do decidido nos respetivos acórdão recorrido e acórdão fundamento e da situação de facto considerada (uma realidade contratual de pré-preenchimento do título), indica-nos que o STJ partiu do pressuposto de que o título em branco incorpora já vinculações cambiárias e que o chamado “avalista em branco” é já – isto é, antes do preenchimento do título – um obrigado cambiário e o dito aval uma vinculação cambiária, assim se explicando que, para dar resposta à questão de direito apreciada, não tenha sentido necessidade de distinguir entre o aval cambiário prestado em título completo e o aval em branco.[4]
Esta leitura do AUJ não parece, porém, compaginar-se com a distinção que traçamos entre livrança e livrança em branco e aval e vinculaçãopara aval, o que explica não apenas as críticas que lhe foram dirigidas pela doutrina subsequente (Filipe Cassiano dos Santos, loc. cit., pp. 205-210, Januário Gomes, “O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco…”, CDP, n.º 43, jul./set. de 2013, pp. 15-47, e Carolina Cunha, "Quem vai, vai, quem está, está"? A tutela do sócio que permanece na sociedade face à garantia prestada através de “aval em branco”, Revista de Direito Comercial, Liber Amicorum, pp. 1099-1158), mas também o afastamento de parte da jurisprudência subsequente em relação à fórmula jurisprudencial uniformizada, conseguido através de uma interpretação literal desta que circunscreve a sua aplicação ao aval (em sentido próprio) enquanto negócio cambiário, assim excluindo do seu âmbito a vinculação para aval. A título de exemplo, RP 27.02.2014, 3871/12.4TBVFR-A.P1, José Manuel Araújo de Barros, RL 20.12.2017, 732/14.1TBTVD-A.L1-7, Luís Pires de Sousa, e RL 22.06.2023 (4839/21.5T8FNC-B.L1-2), Paulo Fernandes Silva.
A problemática voltou a ser apreciada pelo Pleno das Secções Cíveis do STJ que, no julgamento ampliado da revista interposta do último aresto citado, por Acórdão de 20 de novembro de 2024, 4839/21.5T8FNC-A.L1.S1, relatado por António Barateiro Martins, ainda não publicado no Diário da República, procedeu a uma cuidada distinção entre o aval e a vinculação para aval. Aqui a respigamos:
“Em síntese, antes de preenchida a letra/livrança, o “aval” (o “saque”, o “aceite”, o “endosso”, a “emissão da livrança”) não existe enquanto negócio jurídico cambiário, existindo “apenas” a vinculação cambiária em estado embrionário (através da assinatura aposta na letra/livrança) e a vinculação jurídica constante do essencial acordo/pacto de preenchimento a que alude o art. 10.º da LU e o inerente poder fáctico de o portador da letra/livrança a poder vir a preencher.
Daí que, sendo a vinculação do avalista em branco pré-cambiária – o título só se forma com o preenchimento do documento com os seus elementos essenciais, só aí surgindo as obrigações cambiárias – a questão de saber se um sócio (da sociedade que emitiu o documento) que subscreveu o documento em branco (subscrição destinada a valer como aval cambiário) se pode desvincular unilateralmente, até ao preenchimento do título, não possa/deva encontrar a sua solução no regime das obrigações cartulares/cambiárias.
Quer consideremos, com a doutrina tradicional, que as obrigações cambiárias resultantes das letras/livranças se caracterizam pela incorporação do direito no título, pela literalidade, pela independência reciproca, pela autonomia e pela abstração (com tudo o que tais “fórmulas condensadas” significam), quer consideremos, com a doutrina mais recente, que o que caracteriza os negócios jurídicos cambiários é tão só a sua natureza constitutiva, incondicionabilidade e não-indicação da causa, temos sempre que os negócios cambiários se esgotam em puros efeitos de direito (ou seja, que não contêm a indicação da causa, que os seus efeitos jurídicos se produzem com abstração da sua causa) e que tais efeitos não
podem ser submetidos a uma qualquer condição (como resulta do art. 1.º/2 da LU para o saque, que tem uma função matricial no direito cambiário; do art. 12.º/1 para o endosso, que, na sua função de transmissão do direito, deve ser puro e simples; e do art. 26.º/1 para o aceite, que também é puro e simples), o que significa que circunstâncias exteriores ao título não podem ser invocadas para, como causas resolutivas, extinguir o aval (como qualquer outra obrigação cartular), pelo menos no plano das relações mediatas, que é onde as caraterísticas da literalidade e da abstração funcionam em pleno (cf. art. 17.º da LU).
