JUNÇÃO TARDIA DE DOCUMENTOS
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Sumário

I - A apresentação tardia de documentos deve ser sempre acompanhada da condenação em multa processual, mesmo ocorrendo com a interposição do recurso, se não for demonstrada a impossibilidade de junção tempestiva e independentemente da pertinência deles para o mérito da causa.
II - A possibilidade de cumulação de pedidos, ainda que a título subsidiário, tem como limite máximo inultrapassável os critérios de competência absoluta do tribunal, não sendo admissível quando os infrinja.
III - Em consequência, não é admissível a cumulação, perante o Juízo Central Cível, de pedidos próprios de uma acção de reivindicação com pretensões típicas de um processo de divisão de coisa comum.
IV - Em acção de reivindicação, a causa de pedir é integrada, desde logo, pelos factos com relevância jurídica de onde emerge a aquisição originária do direito de propriedade do autor sobre o bem ou dos quais resulte a presunção, por efeito do registo predial ou da posse, da titularidade desse direito a seu favor.
V - Gera o vício da ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, a ausência de alegação de factos essenciais em que se possa ancorar a pretensão deduzida.
VI - Se, para além dessa ausência de alegação, quanto à pretensão principal, a petição inicial descrever facto essencial devidamente documentado que, embora reportado ao pedido subsidiário, seja incompatível com aquela pretensão principal, ocorre contradição entre a causa de pedir e o pedido.
VII - A contradição entre o pedido e a causa de pedir é insusceptível de sanação mediante a constatação de que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.

Texto Integral

Acção Comum nº1446/23.1 T8PVZ.P1

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL):

Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: José Eusébio Almeida
2.º Adjunto: António Mendes Coelho

RELATÓRIO:
AA, portador do cartão de cidadão n.º ..., residente na rua ..., Póvoa de Varzim, propôs a presente acção declarativa de simples apreciação e de condenação e, subsidiariamente, de divisão de coisa comum, cumuladas com indemnização, contra BB, titular do cartão de cidadão n.º ... e com domicílio na rua ..., Póvoa de Varzim.
Juntamente com a admissibilidade de cumulação dos pedidos a que correspondem a forma de processo comum, relativa ao pedido principal de reivindicação da propriedade, e forma de processo especial, referente ao pedido subsidiário de divisão de coisa comum, pediu:
A) Ser declarado que o prédio urbano inscrito na matriz da união de freguesias ..., ... e ... sob o artigo ..., descrito na conservatória de registo predial da Póvoa de Varzim sob o n.º ... é propriedade exclusiva do autor; e, em consequência,
B) Ser declarado que a ré não é comproprietária do mesmo, bem como, que é concretamente abusivo arrogar-se como tal;
C) Ser declarada nula a inscrição da titularidade desse prédio na matriz respetiva, na parte a favor da ré, devendo, nessa parte, ser ordenado o seu cancelamento junto da Repartição de Finanças da Póvoa de Varzim;
D) Ser declarada nula a inscrição no registo predial da aquisição, na parte referente/a favor da ré, do prédio descrito na conservatória de registo predial da Póvoa de Varzim sob o n.º ..., devendo ser ordenado à Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim, nessa parte, o seu cancelamento.
E) Ser declarado que, com exclusão da máquina de lavar, da máquina de secar, da máquina de passar-a-ferro e da máquina de café, os bens que constituem o recheio da “moradia”, mormente as mobílias, tapetes, cortinas, eletrodomésticos são propriedade exclusiva do autor;
F) Serem declaradas pertencentes do autor, a título de rendas, as quantias transferidas pela ré para a conta do autor, a partir de Outubro de 2020, inclusive, e até ao prazo máximo de três meses a contar da citação, isto pela ocupação exclusiva da “moradia”, que a R. tem feito desde então;
G) No caso de a ré não abandonar a “moradia” no prazo de três meses após a citação, ser declarado que, após esse período, a mesma ali permanece(u) abusivamente, e, por isso, ser condenada pela ocupação do referido imóvel a pagar mensal e sucessivamente, a título de renda ou de enriquecimento sem causa, e até efetiva restituição do referido imóvel livre e devoluto de pessoas e bens, a quantia de € 1.750,00, e, ainda, nos juros de mora que se vencerem sobre tais quantias, à taxa legal aplicável;
H) Ser a ré condenada no pagamento de uma indemnização a título de danos causados pela utilização e deterioração que se revelarem anormais do referido imóvel, a liquidar em execução de sentença;
I) finalmente, ser a ré condenada no pagamento das respetivas custas.
SUBSIDIARIAMENTE, para a eventualidade de não proceder o pedido principal cima formulado de A a G, pediu que, julgando procedente por provada a ação de divisão de coisa comum, seja declarado:
J) a indivisibilidade em substância ou por natureza da aludida “moradia”, ou seja, o prédio urbano inscrito na matriz da união de freguesias ..., ... e ... sob o artigo ..., descrito na conservatória de registo predial da Póvoa de Varzim sob o n.º ...;
K) A dissolução da situação de comunhão/compropriedade dessa “moradia”;
L) o acertamento das quotas de cada um, ré e autor, nessa compropriedade;
M) a adjudicação ao autor dessa mesma “moradia” mediante o pagamento por parte deste à ré de quantia de tornas correspondente à sua quota de comproprietária;
N) e, em conformidade, na parte inscrita e registada a favor da ré, ser ordenado o cancelamento:
N1- da inscrição da (co)titularidade dessa “moradia” na matriz respetiva;
N2 - da inscrição da (co)titularidade no registo predial da (co)aquisição dessa “moradia”, repita-se, descrito na conservatória de registo predial da Póvoa de Varzim sob o n.º ....
O) CUMULATIVAMENTE ao pedido principal, se procedente, ou ao pedido subsidiário, no caso de improceder o pedido principal, deve ainda ser declarada abusiva a pretensão da ré em vender a moradia e, por isso, a mesma ré condenada a pagar ao autor a indemnização, num ou noutro dos casos, pelos danos sofridos pelo autor (liquidáveis variavelmente em incidente posterior à sentença condenatória e em função da qualidade de proprietário ou da sua quota-parte como comproprietário), em virtude:
O.1) Na hipótese do autor ter optado por não vender a “moradia”, do aumento da prestação mensal do crédito pelo tempo e diferença de condições que se verificar;
O.2) Na hipótese do autor ter perdido a oportunidade de vender a “moradia”, da mais-valia, variando então essa indemnização em função do facto do autor vir a ser reconhecido e declarado como único e exclusivo proprietário, ou, a tal não acontecer, da quota como comproprietário que vier a ser fixada. E, neste caso, essa indemnização deve ainda ser cumulada com a decorrente dos danos referidos imediatamente acima sob o pedido O.1.
Devidamente citada, a ré ofereceu contestação e nela, entre o mais, suscitou a excepção da ineptidão da petição inicial.
Para o efeito e em síntese, afirmando que não se conseguem descortinar, ao longo do arrazoado a que se deu o nome de petição inicial, os factos e as razões de direito que, constituindo a causa de pedir, poderiam sustentar as pretensões que o autor formula no pedido final, estando perante uma peça processual com mais de 270 artigos, com um sem números de citações e extensas notas de rodapé, mitigado por um chorrilho de desabafos, respigado de ofensas gratuitas, mas que não contém um único facto suscetível de ser aproveitado com vista à verificação da procedência dos pedidos formulados.
O autor respondeu à referida excepção, por iniciativa própria, mediante requerimento de 21/11/2023, que fez acompanhar da junção de documentos.
Foi realizada a audiência prévia, na qual foi tentada a conciliação das partes, sem sucesso, e proferido despacho tendente a regularizar a taxa de justiça paga pelo autor.
Na sequência, o autor ofereceu requerimentos (de 27/5/2024 e 29/5/2024) com a junção de seis documentos.
Conclusos os autos, foi proferido saneador sentença que, em primeiro lugar, condenou o autor, por junção tardia de documentos, na multa de 1 UC, depois, declarou o Tribunal materialmente incompetente para conhecer dos pedidos J) a N2) da petição inicial e, finalmente, julgou verificada a exceção dilatória da nulidade do processado, por ineptidão da petição inicial, e, em consequência, absolveu a ré da instância.
E dessa decisão, inconformado, o autor veio interpor o presente recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Formulou as seguintes conclusões:
A – a respeito da ineptidão da pi relativamente aos pedidos A a D, inclusive:
1ª) O instituto jurídico do abuso do direito pressupõe estados subjetivos cuja prova assenta, quase tão só, em presunções judiciais que, naturalmente, reclamam a alegação de factos, não em bruto, mas na sua dinâmica contextualização e ligação às regras gerais da experiência.
2.ª) Não é inepta uma petição inicial onde o autor:
- alega, como causa de pedir, uma situação fáctica juridicamente enquadrável na compropriedade, à qual também acrescenta a existência de um acordo com termo resolutivo, em conformidade com o qual, uma vez verificado esse termo resolutivo, cessa essa compropriedade, até aí juridicamente precária, dando lugar a uma situação de propriedade exclusiva por parte apenas de um desses anteriores comproprietários; e, em conformidade,
- formula, como pedido principal, a reivindicação dessa propriedade exclusiva.
3.ª) Uma coisa é a ineptidão, enquanto vício conducente à absolvição da instância, que, no caso, atenta a 2ª conclusão, não se verifica, outra, diferente, é o mérito da ação, relacionado, primeiramente, com a existência fáctica, em si e por si, desse acordo sob termo resolutivo, e, depois, a jusante, sucessivamente, com a validade e eficácia desse mesmo acordo.
4.ª) Ao confundir isto, afirmando que a eventual existência de tal acordo, porque formalmente nulo, era despicienda para a sorte da ação, razão que entendeu como suficiente para declarar a ineptidão da petição inicial em relação ao pedido reivindicativo de propriedade exclusiva formulado pelo autor [e demais pedidos diretamente associados; respetivamente, pedidos A, e B, C, D], a Mma. Juiz a quo incorreu em erro judiciário por erróneo julgamento quer de facto, na medida em que ignorou a relevância concreta da existência fáctica do alegado acordo sob termo resolutivo, quer de direito, na medida em que isso a impediu de associar essa existência fáctica de um acordo formalmente inválido ao instituto jurídico do abuso do direito, e, por essa via, de poder extrair as devidas consequências jurídicas da interpretação e aplicação deste instituto à factualidade alegada na pi, com idoneidade suficiente para convocar a aplicação concreta de tal instituto ao caso dos autos.
