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INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CONTRADIÇÃO
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
Sumário
I - Só haverá ineptidão da petição inicial por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir quando falte a indicação dos factos necessários para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou quando seja impossível determinar ou compreender quais os factos jurídicos em que se alicerça o pedido. II - A ineptidão da petição inicial por contradição entre a causa de pedir e o pedido traduz-se na existência de um vício de raciocínio, ao nível do silogismo, vício este que se exterioriza através de uma contradição lógica entre a premissa- a causa de pedir- e, a conclusão- o pedido, não bastando uma mera desarmonia entre eles.
Texto Integral
Processo n.º 891/23.7T8PNF.P1- APELAÇÃO
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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO:
1.A..., Unipessoal, Lda intentou ação declarativa sob a forma de processo comum contra B..., Lda, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 9.540,56, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento, com custas e demais encargos legais.
Como fundamento da referida pretensão a Autora alegou que com vista ao desenvolvimento da sua actividade comercial no dia 22.06.2022 comprou à Ré pelo preço de €22.500,00,uma viatura ligeira, que apesar de ser do ano 1999 aquela lhe assegurou estar em bom estado, como nova, ostentando ter percorrido apenas 154.828 km, porém, pouco mais de 2 meses volvidos e quando apenas havia percorrido cerca de 2.500 km, a viatura começou a ter problemas eléctricos recorrentes cujos custos de reparação a Autora suportou (€494,49; €3.99,73 em Setembro de 2022; €646,44 10 dias volvidos) sem que as reparações tivessem eliminado o problema do motor continuar a aquecer em demasia, tendo sido detectado na sequência da desmontagem do bloco do motor que a origem do problema residia no facto de esse mesmo bloco do motor estar estalado, assim como a Autora veio a tomar conhecimento de que tinha havido adulteração do conta quilómetros da viatura tendo-lhe sido subtraídos mais de 180.000 km.
Tendo a Autora comunicado à Ré o estado em que se encontrava a viatura- com o conta quilómetros adulterado e o bloco do motor estalado- a viatura foi rebocada para as instalações da Ré em 12.10.2022, tendo a Ré confirmado o defeito do motor, assumindo a responsabilidade pelo ocorrido e a despesa correspondente à eliminação daquele defeito, assegurando à Autora que a viatura ficaria pronta durante a semana seguinte.
Porém, apesar das insistências da Autora que precisava da viatura para trabalhar, a Ré apenas lhe comunicou que a viatura estava reparada em 11.11.2022 exigindo-lhe a quantia de €1500,00 mais IVA para que procedesse ao seu levantamento, imposição essa que a Autora não aceitou mas que teve de pagar porque estava a sofrer prejuízos com a impossibilidade de a usar na sua actividade comercial, o que fez em 7.12.2022.
Concluiu a Autora que estamos perante uma venda de veículo automóvel defeituoso e adulterado e, que os defeitos lhe causaram um prejuízo correspondente a todos os montantes supra descriminados que atingem o montante global, líquido de IVA, de €3.040,56 (€328,09 + €166,40 + €399,73 + €646,44 + €1500,00), tendo ainda direito à redução do preço que pagou pela viatura porque a adulteração do conta quilómetros desvaloriza-a em cerca de €5.000,00, bem como se viu impossibilitada de fruir da mesma e sofreu danos na imagem comercial que lhe causaram prejuízos em montante não inferior a €1500,00 dos quais pretende ser indemnizada, tudo somando o montante global líquido de IVA de €9.540,56 acrescido de juros desde a citação.
2. A Ré apresentou contestação, deduzindo as excepções da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, o abuso de direito e a caducidade, procedendo também à defesa por impugnação dos factos alegados pela Autora.
3. Realizada audiência prévia, foi proferido em acta de 29.09.2023 o seguinte despacho: “convidar a Sociedade Autora a concretizar e melhor clarificar os factos descritos nos pontos 2, 5, 6, 7 e 8 (pelo menos estes), tendo em conta que abstratamente este Tribunal, no estudo que fez da ação, entendeu ser aplicado o regime da compra e venda de coisa defeituosa. Assim sendo, entendo que o identificado instituto jurídico não está factual e devidamente alegado e, sem prejuízo da análise sumária deste Tribunal padecer de manifesto equívoco de enquadramento legal, salvo melhor entendimento, em termos de regime legal aplicável, a Sociedade Autora deverá em conformidade com o presente convite suprir as verificadas faltas de alegação de factos verificados.”
4. A Autora apresentou requerimento a proceder ao aperfeiçoamento da PI, concretizando a matéria de facto alegada e reduzindo o pedido para a quantia global de €8.345,00 acrescida de juros à taxa legal.