(…)
Ora, é tudo isto – não constituindo, repete-se, as vinculações em branco obrigações cambiárias – que não é transponível e aplicável às “subscrições em branco”.
Existindo uma subscrição com vista a aval, o vínculo da subscrição se vir a tornar em aval aquando do complemento do título é assumido no acordo/pacto de preenchimento (em que o subscritor aceita o preenchimento em determinados termos) (…)”
3).3. O que antecede permite-nos dar razão à Recorrente quando afirma que a obrigação cambiária apenas se veio a constituir no segundo momento – o do preenchimento da livrança; mas também nos permite concluir que no primeiro momento (o da assinatura da livrança) já havia surgido uma vinculação do executado – a vinculação para aval.
Analisemos agora esta com mais detalhe.
Escrevemos já que a vinculação para aval assume aqui uma função de garantia (lato sensu), numa dupla dimensão: em primeiro lugar, mediante a pressão que exerce sobre o vinculado para que atue a vontade sociedade devedora no sentido do cumprimento da obrigação por esta assumida perante o credor; em segundo lugar, pela possibilidade que confere ao credor de, mediante o preenchimento da livrança, através do funcionamento do aval (em sentido próprio), conseguir obter a satisfação do seu crédito através da execução do património do avalista – portanto, de pessoa diferente da sociedade devedora.
Apenas com o preenchimento da livrança é que a garantia assume esta segunda dimensão. Até lá não passa de um simples mecanismo de coerção ao cumprimento.
Isto não significa, bem entendido, que a subscrição de um título em branco e a sua entrega ao credor, com a concomitante celebração de um pacto de preenchimento, seja um ato desprovido de efeitos jurídicos. Já José Gabriel Pinto Coelho (Lições de Direito Comercial, II, Lisboa, 1943, pp. 31 e ss.) escrevia que esse ato, que definia como um princípio de obrigação cambiária, “faz imediatamente nascer certos efeitos de direito, importa um verdadeiro ato jurídico entre o signatário originário e o possuidor do título.” O primeiro fica adstrito a assumir a obrigação cambiária nos termos previamente ajustados entre os dois, que deverá observar no ato de preenchimento. É isto que explica que alguns os autores se refiram à vinculação para aval como um pré-aval ou um embrião de aval.
Cremos mesmo que a partir do momento em que assumimos que do art. 10.º da LULL, preceito que Portugal adotou sem qualquer reserva, resulta, de acordo com a lição de Pedro Pais de Vasconcelos (“Aval em branco”, Revista de Direito Comercial, 2018, pp. 373-422), que “o saque, o aceite, o endosso, o aval na letra e a subscrição na livrança vinculam os seus autores ainda antes do preenchimento completo do título” e que o título “pode ser preenchido por qualquer dos seus portadores a todo o tempo desde que esteja completo ao tempo em que é exigido o seu pagamento”, temos de concluir, necessariamente, que no momento da subscrição do título em branco é constituído um vínculo jurídico entre o portador e os (potenciais) futuros obrigados cambiários.
Precisando esta ideia, acrescentamos que esse vínculo assenta na convenção que entre todos é celebrada e que permite que o portador, em determinadas circunstâncias futuras, complete o título e o apresente a pagamento. É a existência dessa convenção – habitualmente denominada de pacto de preenchimento (Pedro Pais de Vasconcelos, loc. cit., p. 393) – que permite determinar o objeto da subscrição para aval – de tal modo que, na sua falta, esta seria nula, nos termos do disposto no art. 280 do Código Civil (Evaristo Mendes, loc. cit., p. 598) – e que permite distinguir o título em branco do título simplesmente incompleto, que mais não é que um escrito que, por não se destinar a ser preenchido, não poderá nunca valer cambiariamente. Assim, Vittorio Angeloni, La Cambiale e Il Vaglia Cambiario, 4.ª ed., Milano: Giuffrè, 1964, p. 147, e Pavone La Rosa, Cambiale, na Enciclopedia del Diritto, V, Milano: Giuffrè, p. 859. Também, entre nós, Filipe Cassiano dos Santos, loc. cit., pp. 258-259, que escreve:
“Apenas se pode admitir que um documento que não está completo venha a ser completado de modo a ser formado um título com todos os requisitos necessários, se houver, na esfera jurídica de alguém, um poder de preenchimento, independentemente da fonte dele.