5.ª) Com efeito, no caso concreto, os elementos probatórios já carreados para os autos [essencialmente, as mensagens e documentos (máxime, elementos bancários)] são suficientes não só para a prova da existência fáctica desse acordo sob termo resolutivo como também para que seja dado como provado que os pagamentos concretamente relevantes na aquisição e prestações bancárias mensais foram todos efetuados pelo autor, em conformidade e em execução daquele acordo sob termo resolutivo.
6.ª) Uma coisa é a existência fáctica desse acordo sob termo resolutivo, que se verifica, outra a validade formal do mesmo, que no caso não se verifica, pois que é formalmente nulo.
7.ª) Todavia, essa invalidade formal não exclui nem impede o conhecimento, oficioso ou não, de uma situação de abuso do direito, especialmente se for o caso, como sucede nos autos, de terem sido alegados na petição inicial factos suficientes para o preenchimento concreto dos pressupostos desse instituto ou sistema móvel de aplicação que se designa por abuso do direito. – Artigo 334.º, do Código Civil.
8.ª) Atento o aludido erro de julgamento, de facto e de direito, a douta decisão recorrida, tendo partido de um pressuposto errado acerca da relevância da existência de um acordo sob termo resolutivo, deve, considerando provada a existência concreta do mesmo, ser revogada pelo tribunal de recurso e, nessa sequência, das duas uma, a saber:
a) - na medida em que poderá ser conhecida oficiosamente pela instância de recurso a factualidade integradora do abuso do direito, deve a decisão revogada pelo tribunal de recurso ser [excecionalmente, na medida em que o abuso do direito é de conhecimento oficioso], pelo próprio tribunal de recurso, substituída por outra que, declarando concretamente verificada essa situação de abuso do direito na modalidade da proibição de venire contra factum proprium, se abstenha de declarar a nulidade por vício de forma do aludido acordo sob termo resolutivo e, por isso, nessa sequência, declare procedente o pedido reivindicativo de propriedade exclusiva sobre a moradia dos autos [pedido principal, A], e dos demais pedidos ao mesmo diretamente associados [pedidos B, C e D];
ou, no caso de ser entendido que os autos não reúnem elementos suficientes para que seja proferida essa substitutiva decisão,
b) – deve ser determinado o reenvio dos autos à instância recorrida para o seu prosseguimento.
9.ª) No caso, perante o erro de julgamento, de facto e de direito [salientado na conclusão 4.ª], a revogação da decisão recorrida e sua subsequente e imediata substituição [nos termos referidos na al. a) da anterior conclusão (8.ª)], reparará a injustiça [resultante do erro de facto, enquanto resultado injusto decorrente da desconsideração do acordo sob termo resolutivo alegado] e a ilegalidade [resultante de erro de direito, enquanto ilegalidade da decisão por “violação de lei”, tanto de lei processual (artigo 186.º, do Código de Processo Civil), como de lei substantiva (artigo 334.º, do Código Civil)] da decisão recorrida.
10.ª) Devendo tal decisão, na parte substitutiva, assentar no conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso dos pressupostos para a aplicação do abuso do direito na modalidade de proibição de venire contra factum proprium .
Os quais, no caso concreto, são:
11.ª)
a - existência de um acordo sob termo resolutivo que, em caso e no momento do divórcio (uma das variantes desse concreto termo resolutivo), produziria os seus efeitos jurídicos no sentido de cessar e converter a compropriedade numa situação de propriedade plena e exclusiva do autor;
b – o comportamento anterior da Ré, associado às suas declarações, um e outras invariavelmente no sentido de que nunca quis no passado e nunca quereria no futuro nada que não fosse seu, aliás fidedignamente espelhado no teor das mensagens constantes dos artigos 68 a 71 da pi, as quais, irradiam isso mesmo, e;
c – nessa medida, porque proferidas em situação de rutura e iminente divórcio automaticamente produtor dos efeitos daquele termo resolutivo, por si só, irradiam uma verdadeira e autêntica base de legitimidade de confiança por parte do autor em como a Ré, em caso de divórcio, manteria a sua palavra e honraria com a dignidade que lhe reconhecia, e em que acreditava, o referido acordo sob termo resolutivo;
d - sendo que, ao adotar posteriormente, passados apenas dois anos, numa segunda e idêntica situação de rutura, na iminência de divórcio e divórcio propriamente dito, comportamento diverso e frontalmente contrário a essas expetativas legítimas que criara anteriormente, revela uma atitude manifestamente chocante e reprovável aos olhos da comunidade, ultrapassando os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo próprio fim económico e social do direito de compropriedade em situações idênticas à dos presentes autos;
e - especialmente, como é o caso, se tal suceder no âmbito de uma relação de confiança conjugal em que o autor serviu e funcionou como retaguarda económica que permitiu que o filho menor da Ré frequentasse um colégio militar no âmbito de um processo de preparação para acesso à Academia Militar, o que veio a conseguir.
12.ª) A Ré não tinha rendimentos que lhe permitissem dar-se a semelhante “luxo”, positivamente aproveitado pelo filho da Ré, acedendo este desse modo a uma instituição onde, para além de começar a ganhar um equivalente salarial desde o seu ingresso, nessa medida libertando a mãe dos acréscimos de despesas e sacrifícios regulares a que teve de se sujeitar até esse ingresso, garante a esse mesmo filho estabilidade para a vida futura.
13.ª) É pois de uma ingratidão chocante, para mais atingido aquele objetivo de vida e as portas que o mesmo abre no futuro àquele filho em termos de uma vida normal e sem sobressaltos de maior, o comportamento da Ré posterior à separação e divórcio, querendo aproveitar-se de uma aparência de compropriedade para a qual verdadeira e materialmente em nada contribuiu.
14.ª) E, no caso, essa ingratidão é ainda tão ou mais chocante quanto o próprio comportamento processual da Ré, socorrendo-se do absurdo de uma narrativa, que sabe e antemão que não consegue demonstrar e, não obstante, optar por barricar-se numa estratégia genuinamente agressiva, aparentemente própria de quem sabe não só que não tem razão do ponto de vista da justiça material como que a sua narrativa é probatoriamente indemonstrável, tudo de acordo com uma estratégia tendo em vista a prevalência de uma justiça formal, convenientemente sem ter que se abrir e expor à discussão concreta do abuso do direito que tal pretensão deve convocar no caso concreto.
15.ª) Não havendo outra forma concreta, objetiva e comparativamente equivalente, senão através do recurso ao sistema móvel e casuisticamente variável do abuso do direito, que permita, na prática, assegurar a “imaterialidade” de satisfação pessoal e utilidade funcional proporcionada e prosseguida pelo autor com a aquisição da moradia, as quais, qual oportunidade única e imperdível de negócio, estiveram na base da aceleração com que o autor, ainda antes de reunir condições materiais para adquirir a moradia, avançou para a celebração de um contrato-promessa e pagamento de um sinal, cujo montante, nos limites das possibilidades do autor, lhe garantissem, no imediato e pelos mecanismos do incumprimento do contrato-promessa, afastar outros interessados.
16.ª) Com efeito, ir pela via da extração das consequências da nulidade de um acordo inválido, ou pela via do enriquecimento sem causa, uma ou outra como solução para o caso concreto, sempre implicaria ficar muito aquém do acolhimento de todos os aspetos de imaterialidade e utilidade funcional proporcionada e prosseguida pelo autor com a aquisição da moradia, razão por que, nessa perspetiva, a única via a contento, e, por isso, irreversível, é a via do recurso ao abuso do direito, sendo que, em favor da mesma, funciona ainda o facto de não revestir riscos ou dificuldades práticas de execução, além de mais justa e moralizadora aos olhos da própria sociedade.
B – a respeito da ineptidão dos demais pedidos (E a O, inclusive)
17.ª) Na medida em que estes pedidos assentam, por um lado, na hipotética procedência do pedido reivindicativo da propriedade exclusiva por parte do autor sobre a moradia, em associação com o abuso do direito na modalidade da proibição de venire contra factum proprium como denominador comum a todos esses pedidos, e, por outro na autonomia funcional e diversa natureza destes pedidos indemnizatórios comparativamente com a pretensão substantiva revindicativa, devem estes pedidos, em sintonia com o que se disse acima sob a alínea A) destas conclusões [para onde se remete por brevidade em termos de revogação e substituição da decisão recorrida], ser declarados procedentes e, nessa sequência, ser a Ré, nos termos peticionados, condenada genericamente nos mesmos. Se bem que, como já referimos anteriormente e nos termos aí referidos, pelo bem que queremos à Ré, continuemos disponíveis para renunciar a esses pedidos indemnizatórios.
C – a respeito da condenação em multa processual (douta decisão judicial constante do primeiro parágrafo de fls. 156 do processo físico):
18.ª) A narrativa da Ré vertida em sede de impugnação no âmbito da sua douta contestação é surpreendente para o autor, justificando-se, pois, que, perante a mesma, não podendo o autor adivinhar que a Ré apresentasse semelhante narrativa, possa e deva reagir no sentido de, posteriormente à pi, juntar prova documental indiciária, instrumentalmente necessária para, simultaneamente, afastar aquela narrativa da Ré e reforçar a própria narrativa do autor.
19.ª) Em reforço dessa possibilidade funcionará ainda o próprio facto da prova dos estados subjetivos implicados no abuso do direito, cuja verificação é concretamente equacionável nos presentes autos, depender quase exclusivamente de prova indiciária cuja necessidade e utilidade não se faz luz no espírito da parte a quem aproveitam instantaneamente e de uma só vez, antes obedece a um processo de amadurecimento mais ou menos prolongado e encadeado no tempo, não necessariamente coincidente com os articulados apresentados.
20.ª) Não estando previsto articulado superveniente para responder à matéria de impugnação, é lógico que, atenta a superveniência relativamente à pi da necessidade e utilidade na junção de tal prova, o momento mais adequado para proceder a essa junção seria na audiência prévia, onde foi coartado ao autor, na prática, essa possibilidade. – Artigo 423.º, n.º2, segmento final, do CPC.
21.ª) Ao não terem tido em consideração estes aspetos temporais e as especificidades da prova de estados subjetivos implicados no abuso do direito, as decisões condenatórias incorreram em erro de julgamento por violação da permissão de junção de documentos concedida por aquele preceito legal, não tendo, pois, tais condenações razão de ser, as quais não fazem sentido, impondo-se, por isso, na revogação de tais condenações, o que se requer.
