I – Num recurso a parte pode restringi-lo a um segmento decisório do dispositivo, nos termos do art.º 635.º, n.º 2 e n.º 4, do C.P.C.
II – A deixa de usufruto em legado, em conformidade ao disposto no art.º 2258.º do Código Civil, C.C., na falta de indicação em contrário, considera-se feita vitaliciamente.
III – O autor de testamento que havia sido casado em comunhão de adquiridos com pessoa pré-falecida e por óbito da qual não foi efetuada partilhada da sua herança, pode deixar por conta da quota disponível bens próprios e a meação nos bens comuns da herança que não foi partilhada, até atingir o limite da legítima dos (demais) herdeiros legitimários, devendo os montantes serem calculados por referência à data da abertura da sucessão do testador, em conformidade ao disposto nos artigos 2139.º, 2159.º, n.º 2, 2162.º, 2164.º e 2168.º do C.C.
IV – Tratando-se do legado de usufruto de coisa que não foi partilhada, que está indivisa e sobre a qual o testador apenas tinha direito a uma quota parte ideal, o legatário tem o direito a receber apenas o valor, de acordo com o disposto nos artigos 2252.º, 2251.º, n.º 4, e 1685.º do C.C.
V – Estando as partes de acordo quanto ao valor locatício mensal de um imóvel, como sendo o do usufruto legado, e tratando-se de interesses disponíveis, nada obsta a que seja operada a compensação entre os respetivos créditos: do legatário, do valor do seu legado até atingir o valor máximo da quota disponível, dos demais herdeiros pelo valor do uso, ou valor locativo do imóvel (em vez do termo renda, por não existir arrendamento), desde a abertura da sucessão do testador e até à efetiva entrega do bem aos herdeiros, em conformidade ao disposto nos artigos 266.º, n.º 1, e n.º 2, alíneas a) e c), in fine, do C.P.C. e 847.º.º, n.º 1 e n.º 2, do C.C.
VI – As nulidades previstas no art.º 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, C.P.C. são vícios formais e intrínsecos da sentença, procedimentais, distintos do erro de julgamento, seja de facto, de Direito ou de ambos.
VII – De acordo com o art.º 662.º, n.º 2, al. c), do C.P.C., a Relação deve, oficiosamente, anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, entre as demais hipóteses aí previstas, considere indispensável a ampliação da matéria de facto.
SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, C.P.C.):
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Relator: Jorge Martins Ribeiro;
1.ª Adjunta: Anabela Mendes Morais e
2.ª Adjunta: Fátima Andrade.
I – RELATÓRIO
Nos presentes autos de ação declarativa de simples apreciação e de condenação, com processo comum, são autores (AA.) AA, titular do N.I.F. ......, residente em ..., ..., ..., ..., Inglaterra, e BB, titular do N.I.F. ......, residente na Av. ...., ... ... Paredes, e é ré (R.) CC, titular do N.I.F. ......, residente na Rua ..., ... ... Paredes.
2) Aos 16/05/2023 foi realizada a audiência prévia, foi proferido o despacho saneador e foi admitida a reconvenção, nos termos dos artigos 266.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), e 583.º do C.P.C.
2.1) No dia 21/06/2023 foi proferido despacho a ordenar uma perícia sobre o valor do imóvel habitado pela R. à data do falecimento do autor da sucessão, companheiro daquela, e sobre o valor locatício do imóvel – sendo que ambas as partes concordavam no valor de 300 Euros.
2.2) Do relatório pericial, junto aos autos aos 02/10/2023, constam as seguintes questões e respostas indicativas de valores:
“1. Qual o valor atual do Prédio em causa, considerando a sua área coberta e [descoberta]: à data da avaliação e seu actual estado de conservação que é de 92.190,00 €.
2. Qual o valor do mesmo prédio, à data do óbito, 20 de Novembro de [2020]: Aplicando este factor correctivo ao valor total do prédio determinado á data actual, temos: 92.190,00€ x (1- 0,1875) = 74.904,38€.
3. Qual o valor locativo do [imóvel]: 307,30€/[mês]”([1]).
2.3) O relatório pericial foi notificado às partes e não foi objeto de pedido de esclarecimentos; nada mais foi requerido.
3) Aos 15/02/2024 realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
4) No dia 01/04/2024 foi proferida a sentença.