5. A Ré respondeu ao referido requerimento, reiterando a excepção da ineptidão da petição inicial.
6. Entretanto foi proferido novo despacho em 13.12.2023 Ref. Citius 93657896, com o seguinte teor (transcrição integral): “Na sequência do determinado no despacho judicial proferido durante a audiência prévia se, numa primeira análise da petição inicial, em abstracta, integramos a factualidade alegada no regime jurídico da compra e venda defeituosa e no eventual incumprimento contratual e, por isso, convidamos a autora a concretizar os factos na firme suposição que a causa de pedir seria clarificada de molde a ficar compatível com o pedido formulado. Todavia, a petição inicial aperfeiçoada não veio produzir essa clarificação, nem concretização os factos essenciais integradores da causa de pedir alegada e, nem tão pouco, adequou o pedido formulado. No entanto, a forma como a petição inicial foi executada veio evidenciar ainda mais a ininteligibilidade e a incompatibilidade entre a causa de pedir e o pedido formulado, tendo em conta o supracitado regime legal em que se fundamenta (artigo 186º., nº. 2, al. b) do CPC). E, não obstante, o Tribunal entender que a causa contém factos juridicamente relevantes como sejam os decorrentes “da adulteração do conta-quilómetros, por inexistência de inspecções periódicas não realizadas no período temporal compreendido entre os anos de 2012 e 2016 e que, por isso, a suposta venda da viatura pelo representante da ré como se fosse uma viatura nova” para, designadamente, um eventual prosseguimento dos presentes autos para audiência de julgamento, em abstracto, à luz das normas jurídicas que regulam o instituto jurídico dos vícios da vontade que, no caso concreto, teriam maior conexão com o instituto do erro sobre o objecto (artigo 251º. CC), os motivos (artigo 252º. CC) ou dolo (artigo 253º. CC) ainda assim faltaria à presente acção a formulação do competente e adequado pedido para esse efeito (artigo 186º., nº 2, al. a) do CPC). Do exposto, concluímos que o regular prosseguimento da presente acção está total e absolutamente inviabilizado nos termos em que o pedido da petição inicial aperfeiçoada se mostra formulado que, salvo melhor opinião em sentido contrário, integra a apontada nulidade insanável. E, sendo assim, equacionamos conhecer de imediato a supracitada excepção dilatória impeditiva do regular prosseguimento dos autos e, por conseguinte, a fim de obviar nova deslocação dos Mandatários a juízo com a marcação da continuação da audiência prévia somente para a finalidade ora comunicada, determino que sejam os mesmos notificados para, querendo, apresentarem alegações por escrito, dispensando-os da continuação da aludida e decorrido o prazo de 10 dias, os autos serem conclusos para prolação do despacho saneador, nos termos do previsto no artigo 595º., nº.1, al. a) do CPC. Notifique.”
7. Notificada desse despacho veio a Autora reiterar que procedeu à concretização da matéria de facto, reafirmando a factualidade alegada na PI aperfeiçoada, esclarecendo que “reclama da Ré o pagamento da quantia global de €8.345,00 assim discriminada:
a) O montante de € 1.845,00, IVA incluído, que a R. abusivamente exigiu à A. para “ajudar à despesa” da eliminação do defeito que se consubstanciava no bloco do motor estalado;
b) O montante de € 5.000,00, a título de redução do preço pago pela A. à R. pela aquisição da ..., posto que, caso aquela tivesse conhecimento da adulteração do conta quilómetros e da sua real quilometragem, não a adquiriria por uma quantia superior a € 17.500,00 acrescido de IVA, já que este seria o justo valor desta mesma viatura;
c) O montante de € 1.500,00, a título dos prejuízos causados à A. em resultado da impossibilidade de fruição da ... para o exercício da sua actividade comercial, em conformidade, repete-se, com o alegado em 34º a 36º da PI.
Invocou os arts. 916º e 917º do CC em abono da sua pretensão e concluiu que “o pedido reduzido (…), no montante global de € 8.345,00, tem como causa de pedir os defeitos verificados na ... com a matrícula ..-..-OM que a A. adquiriu à R., bem como os prejuízos por si sofridos em virtude de tal aquisição, e está devidamente descriminado em 16º supra (correspondente ao alegado em 15º no requerimento ora citado), pelo que não se entende que a PI …”seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”.