A improceder o recurso sintetizado sob as alíneas A e B destas conclusões, então:
D – a respeito da sanabilidade da ineptidão de todos os pedidos:
22.ª) Tendo o autor demonstrado nos autos que a Ré, pese embora tenha excecionado a ineptidão da petição inicial, compreendeu a causa de pedir e os pedidos formulados em sede de pi, resulta sanada essa eventual exceção, sendo que, ao não ter entendido assim, a douta decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, de direito, nos termos do artigo 186.º, n.ºs 1, 2 al. a) e 3, do CPC, o qual deve, nessa parte e em concreto, conduzir à nulidade da decisão e sua revogação, o que se requer, após o que os autos devem ser reenviados para a primeira instância tendo em vista o seu prosseguimento.
E – a respeito da incompetência material para julgar o pedido subsidiário de divisão de coisa comum (e os demais com ele relacionados).
23.ª) No caso, o abuso do direito é um denominador comum transversal, ou seja, tanto relativamente ao pedido principal [pedido A], aos demais ao mesmo diretamente associados [pedidos B, C e D], como aos pedidos inicialmente deduzidos em termos subsidiários [pedidos E a O, inclusive], bem como aos pedidos subsidiários eventualmente deduzíveis – já não inicialmente deduzidos mas sucessivamente deduzíveis, depois da revogação da decisão e do reenvio dos autos à primeira instância para o seu prosseguimento -, de declaração de nulidade do acordo sob termo resolutivo e consequências a extrair da essencialidade do mesmo para a aquisição da moradia e/ou do enriquecimento sem causa.
24.ª) Razão por que é de todo conveniente, sensato e razoável a cumulação de todos os pedidos neste processo, o que pode e deve ser judicialmente autorizado.
25.ª) Ao não ter entendido de semelhante modo, para mais assente num pressuposto, errado, da total irrelevância da existência fáctica de um acordo sob termo resolutivo para a sorte da presente ação, a decisão recorrida incorreu, nesta parte, em erro judiciário por erróneo julgamento quer de facto, na medida em que ignorou a relevância concreta da existência fáctica do alegado acordo sob termo resolutivo, quer de direito, na medida em que isso a impediu de associar essa existência fáctica de um acordo formalmente inválido ao instituto jurídico do abuso do direito, e, por essa via, de poder extrair as devidas consequências jurídicas da interpretação e aplicação deste instituto à factualidade alegada na pi, com idoneidade suficiente para convocar a aplicação concreta de tal instituto ao caso dos autos.
26.ª) Em conformidade, pode e deve o tribunal de recurso revogar essa decisão e, nessa sequência, substituí-la por outra que, nos termos do artigo 37.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, e de acordo com os princípios gerais de direito, mormente da razoabilidade, da adequação formal e da economia processual, admita, autorize e determine a cumulação do pedido reivindicativo da propriedade e, subsidiariamente, de divisão das quotas de comproprietário em função daquilo que cada um dos comproprietários pagou em termos de preço de aquisição da moradia, despesas e impostos relacionados com essa mesma aquisição, respetivos juros do crédito contraído para o efeito, e, ainda, seguros de vida e da moradia. Bem como, oportunamente, ainda a título subsidiário, da ampliação do pedido nos termos acima referidos (nulidade e enriquecimento sem causa).
Culminou com o pedido de que seja dado provimento ao recurso.
E acrescentou requerimento probatório, tendo em vista a junção de seis documentos, dispersos por três requerimentos (datados de 17/9/2024).
A ré respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela não admissão dos documentos e afirmando, em resumo, que a sentença recorrida está escrita de forma escorreita, clara, percetível, bem fundamentada, de forma que não suscita qualquer sustentação, pelo que, um acrescento ou desenvolvimento da sua argumentação seria redundante.
E que, posto perante a evidência do desacerto da sua petição inicial, o apelante lança-se num discurso gongórico e hermético, de escrita prolixa e confusa, que tem como única consequência enredar-se ainda mais no emaranhado da sua própria teia de argumentos contraditórios e desconexos.
Nada obsta ao conhecimento do recurso, o qual foi admitido na forma e com os efeitos legalmente previstos.

*
OBJECTO DO RECURSO:
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar:
a) Se há ou não fundamento para julgar inepta a petição inicial face à alegação de um acordo com termo resolutivo, que faria cessar a compropriedade de autor e ré sobre o imóvel reivindicado, e cuja invalidade, por falta de forma, é neutralizada pelo abuso de direito imputado à ré (conclusões 1 a 7 e 12 a 16) ou, assim não se entendendo, porque a ré evidenciou na contestação ter compreendido a causa de pedir e os pedidos formulados (conclusão 22);
b) Na negativa a essa questão, se a factualidade integradora do abuso do direito deve ser conhecida desde já em sede de recurso ou, ao invés, no tribunal recorrido, através do prosseguimento da instância (conclusões 8 a 11);
c) Ainda na negativa, se a alegação do abuso de direito é bastante para obstar à ineptidão da petição inicial quanto aos pedidos deduzidos sob as alíenas E a O, inclusive, e se estes devem julgar-se já procedentes (conclusão 17);
d) Se com a revogação da decisão e o reenvio dos autos à primeira instância para o seu prosseguimento, deve ser admitida a cumulação de todos os pedidos neste processo, afastando-se a incompetência material para julgar o pedido subsidiário de divisão de coisa comum (conclusões 23 a 26); e
e) Se deve ser revogada a condenação do autor na multa de 1 UC por junção tardia de documentos (conclusões 18 a 21);
Para além do exposto, importa apreciar se deve ser admitida a junção de seis documentos requerida pelo recorrente no âmbito do recurso, à luz do disposto nos arts. 410.º, 423.º, 425.º, 651.º e 652.º/1, al. e), do CPC
*
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
A factualidade relevante a considerada é a que resulta do relatório.
Acrescendo, com relevância para o recurso, a indicação dos fundamentos em que se estribou a decisão recorrida.
Junção de documentos pelo A:
Atendendo a que não é justificada a junção neste momento, porquanto não se verifica superveniência, sanciona-se o seu apresentante (A.), pela sua junção tardia, fora dos articulados, em multa que se fixa em 1 Uc, nos termos do art. 423º, nº2, do C. P. Civil e 27º do Regulamento das Custas Processuais.
(…)
Vem o A formular diversos pedidos, reconduzindo-se os pedidos principais a duas ações diversas, por um lado a uma ação de reivindicação e por outro lado, a uma ação de divisão de coisa comum.
Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 65º e 96º do Código de Processo Civil e 40º da Lei 62/2013 de 26 de Agosto e tendo em conta que o presente juízo central não tem, de acordo com o disposto no artigo 117º da mesma Lei, competência para tramitação de processos especiais, mas apenas das ações de processo comum declarativo de valor superior a 50 000 €, considera o Tribunal que haverá que conhecer oficiosamente da incompetência em razão da matéria com as consequências previstas no artigo 99º do Código de Processo Civil, o que se passa a fazer, uma vez que o A já se pronunciou quanto a tal matéria.
A competência da Instância Central Cível está definida no art. 117º da Lei 62/2013, de 26/08 e, assim, compete-lhe, no que agora nos interessa, a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a 50.000 euros.
Nos termos do C. P. Civil, o processo declarativo pode ser comum ou especial – art. 546º do C. P. Civil.
A ação de divisão de coisa comum é uma ação especial – Livro V, Título VI do C. P. Civil.
Assim, tendo o legislador definido que esta Instância Central Cível tinha competência apenas para as ações declarativas cíveis de processo comum, não é esta competente para a tramitação do pedido subsidiário de ação de divisão de coisa comum e pedido cumulativo inerente a este.
Com efeito, nos termos do art. 130º da Lei 62/2013 de 26/08, a Instância Local Cível é competente para preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da Instância Central.
Vejamos
Dispõe o artigo 117.º, n.º 1, alínea a), que “Compete aos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00”; e pela alínea c) também lhes compete “Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência”.
A ratio subjacente ao normativo é a de que ficará reservada à Instância Central a preparação e o julgamento das ações de processo comum com maior valor, mas já não lhe compete (Instância Central) vir a conhecer das causas de natureza cível a que corresponda processo especial, seja qual for o seu valor (e, naturalmente, ainda que lhe venha a ser atribuído, mesmo no seu transcurso, um valor superior a € 50.000,00, ou que se venha a decidir que há nela questões que demandam uma posterior tramitação nos termos do processo comum, conforme estatui o n.º 3 do artigo 926.º do CPC). Mas tal não significa que a ação se transmute de ação especial de divisão de coisa comum em ação declarativa de processo comum, apenas segue para decisão de questões concretas suscitadas com o formalismo próprio do processo comum.
O legislador foi muito claro ao definir que compete às Instâncias Centrais Cíveis a preparação e julgamento de ações declarativas cíveis de valor superior a € 50.000,00, mas de processo comum.
Decorrentemente, o Juízo Central Cível não tem competência para tratar de ações com processo especial, ainda que sigam a partir de determinada altura o ritualismo do processo comum, nem de ações comuns com valor inferior a € 50.000,00 – que, por força da competência residual estabelecida no artigo 130.º, n.º 1, da citada Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, cabem à Instância Local de Competência Genérica.
Pelo que as ações de divisão de coisa comum são manifestamente da competência da Instância Local, mesmo que o juiz da causa decida que, para conhecimento de determinadas questões referentes à divisibilidade do imóvel, ou outras, se deve seguir a forma comum ou que a ação tenha valor superior a € 50.000,00.
Com efeito, a ação de divisão de coisa comum é de natureza especial comportando uma ação declarativa e uma ação executiva, e ainda que na fase dita declarativa se sigam os termos do processo comum tal não determina que a ação não se mantenha especial, pelo que, findo os articulados, se o juiz entender que não pode decidir sumariamente sobre todas as questões suscitadas na petição ou na contestação é que manda observar o processo comum - cf. Art°926° n° 2 e 3 do CPC.
Refira-se que, se entende que, a circunstância de ser deduzida a título subsidiário, não altera a natureza da ação de divisão de coisa comum, que tem uma forma especial de tramitação que é manifestamente incompatível com a tramitação da ação comum, ainda a tal título.
Destarte, a tramitação de tal ação especial é incompatível com a tramitação de uma ação declarativa comum, porque cumular num processo comum, que versa sobre alegados direitos de reivindicação e de crédito, um processo especial que se visa apenas pôr termo à indivisão de um imóvel, é algo praticamente impossível dada a diferença de regimes.
Refira-se, aliás, que já corre termos, na instância local cível sob o nº1515/23.8T8PVZ, J1, ação de divisão de coisa comum quanto ao imóvel em causa nos autos.
Esta Instância Central Cível não é, assim, competente para a apreciação dos pedidos J) a N2), que seguem a forma de processo especial, sendo, por tal, tais pedidos inaproveitáveis.