4.1) O objeto do processo foi então sumariado nos seguintes termos:
“Os autores AA, casada, contribuinte fiscal n.º ..., portadora do Passaporte n.º ..., válido até 24.04.2024, residente em 24, ..., ..., ..., INGLATERRA e BB, divorciado, portador do cartão de cidadão n.º ..., emitido pela República Portuguesa e válido até 27.07.2031 com o N.I.F. ......, residente na AVENIDA ..., N.º ..., 2º ANDAR-DIREITO, ... ... – PAREDES vieram propôr acção declarativa de condenação sob a forma de Processo Comum contra a ré CC, divorciada, portadora do bilhete de identidade n.º ..., emitido em 10/10/2006 pelos SIC do Porto, contribuinte fiscal n.º ..., residente na RUA... – ... ..., PAREDES, pedindo que a presente acção seja julgada provada e procedente e, em consequência, seja a Ré:
a) Declarar-se que o Prédio Urbano melhor identificado no art.º 3.º da Petição Inicial é pertença da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD e condenar-se a Ré a reconhecer esse pedido;
b) Declarar-se que o legado instituído pelo testamento outorgado no dia 28.04.2009, no Cartório Notarial a cargo da Notária EE, em Paredes é nulo em substância e válido apenas quanto ao valor, devendo a Ré ser apenas compensada pelos Autores em valor correspondente ao usufruto legado, desde que inferior ou igual à quota disponível do testador, tendo como valor máximo o limite desta e condenar-se a Ré a reconhecer este pedido.
c) Ordenar-se o cancelamento de todos e quaisquer registos efetuados ou a efetuar pela Ré que tenham por base o testamento que contém o legado referido.
d) Ser a Ré condenada a pagar aos Autores quantia nunca inferior a 300,00€/mês desde Dezembro de 2020 até à entrega efetiva do imóvel + falecimento do testador sem qualquer título que lhe legitime habitar o mencionado imóvel.
Porquanto, sendo os autores os únicos filhos da falecida DD e de FF, também, falecido que tendo sido casados, em regime de comunhão de adquiridos tiveram ambos como última residência a casa situada na Rua ..., ..., Paredes e, quando do falecimento da mãe dos autores (20.02.1996), não foi efectuada qualquer partilha da herança aberta por óbito desta, permanecendo a herança ilíquida e indivisa. Fazendo parte daquela herança o prédio constituído pela casa de rés-do-chão, com a área melhor descrita na caderneta predial e situada na Rua ..., ..., Paredes.
E, por sua vez, o pai dos autores após o falecimento da sua mulher passou a viver em união de facto com a ré a, quem, por testamento de 28.04.2009, legou, por conta da sua quota disponível à Ré, o usufruto de todos os bens que o inventariado possuísse à data da sua morte, devendo tal legado começar a ser preenchido pelo usufruto do referido prédio urbano.
Sendo o legado constituído por um bem determinado e certo que pertencia a um património colectivo ainda não partilhado, os autores entendem que o legado do pai é válido quanto ao valor, sendo nulo quanto à sua substância porque o testador não podia dispor do mesmo e conforme os demais termos alegados e para os efeitos que aqui se dão por reproduzidos.
4.2) Do dispositivo da sentença constam diferentes segmentos decisórios:
“VII - Dispositivo: Em conformidade com o acima exposto, julgo totalmente procedente, por provada a presente acção e, por consequência:
a) Declaro que o Prédio Urbano melhor identificado no ponto 3 dos factos provados é pertença da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD e, por conseguinte, condeno a Ré CC a reconhecer esse facto.
b) Declaro que o legado instituído pelo testamento outorgado no dia 28.04.2009, no Cartório Notarial a cargo da Notária EE, em Paredes é nulo em substância e válido apenas quanto ao valor, cabendo à Ré o valor correspondente ao usufruto legado, desde que inferior ou igual à quota disponível do testador, tendo como valor máximo o limite da referida quota, condenando-se a Ré igualmente a reconhecer tal facto.
c) Ordeno o cancelamento de todos e quaisquer registos efectuados ou a efectuar pela Ré CC que tenham por base o testamento que contém o legado referido.
d) Condeno a Ré CC a pagar aos Autores quantia de 300,00€/mês, desde Dezembro de 2020, por corresponder à data do falecimento do testador, até à entrega efectiva do imóvel, por não dispor de qualquer título que lhe legitime habitar o identificado imóvel.