Este poder deve ser atribuído por aqueles que se vinculam “em branco” num pacto. Se a subscrição do documento que não tem todos os elementos da letra ou da livrança não for acompanhada de uma concreta atribuição de poderes que sirva de base à determinação dos elementos em falta e, portanto, que supra a omissão do documento, não há letra ou livrança em branco, mas antes um documento que não é um título de crédito e é, como tal, nulo ou inexistente, por lhe faltarem os elementos essenciais impostos imperativamente pela lei. O acordo ou pacto de preenchimento é necessário à emissão de letra ou livrança em branco e, sem ele, há um título incompleto e que não pode produzir efeitos nem pode vir a ser completado.”
Podemos, assim, afirmar que é na vontade das partes consubstanciada no pacto de preenchimento que radica o poder do portador preencher a letra.
Como a doutrina tem vindo a entender, trata-se de um direito patrimonial de natureza extracartular – ou seja, o seu conteúdo não faz parte da literalidade do documento; antes está dependente da relação subjacente que existe entre o subscritor do títuloe aquele a quem ele é entregue. Circula com a letra, transferindo-se para os sucessivos portadores dela, até ao momento do seu exercício, em que o portador passa a ser titular do direito cambiário (cf. Vittorio Angeloni, ob. cit., p. 147, e Pavone La Rosa, ob. cit., p. 860).
A face passiva do pacto de preenchimento é a sujeitação do vinculado “ao exercício do poder potestativo de preenchimento do título por qualquer dos portadores, situação que aceitaram e na qual se colocaram conscientemente ao assinarem o título em branco e ao entregarem voluntariamente” e, bem assim, “ao (…) pagamento pelo valor e na data de vencimento com que o título vier a ser preenchido, conforme a qualidade em que o assinam e a sua posição na cadeia cambiária, só podendo opor a quem exige o seu pagamento uma convenção executiva, que com ele tenham celebrado” (Pedro Pais de Vasconcelos, loc. cit., pp. 384-385).
Mas este estado de sujeição do subscritor em branco convive com um direito que lhe assiste: o de que o preenchimento do título seja feito com respeito pelo que consta do pacto de preenchimento. Se assim não suceder, ocorre aquilo que se designa de preenchimento abusivo. Havendo preenchimento abusivo, o subscritor, uma vez demandado, pode opor esse facto como exceção. Isto mais não é que um corolário do princípio da pontualidade no cumprimento das obrigações, entre nós consagrado no art. 762 do Código Civil.[5]
Estas considerações permitem-nos afirmar que o pacto de preenchimento é um negócio jurídico bilateral, mas também nos reforçam a ideia de que dele resulta apenas, para o subscritor em branco, a obrigação de, no futuro, verificado determinado evento, ficar vinculado cambiariamente, nos termos em que o título vier a ser preenchido pelo portador. A obrigação cambiária apenas nasce quando o título vem a ser totalmente preenchido. É esta a única leitura compaginável com a literalidade dos títulos de crédito e conforme ao “sentido profundo da estatuição constante do art. 1.º da LULL”, como escreve Pinto Furtado (Títulos de Crédito, cit., p. 145). No mesmo sentido, José Gabriel Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial cit., p. 33.
Isto mesmo é explicado por Carolina Cunha (Manual de Letras e Livranças, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 279-280) quando, confrontando a tese segundo a qual o subscritor de um título em branco fica vinculado cambiariamente no momento da aposição da assinatura (tese da emissão), defendida por autores como Abel Delgado (Lei Uniforme cit., p. 264), com a tese de que a vinculação cambiária só surge com o preenchimento da letra (tese do preenchimento), escreve:
“Deste uma perspetiva meramente conceptual, a tese do preenchimento leva vantagem. Sendo solenes os negócios cambiários, sem dúvida que o nascimento da obrigação cambiária (também) deverá ficar dependente da observância dos requisitos que lei exige (no art. 1.º LU) para a existência do título – o que apenas se verifica no momento do preenchimento.
Por outro lado, patentes as dificuldades explicativas da tese da emissão quanto a certas vertentes do atual paradigma de utilização de títulos em branco. Como vimos, a praxis privilegia a entrega de letras e livranças em branco como garantia face a situações de incerteza, maxime a relacionada com o cumprimento de contratos duradouros. Ora, na medida em que as partes, através do acordo que acompanha a entrega, condicionam o preenchimento do título à verificação do incumprimento do contrato, e na medida em que semelhante evento se perfila não apenas como futuro, mas também como eventual, parece exagerado sustentar que o devedor assume uma obrigação “definitiva” e “cambiária” desde o momento em que subscreve o título.