A incompetência material constitui exceção dilatória, de conhecimento oficioso que obsta ao conhecimento do mérito de tais pedidos e implica, assim, a inerente absolvição da instancia da Ré quanto aos pedidos J) a N2) da petição inicial – art.s 96º, 97º, 278º, nº1, alínea a), e 590º, nº1, do C. P. Civil.
Face ao exposto, declara-se este Tribunal materialmente incompetente para conhecer dos pedidos J) a N2) da petição inicial formulados pelo A., absolvendo-se a Ré da instância quanto aos mesmos.
(…)
Veio a R. arguir a ineptidão da petição inicial alegando que os pedidos são impossíveis e ilegais.
Alega, em síntese, que o pedido principal formulado sob as alíneas A) e B) não pode proceder, por não invocados factos relativos à invalidade do ato de aquisição, o mesmo sucedendo quanto aos pedidos C) e D), relativos às inscrições matriciais e prediais e eventuais irregularidades subjacentes; no que concerne ao pedido formulado sob a alínea E) é o mesmo ininteligível e infundado, pois não são identificados os bens e nada é alegado quanto aos mesmos; por sua vez a ineptidão relativamente aos pedidos formulados sob as alíneas A) e B) leva à ineptidão dos pedidos das alíneas E e F), porquanto a Ré ocupa a casa com base no direito de propriedade (compropriedade) que lhe assiste, não tendo por tal que pagar qualquer renda ao A; quanto aos pedidos G) e H), não são alegados os requisitos de empobrecimento injustificado do património do A e correspetivo enriquecimento indevido do património da Ré à custa do A, bem como não estão alegados quaisquer danos para a peticionada indemnização.
Quanto aos pedidos O1 e O2 o A discorre sobre hipóteses de cenários futuros, não sendo alegado qualquer facto que justifique que o tribunal proíba a ré de ter intenção de vender o imóvel, sendo ostensiva a falta de causa de pedir, e reclama indemnizações condicionadas às decisões que o A venha a tomar no futuro, pedidos estes sem fundamento.
Notificado para se pronunciar, o A. pugnou pela sua improcedência.
Vejamos.
Nos termos do art. 186º do C. P. Civil, é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
A petição inicial é inepta:
art. 186º, nº2:
a) quando falte a causa de pedir;
b) quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
A nulidade de todo o processo consubstancia exceção dilatória que, a verificar-se, implica a absolvição do réu da instância – arts. 576º, 577º, alínea b), 578º e 278º, alínea b), do C. P. Civil.
No que concerne ao pedido principal, formulado sob as alíneas A) e B), C) e D), pretende o A que o Tribunal declare que o mesmo é o único proprietário do imóvel em causa nos autos e declare que a Ré não é comproprietária, do referido imóvel, e consequentemente, que se declare nulas a inscrição matricial do imóvel a favor da Ré e a inscrição predial do mesmo a favor da Ré.
A propósito da prova da propriedade, importa ter em consideração que, nos termos do art. 581º, nº4, do C. P. Civil, a causa de pedir, na ação de reivindicação, é o facto jurídico de que deriva o direito de propriedade.
Estabelece o artigo 1305º do CCivil sob a epígrafe «conteúdo do direito de propriedade» que «O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.».
Por seu turno preceitua o artigo 1403º, nº1 do mesmo Código «Existe propriedade comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.» acrescentando o seu nº2 que «Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário no título constitutivo.»
Enquanto aquele primeiro normativo nos conduz a uma ideia de propriedade exclusiva, este outro indica-nos a possibilidade de constituição de um direito único – o de propriedade – embora com vários titulares, cfr Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1978, 557.
Alega o A que o imóvel foi adquirido pelo A e Ré, em compropriedade, através de documento particular de aquisição, devidamente autenticado, que identifica como Doc. G (junto em 29.01.2024).
Assim, conforme alega o próprio A, sendo ambos comproprietários, e beneficiando ambos da presunção do registo (ex vi art. 7º do C. Registo Predial) a propriedade do imóvel é de ambos, nos termos do nº2 do art. 1311º do C. Civil).
Com efeito, estando invocado que quer A, quer R, têm inscrito a seu favor o registo da aquisição da propriedade do prédio em causa nos autos, tanto basta, nos termos do art. 7º do C. Registo Predial, para que o Tribunal presuma tal direito, presunção essa que não se encontra ilidida, pois não foi colocado em causa o registo invocado.
Ora, pretende o A o reconhecimento da propriedade exclusiva, mas não invoca o A qualquer nulidade ou qualquer circunstância integradora de um qualquer vício gerador de anulabilidade do contrato de compra e venda do referido imóvel.
O A não impugna, pois, o ato de aquisição do imóvel.
Conforme bem refere a Ré, o DPA de compra e venda é um documento publico, que faz prova plena das declarações de vontade nele ínsitas, fazendo, assim, prova plena de que a Ré é, conjuntamente, com o A, na proporção de metade para cada um, comproprietária do imóvel em causa nos autos (art. 371º, nº1 e 347º do CC).
O próprio A, afirma a validade do ato de aquisição do imóvel, quando nele sustenta o seu direito de propriedade sobre o imóvel que reivindica.
Com efeito, o ato de aquisição do imóvel não só não foi impugnado, como foi expressamente aceite, nenhuma falsidade tendo sido alegada.
Conforme se refere no Ac. do TRP de 10.01.2022, in dgsi, ..., “De acordo com a tese da substanciação, que o atual Código de Processo Civil acolhe, a causa de pedir é formada por factos sem qualificação jurídica, ainda que com relevância jurídica. A petição inicial tem de traduzir um silogismo que estabeleça um nexo lógico entre as suas premissas (as razões de facto e de direito explanadas) e a conclusão (o pedido deduzido) e a sua falta traduz-se numa ausência ou inexistência de objeto do processo. Nos termos dos arts. 5º, nº1 e 552º, nº1, al. d), do Código de Processo Civil, às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e as exceções. Da petição inicial devem constar os concretos e reais factos que preenchem a previsão da norma jurídica na qual a parte funda o seu direito. Isto é, o autor está obrigado à alegação e prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico por ele pretendido.”.
E continua-se no citado Ac. Do TRP “Vista a Doutrina, analisemos, agora, a Jurisprudência. Esta tem vindo a considerar que a petição inicial é inepta, por falta de causa de pedir, quando o Autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível a sua pretensão. A petição inicial é inepta por ininteligibilidade quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir. Há contradição entre a causa de pedir e o pedido quando não exista um nexo lógico entre ambos.”
Ora, o A não alega, assim, factos concretos em que baseie a sua pretensão, ou seja, factos de onde possa resultar a invalidade do ato de aquisição da propriedade do imóvel em causa nos autos, sendo inexistente, por tal, a causa de pedir quanto aos pedidos principais.
Refira-se que a circunstância de uma das partes ter contribuído com mais dinheiro para a aquisição do imóvel, do que a outra, não abala o direito de propriedade de ambos, apenas permite a convocação do instituto do enriquecimento sem causa, se for o caso.
Alega ainda o A, para fundamentar tal pedido, que existiu um acordo/condição resolutiva quanto à compropriedade/propriedade do imóvel, ou seja, refere que A e Ré combinaram entre si, numa base de confiança recíproca, que, tratando-se o imóvel em causa do único bem valioso adquirido na constância do casamento, celebrado no regime de separação de bens e com recíproca renúncia à qualidade de herdeiro, o imóvel era do A, pelo que: caso o matrimonio se dissolvesse por divórcio a casa seria do A; se matrimonio se dissolvesse pelo falecimento do A a casa ficaria para a Ré, legando-o por testamento; caso o matrimonio se dissolvesse por óbito da ré, a casa ficaria para os filhos da Ré quando o A falecesse.
Nesta matéria, dispõe o artigo 221º do Código Civil, sob o nº1, que: “As estipulações verbais acessórias anteriores ao documento legalmente exigido para a declaração negocial, ou contemporâneas dele, são nulas, salvo quando a razão determinante da forma lhes não seja aplicável e se prove que correspondente à vontade do autor da declaração”.
Ora, deste normativo resulta que, o alegado acordo teria que constar da escritura pública de compra do imóvel em causa nos autos, caso contrário estaria descoberta a fórmula para se por fim à compropriedade com um mero acordo verbal.
Com efeito, ainda que os autos prosseguissem para se apurar que tal acordo efetivamente existiu, o mesmo sempre seria nulo, pois configuraria uma forma não legal de pôr fim à compropriedade, falha logo, assim, o primeiro pressuposto do referido normativo legal.
Nesse sentido, conforme se deixou exposto no Ac STJ de 30-11-2017, disponível em www.dgsi.pt, “Estando em causa um negócio formal, uma vez que foi adotada a forma escrita (art. 221.º do CC), deve observar-se na sua interpretação a regra especial inserta no art. 238.º, n.º 1, do CC, segundo a qual “a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, excepto quando esse sentido corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a essa validade” (art. 238.º, n.º 2, do CC).
Ora, compulsada a escritura publica de compra e venda resulta da mesma que nada consta quanto ao alegado acordo e não é alegada a realização de qualquer outro documento autêntico de onde conste o referido acordo, pelo que, sendo-lhe aplicável a razão determinante da forma, sempre seria nulo tal acordo.
Assim, conforme vimos, o A não alega factos em que baseie a sua pretensão, ou seja, factos de onde possa resultar, quer a invalidade do ato de aquisição da propriedade do imóvel em causa nos autos, quer uma eventual propriedade exclusiva do imóvel, por acordo válido, sendo inexistente, por tal, a causa de pedir quanto aos pedidos principais.
Por sua vez, também, consequentemente, e pela mesma razão, os pedidos formulados sob as alíneas C) e D) não podem proceder, pois, não alega o A qualquer facto ou razão de direito de onde possa decorrer a invalidade ou irregularidade das inscrições matriciais e prediais, cuja validade, aliás, afirma e pressupõe, e que se mostram conformes à realidade material e ao direito substantivo.
Pelo exposto, não existindo assim a alegação de factos que integrem a causa de pedir dos pedidos formulados sobre as alíneas A a D), é, nesta parte, inepta a petição inicial.
Vejamos dos demais pedidos.
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Quanto ao pedido formulado sob a alínea E da petição inicial não corresponde o mesmo a qualquer alegação de facto, sendo que se não encontram concretizados os eventuais bens propriedade exclusiva do A.
Se o A. não identifica e desconhece quais os bens que são sua propriedade, não pode pedir o reconhecimento da mesma.
Acresce, que tal pedido formulado se encontra em contradição com o alegado, porquanto o A, no artigo 128º da pi, alega que “levou praticamente tudo para casa dos seus pais”, com exceção das estantes desmontáveis, de onde decorre que o remanescente não é sua propriedade.