Custas da acção principal e do pedido reconvencional totalmente a cargo da Ré (artigo 527º., nºs. 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que a mesma é beneficiária.
Registe e Notifique”([2]).
5) Aos 23/04/2024 a R. interpôs recurso da decisão, apenas quanto à matéria de Direito e, como resulta das conclusões, delimitando o objeto do recurso ao segmente decisório d) e quanto à improcedência da reconvenção.
5.1) Formulou as seguintes conclusões([3]):
“I. À Apelante foi legado, pelo Testador, seu companheiro de união de facto de muitos anos, o usufruto de todos os seus bens, a começar pela casa, onde aquele faleceu e com a Apelante continuou a habitar, fundada em tal «Deixa».
II. Esse prédio pertencera ao casal constituído pelo TESTADOR E POR SUA ESPOSA PRÉ FALECIDA, POR CUJO ÓBITO NÃO TINHA HAVIDO PARTILHAS.
III. Pelo que, nos termos da lei, este usufruto não podia recair sobre coisa da herança daquela, mas teria de ser pago em dinheiro, por um Valor que nas PARTILHAS coubesse na quota disponível do Testador- uma vez que havia 2 filhos do defunto casal.
IV. À Apelante falecia legitimidade para fazer tais partilhas, ou pedi-las ao TRIBUNAL.
V. Tal direito (e dever, para cumprir o legado, devido após um ano a contar do óbito do Testador)) cabia aos ditos filhos herdeiros (os AA e aqui apelados).
VI Estes, porém, usaram dum «estratagema» que, com a ajuda da Sentença do Tribunal muito prejudicou (lesou) a Ré (ex-companheira) na sua Boa Fé: aqueles AA. foram dizendo que queriam que a ré abandonasse a casa – que esta continuava a habitar, à espera que lhe fosse pago o respetivo usufruto, que devia começar por ela, alegando que o seu valor locativo era de € 300,00/mês (o que esta aceitou) e vieram pedir ao Tribunal tal valor, desde a morte do Testador(2020), isto é, milhares de €uros - O que o Tribunal, erradamente, concedeu!
VII. É que o valor locativo é diferente da renda devida: a renda tem imposto e pressupõe obrigações do senhorio que a podem consumir. E aquele, não! São coisas diferentes
VIII. Ora os AA. não alegaram que tinham algum interessado concreto em tomar de arrendamento aquele prédio, para então pedir a correspondente indemnização, ou invocar «EMPOBRECIMENTO SEM CAUSA» (cc. ART. 473)
IX. Além disso, se o Tribunal entendesse ser devida aos AA qualquer quantia, então devia ter admitido a reconvinda Compensação, já que admitira a Reconvenção com tal objeto e nada havia a obstar que a mesma operasse em termos de oportuno acerto de contas, cuja mora só os AA responsabilizam.
X Para cúmulo, o Tribunal «A Quo» acaba por julgar improcedente tal Reconvenção, que havia admitido, por ter cabimento legal (a visada Compensação), para na Sentença a Negar, sem aduzir qualquer fundamento (Decisão Nula) – CPC art. 615.
XI. Assim os AA. usaram duma artimanha – gritante Abuso de DIREITO- QUE O Tribunal, ilegal e injustamente, acolheu, que foi DE NÃO APURAR, NEM PAGAR O VALOR DO LEGADO, DEVIDO À RÉ…DEIXANDO CORRER ANOS, PARA DEPOIS VIR pedir que a ré pagasse um valor igual ao Valor locativo (QUE CONSUMIRIA TODO OU A MAIOR PARTE DO VALOR DO USUFRUTO - como se duma renda sem impostos nem outras obrigações se tratasse, renda que jamais a ré aceitou pagar, ao reconhecer tal valor locativo: os AA. exploraram assim, «a boa-fé da ré (abuso de direito)», já que ela tinha direito à simultaneidade das prestações, prevista na lei !
XII. Portanto, para proteger quem atua de boa fé, como a ré, não devia o Tribunal condená-la no pagamento (sem causa) do tal valor locativo! Até porque devem evitar-se as decisões surpresa. Nunca a ré podia pensar em ter de pagar o «valor locativo»! - que não constitui legal causa de pedir . E, para cúmulo, desde o óbito do testador: o que torna tal Decisão ainda mais gritantemente INJUSTA.