8. Posteriormente veio a ser elaborado em 7.03.2024, Ref Citius 94202406, despacho Saneador-Sentença, no âmbito do qual o tribunal a quo proferiu a seguinte decisão: “Pelo exposto, da análise da petição inicial aperfeiçoada somos de concluir que estamos perante uma incompatibilidade dos supracitados factos alegados não têm uma conexão lógica e coerente com o pedido formulado, subsistindo, por isso, a apontada ineptidão da petição que não conformou os factos alegados ao pedido formulado e, por isso, ininteligível (artigo 186º., nº. 2, al. a) do CPC) o fundamento (causa-efeito) do pedido formulado e, por conseguinte, substancialmente incompatível, por incongruente. Nesta decorrência, decido absolver da instância a Ré “B..., LDª.” por ser procedente a arguida ineptidão da petição inicial, nos termos e para os efeitos legalmente previstos nos artigos 5º., nº.1, 186º., nº.1, 2, a)., 278º., nº.1, alínea b)., 552º., nºs. 1, al. d), 576º., nº.s 1 e 2 e 577º, alínea b) do Código de Processo Civil. Custas a cargo da sociedade autora (artigo 527º., nºs. 1 do CPC). Registe e Notifique.“
9. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação do Saneador-Sentença, formulando as seguintes CONCLUSÕES 1. A A. ora Apelante alegou que adquiriu à R. Apelada um veículo que padecia de dois vícios completamente distintos, a saber: a) A Adulteração do conta quilómetros, ao qual foram subtraídos, pelo menos 108.000 quilómetros; b) O bloco do motor, que se encontrava estalado. 2. A A. invocou e especificou que estes defeitos foram oportuna e devidamente denunciados à R. Apelada, em conformidade com o alegado e o disposto no art. 916º do CC, e que os mesmos provocaram à A. Apelante os prejuízos alegados nesses mesmos articulados, e que foram neles devidamente individualizados, consubstanciando o pedido global formulado contra aquela R. Apelada. 3. A A ora Apelante sintetizou os títulos pelos quais se considerava credora da ora Apelada por uma indeminização global de € 8.345,00, a saber: (i) o montante de € 1.845,00, IVA incluído, que a R. ora Apelada abusivamente exigiu à A. ora Apelante para “ajudar à despesa” da eliminação do defeito que se consubstanciava no bloco do motor estalado; (ii) o montante de € 5.000,00, a título de redução do preço pago pela A. ora Apelante à R. ora Apelada pela aquisição da ..., posto que, caso aquela tivesse conhecimento da adulteração do conta quilómetros e da sua real quilometragem, não a adquiriria por uma quantia superior a € 17.500,00 acrescida de IVA, já que este seria o justo valor desta mesma viatura; e (iii) o montante de € 1.500,00, a título dos prejuízos causados à A. ora Apelante em resultado da impossibilidade de fruição da ... para o exercício da sua actividade comercial, em conformidade, repete-se, com o alegado em 34º a 36º da Petição Inicial. 4. No pedido global indemnizatório que formulou contra a R. ora Apelada no seu Requerimento de Aperfeiçoamento, a A. ora Apelante expressa que o mesmo é feito em conformidade e nos termos da factualidade nele alegada, e daí a expressão “TERMOS EM QUE”… 5. A A. ora Apelante alegou devidamente a que títulos formulou o pedido global contra a R. ora Apelada, cuja cumulação é legalmente permitida nos termos do disposto no nº 1 do art. 911º, ex vi nº 1 do art. 913º, ambos do CC. 6. A douta Sentença recorrenda violou, designadamente, os comandos dos arts. 911º e dos arts 913º e ss, todos do CC, sendo igualmente a douta Sentença ferida de nulidade, em conformidade com o disposto na al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC. Concluiu, pedindo que seja revogada a douta Sentença recorrenda. 10. A Ré/Apelada não ofereceu contra-alegações. 11. Foram observados os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes perante o Tribunal de 1ª instância, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos, não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. [1]
Em face das conclusões de recurso da aqui Recorrente, as questões decidendas são as seguintes: 1ª Questão- se a sentença padece da nulidade prevista no art. 615º nº 1 al. c) do CPC; 2ª Questão- Se a petição inicial padece de ineptidão.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O Tribunal de 1ª Instância considerou apresentarem interesse para a apreciação da supracitada excepção os seguintes factos:
A). Factos Provados:
1. A autora, em 22.06.2022, adquiriu à sociedade ré uma viatura ligeira da marca ..., modelo ..., com chassis nº. ...27, com a matrícula ..-..-OM, dotada de Báscula nova, pelo preço de €22.500,00 + IVA, do 1999, ostentando 154.828km.
2. Dois meses após a referida aquisição, tendo a viatura percorrido 2.500 km passou a apresentar problemas eléctricos, designadamente, uma avaria no macaco hidráulico, passando a ter de ir constantemente à oficina e com as quais a autora teve despesas.
3. Também, o motor da viatura aquecia para além dos limites normais, ocorrência que determinou nova deslocação à oficina para reparação da colaça que igualmente determinou despesas.
4. As reparações das anomalias elencadas em 2 e 3, nas oficinas de confiança da autora não surtiram qualquer efeito pois que o motor continuava a aquecer em demasia, o que requereu, em poucos dias, nova intervenção e custos.
5. Pelo mecânico AA foi proposto à autora abrir o motor do veículo e verificar o bloco para averiguar a causa, procedimento que teve a anuência do representante legal da autora.