Não existe assim a alegação de factos concretos que integrem a causa de pedir do pedido formulado E), e a única alegação existente é contraditória com o pedido formulado, sendo, também, nesta parte, inepta a petição inicial.
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Quanto aos pedidos F e G), são os mesmos igualmente ineptos.
Com efeito, o pedido F pressupõe a existência de uma relação jurídica que não existe, porquanto o A reclama o pagamento de rendas sem ter fundamento jurídico para tal.
Por sua vez também quanto ao pedido G a situação é idêntica e, quanto à invocação do enriquecimento sem causa, não são alegados os requisitos de empobrecimento injustificado do património do A e correspetivo enriquecimento indevido do património da Ré à custa do A, bem como não estão alegados quaisquer danos para a peticionada indemnização.
Sendo A e Ré comproprietários do imóvel em causa, assistiria a ambos o direito de uso e fruição do imóvel, pelo que não há qualquer eventual ocupação abusiva por parte da Ré.
Aliás, refira-se que, em face do acordo alcançado entre as partes no âmbito do processo de divorcio (nº1490/23.9T8VCD, que correu termos pelo J1 do Juízo de Família e Menores de Vila do Conde), o imóvel em causa nos autos, constituiu a casa de morada de família das partes e ficou atribuído à Ré, pelo que se encontra esta legitimada a habitá-lo. Pretendendo o A alterar tal acordo, teria que o requerer através do processo especial de alteração da atribuição da casa de morada de família contra a sua ex-mulher, ora Ré, nos termos do artigo 1793º do CC.
Por inexistência de causa de pedir quanto aos pedidos formulados sob as alíneas F) e G), é, igualmente, nesta parte, inepta a petição inicial.
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Quanto ao pedido formulado sob a alínea H da petição inicial não corresponde o mesmo a qualquer alegação de facto.
Aliás, o pedido é formulado em relação a “danos que se revelarem anormais a liquidar em execução de sentença”.
O que se pode relegar para liquidação ulterior é o montante dos danos e não a sua verificação.
Se o A. desconhece a existência de danos, não pode pedir a liquidação do seu montante em incidente ulterior.
Não existe assim a alegação de factos que integrem a causa de pedir do pedido formulado H, sendo, pois, também aqui inepta a petição inicial.
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Por ultimo, vejamos quanto aos pedidos cumulativos formulados sob as alíneas O1 e O2 da petição inicial, de ser declarada abusiva a pretensão da Ré em vender o imóvel e, nessa sequência, ser a mesma condenada no pagamento ao A de indemnização nos dois cenários hipotéticos que pressupõe, pelos danos sofridos pelo A, também liquidáveis em execução de sentença, quer para a hipótese de o A ter optado por não vender o imóvel, com o aumento da prestação mensal do crédito, quer para a hipótese de o A ter perdido a oportunidade de vender o imóvel, da mais valia daí decorrente, cumulando-se ainda ambas as indemnizações dependendo de o A vir a ser reconhecido como único proprietário ou apenas como comproprietário.
Ora, quanto a tais pedidos cumulativos desde logo se refira que nenhuma norma jurídica foi invocada e nenhuma norma jurídica existe que impeça a Ré de ter as pretensões que entender.
E se nenhuma norma existe, nenhum facto dos alegados conduz a qualquer daqueles resultados, de atribuir ao A o direito a impedir uma eventual pretensão, ainda que se demonstrassem todas as alegações do A..
Acresce que tal pedido de condenação em indemnização, que tem por base um pressuposto ilegal, é formulado em termos hipotéticos, considerando dois possíveis cenários que o A equaciona, mas não determina.
Não é formulado um pedido concreto.
Ora, pedidos genéricos só são admissíveis nos termos do disposto no artigo 556º do CPC, sendo certo, mais uma vez, que se o A não concretiza o dano sofrido, pois é hipotético, não pode pedir a liquidação do seu montante em incidente ulterior.
São assim inteligíveis tais pedidos cumulativos e por tal inadmissíveis.
Tanto basta para considerarmos que se verifica uma manifesta inteligibilidade e falta de alegação dos factos necessários à integração da causa de pedir que suporta os pedidos de condenação da Ré em indemnização o que se traduz numa ineptidão da petição inicial geradora da nulidade do processo nos termos da disposição legal supra citada.
Assiste assim claramente razão à R. quando afirma a ineptidão da petição inicial pois que a causa de pedir (relativa à ação de reivindicação) é manifestamente insuficiente/contraditória com os pedidos formulados.
Por outro lado, quanto aos demais pedidos, como vimos, o A não formula pedidos para a causa de pedir que apresenta e não tem causa de pedir para os pedidos que formula, sendo os pedidos cumulativos ininteligíveis.
Tem, assim, necessariamente, de se concluir pela nulidade de todo o processo por ineptidão de petição inicial pois que, da análise deste articulado, sobrevem a direta conclusão de que aquela não tem condições de prosseguir, não se tratando de meras imprecisões, incoerências ou factos indevidamente esclarecidos, mas sim de ausência do facto jurídico em que o autor assenta a sua pretensão.
A petição inicial é, assim, na sua totalidade inepta, o que, como se disse, implica a nulidade de todo o processado e a absolvição da R. da Instância.
Pelo exposto, julgo verificada a exceção dilatória da nulidade do processado por ineptidão da petição inicial, e, em consequência, absolvo da instância a Ré.
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SOBRE A JUNÇÃO DE DOCUMENTOS:
Para justificar a junção de documentos na fase do recurso, afirmou o recorrente que, embora, em rigor, os documentos cuja junção requeremos de seguida não se revelem essenciais e imprescindíveis, isto porque não acrescentam nada de novo, antes reforçando apenas o que já consta dos autos, requeremos agora a sua junção na medida em que a sua utilidade e necessidade para efeitos de prova indiciária decorre, de modo superveniente ao momento processual coincidente com a pi, dos termos e narrativa da contestação apresentada pela ré.
Com efeito, a narrativa da Ré vertida em sede de impugnação no âmbito da sua douta contestação é surpreendente para o autor, justificando-se, pois, que, perante a mesma, não podendo o autor adivinhar que a Ré apresentasse semelhante narrativa, possa e deva reagir no sentido de, posteriormente à pi, juntar prova documental indiciária, instrumentalmente necessária para, simultaneamente, afastar aquela narrativa da Ré e reforçar a própria narrativa do autor.
Em reforço dessa possibilidade funcionará ainda o próprio facto da prova dos estados subjetivos implicados no abuso do direito, cuja verificação é concretamente equacionável nos presentes autos, depender quase exclusivamente de prova indiciária (…).
Tal pretensão e justificações são, todavia, no âmbito do presente recurso, e salvo o devido respeito, manifestamente incompreensíveis.
Na verdade, como resulta lapidar do disposto no art. 410.º e segs. do Código de Processo Civil, é na primeira instância que a fase da instrução do processo, com a inerente produção de prova, tem lugar. À Relação, como emerge das disposições conjugadas dos arts. 640.º e 662.º do mesmo diploma, compete apenas, se for caso disso, reapreciar e modificar a decisão de facto.
As expressões relativas à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, à alteração dessa decisão ou à renovação da prova são empregues, nos citados preceitos legais, com o sentido comum e pressupõem, como parece evidente, a produção de prova e a decisão factual em primeira instância.
Contra as quais poderá reagir-se no recurso para reapreciação da prova e eventual modificação da factualidade considerada na decisão recorrida.
Neste sentido, depõe igualmente o disposto no art. 425.º do CPC, segundo o qual, depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
Para significar, na parte que agora releva, que a junção de documentos pode eventualmente ter sentido e justificação, em segunda instância, após a realização e finalização da discussão em primeira, tendo em vista a sua revisão.
E que já não evidencia qualquer sentido ou justificação no caso de nenhuma prova ter sido realizada no tribunal recorrido, por este ter julgado verificada a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial.
Nestas circunstâncias, é evidente que nada existe quanto a factos materiais de que a parte possa, com utilidade, pretender convencer o tribunal de recurso. O que pode tentar eficazmente é o convencimento, estritamente no plano legal e sem dependência de qualquer produção de prova, de que aquela peça processual não é inepta.
Nenhuma serventia tem, pois, no caso dos autos, a referida juntada.
É certo que, de acordo com a doutrina, no âmbito do recurso, “podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha tornado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes no processo” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., p. 286).
A verdade, porém, é que, por um lado, o próprio recorrente reconhece que os documentos não são imprescindíveis, não acrescentam nada de novo, e por outro, que o conteúdo da decisão recorrida, versando a ineptidão da petição inicial, não pode justificar a junção, por ser totalmente alheio a uma possível falta de prova sobre factos relevantes para a causa.
Acresce que o julgamento em primeira instância, quanto à verificação da referida excepção dilatória, nada teve de surpreendente, desde logo, porque ela havia sido invocada na contestação, seguida de resposta do recorrente dirigida especificamente à questão.
E, para além disso, porque foi a forte possibilidade de tal acontecer que conduziu o recorrente a requerer a junção de documentos, em primeira instância, através dos requerimentos de 27/5/2024 e 29/5/2024.
Nos quais, começou por referir: tendo a M ma. Juiz referido que ia declarar a ineptidão da petição inicial, revelámos de imediato, a nossa total discordância, tendo ainda pedido, também de imediato, para juntar prova documental superveniente, cuja relevância concreta decorre dos termos da contestação e cuja junção reservámos para a audiência preliminar. Foi-nos negada essa junção, atento a solução jurídica anunciada, razão por que, também desde logo fizemos questão que o iríamos fazer de seguida (…).
Por outro lado, nos termos gerais do art. 423.º/2 do CPC, a apresentação de tardia de documentos deve ser sempre acompanhada de multa processual, independentemente de eles serem pertinentes ou, ao invés, desnecessários, pois mesmo neste caso, para além da sua retirada (art. 443.º/1 do CPC), a condenação mantém-se restrita ao “pagamento de uma única multa” (art. 443.º/2 do CPC).
Com a única ressalva de a parte demonstrar que não pôde oferecer os documentos com o articulado próprio, nos termos previstos nos arts. 423.º/2 e 425.º do CPC, e que aqui não se coloca, pois o recorrente não alegou sequer, nas alegações e nas conclusões, a impossibilidade da junção prévia.
É forçosa, pois, a imposição de tal multa processual, a fixar segundo o prudente critério do tribunal e, no caso em apreço, face ao número dos documentos que a parte pretendeu juntar e à sua manifesta impertinência, no dobro da unidade de conta, embora ainda aquém do intervalo médio da moldura sancionatória (art. 27.º/1 do Regulamento das Custas Processuais).