Se, por hipótese, o contrato vem a ser corretamente cumprido e a extinguir-se satisfatoriamente, procedendo o credor à destruição do título ou devolvendo-o à contraparte, avulta o paradoxo de sustentar que esta permaneceu cambiariamente obrigada durante todo aquele tempo.”
Partindo daqui, ficamos habilitados a concluir que a garantia dada pelo aval – através da vinculação dos avalistas, com o seu património, ao cumprimento da obrigação do subscritor – também apenas é constituída no momento do preenchimento. Até lá, percute-se, existe apenas a sujeição à sua constituição, uma vez verificado o facto – incumprimento das obrigações contratuais da avalizada para com o portador – previsto no pacto de preenchimento.
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3).4. O que acabamos de escrever evidencia-nos que, conforme assinala Carolina Cunha (Manual cit., p. 284), o portador de um título cambiário em branco mais não tem, tanto formal como materialmente, no confronto com o vinculado para aval,que a pretensão de constituição da garantia de pagamento de natureza cartular, a qual está condicionada a um evento futuro e incerto – o incumprimento da obrigação contratual assumida pelo avalizado – que, no caso, consiste na restituição do tantundem mutuado. Se este evento não vier a ocorrer, a garantia pura e simplesmente não se constituirá. Se, pelo contrário, o evento ocorrer, o portador ficará autorizado a proceder ao preenchimento do título, adquirindo, nesse momento, o “pleno estatuto de credor cambiário” (Manual cit., p. 285), e, nessa qualidade, a de beneficiário da garantia que é conferida pelo aval.
Ora, isto permite equiparar o portador de um título em branco ao credor sob condição suspensiva. Também em relação a ele faz sentido dizer-se que “não tem um direito exercitável”, muito embora haja já uma vinculação à produção do efeito jurídico visado, uma vez ocorrido o evento condicionante, e que, nesse momento, a aquisição do direito já não pode ser impedida pelo vinculado (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, reimpressão, Coimbra: Almedina, pp. 378-379). Neste sentido, na jurisprudência, RC 4.04.2017, 89/08.4TBVLF.C1, Sílvia Pires. Na doutrina, Carolina Cunha, Manual cit., pp. 283-284.
Compreende-se, assim, que se entenda que, na pendência da condição, o portador do título em branco não possa lançar mão da impugnação pauliana contra atos do avalista, mas tão só exigir-lhe a prestação de caução (art. 614/2 do Código Civil) e que, uma vez verificada a condição, com o preenchimento do título, possa já recorrer à impugnação pauliana (RC 4.04.2017, 89/08.4TBVLF.C1). Como se compreende, também, que, em caso de insolvência do (ainda) vinculado para aval, o crédito do portador seja reconhecido como condicional, ut art. 50 do CIRE, conforme entendido em STJ 11.05.2013, 3057/11.5TBGDM-A.P1.S1, António Abrantes Geraldes, e sustentado, na doutrina, por Carolina Cunha (Aval e Insolvência cit., 48).
Aqui chegados, diz o art. 276 do Código Civil que “[o]s efeitos do preenchimento da condição retrotraem-se à data da conclusão do negócio, a não ser que, pela vontade das partes ou pela natureza do ato, hajam de ser reportados a outro momento.”
No citado RC 4.04.2017 foi entendido, a propósito da impugnação pauliana pelo portador do título em branco, que “[v]erificada a condição, tal como verificado o incumprimento da obrigação garantida, caso tenham ocorrido entretanto atos dissipadores do património do avalista, o credor já poderá recorrer à impugnação pauliana para poder executar os bens alienados. Tal como ocorre nos créditos sob condição suspensiva, em que a verificação da condição faz retroagir o direito à data da celebração do negócio – art.º 276 º do C. Civil –, também nesta situação, a verificação do facto que permite ao credor preencher a livrança – o incumprimento da obrigação garantida pela livrança – determina, para efeitos de verificação do requisito previsto no art.º 610º, a), do C. Civil, que se considere que o crédito se constituiu no momento da aposição do aval.”
Não é este, porém, o entendimento de Carolina Cunha, para quem, uma vez verificada a condição e preenchido o título, o portador da letra em branco fica habilitado a recorrer à ação pauliana para impugnar atos entretanto praticados pelo avalista, mas apenas enquanto titular de um crédito posterior ao ato a impugnar, tendo, portanto, o ónus de provar que este foi realizado dolosamente pelo avalista com o fim de impedir a satisfação do seu futuro direito (art. 610, a), do Código Civil, in fine). Quid inde?