XIII. Assim decidindo, o Tribunal «a quo» fez má aplicação do disposto nos art. 334, 473 e 847 e ss. CC e violou o disposto no art.615, nº1 b) (não especificando os fundamentos de facto, porque inexistentes, para NÃO ACEITAR A COMPENSAÇÃO e para tal condenação) e ainda as alíneas e c) e d) do cit. Art. CPC., - de que faz incorreta interpretação-aplicação, ditando a nulidade deste segmento condenatório da Douta Sentença.
XIV. Exas., Mui Ilustres Desembargadores, revogando este segmento condenatório da Douta Sentença em apreço, ou, fazendo, pelo menos, operar (já nada resta para liquidar) a Compensação, ou, quando muito, condenando a Apelante a pagar tal «mensalidade» mas apenas a contar do trânsito em julgado da Decisão, - salvaguardando a boa fé da Ré, Farão a costumada JUSTIÇA”.
6) Os AA. responderam ao recurso, no dia 15/05/2024, defendendo a sua improcedência e formulando as seguintes conclusões([4]):
“a) No humilde entendimento dos Recorridos, a sentença proferida não merecerá qualquer reparo, não se compreendo os fundamentos do recurso apresentados pela Recorrente.
b) À luz do que resulta do disposto no citado art.º 1685º, nº. 2 ex vi art.º 2252º, ambos do Código Civil, a disposição testamentária que incida sobre bens certos e determinados pertencentes à herança ilíquida e indivisa é sempre válida quanto ao valor e, em princípio, nula quanto à substância (transformação ope legis de uma disposição em substância num legado de valor).
c) Ora, a Recorrente conforma-se com a douta sentença no que tange ao peticionado quanto à pertença do imóvel (herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD), como também aceita que o testamento outorgado em 28.04.20009 a seu favor é nulo em substância e válido apenas quanto ao valor. Ora,
d) Incide o recurso apresentado pela Recorrente apenas na sua condenação no pagamento da quantia mensal de 300,00€ em face da ocupação do imóvel sem qualquer título.
e) A Recorrente aceitou, através da contestação apresentada, nem a mesma impugna tal facto, que o imóvel que ocupa desde Dezembro de 2020 tem um valor locativo mensal de 300,00€ (trezentos euros).
f) Ocupando a Recorrente desde Dezembro de 2020 um imóvel sem título, o qual é pertença da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD e aceitando a mesma o valor locativo desse mesmo imóvel, torna-se impercetível e ininteligível o recurso apresentado bem como a sua argumentação.
g) A Recorrente alega um suposto direito de retenção e que o montante que a mesma aceita como sendo o seu valor locativo, não é devido pelo facto de, segundo a próprias palavras da Recorrente: «O VALOR LOCATIVO (QUE CONSUMIRIA TODO OU A MAIOR PARTE DO VALOR DO USUFRUTO…», ilustrativo dos interesses egoísticos da Recorrente.
h) Salvo o devido respeito por opinião contrária, a Recorrente confunde «alhos com bugalhos», confunde conceitos jurídicos e realidades jurídicas distintas, tornando-se difícil para os Recorridos responder ao recurso apresentado em face da ininteligibilidade do alegado, bem como à clara confusão de conceitos jurídicos.
i) A privação do uso de um imóvel com um valor locativo de €300,00, (valor aceite pela próprias Recorrente) decorrente de ato ilícito de quem, não tendo título legítimo para o ocupar, persiste nessa atuação, mesmo depois de interpelado para o entregar, representa um dano, dano esse peticionado e julgado procedente.
j) A Recorrente está a ter um claro benefício pela ocupação do imóvel sem qualquer título, ocupação essa que ocorre desde Dezembro de 2020, sem o consentimento ou autorização dos herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD, aqui Recorridos, que por diversas vezes interpelaram a Recorrente para abandonar o imóvel.
k) Ocorrendo uma ocupação de um imóvel pertencente a uma herança por terceiro sem título, nomeadamente da Recorrente, ocupação essa impeditiva do seu uso pelos herdeiros, o prejuízo causado a estes corresponde à parte do valor locativo daquele imóvel no mercado de arrendamento, durante todo o período em que se verificar tal ocupação.