6. E tendo sido desmontado o motor concluiu-se que a origem do problema da viatura residia no bloco do motor estalado e, por isso, era necessário proceder à sua substituição por não ser possível ser rectificado.
7. A certidão de todas as inspecções periódicas à viatura solicitada ao IMT confirmou que a viatura não havia sido sujeita àquela inspecção entre 22.11.2012 e 27.09.2016.
8. Confirmando ainda a adulteração do conta-quilómetros dado que lhe foram subtraídos 108.000.
9. E, nessa decorrência, a autora falou com a ré, na pessoa do Sr. BB que foi quem, em representação daquela, havia celebrado o negócio, tendo acordado remeter a viatura às instalações da ré no estado em que a mesma se encontrava, ou seja com o motor desmontado para ser a mesma verificada, tendo em vista a confirmação do defeito, reparação ou substituição de peças, o que ocorreu em 11.10.2022, com recurso a reboque pela assistência em viagem do seguro da autora.
10. O defeito foi confirmado pelo mecânico da ré, tendo a viatura ficado naquelas instalações para que ocorresse a substituição do bloco.
11. Em 11.11.2022, contactada a ré foi a autora informada que a viatura estava pronta, mas teria que proceder ao pagamento de €1.500,00 + IVA e que, não poderia levantar a viatura sem efectuar aquele pagamento, não obstante a autora pagou o referido valor.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
Nulidade da sentença prevista no art. 615º nº 1 al. c) do CPC
Sendo o elenco das alíneas do n.º 1 do art. 615º do CPC, um elenco taxativo[2], só nas hipóteses ali expressamente consignadas se coloca a hipótese de nulidade da sentença.
Segundo o art. 615º nº 1 al. c) do CPC, “é nula a sentença quando: c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, al. c) do CPC, tem a ver com uma contradição lógica entre a fundamentação jurídica e a decisão.
Como refere nesta matéria J. Lebre de Freitas, “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade de sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada conclusão jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se. “[3]
Para que as nulidades da sentença possam ser conhecidas pelo Tribunal de 2ª instância têm de ser arguidas pelo recorrente, não sendo de conhecimento oficioso, e devem obrigatoriamente ser suscitadas de forma sintética nas conclusões, uma vez que o conhecimento do tribunal de recurso está balizado pelas conclusões, pelo que não bastará que nelas o recorrente faça alusão apenas e só ao dispositivo legal porque necessário se torna que os fundamentos em que o recorrente alicerça a nulidade delas também resultem.
Compulsadas as conclusões deste recurso, nelas a Apelante limitou-se a fazer alusão na Conclusão 6, que a sentença está ferida de nulidade em conformidade com o disposto na al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC, sendo esta alusão manifestamente insuficiente porque não está concretizada qual a oposição entre os fundamentos e a decisão, ou qual a ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível.
Caso se entenda que nos podemos ainda assim socorrer do corpo das alegações para aferir dos fundamentos da nulidade invocada, o que resulta das alegações apresentadas pela aqui Apelante é que esta não aceita a afirmação feita pelo tribunal a quo de que “a autora apenas pediu a condenação da ré no pagamento da quantia que, no entretanto, foi reduzida, sem invocar a que título”, porque argumenta que sintetizou os títulos pelos quais se considerava credora da Apelada pela indemnização global peticionada, concluindo que aquela afirmação do tribunal a quo está totalmente infirmada pelo que foi por si alegado, estando-se em seu entender perante uma evidente ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível.
Porém, o desacerto da decisão é uma questão que não contende com a nulidade da sentença, mas com o seu mérito. [4]
Se a Apelante não concorda com os fundamentos convocados pelo tribunal a quo na decisão recorrida, ou se os mesmos estão errados, como afirma, tal não traduz uma ambiguidade ou obscuridade, quando muito poderá consubstanciar a apreciação de um eventual erro de julgamento e não a apreciação da nulidade prevista no art. 615º nº 1 al. c) do CPC. [5]
Improcede, assim, a apontada nulidade da sentença. Ineptidão da petição inicial
O tribunal a quo absolveu a Ré/Apelada da instância por ter considerado que se verificava a excepção dilatória da nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, nos termos previstos no art. 186º nº 1 e 2 al. a) do CPC.
Efectivamente, a ineptidão da petição inicial gera a excepção dilatória da nulidade de todo o processo, é de conhecimento oficioso, e conduz à absolvição da instância, conforme articulação dos arts. 186º, n.º 1, 278º, n.º 1 al. b), 576º, n.º 1 e 2, 557º al. b) e 578º, todos do CPC.
A ineptidão da petição inicial está prevista no artigo 186º do CPC, do seguinte modo: “2 – Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c)Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.”