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3).5. A nosso ver, sendo a regra da retroatividade prevista no citado art. 276 do Código Civil supletiva, posto que o legislador reconhece aos contraentes a faculdade de estipularem a não retroatividade, designadamente acordando que os efeitos do preenchimento da condição se produzam apenas a partir da ocorrência do evento condicionante, a solução deve ser encontrada no pacto de preenchimento. A interpretação das declarações de vontade que formam este, a realizar com observância do disposto nos arts. 236 e 238 do Código Civil – este último no caso de ter sido observada a forma escrita –, apresenta-se, portanto, como fundamental para percebermos se as partes afastaram a regra da retroatividade.
Esta tarefa não se esgota no teor literal das declarações por que se forma o contrato. Como referido em RG 7.12.2023, 3475/20.8T8VNF.G1, do presente Relator, “inclui um segundo momento lógico para a verificação do consenso, resultado de um processo hermenêutico que consiste na comparação entre os sentidos juridicamente relevantes de cada uma das declarações contratuais e na averiguação acerca da sua concordância. Além disso, em conformidade com a lei (art. 236, na alusão ao comportamento do declarante), o teor da declaração, a fórmula escrita de que o declarante se serviu para exprimir o seu pensamento, deve ser integrada pelo conjunto das circunstâncias de facto, quer anteriores à emissão da declaração de vontade, quer concomitantes dela, que sejam de molde a fazer luz sobre as verdadeiras intenções do autor. De facto, interpretar implica também esclarecer o sentido dos sinais utilizados através do recurso a critérios de significado linguístico. Permite-se um recurso amplo ao material interpretativo e às circunstâncias. Por conseguinte, admite-se levar em linha de conta elementos extrínsecos tais como o comportamento das partes, anterior, contemporâneo ou posterior à conclusão do contrato.”
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3).6 Descendo então ao caso dos autos, temos que existem dois elementos que nos levam a entender que a vontade das partes foi no sentido de que a garantia cambiária apenas se consideraria constituída no momento do incumprimento da sociedade mutuária, de que o executado era sócio e gerente.
Referimo-nos, em primeiro lugar, ao facto de o pacto, condicionando a constituição da garantia ao incumprimento da obrigação de restituir o tantundem que para a sociedade avalizada resultou do contrato de mútuo, não conferir ao credor, portador da livrança em branco, a faculdade de fazer retroagir os efeitos da constituição da garantia do aval a momento anterior, como sucederia se nele tivesse ficado prevista a possibilidade de a livrança ser preenchida, quanto à data de vencimento, com a data da sua subscrição. E referimo-nos, em segundo lugar, ao facto de o Recorrente, uma vez verificado o incumprimento da dita obrigação contratual da sociedade avalizada, ter preenchido a livrança apondo, como data de emissão, a do evento condicionante, assim confirmando que era esta, de facto, a vontade das partes.
Como corolário de tudo isto, no caso, os efeitos da verificação do evento condicionante da constituição da garantia dada pelo aval não podem retroagir à data da vinculação para aval. Eles apenas se produziram na data aposta no título como sendo a da sua emissão. Foi nesta data que surgiu o ato de que resultou, para o executado, a dívida exequenda.
Vale isto por dizer que a dívida exequenda é de constituição ulterior à cessação das relações patrimoniais entre o executado e a Recorrente, pelo que não está verificado o pressuposto temporal de que depende a sua comunicabilidade, ao qual fizemos referência no ponto 2).2.2.
Em conformidade, a resposta à questão que enunciámos é afirmativa, impondo-se a revogação da decisão recorrida.
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4) Vencido, o Recorrido deve suportar as custas: art. 527/1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso procedente e, em consequência:
Revogam a decisão recorrida;
Em substituição, julgam improcedente o incidente de comunicabilidade da dívida exequenda ao património comum do casal que foi constituído pelo executado e pela Recorrente;
Condenam o Recorrido no pagamento das custas, tanto do incidente como do recurso.
Notifique.