l) A ocupação ilícita de um imóvel pertencente a herança ilíquida e indivisa gera responsabilidade civil do ocupante e a obrigação de indemnizar o proprietário pelos prejuízos causados, sendo que tais prejuízos podem ser quantificados pelo valor locativo do imóvel, reiterando-se que a Recorrente sempre aceitou o valor locativo.
m) A Recorrente não se encontra impedida de, em ação comum obter o cumprimento e entrega do valor do legado, não se compreendendo que a mesma alicerce a sua ilícita ocupação do imóvel pelo não pagamento do valor, o que também não se compreende pois a própria Recorrente não reconhecia ser devido qualquer valor, pois entendia que o testamento era válido.
n) Parece assim que não restam quaisquer dúvidas de que o recurso do Recorrente carece de qualquer fundamento, negando-se provimento ao mesmo;
TERMOS EM QUE, julgando a apelação totalmente improcedente, Vª Exa fará de sua inteira JUSTIÇA!”.
7) No dia 31/05/2024 foi proferido despacho a admitir corretamente o requerimento de interposição de recurso, mas sem que o tribunal a quo se tenha pronunciado, tendo em conta o disposto nos artigos 617.º, n.º 1, e 641.º, n.º 1, do C.P.C., sobre as arguidas nulidades da sentença.
8) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, do C.P.C., não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (como expresso nos artigos 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663, n.º 2, in fine, do C.P.C.).
Também está vedado a este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, revogação ou anulação.
Considerando o disposto no art.º 635.º, n.º 2 e n.º 4, o recurso está delimitando à matéria de direito e aos segmentos decisórios d) e de improcedência da reconvenção, tendo, no mais, a sentença transitado em julgado.
Assim, as questões (e não razões ou argumentos) a decidir são:
1) Se no atinente ao objeto deste recurso a sentença padece de alguma das apontadas nulidades previstas no art.º 615.º, n.º b), c) e d).
2) Se o Direito foi corretamente aplicado aos factos e se desta contam todos os factos necessários à boa decisão da causa à luz das possíveis soluções de Direito.
Na sentença recorrida a matéria de facto foi decidida pela seguinte forma ([5]):
Com relevo dos documentos e da produção de discussão da causa resultaram os seguintes factos:
1). Os Autores são os únicos filhos de DD e de FF, já falecidos, os quais foram casados, em regime da comunhão de adquiridos, tendo o óbito de DD ocorrido a 20 de Fevereiro de 1996 e o de FF ocorrido a 20 de Novembro de 2020, este último no estado de viúvo, tendo ambos como última residência Rua ..., ..., Paredes.
2). Quando do falecimento da DD, mãe dos Autores (20.02.1996), não foi efectuada qualquer partilha da herança aberta por óbito daquela, permanecendo a respectiva herança ilíquida e indivisa, à qual pertence o imóvel legado.
3). Da referida herança faz parte um imóvel que os pais dos Autores, já depois de casados, adquiriram e construíram com dinheiro dos mesmos a saber: Prédio Urbano composto por casa rés-do-chão, com área do terreno de 845m2 e área de implantação de 89,95 m2, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Paredes, inscrito na matriz respetivo sob o artigo ... e não descrito.
4). A mãe dos Autores, DD faleceu sem deixar testamento, ao contrário de FF que, no dia 28.04.2009, no Cartório Notarial a cargo da Notária EE, em Paredes, legou, por conta da sua quota disponível da sua herança a CC, divorciada, com ele residente, o usufruto de todos os bens que o inventariado possuísse à data da sua morte, devendo tal legado começar a ser preenchido pelo usufruto do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Paredes.
5). O pai dos Autores (FF), após o falecimento da sua mulher, viveu durante vários anos em união de facto, até à sua morte, com CC portadora do bilhete de identidade n.º ..., emitido em 10/10/2006 pelos SIC do Porto, N.I.F. ......, residente na RUA..., freguesia ..., concelho de Paredes.
6). O pai dos Autores, no estado de viúvo da mãe destes e quando a respectiva herança permanecia ilíquida e indivisa, legou à Ré o usufruto vitalício do prédio urbano composto por casa rés do chão, com área do terreno de 845m2 e área de implantação de 89,95m2, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Paredes, inscrito na matriz respetiva sob o artº ... e não descrito, apesar de à data tal imóvel não lhe pertencer.