Por conseguinte, a petição inicial será inepta não só quando falte ou seja insuceptível de ser percebida ou entendida a concreta pretensão formulada ao tribunal (ininteligibilidade do pedido), mas também quando faltem ou sejam insusceptíveis de serem entendidos ou captados os fundamentos fáctico-jurídicos que estão na base da pretensão da parte (ininteligibilidade da causa de pedir) ou, quando sendo inteligível a indicação do pedido e da causa de pedir, exista, todavia, uma contradição intrínseca entre um e outra, isto é entre o pedido e a causa de pedir (contradição entre o pedido e causa de pedir que, pretensamente, o suporta) e, finalmente quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.[6]
Relativamente à noção de pedido, o mesmo corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da acção interposta, traduzindo-se na providência que o autor solicita ao tribunal (António Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, p. 119; Miguel Teixeira de Sousa, As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, Lex, 1995, pág. 120-121; Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 243 e, Anselmo de Castro, Direito Processual Civil, Almedina, I volume, pág. 201).
“A formulação do pedido, que vai determinar o desenvolvimento da instância e que circunscreve o âmbito da decisão final, é uma necessidade que resulta, além do mais, da consagração plena do princípio do dispositivo que faz impender sobre os interessados que recorrem às instâncias judiciais o ónus de delimitação do objecto da lide.”[7]
Relativamente à noção de causa de pedir, ela é constituída pelos factos necessários para individualizar a situação jurídica alegada pela parte e para fundamentar o pedido formulado para essa situação.
A causa de pedir é composta pelos factos constitutivos da situação jurídica invocada pela parte, isto é, pelos factos essenciais à procedência do pedido. São essenciais aqueles «factos sem cuja verificação o pedido não pode ser julgado procedente» (M. Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 122-123), pelo «facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido» (A. Varela, ob. cit., pág. 245) ou, pelo «facto jurídico que está na base da pretensão.» (Anselmo de Castro, ob. cit., pág. 204).
O tribunal a quo absolveu a Ré da instância por ter considerado inepta a petição inicial, aludindo no dispositivo da decisão expressamente ao art. 186º nº 1 e 2 al. a) do CPC, que contempla a hipótese de faltar ou ser ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.
Iniciou a abordagem do conhecimento da referida excepção mencionando que cumpria decidir da invocada ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir.
Todavia, ao longo da fundamentação da decisão recorrida teceu considerações atinentes com a contradição entre o pedido e a causa de pedir, porquanto dela constam as seguintes menções: “(…) o articulado aperfeiçoado tornou ainda mais flagrante a existência de um desajustamento entre a causa de pedir alegada e o pedido formulado, nos termos previstos na alínea b), do nº. 1 do artigo 186º. do CPC, (…)a adequação e compatibilidade que se impunha realizar à sociedade autora no âmbito do presente processo, com o devido respeito, não foi realizada na sequência do convite efectuado”.
Depois de também ter feito algumas considerações soltas sobre o tipo de pedidos que a Apelante/Autora “poderia e deveria” ter formulado na petição inicial aperfeiçoada na sequência do convite que lhe havia sido feito pelo tribunal, concluiu-se na decisão recorrida, quanto a nós de forma dificilmente perceptível, que “da análise da petição inicial aperfeiçoada somos de concluir que estamos perante uma incompatibilidade dos supracitados factos alegados não têm uma conexão lógica e coerente com o pedido formulado, subsistindo, por isso, a apontada ineptidão da petição que não conformou os factos alegados ao pedido formulado e, por isso, ininteligível (artigo 186º., nº. 2, al. a) do CPC) o fundamento (causa-efeito) do pedido formulado e, por conseguinte, substancialmente incompatível, por incongruente. “
Afigura-se-nos que o tribunal a quo apesar de ter iniciado a sua argumentação com a alegada falta de causa de pedir suscitada pela Apelada na contestação, acabou por considerar que a petição inicial aperfeiçoada era inepta porque os factos invocados pela parte como causa de pedir eram incompatíveis com o pedido formulado, porque a causa de pedir era ininteligível, e substancialmente incompatível com o pedido.
Das duas uma, ou falta a causa de pedir, ou esta existe e é ininteligível, ou incompatível com o pedido formulado.
Porém, no caso sob apreciação afigura-se-nos, desde logo, que não se verifica nem uma coisa, nem outra, não padecendo a petição inicial aperfeiçoada, nem mesmo a inicialmente apresentada, do apontado vício de ineptidão.
A causa de pedir é constituída pelos factos concretos que a Apelante alegou para fundamentar a sua pretensão, que a demonstrarem-se, permitam ao tribunal concluir pela procedência do pedido, independentemente da qualificação jurídica que a Apelante deles haja feito, não estando o tribunal vinculado à alegação da parte no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º nº 3 do CPC).