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SOBRE A REJEIÇÃO DO RECURSO QUANTO À MULTA:
Com pertinência para a questão do recurso quanto à imposição de multa no valor de 1 UC, baseada na junção tardia de documentos, importa ter presente o disposto no art. 27.º/6 do RCP.
Nos termos dessa disposição legal, da condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional fora dos casos legalmente admissíveis cabe sempre recurso, o qual, quando deduzido autonomamente, é apresentado nos 15 dias após a notificação do despacho que condenou a parte em multa, penalidade ou taxa.
Trata-se de um regime específico de recorribilidade respeitante a decisões sancionatórias, marcado por duas notas essenciais.
Em primeiro lugar, pela circunstância de, diversamente da regra geral prevista no art. 629.º/1 do CPC, não estar condicionado ao valor da causa e da sucumbência da parte, o que se destaca com as referências ao facto de que da decisão cabe sempre recurso.
Como tem sentenciado a jurisprudência, “as decisões de condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional, fora dos casos de litigância de má fé, são sempre recorríveis em um grau, independentemente do valor da causa ou da sucumbência” (cfr., por todos, o Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/2021, tirado no processo 754/19.0T8VNG-A.P1-A.S1, relatado por Nuno Pinto de Oliveira e disponível na base de dados da Dgsi em linha).
E, em segundo lugar, por ter pretendido mitigar a recorribilidade da decisão de aplicação de multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional, embora mediante a adopção de uma fórmula ambígua, aparentemente atinente ao mérito do recurso, reportada à condenação proferida fora dos casos legalmente admissíveis.
Para significar, se bem pensamos, a imposição de um requisito adicional que, em contrapeso ao afastamento dos critérios do valor da acção e da sucumbência, tem por propósito impedir que os tribunais superiores sejam sobrecarregados de recursos relativos a questões de menor impacto económico.
E cujo alcance é o de não ter cabimento legal o recurso – em conceito reportado, simultaneamente, à sua admissibilidade e ao seu mérito – quando a condenação é fundamentada em norma que expressamente determina a imposição da sanção.
Como sucede, por exemplo, com a regra do art. 423.º/2 do CPC que, em caso de junção tardia de documentos, impõe que “a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado”, caso em que o recurso apenas pode ser fundamentado na alegação de que essa prova foi feita ou da desproporcionalidade da concreta sanção fixada.
Devendo ainda notar-se que esta sobreposição entre a admissão e o mérito do recurso nada tem de estranho ou singular na nossa ordem jurídica, certo que outros casos existem, como sucede na impugnação da matéria de facto, em que a lei, referindo-se à rejeição (art. 640.º do CPC), coloca a admissibilidade do recurso na dependência do cumprimento de requisitos da alegação.
No caso dos autos, foi precisamente o regime previsto no art. 423.º/2 do CPC que justificou a condenação do recorrente em multa.
Verificando-se, por outro lado, que nada foi alegado no requerimento de junção por parte do autor a propósito de uma hipotética impossibilidade de junção dos documentos no momento processual próprio.
Ao invés, referiu apenas o autor ter formulado o pedido de imediato, para juntar prova documental superveniente, cuja relevância concreta decorre dos termos da contestação e cuja junção reservámos para a audiência preliminar, assim denunciando que o momento do oferecimento dos documentos em causa resultou unicamente de opção ou estratégia própria da parte.
Assim, as alegações e as conclusões do recurso não contêm qualquer referência ou prova de que não foi possível ao recorrente oferecer os documentos em momento anterior à audiência prévia, nos termos do art. 423.º/2 do CPC, tal como não evidenciam qualquer concreta censura em face da medida da sanção, muito próxima, aliás, do limite mínimo legal.
E mencionam, de forma manifestamente equivocada, que a decisão implicou “violação da permissão de junção de documentos concedida por aquele preceito legal” quando, na realidade, a primeira instância não indeferiu à junção e apenas impôs a condenação expressamente cominada na norma que aplicou.
No entanto, como acima se disse, o referido art. 423.º/2 do CPC apenas ressalva da imposição da multa por junção tardia de documentos o caso em que a parte “provar que os não pôde oferecer com o articulado”.
Articulado que, no caso sub judice, apenas poderia ser o de resposta à contestação, no qual, aliás, o autor juntou abundante prova documental (cfr. requerimentos de 21/11/2023) e no qual, simultaneamente, deveria ter oferecido os documentos visados na decisão recorrida, não se vislumbrando qualquer motivo legítimo para que não o tenha feito em tempo.
Razões pelas quais, segundo entendemos, é forçosa a rejeição do recurso, na parte atinente à condenação em multa.
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SOBRE A CUMULAÇÃO DE PEDIDOS:
Pretende o recorrente, igualmente, a substituição da decisão recorrida por “outra que, nos termos do artigo 37.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, e de acordo com os princípios gerais de direito, mormente da razoabilidade, da adequação formal e da economia processual, admita, autorize e determine a cumulação do pedido reivindicativo da propriedade e, subsidiariamente, de divisão das quotas de comproprietário em função daquilo que cada um dos comproprietários pagou em termos de preço de aquisição da moradia, despesas e impostos relacionados com essa mesma aquisição, respetivos juros do crédito contraído para o efeito, e, ainda, seguros de vida e da moradia”.
Segundo entendemos, três motivos concorrem no sentido da manifesta improcedência da referida pretensão recursiva.
Em primeiro lugar, a circunstância de não se vislumbrar, nas conclusões e igualmente nas alegações, qualquer censura concretamente dirigida à decisão que declarou verificada a excepção da incompetência em função da matéria.
Ora, como é próprio da ordem natural das coisas e que a sequência das causas de extinção da instância previstas no art. 278.º/1 do Código de Processo Civil se limita a confirmar, a primeira questão que o tribunal deve enfrentar, posto perante o litígio, assenta na verificação ou não da sua competência absoluta para o julgamento, nos termos da al. a) daquele preceito legal.
E caso conclua que está verificada a excepção da incompetência, ainda que parcial, reportada a alguns dos pedidos, deve abster-se de os conhecer, cessando nesse momento qualquer averiguação adicional sobre os restantes pressupostos de regularidade da instância.
Por isso, não se surpreendendo qualquer censura, a montante, à decisão que julgou verificada a excepção da incompetência material, forçosamente perde sentido a crítica que, a jusante, tenha sido desferida à decisão, com aquela consequente, relativa à inviabilidade da cumulação de pedidos.
Em segundo lugar, a improcedência da pretensão do autor, nesta parte, resulta do facto de, para o julgamento dos pedidos subsidiários relativos à acção de divisão de coisa comum, a incompetência do Juízo Central Cível assumir natureza absoluta.
Com efeito, como se sabe, a infração das regras de competência em razão da matéria, da hierarquia e das regras de competência internacional determina a incompetência absoluta do tribunal (art. 96.º/al. a) do CPC).
Para além disso, é a propósito da competência em razão da matéria que o art. 65.º do Código de Processo Civil dispõe que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, pelo seu valor, se inserem na competência da instância central e da instância local.
Acrescendo, como acertadamente foi explicado na decisão recorrida, que entre essas leis da organização judiciária, as disposições conjugadas dos arts. 117.º e 130.º da Lei nº62/2013, de 26/08, estabelecem que as acções de processo especial, como sucede com a divisão de coisa comum (arts. 925.º e segs. do CPC), que não se enquadrem na primeira das referidas normas, são sempre da competência dos Juízos Locais.
Competência que, cumpre destacar novamente, reportando-se à matéria do processo (art. 65.º do CPC), tem natureza absoluta (art. 96.º do CPC).
Ora, como resulta expressis verbis do disposto no nº1 do art. 37.º do CPC, bem como da sua conjugação com o nº2, a possibilidade de ofensa às regras de competência absoluta constitui motivo de imediato e liminar impedimento à coligação de partes.
Segundo essa disposição legal, a coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes ou a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.
E somente depois de superado esse obstáculo pode aventar-se a hipótese de, convocando o nº2 daquele art. 37.º do CPC, quando aos pedidos correspondam formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, permitir a coligação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio.
Citando a jurisprudência, pode dizer-se, pois, que “esta solução é a que se coaduna com a concepção da coligação como acumulação no mesmo processo de acções que poderiam ser intentadas separadamente; nesta hipótese – propositura separada de acções – o processo que findaria seria aquele em que fora formulado pedido para cuja apreciação o tribunal carecia de competência em razão da matéria; ora, não se descortinam razões para afastar esta regra na hipótese de coligação” (cfr. Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 11/4/2018, no processo 1380/17.4T8PNF.P1, relatado por Fernando Samões e disponível em texto integral no já mencionado sítio).
E se assim é relativamente à coligação de partes, de igual modo se passam as coisas quanto à cumulação de pedidos, mesmo a título subsidiário, como resulta da norma do art. 554.º/2 do CPC: a oposição entre os pedidos não impede que sejam deduzidos nos termos do número anterior; mas obstam a isso as circunstâncias que impedem a coligação de autores e réus.
Tal como também ocorre na reconvenção, visto que, face ao disposto no art. 93.º/1 do CPC, o tribunal da acção é competente para as questões deduzidas por via de reconvenção, desde que tenha competência para elas em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia; se a não tiver, os pedidos reconvencionais não são admitidos e o reconvindo é absolvido da instância.
O caso paralelo da reconvenção (art. 266.º do CPC) afigura-se, aliás, como particularmente sintomático no sentido da inadmissibilidade da cumulação de pedidos se ela afrontar as regras de competência absoluta do tribunal.
Com efeito, também na reconvenção está em causa a dedução de várias pretensões (às do autor, somam-se as do réu), que poderiam ser deduzidas e apreciadas separadamente, mas que, observados determinados pressupostos legais, são objecto de tramitação e decisão unitária.
Todavia, apesar das vantagens permitidas pela apreciação conjunta e global dos pedidos da acção e da reconvenção, ela não é permitida se determinar “a incompetência do tribunal em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia” (art. 93.º/1 do CPC).
Deve concluir-se, pois, que a possibilidade de cumulação de pedidos, ainda que a título subsidiário, tem como limite máximo inultrapassável os critérios de competência absoluta do tribunal, não sendo admissível quando, como sucederia no caso dos autos, infrinja tais critérios.
Em terceiro e último lugar, a cumulação de pedidos deve ser recusada, em nossa perspectiva, por falta de interesse atendível na apreciação conjunta e que, para além de não ter sido concretamente identificado nas alegações de recurso, não se vislumbra existir em função da análise dos autos.