7). Desde o óbito do pai dos Autores (20.11.2020) e testador que o Autores solicitaram por diversas ocasiões que a Ré abandonasse o imóvel identificado em 3 dos factos provados.
8). A Ré residia no imóvel identificado com o testador e continua a residir, apesar da Ré ter já sido interpelada para abandonar o imóvel.
9). O imóvel identificado tem um valor locativo de cerca de 300,00€/mês, vendo-se os Autores impossibilitados de arrendar o imóvel.
Contestação e Reconvenção
10). A Ré-reconvinda aceita que o valor locativo do imóvel que habita desde o óbito de FF – Dezembro de 2020 – corresponde ao montante de 300,00€/mês.
11). A Ré admitiu que entregará a casa em causa, a quem, nas partilhas, ela vier a ser adjudicada.
A restante factualidade alegada nas peças processuais juntas pelas partes que seja contrária aos factos acima provados, meramente conclusiva e ou direito mostra-se destituída de interesse para a presente causa.
Da petição inicial: 7, 9, 10 e 11 conclusivos.
Réplica: Nenhum.
1) Se no atinente ao objeto deste recurso a sentença padece de alguma das apontadas nulidades previstas no art.º 615.º, n.º 1. alíneas b), c) e d).
As respostas possíveis às questões colocadas pelo presente recurso não são inequívocas, pelo que a elas responderemos ressalvando o devido respeito por diferente entendimento.
Antes de prosseguirmos concretamente para a apreciação das apontadas nulidades, afigura-se-nos oportuno tecer dois considerandos sobre a motivação da decisão de facto e de Direito, por crermos que contribuirão para a compreensão desta decisão.
Assim, em primeiro lugar, daquela consta desde logo a solução jurídica que o tribunal a quo via para o caso:
“Em conclusão, dos factos provados resultou demonstrada a versão factual apresentada pelos autores, sendo de concluir pela procedência total dos pedidos, tendo em conta as regras do ónus da prova (artigo 342º., nº.1 do CCivil).
Em segundo lugar, a perícia ordenada oficiosamente pelo tribunal, e cujo relatório pericial não foi objeto de qualquer pedido de esclarecimento ou de contestação, foi depois ignorada pelo tribunal([7]), nem sequer foi referida na sentença([8]) – não obstante estar em causa, também, tendo em conta as diferentes mas possíveis soluções de Direito, determinar-se o valor do legado (enunciado, entre o mais, no facto provado n.º 4), pois que o valor do mesmo estava em discussão nos autos – dado que a reconvenção, que foi admitida, assentava na compensação do seu valor com o valor do uso (ou valor locatício) pedido pelos autores.
A propósito destes aspetos lemos na sentença o seguinte([9]):
“E, não obstante, a ré dispor de legitimidade para exigir em dinheiro o legado proveniente do testamento, nomeadamente por estar em causa a quota disponível do inventariado, todavia, cabe-lhe reconhecer que o identificado prédio urbano ao integrar a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da falecida DD e, por conseguinte, reconhecer a nulidade do legado em substância instituído por deixa testamentária de 28.04.2009.
Por outro lado, a ré somente pode ser compensada pelos autores em valor correspondente ao usufruto legado, mas desde que inferior ao valor da quota disponível do testador, tendo como valor máximo o limite desta, condenando-se a ré a reconhecer tal facto e, por conseguinte, a pagar aos autores a quantia mensal de 300,00 €, desde a data do falecimento do inventariado até à entrega efectiva do imóvel.
Assim sendo, concluindo-se pela procedência total dos pedidos principais e, improcedência da reconvenção, por ser manifesta a sua falta de fundamento legal”([10]).
Posto isto, apreciemos então as nulidades arguidas em sede de recurso, previstas no art.º 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d).
As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos da mesma, designados como error in procedendo, respeitando apenas à estrutura ou aos limites da sentença, estando taxativamente previstos no art.º 615º, n.º 1, alíneas a) a e), do C.P.C.
Como resulta (também) da Jurisprudência (pacífica), trata-se de vícios a apreciar em função do texto da mesma, do discurso lógico nele desenvolvido, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando – que são erros quanto à decisão de mérito constante da sentença), decorrentes de errada consideração da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do Direito (error juris) à matéria de facto, levando a que o decidido não corresponda à realidade ôntica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos.