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Guimarães, 18 de dezembro de 2024
Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
2.ª Adjunta: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
[1] Pertencem ao CPC vigente as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência. [2] Disponível, como os demais citados no texto, em www.dgsi.pt. [3] Como veremos na sequência, esta característica do aval sucumbe perante o regime a que o art. 10.º da LULL submete as subscrições em branco. Nestes casos, o avalista em branco, sendo parte no pacto de preenchimento, ao invocar a inobservância deste por parte do portador avalizado, não está a invocar factos emergentes de relações alheias, mas a colocar a questão da divergência entre a vontade que ele próprio declarou ao subscrever e entregar a letra em branco e a declaração tal como constante do título que veio a ser completado. Trata-se, como explica Carolina Cunha (Aval e Insolvência cit., pp. 22-23), “de um problema particular, ao qual o art. 10.º da LULL dá uma resposta específica, insuscetível de se diluir nos quadros do art. 17.º LULL ou do princípio res inter alios acta. [4] Diferentemente, Filipe Cassiano dos Santos, loc. cit., pp. 205-210, considera que o AUJ se “circunscreve ao aval, obrigação cartular inscrita em letra ou livrança existentes como tais (isto é, formadas com os requisitos legais) e à possibilidade de desvinculação daquele que dá o aval.” [5] Quando se tenha presente o já citado art. 10.º da LULL e a circunstância de a letra, ainda que em branco, estar destinada à circulação, logo se levanta a questão de saber perante quem pode ser invocada a exceção do preenchimento abusivo. No entender de Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial (Letra de Câmbio), III, Coimbra: Almedina, 1966, p. 129), secundado por Abel Delgado (Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, 7.ª ed., Lisboa: Petrony, 1996, p. 80), a questão de saber contra quem pode o subscritor defender-se com a exceção do preenchimento abusivo, deve resolver tendo em conta várias hipóteses:
“1.ª A letra foi preenchida pelo seu primeiro adquirente; “2.ª A letra foi preenchida por um terceiro.
Na 1.ª hipótese, podem ainda dar-se dois casos: ou é o primeiro adquirente preenchedor quem reclama o pagamento ao subscritor, ou o pagamento é exigido por um terceiro, que recebeu por endosso a letra já preenchida.
No 1.º caso, pode ser oposta a exceção do preenchimento abusivo. A letra não entrou ainda em circulação: estamos ainda no domínio das relações imediatas.
No 2.º caso, supondo que o portador da letra está de boa fé, não poderá o subscritor opor-lhe a exceção de preenchimento abusivo. Aqui já o portador é um credor autónomo.
Na 2.ª hipótese, a de ser a letra preenchida por um terceiro, podem igualmente verificar-se duas situações: ou o terceiro preenchedor não recebeu a letra por endosso, mas por simples tradição ou sucessão mortis causa, ou a recebeu por endosso.
No 1.º caso, a exceção de preenchimento abusivo poderá ser-lhe oposta. A posição do terceiro portador da letra é a de um mero cessionário ou representante daquele de quem recebeu o título.
Quanto ao 2.º, parece que não deve ser esta a solução, pois que o atual portador e preenchedor da letra a adquiriu por endosso. Sendo assim, o subscritor ficará sem defesa em face deste portador”, ressalvada, claro está, a hipótese de ele estar de má-fé.
José Gabriel Pinto Coelho (Lições de Direito Comercial, II, Lisboa, 1943, pp. 40 e ss.), atendendo à ratio do art. 10.º e à natureza jurídica da letra em branco, entende, diferentemente, que apesar de o art. 10.º não distinguir entre o portador imediato, que preencheu ele os brancos do documento, e o que recebeu este já preenchido, será legítimo admitir, “pelo confronto com as explicações do Relatório da Comissão de Redação, e atendendo à circunstância de que o legislador só quis tutelar os direitos do portador que adquiriu um título já preenchido, representativo de uma letra verdadeira e própria, que o portador que se considera no preceito do art. 10.º é o adquirente do título já preenchido, embora abusivamente.”
Assim, se o título é adquirido em branco por terceiro, este faz tal aquisição sem a convicção de ter adquirido uma letra propriamente dita, cabendo-lhe o ónus de se informar, junto do transmitente, acerca do conteúdo da autorização de preenchimento e correndo os riscos de uma errada informação. No fundo, do que se trata é de uma cessão do poder de preencher a letra, pelo que o devedor pode opor ao cessionário todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar perante o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (art. 585 do Código Civil). Mas se o título é adquirido totalmente preenchido, então trata-se já de uma letra, pelo que ao portador (mediato) não podem ser opostas exceções derivadas de acordos em que ele não interveio e que não conhece nem está obrigado a conhecer, nisso se traduzindo a sua boa fé.