Recorde-se que, nos termos do art. 37.º/2 do CPC, quando aos pedidos correspondam formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio.
Ora, não pode reconhecer-se esse interesse relevante na cumulação quando os pedidos, abstractamente, têm de basear-se em causas de pedir que são incompatíveis entre si, como sucede na acção de reivindicação, que se baseia na propriedade exclusiva, e na acção de divisão de coisa comum, cujo pressuposto, diversamente, é a compropriedade sobre o bem.
Embora a contradição entre os pedidos não obste à dedução do pedido subsidiário, de acordo com o disposto no art. 554.º/2 do CPC, isso não significa que a incompatibilidade das causas de pedir não constitua uma circunstância que desaconselhe fortemente a cumulação de pedidos.
Basta ver que, no caso dos autos, a cumulação dos pedidos correspondentes à reivindicação e à divisão de coisa comum iria obrigar o tribunal, sem qualquer vantagem, a estender a sua apreciação, desde os factos relacionados com o designado “acordo com termo resolutivo”, susceptível de fazer cessar a compropriedade entre autor e ré, e ao afirmado abuso de direito da segunda, alegados para o pedido de reivindicação, a outras questões, totalmente diversas, atinentes às participações, monetárias ou de outra natureza, de cada um dos comproprietários na aquisição da moradia, tal como nas despesas e impostos relacionados com essa mesma aquisição, respectivos juros do crédito contraído para o efeito, e, ainda, seguros de vida e da moradia, que apenas poderiam ter relevância para a divisão de coisa comum.
Para além de que essa extensa e complexa apreciação, que necessariamente seria simultânea, poderia revelar-se inteiramente inútil, desde logo se fosse de reconhecer procedência aos pedidos principais relativos à reivindicação.
A não ser que, para obviar a essa evidente inutilidade de apreciação simultânea de factualidade de base incompatível, o tribunal optasse por analisar primeiramente os fundamentos da pretensão principal, para apenas no caso da sua improcedência averiguar os factos relativos aos pedidos secundários, relacionados com a divisão da coisa comum.
Simplesmente, nesta segunda opção, tudo se passaria como se, intentada previamente a acção de reivindicação, que viesse a ser julgada improcedente por decisão transitada em julgado, se seguisse sequencialmente a propositura de um processo de divisão de coisa comum.
O que, ao cabo de contas, demonstra a total falta de interesse atendível na apreciação conjunta e no mesmo processo daqueles pedidos e da sua imputação, com maior propriedade, a simples vontade ou mesmo capricho da parte.
Razões pelas quais, a nosso ver, não merece censura a decisão recorrida, também na parte relativa ao reconhecimento da incompetência e à consequente inadmissibilidade de cumulação de pedidos.
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SOBRE A INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL:
De acordo com o disposto no art. 186.º/1 do CPC, é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
E, densificando a figura em causa, proclama o nº2 que é inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
Para além disso, estas normas devem ainda ser articuladas com a referência específica à causa de pedir que o legislador, com relevância para a acção de reivindicação, fez no art. 581.º/4 do CPC, mercê da qual, nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real (…).
O que convoca a necessidade de delimitação da acção de reivindicação, a que se refere o art. 1311.º do Código Civil, e que deve ser definida como a acção declarativa de condenação que o proprietário pode instaurar contra quem tenha a posse ou detenção da coisa que lhe pertence, para pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade e a restituição da coisa reivindicada.
Trata-se, para além disso, de uma acção de fisionomia simples, visto que, constituindo corolário da sequela atribuída ao titular do direito de propriedade (ubi rem meam invenio, ibi vindico), basta-se com a verificação dos factos necessários para o reconhecimento desse direito, como pressuposto para o pedido de restituição, e dos actos do ocupante que impeçam, estorvem ou dificultem o exercício daquele direito.
E daí que o art. 581.º/4 do CPC, na esteira da teoria das normas e em observância do princípio da consubstanciação, imponha ao autor da reivindicação a alegação, para posterior comprovação, do facto jurídico de que deriva o seu direito de propriedade.
Por isso mesmo, “ao proprietário cabe o ónus de provar o seu direito de propriedade e que a coisa se encontra na posse ou é detida pelo demandado. Não basta, no entanto, provar que adquiriu a propriedade do alienante; deve também provar que este a adquiriu, o que implica a necessidade de provar as aquisições dos sucessivos alienantes até à aquisição originária de um deles” (cfr. A. Santos Justo, Direitos Reais, 8.ª ed., p. 313).
Para facilitar essa prova, cuja obtenção de outro modo seria extremamente árdua, o legislador consagrou duas presunções (ilações que a lei ou o julgador tiram de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido: art. 349.º do CC) de enorme relevância neste campo.
Em primeiro lugar, a presunção derivada do registo predial, que emana do art. 7.º do Código do Registo Predial, segundo o qual, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
E, em segundo, a presunção emergente da posse, que a lei consagrou no art. 1268.º/1 do Código Civil e faz presumir no possuidor a titularidade do direito correspondente à sua actuação, e que trata também da conciliação entre as duas referidas presunções, estatuindo que “o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”.
Assim se compreende, pois, a jurisprudência no sentido de que “a causa de pedir na acção de reivindicação estrutura-se na alegação de factos tendentes a provar:
a) a aquisição originária do direito real invocado pelo autor ou, alternativamente, a presunção de posse ou do registo da aquisição, mesmo que derivada, da coisa; e
b) a ocupação ou esbulho da coisa por parte do réu” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/5/2017, da autoria de CC, no processo 5484/15.0T8FNC.L1-2 e pesquisável na referida base de dados).
No entanto, vista a petição inicial, e apesar da sua evidente prolixidade, manifestada, em completa oposição à apontada simplicidade que a lei atribui à acção de reivindicação, na vastidão e complexidade de uma peça com 274 artigos e 65 notas de rodapé, algumas particularmente extensas, a verdade é que não se vislumbra qualquer alegação de factos dos quais resulte a aquisição originária do direito de propriedade sobre o imóvel em discussão ou dos quais resulte uma presunção da titularidade desse direito exclusivamente a favor do autor.
Assim, quanto à aquisição, para além de não ser originária (como a usucapião ou a acessão, por exemplo), apenas é alegado que o imóvel foi adquirido pelo autor e ré, em compropriedade, através de documento particular devidamente autenticado.
E relativamente às referidas presunções, apenas é possível extrair da petição inicial, e como bem se refere na decisão recorrida, que estando autor e ré inscritos como comproprietários, beneficiam ambos da presunção prevista no art. 7º do CRP, daqui resultando que a propriedade do imóvel se presume pertencer aos dois, nos termos do nº2 do art. 1311º do C. Civil.
Para significar, pois, que das várias alternativas acima referidas como exigíveis para a causa de pedir da acção de reivindicação, a favor exclusivamente do autor, nenhuma foi realmente alegada na petição inicial.
Evidenciando-se por aí, pelo menos numa primeira análise, o acerto da decisão recorrida ao apontar a falta de causa de pedir para a pretensão do reconhecimento da propriedade exclusiva a favor do autor.
Contra este entendimento, porém, no âmbito do recurso, objectou-se que à “situação fáctica juridicamente enquadrável na compropriedade”, foi acrescentada, na petição inicial, “a existência de um acordo com termo resolutivo”, em conformidade com o qual, uma vez verificado esse termo resolutivo, cessaria a compropriedade.
E cuja “invalidade formal”, assinalada na decisão recorrida e reconhecida pelo recorrente, “não exclui nem impede o conhecimento, oficioso ou não, de uma situação de abuso do direito, especialmente se for o caso, como sucede nos autos, de terem sido alegados na petição inicial factos suficientes para o preenchimento concreto dos pressupostos desse instituto”.
Para concluir, nesse seguimento, que “uma coisa é a ineptidão, enquanto vício conducente à absolvição da instância” e “outra, diferente, é o mérito da ação, relacionado, primeiramente, com a existência fáctica, em si e por si, desse acordo sob termo resolutivo, e, depois, a jusante, sucessivamente, com a validade e eficácia desse mesmo acordo” (cfr. conclusões do recurso, especialmente as nº2 a nº4 e nº6 a nº8).
Ora, a este respeito, previamente, tem de reconhecer-se que, entre a ineptidão da petição inicial e a inconcludência da acção, a linha divisória pode ser, em concreto, particularmente ténue.
Certo que, enquanto a ineptidão está verificada nos casos previstos no art. 186.º do CPC, o conceito da inconcludência já implica “a afirmação de que, perante os fundamentos fácticos invocados e a pretensão deduzida, o autor não pode obter ganho de causa” e onde “a ponderação é feita ao nível do fundo da questão, isto é, das condições da ação, sendo um caso de inconcludência ou de inviabilidade da ação, determinante da sua improcedência” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 221).
A esta luz, pensamos que para o enquadramento do caso num ou noutro instituto, e atenta a fluidez e dificuldade que a respectiva demarcação pode evidenciar em concreto, acima apontada, a averiguação tem de ser mais funda e incluir os pontos de facto que, para além ou em substituição da causa de aquisição originária do direito de propriedade ou das presunções das quais resulte esse direito a ser favor, o autor tenha invocado na petição inicial.
E que, no caso dos autos, se reconduz à alegação de um acordo com termo resolutivo, que faria a cessar a compropriedade de autor e ré sobre o imóvel reivindicado, e cuja invalidade, por falta de forma, seria neutralizada pelo abuso de direito imputado à ré.
Para além disso, importa ainda, com o mesmo propósito, perscrutar se os factos que o autor tenha escolhido como relevantes para a reivindicação foram alegados em acréscimo ou, diversamente, em substituição dos fundamentos admissíveis para estruturar essa acção.
Analisando as alegações e as conclusões do presente recurso, constata-se que é afirmada a existência de um acordo entre as partes, celebrado verbalmente e manifestado em mensagens trocadas através do telemóvel, que incluiria uma condição resolutiva quanto à compropriedade/propriedade do imóvel, por força do qual, caso o casamento se dissolvesse por divórcio, o imóvel em questão seria pertença exclusiva do autor.
Não colocando em crise que, como foi decidido em primeira instância, o referido acordo é nulo, mercê do disposto no 221º/1 do Código Civil, defende o recorrente, no entanto, que a invocação da nulidade, na situação em causa, por parte da ré, deve ser neutralizada, por corresponder ao exercício do direito em violação do disposto no art. 334.º do mesmo diploma legal.