A apreciação de erros de julgamento é distinta da verificação de uma nulidade da sentença.
Vejamos então cada uma das três apontadas.
Nos termos da al. b), a sentença é nula quando “[n]ão especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Fazemos nossa a síntese doutrinal e jurisprudencial efetuada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, datado de 03/03/2021, sendo relatora Leonor Cruz Rodrigues: “[a] nulidade contemplada nesse preceito ocorre quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão, impondo-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, e de ordem prática, posto que as partes precisão de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respectivo fundamento. Esse dever de fundamentação, causa de nulidade da sentença, respeita à falta absoluta de fundamentação, como dão nota A. Varela, M. Bezerra e [S. Nora], ao escreverem «Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito». Como já afirmava o Prof. Alberto dos [Reis] «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade». No mesmo sentido constitui jurisprudência pacifica e reiterada deste Supremo Tribunal de Justiça, sufragada, entre outros, nos acórdãos de 9.10.2019, Procº nº 2123/17.8LRA.C1.S1, 15.5.2019, Procº nº 835/15.0T8LRA.C3.S1 e 2.6.2016, Procº nº 781/11.6TBMTJ.L1.S1, que só se verifica a nulidade da sentença em caso de falta absoluta de fundamentação ou motivação não bastando que esta seja deficiente, incompleta ou não convincente”([11]).
Posto isto, e como é patente, os fundamentos de facto e os de Direito foram enunciados, pois que só a falta absoluta de uns, de outros ou de ambos determina tal nulidade, como vimos.
Quanto à nulidade prevista na al. c), verifica-se quando na sentença os “fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Lançando mão, novamente, da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, desta feita do acórdão proferido no processo n.º 3167/17.5T8LSB.L1.S1, aos 14/04/2021, relatado igualmente por Leonor Cruz Rodrigues, “[é] pacífico na doutrina e jurisprudência o entendimento segundo o qual a nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão aí contemplada pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la: a contradição geradora de nulidade ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido [diferente], e na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Secção Social, de 28.10.2010, Procº nº 2375/18.6T8VFX.L1.S3, 21.3.2018, Procº nº 471/10.7TTCSC.L1.S2, e 9.2.2017, Procº nº 2913/14.3TTLSB.L1-S1)”([12]).
Ora, também esta nulidade não se verifica; aliás, a sentença foi (interna ou intrinsecamente) coerente desde a motivação da decisão de facto à aplicação do Direito – bem ou mal, para o caso não interessa.
Não é alegado que a sentença enferme de ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível.
Resta a al. d), segundo a qual a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta nulidade está diretamente relacionada com o art.º 608.º, n.º 2, do mesmo Código, segundo o qual “[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
É crucial a distinção entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Como explica Alberto dos Reis, “[s]ão, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”([13]).
A sentença apreciou, novamente bem ou mal, para o efeito não releva, as questões, concluindo como concluiu.
Resulta assim a discordância da recorrente quanto ao teor do decidido, fundado em eventual erro de julgamento, de facto ou de Direito ou de ambos.
Improcedem assim as arguidas nulidades.
Questão n.º 2), saber se o Direito foi corretamente aplicado aos factos e se da sentença contam todos os factos necessários à boa decisão da causa à luz das possíveis soluções de Direito.
A resposta à questão, como pouco no Direito, não será incontrovertível; contudo, e novamente ressalvando o devido respeito por diferente entendimento, tentaremos explicar as razões conducentes à nossa.
A primeira pergunta que se nos coloca é, desde logo, a de sabermos se o tribunal a quo ponderou todas as possíveis soluções de Direito. Referimo--lo tendo em conta até os dois considerandos que tecemos no início desta parte.
Afigura-se-nos que a partir de determinado momento o tribunal desconsiderou a possibilidade, que até aí teria ponderado (por ter admitido a reconvenção nos termos em que foi deduzida), de neste processo se conseguir determinar o valor do legado – tendo até em conta a já mencionada perícia que determinou oficiosamente.
Parece-nos haver consenso quanto ao decidido em a), b) e c) na sentença recorrida – que, de todo o modo, transitou em julgado.