Já assim defende A. Abrantes Geraldes, que “a causa de pedir é integrada pelo facto ou factos produtores do efeito jurídico pretendido, e não deve confundir-se com a valoração jurídica atribuída pelo autor, a qual, de todo o modo, não é vinculativa para o tribunal, devido ao princípio, consignado no art. 664º, segundo o qual o tribunal conhece oficiosamente do direito aplicável.”[8]
Isto é, o Autor tem de alegar os factos concretos essenciais que constituem a causa de pedir e tem de formular o pedido, sendo que o tribunal não se mostra vinculado à qualificação jurídica dos factos que constituem a causa de pedir alegada, ainda que esteja limitado pelo pedido nos exactos termos em que este tiver sido formulado.
Feitas estas considerações, vejamos se tal como o tribunal a quo acabou por decidir, a petição inicial padece da apontada ineptidão.
Relativamente à ineptidão da petição inicial por falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, Abílio Neto refere que, só a omissão total do pedido ou da causa de pedir ou a sua formulação em termos de tal modo obscuros que não se compreenda qual a tutela jurídica pretendida pelo autor ou o facto jurídico em que alicerça o pedido, que não a mera imperfeição, equivocidade, incorrecção ou deficiência, constitui vicio gerador de ineptidão. [9]
Nesta conformidade, verdadeiramente só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos necessários para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedir. [10]
Compulsada a petição inicial aperfeiçoada, conjugada com a inicialmente apresentada, resulta de forma inegável que não existe falta de causa de pedir, estando perfeitamente alegados e evidenciados no mencionado articulado os factos essenciais constitutivos do pedido indemnizatório formulado pela Apelante:
i. a compra da Apelante à Apelada, em 22.06.2022, de uma viatura automóvel usada, que a ré assegurou encontrar-se em bom estado, “como nova”, que aparentava ter apenas 154.828 Km (arts. 2º e 3º da PI);
ii. poucos meses depois da compra o motor da referida viatura apresentou problemas de sobreaquecimento, tendo sido constatado que esse defeito tinha a sua génese no facto de o bloco do motor estar estalado (arts.7º e 8º da PI);
iii. no dia 27.09.2022 a Apelante constatou que o conta quilómetros da viatura havia sido adulterado tendo-lhe sido subtraídos cerca de 108.000 Km, o que desvaloriza o veículo em cerca de €5,000,00 (arts. 12º, 30º a 32º da PI);
iv. a Apelante denunciou à Apelada em 5.10.2022 os defeitos de que padecia a viatura- conta quilómetros adulterado e bloco do motor estalado- tendo sido rebocada para as instalações da Apelada (arts. 14º a 18º da PI);
v. em 12.10.2022 a Apelada assumiu a responsabilidade pela reparação e despesa com a eliminação do defeito correspondente ao bloco do motor estalado, bem como comunicou à Apelante que a viatura ficaria pronta durante a semana seguinte (arts. 19º a 21º da PI);
vi. apesar das interpelações da Apelante para que a viatura lhe fosse entregue porque precisava dela para trabalhar, apenas em 11.11.2022 a Apelada comunicou que a viatura estava pronta, mas exigiu à Apelante que pagasse €1500,00 + IVA para ajudar à despesa e que enquanto não satisfizesse esta exigência não permitia o levantamento da viatura (arts. 22º a 24º da PI);
vii. apesar de ter expressado não concordar com esta imposição da Apelada, dada a impossibilidade de usar a viatura na sua actividade comercial lhe estar a causar prejuízos, a Apelante não teve outra solução senão pagar à Apelada o montante de €1845,00 (€1500,00 + IVA) para poder levantar a viatura (arts 25º e 26º da PI).
A Apelante alegou assim, de forma suficientemente completa e concretizada, a causa de pedir da pretensão indemnizatória que reclama nestes autos da Apelada, fazendo expressa alusão a que estamos perante uma venda de um veículo automóvel defeituoso e adulterado (art. 27º da PI), cujos defeitos lhe causaram prejuízos, prejuízos esses que na PI aperfeiçoada (depois de expurgados os custos com reparações que não denunciara à Apelada) discriminou da seguinte forma:
a) O montante de € 1.845,00, IVA incluído, que a Apelada abusivamente (indevidamente) lhe exigiu para “ajudar à despesa” da eliminação do defeito que se consubstanciava no bloco do motor estalado- defeito esse cuja reparação e inerente despesa competia à vendedora/Apelada;
b) O montante de € 5.000,00, a título de redução do preço pago pela Apelante à Apelada pela aquisição da viatura, posto que, caso aquela tivesse conhecimento da adulteração do conta quilómetros e da sua real quilometragem, não a adquiriria por uma quantia superior a € 17.500,00 acrescido de IVA, já que este seria o justo valor desta mesma viatura- desvalorização do valor comercial da viatura;
c) O montante de € 1.500,00, a título dos prejuízos causados à Apelante em resultado da impossibilidade de fruição da viatura para o exercício da sua actividade comercial durante o tempo em que aquela esteve para reparação a cargo da Apelada.