Caso vingasse esta perspectiva, teríamos, então, que sobre a solenidade de uma escritura pública ou de um documento particular de aquisição devidamente autenticado, que faz prova plena das declarações de vontade nele inscritas (art. 371º/1 e 347º do CC), prevaleceria o acordo verbal que as partes manifestaram em mensagens trocadas através do telemóvel.
Todavia, independentemente dessa muito peculiar e estranha prevalência, temos, afinal e simplesmente, a manutenção de uma situação em que nada de relevante foi alegado, como é necessário na acção de reivindicação, relativamente à aquisição originária da propriedade ou à presença de uma presunção da titularidade desse direito exclusivamente a favor do autor.
E na qual, por força disso, tem o julgador de relevar que o único facto do qual pode emergir algum direito sobre o imóvel, emergindo da presunção do registo predial, beneficia no presente ambas as partes simultaneamente e aponta apenas para a compropriedade dos dois sobre o bem.
Reconduzindo a situação, pois, à falta de alegação dos factos necessários para o sucesso da pretensão reivindicatória ou à sua contradição com esta.
Em face deste enquadramento, perde relevância, embora constitua para nós uma constatação evidente, a afirmação de que os factos alegados pelo autor na petição inicial e no recurso estão muito longe de consubstanciar abuso de direito por parte da ré.
Perdendo importância, sob este ponto de vista, recordar a jurisprudência de que apenas “em situações excepcionais e bem delimitadas, pode decretar-se, ao abrigo do instituto do abuso de direito, a inalegabilidade pela parte de um vício formal do negócio jurídico, decorrente da preterição das normas imperativas que, à data da respectiva celebração, com base em razões de interesse público, regiam a forma do acto”, pois esta solução “carece de ser aplicada com particulares cautelas, não podendo generalizar-se ou banalizar-se, de modo a desconsiderar de modo sistemático o conteúdo da norma imperativa que regula a forma legalmente exigida para o acto” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/3/2016, relatado por Lopes do Rego, no processo 2234/11.3TBFAF.G1.S1 e acessível na citada base de dados).
Sendo ainda arredada, no caso concreto, na medida em que a aquisição do imóvel é imputada, na alegação do autor, a uma oportunidade de negócio, e não directamente a uma atitude da ré, pela falta do requisito, indispensável para o venire contra factum proprium, de que “a imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu” (cfr. A. Menezes Cordeiro, Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, in Revista da Ordem dos Advogados em linha, ano 2005, Vol. II, cap. 9, III).
Tal como, nesta ordem de ideias, é desnecessário convocar a ideia, também transmitida pela jurisprudência e plenamente justificada, de que “nos casos de nulidade formal dos negócios, não é qualquer actuação/ conduta contraditória que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, porquanto as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral”.
Razões pelas quais, “nestes casos específicos de pedido de declaração de nulidade de um negócio jurídico só excecionalmente é que se pode admitir a invocação do abuso de direito: desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade”, “isto é, as circunstâncias/pressupostos devem ser objecto de uma ponderação global, in concreto, para se aferir se existe uma exigência ético-jurídica de impedir a conduta contraditória” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/2/2018, tirado no processo 1189/16.2T8VIS e relatado por Luís Cravo, acessível em www.dgsi.pt).
Da mesma forma que se torna pouco relevante sublinhar que, para além de a conduta imputada à ré não traduzir clamorosa ofensa à boa fé e ao sentimento comunitário, a prevalência do acordo verbal pretendida pelo recorrente teria por efeito, iniquamente, impedir ou condicionar de modo excessivo a liberdade de comunicação informal entre as pessoas, a mudança da sua posição sobre a generalidade dos assuntos e, inclusivamente, o direito ao arrependimento.
O que, nesta perspectiva, realmente interessa e ganha relevância, isso sim, é a conclusão de que, mesmo contra todos os argumentos acima expostos, se fosse julgada procedente a invocação do abuso de direito, ainda assim se manteria a petição inicial totalmente ausente de factualidade capaz de traduzir, nos termos exigidos pelo art. 581.º/4 do CPC para a acção de reivindicação, o facto originário ou presuntivo de onde emana o direito real exclusivamente a favor do autor.
Trata-se, em consequência, de uma questão relativa à aptidão da petição inicial para a finalidade que lhe está destinada, respeitante à falta dos factos essenciais para o efeito, ou à sua contradição com os pedidos deduzidos, e não uma questão concernente ao mérito do pedido.
No mesmo sentido, sentenciou o Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 10/1/2022 que “gera o vício da ineptidão da petição inicial a falta de densificação ou concretização de factos essenciais em que se possa ancorar a pretensão deduzida”, de modo que, “não estando desenhado o real núcleo factual essencial integrador da causa petendi, mas mera presunção ou, mesmo, suposição/dedução do sujeito ativo, esta não surge caraterizada, ocorrendo a sua falta” (cfr. processo 865/21.2T8AMT.P1, estando o aresto, da autoria de Eugénia Cunha, disponível na base de dados acima indicada).
À luz de semelhante constatação, faz todo o sentido e é perfeitamente defensável o entendimento, seguido em primeira instância, de que o caso traduz o vício da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.
Na verdade, a defesa da propriedade exclusiva do autor, na petição inicial e no recurso, baseada somente no acordo verbal de condição resolutiva quanto à compropriedade, reconhecidamente nulo, é feita de forma totalmente distanciada e divergente das exigências legais da alegação em tema de acção de reivindicação que acima ficaram descritas.
Todavia, embora também aqui a linha de fronteira possa ser de difícil definição, parece-nos mais apropriada, e conforme ao circunstancialismo fáctico apresentado na petição inicial, a ideia de que o vício de que ela padece é o da contradição entre o pedido e a causa de pedir.
Com efeito, não pode olvidar-se que, para defender a sua posição, o autor descreve um quadro factual que, de relevante quanto aos fundamentos válidos para a acção de reivindicação, contempla apenas a compropriedade do imóvel, resultante da inscrição no registo, a favor de ambas as partes.
E cuja inclusão naquele articulado não pode considerar-se meramente acidental, ou sequer apenas introdutória, pois é nesse facto jurídico, devidamente documentado e fundador da presunção de compropriedade, que o autor fundamenta todos os pedidos relacionados com a divisão de coisa comum.
De modo que, embora o acréscimo dessa matéria diga sobretudo respeito à pretensão subsidiária, é de concluir que ela foi intencionalmente alegada e não pode ser ignorada como causa de pedir do processo.
Razões pelas quais, é mister concluir que, enquanto os factos essenciais constantes na petição inicial empurram a situação, de forma muito clara, para o reconhecimento da compropriedade entre as partes sobre o imóvel, o autor, de forma contraditória com essa realidade, opta por insistir na tese e no pedido de reconhecimento da exclusiva propriedade a seu favor.
O que constitui, ao cabo de contas, a concretização de um risco, que o autor assumiu de forma necessariamente voluntária, inerente à apresentação de causas de pedir incompatíveis e que, mesmo formuladas a título subsidiário, como ocorre no caso dos autos, passam a caracterizar, ou a inquinar, se for o caso, toda a petição inicial.
Note-se que a invocação de causas de pedir incompatíveis subsidiariamente não implica, por si só, o vício da ineptidão (cfr. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Pires de Sousa, Ob. loc. cit.).
Todavia, a incompatibilidade já será susceptível de inquinar a petição inicial, segundo pensamos, quando, à semelhança da situação de que estamos a tratar, da causa de pedir da pretensão principal nada exista de relevante que afaste a prevalência do facto jurídico inerente ao pedido subsidiário e que com aquela pretensão principal vai contender.
Analogamente, já decidiu a jurisprudência, a propósito da cumulação dos pedidos de reivindicação e de demarcação, “que se não se pode discutir, sem contradição intelectual, a existência do título e requerer a restituição da coisa (a qual tem de ser concretamente delimitada, em termos de fundamentação da causa de pedir – facto jurídico de que emerge o direitos real) e simultaneamente afirmar-se a existência dos títulos aquisitivos dos autores e réus por modo a requerer a demarcação a qual supõe a incerteza dos limites” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8/3/2022, relatado por Anabela Dias da Silva no processo 1008/20.5T8PVZ.P1 e disponível no referido sítio).
Da mesma forma, não se afigura possível, ao invés do que sucede na coligação ilegal (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/1/2020, proferido no processo 5533/18.0T8GMR.G1, sendo relatora Margarida Almeida Fernandes, pesquisável na citada base de dados), sanar a situação mediante despacho de convite à escolha de pedidos, visto que, para além de a questão não ter sido suscitada no recurso, está inviabilizada por força da incompetência absoluta reconhecida ao Juízo Central para o julgamento dos pedidos relativos à divisão de coisa comum.
Para além disso, a contradição entre o pedido e a causa de pedir, estando prevista na al. b) do art. 186.º/2 do CPC, é insusceptível de sanação mediante a constatação de que o réu interpretou convenientemente a petição, nos termos do nº3 daquela disposição legal, pois esta apenas remete para a al. a) do nº2.
Donde resulta a aplicação da regra geral de que, atenta a gravidade do vício, a ineptidão da petição inicial não é susceptível de sanação, salvo a excepção prevista no art. 186.º/3 do CPC e a resultante do Assento nº12/94 para a simples ininteligibilidade da causa de pedir (cfr. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Pires de Sousa, Ob. cit., p. 222).
O que, aliás, bem se compreende uma vez que, se porventura não desse origem à questão formal da ineptidão, a contradição entre a causa de pedir e o pedido necessariamente conduziria a uma decisão de mérito assente na manifesta inviabilidade da pretensão formulada, geradora de caso julgado material (o que, por sinal, foi decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/1/2022, acima citado).
Improcedem, deste modo, as conclusões nº1 a nº16 e nº22 do recurso.
Tal como é improcedente, manifestamente, a conclusão nº17, desde logo porque, como acima se disse, não está configurada a adopção de comportamento que reúna as exigências do abuso de direito, por parte da ré, como também tendo em conta que a apreciação dos pedidos deduzidos sob as alíneas E a O está arredada pela verificação da excepção da incompetência material.
Em consequência, como as restantes conclusões mereceram igual juízo de improcedência com a apreciação das questões formais que em primeiro lugar ocuparam este acórdão, resta negar provimento ao recurso.
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DECISÃO:
Com os fundamentos expostos, decide-se:
a) indeferir à junção de documentos com o recurso requerida pelo recorrente, condenando-o na multa processual de 2 (duas) UC; e
b) negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida que julgou verificada a excepção da incompetência em função da matéria e a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial.
Custas do recurso pelo recorrente, que nele decaiu (art. 527.º do CPC).
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SUMÁRIO
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(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)

Porto, d. s. (11/12/2024)
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
José Eusébio Almeida
Mendes Coelho