Perante esta exposição não se compreende como pode o tribunal a quo afirmar que “a autora apenas pediu a condenação da ré no pagamento da quantia que, no entretanto, foi reduzido, sem invocar a que título”, porque a Apelante foi bem explícita na alegação da causa de pedir subjacente ao pedido formulado.
Mas mesmo que assim não fosse, uma petição inicial inepta não equivale a uma petição inicial inviável, conduzindo a ineptidão enquanto excepção dilatória nominada à absolvição da instância, ao invés, a inconcludência ou inviabilidade enquanto excepção peremptória inominada determinante da improcedência da ação, conduzirá à absolvição do pedido.[11]
Se o tribunal a quo entende que a causa de pedir alegada não é bastante para conduzir à procedência do pedido tal qual foi formulado na petição inicial, a excepção que poderia colocar não seria a da ineptidão da petição inicial, mas de manifesta improcedência do pedido, o que não foi declarado na decisão recorrida.
Não obstante, dir-se-á que independentemente da harmonia ou desarmonia da referida causa de pedir com o regime jurídico da compra e venda de bens defeituosos a que o tribunal a quo fez menção e que também havia sido convocado pela Apelante, em tese geral, mesmo à luz do referido regime jurídico é possível cumular um pedido indemnizatório com a redução do preço relativamente à desconformidade de que a viatura alegadamente padece e que não é passível de reparação (conta quilómetros adulterado), assim como a pretensão indemnizatória é admissível ainda que a reparação do outro defeito (bloco do motor estalado) tenha sido efectuada pela vendedora, se a compradora alegar que persistem por compensar prejuízos decorrentes do incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato, como o fez de forma suficiente a aqui Apelante (arts. 911º nº 1 ex vi art. 913º nº 1 do CC).
E ainda que eventualmente o tribunal a quo venha a concluir estar errada a valoração jurídica dos factos que consubstanciam a causa de pedir, se esses factos concretos (a provarem-se) puderem conduzir ao efeito jurídico pretendido pela Apelante, tal não acarretará uma efectiva ineptidão, mas, porventura, uma peça processual menos bem conseguida.
Assim sendo, como evidenciamos supra, a petição inicial não padece de falta de causa de pedir.
Na eventualidade de ter sido entendido na decisão recorrida que a causa de pedir é ininteligível, sempre se dirá que a petição só é inepta por ininteligibilidade quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir.
Só será, pois, de concluir que a petição é inepta por ininteligibilidade quando não seja possível saber-se qual é o pedido ou a causa de pedir.
Ora, como já vimos, isso não ocorre no caso sob apreciação, sendo inequívoca a causa de pedir devidamente concretizada nos mencionados factos alegados na petição inicial, assim como é clara a pretensão que a Apelante dela retira.
Finalmente, uma última palavra para abordar a possível ineptidão por contradição entre a causa de pedir e o pedido, uma vez que apesar de o tribunal a quo não ter convocado a al. b) do art. 186º do CPC acabou por a abordar ad latere.
Deverá existir uma conformidade lógica e substancial entre a causa de pedir e o pedido, entre as premissas (causa de pedir) e a conclusão (pedido), sendo certo que, como salienta Alberto dos Reis “é da essência do silogismo que a conclusão se contenha nas premissas, no sentido de ser o corolário natural e a emanação lógica delas. Se a conclusão, em vez de ser a consequência lógica das premissas, estiver em oposição com elas, teremos não um silogismo rigorosamente lógico, mas um raciocínio viciado e, portanto, uma conclusão errada.”[12]
Ainda segundo Alberto dos Reis, brigando a conclusão (pedido formulado) com as premissas (causa de pedir) é compreensível que a lei declare inepta a petição inicial, pois que sendo formulado um pedido que, longe de ter a sua justificação na causa de pedir invocada, está em flagrante oposição com ela, a inépcia é manifesta.
Não obstante, tal como defende Castro Mendes, em rigor, este motivo de ineptidão resulta de um verdadeiro antagonismo entre o pedido e a causa de pedir, e não de uma mera desadequação entre uma coisa e outra.[13]
Tal como já decidido no Ac RG de 31.10.2019, “à interpretação dos articulados aplicam-se os princípios de interpretação das declarações negociais pelo que aquelas declarações valem com o sentido que um declaratário normal deva retirar das mesmas e tal interpretação deve ter presente a máxima da prevalência do fundo sobre a forma.
A contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial, só ocorre quando se verifique uma incompatibilidade formal entre o pedido e a causa de pedir reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico, quando o pedido e a causa de pedir se neguem reciprocamente.”[14]
Se, como vimos, a ineptidão da petição inicial por contradição entre a causa de pedir e o pedido traduz-se na existência de um vício de raciocínio, ao nível do silogismo, vício este que se exterioriza através de uma contradição lógica entre a premissa- a causa de pedir- e, a conclusão- o pedido-, tal contradição não se verifica no caso em apreço, porquanto, caso se venha a provar que o bem vendido pela Apelada à Apelante padece dos vícios invocados pela Apelante (causa de pedir), esses factos permitirão fundamentar a responsabilidade contratual da Apelada, permitindo o regime legal da compra e venda defeituosa, convocado pela Apelante, a cumulação do pedido de redução do preço com a indemnização reparadora dos demais danos sofridos pela Apelante, contidos no pedido global por aquela formulado.
Resulta inegável que com o pedido global por si deduzido a Apelante pretende ser indemnizada de todos os prejuízos sofridos com a aquisição de uma viatura defeituosa, que persistem apesar de um dos defeitos ter sido reparado pela vendedora, a acrescer à redução do preço que por ela pagou face à desvalorização que a mesma sofreu com a desconformidade relativa à errónea quilometragem que ostentava à data da venda.
Independentemente da procedência ou improcedência de alguma das parcelas que integram o pedido global formulado- que para esta sede não releva porque é uma questão de mérito a apreciar a final (não contende com a ineptidão da petição inicial)-, entendemos que não se verifica uma absoluta falta de nexo lógico entre o pedido formulado e a causa de pedir, pois que, fazendo apelo às regras de interpretação do declarado pela aqui Apelante na petição inicial, tendo todos os pedidos como pressuposto a existência de uma compra de bem defeituoso, não existe contradição entre as premissas e a conclusão, porquanto não se excluem mutuamente, como já afloramos de forma sintética por não ser esta a sede própria para o conhecimento de mérito.
Os factos que foram alegados pela Apelante como fundamento das importâncias englobadas no pedido formulado nestes autos tem subjacente o regime da compra e venda de bens defeituosos, e qualquer um dos pedidos contidos no pedido de pagamento da importância global peticionada na PI (reduzida na peça aperfeiçoada), tem como pressuposto os defeitos da coisa adquirida pela Apelante à Apelada, pelo que não se pode afirmar existir “desajustamento entre a causa de pedir e o pedido formulado” como sustentou o tribunal a quo.
Em jeito de conclusão, os pedidos formulados na petição inicial cujo somatório se traduz na importância global peticionada, encontram a sua justificação na causa de pedir invocada pela Apelante, não existindo flagrante oposição com aquela, correspondendo ao efeito jurídico que a Apelante pretende retirar da compra e venda de bem defeituoso, o que nos permite concluir que não há ineptidão da petição inicial, sendo distinta da ineptidão a questão da viabilidade da procedência do pedido a qual já se reporta ao mérito da causa.
Por conseguinte, concluímos não existir falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, nem contradição da causa de pedir com o pedido que conduzam à ineptidão da petição inicial, não podendo manter-se a decisão recorrida, devendo ao invés prosseguirem os autos os seus demais termos.
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V. DECISÃO: Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Apelante/Autora, revogando-se o Saneador/Sentença e determinando-se o prosseguimento dos demais termos do processo.
Custas a cargo da Apelada, que ficou vencida.
Notifique.
Porto, 11.12.2024
Maria da Luz Teles Meneses de Seabra
(Relatora)
João Proença
(1º Adjunto)
Anabela Dias da Silva
(2ª Adjunta)
(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
___________________________________ [1] F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 147 e A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 92-93. [2] A. Varela, Manual de Processo Civil, pág. 686. [3] José Lebre de Freitas, CPC Anotado, 2º volume, 3ª edição, pág. 736-737. Vide, ainda, no mesmo sentido, AC RP de 29.06.2015, AC RP de 1.06.2015 ou, ainda, AC RG de 14.05.2015, todos www.dgsi.pt. [4]Vide, neste sentido, ainda, A. Varela, ob. cit., pág. 690. [5] Neste sentido, entre outros, Ac STJ de 30.11.2021, Proc. Nº 760/19.5 T8PVZ.P1.S1 e Ac STJ de 16.11.2021, Proc. Nº 2534/17.9T8STR.E2.S1, www.dgsi.pt [6] A. Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 245-246 [7] António Geraldes, Ob. Cit., fls. 120 [8]Ob. Cit., p. 193 [9] Breves Notas ao CPC, 2005, p.61. [10] neste sentido Acs. do STJ de 30/4/2003 e de 31/1/2007, www.dgsi.pt [11] Vide, entre outros, A Abrantes Gerandes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, pág. 234 [12] Comentário ao CPC, vol II., p. 381 [13] Direito Processual Civil, Vol. III, p. 49 [14] Proc. Nº 4180/18.0T8BRG.G1, www.dgsi.pt