Se é certo que o processo de inventário por óbito dos pais dos AA.([14]) não se confunde com este processo, também o é que, neste caso, e como provado no facto n.º 1, os AA. são os dois únicos herdeiros (competindo-lhes, nos termos do art.º 2265.º, n.º 1 n.º 3, do Código Civil([15]), pois que do testamento([16]) nada consta em sentido contrário, satisfazer o encargo em partes iguais, por na proporção dos respetivos quinhões, 50%).
Recuemos um pouco.
A mãe o pai dos AA. eram casados em comunhão de adquiridos e aquela faleceu intestada aos 20/02/1996. De acordo com o disposto nos artigos 2157.º e 2159.º, n.º 2, o viúvo e os dois filhos eram herdeiros legitimários.
Assim, e tendo em conta o disposto no art.º 2139.º, à meação do viúvo nos bens comuns, 50%, acresce 1/3, 16,66%. Como não houve partilha da herança deixada aberta por óbito da mãe dos AA., à data da outorga do testamento (e da abertura da sucessão), o património (meação nos bens comuns e quinhão hereditário) do falecido testador correspondia a 66,66% da atual herança total, sendo cada um dos filhos titular de 16,66% da massa hereditária.
A partir do falecimento do pai, que deixou testamento por conta da quota disponível, que é de 1/3 (como resulta do art.º 2159.º, n.º 2), temos que o falecido podia dispor (do valor ou equivalente) de 22,22% do seu património, por 44,44 % integrarem a legítima dos filhos, em conformidade ao art.º 2156.º, calculado à data do óbito (20/11/2020), como resulta do art.º 2162.º.
É evidente que a massa da herança não se confunde com um bem que a integre; no entanto, para a economia do processo, e nisso ambas as partes estão de acordo, o que aqui releva é a determinação do valor do imóvel objeto do legado de usufruto (que, como nada foi dito no testamento, se tem por vitalício, isto segundo o art.º 2258.º), pois que nenhuma das partes se referiu, de todo, ao longo do processo, ao valor do recheio da casa (recheio cujo usufruto foi deixado também no testamento) e/ou a outros bens da herança.
A legatária aceitou o legado, pois continuou a viver na casa e é ré nestes autos, referência que fazemos tendo em conta o disposto no art.º 2249.º, legado que ao testador não cabia por inteiro, aplicando-se então o previsto nos artigos 2252.º, 2251.º, n.º 1 e n.º 4, e 1685.º, n.º 1 e n.º 2, daí que à R. apenas assista o direito de receber o valor – a calcular de modo a que se não torne uma liberalidade inoficiosa, por ofender a legítima, por exceder a quota disponível (nos termos dos artigos 2168.º e 2169.º) do testador.
Os AA. aceitaram a herança, como resulta inequivocamente dos autos e do teor do doc. n.º 9([17]) junto com a petição inicial, em que aos 18/05/2022 o enviaram à ré, tendo sido recebido aos 20/11/2022([18]) ([19]).
Dispõe o art.º 2270.º que “[n]a falta de declaração do testador sobre a entrega do legado, esta deve ser feita no lugar em que a coisa legada se encontrava ao tempo da morte do testador e no prazo de um ano a contar dessa data, salvo se por facto não imputável ao onerado se tornar impossível do cumprimento desse [prazo]”([20]). Como é patente nos autos, até hoje o legado, o seu valor (tanto mais que o pedido em b) foi julgado procedente e não é objeto do recurso), encontra-se por cumprir, daí o dissídio.
Ambas as partes, e é claro o que afirmam nos articulados, usam a expressão “valor locativo” do imóvel como sinónimo de contrapartida pelo uso e fruição do mesmo – pois que não podem usar o termo “renda” por saberem ambas que não está em causa um contrato de arrendamento. Fazemos esta referência por a análise dos pedidos (em ação e em reconvenção) ter de ser feita à luz das respetivas causas de pedir.
Assim, e quanto à petição inicial, os AA. referem no art.º 11 que a R. não pode beneficiar do usufruto do imóvel, “podendo apenas exigir o respetivo valor em dinheiro” (300 Euros mensais desde dezembro de 2020, o mês a seguir à morte do testador), afirmando no art.º 12.º que solicitaram por diversas ocasiões que a R. abandonasse o imóvel (o que, e sem prejuízo da observação que quanto a tal deixámos em nota, implica que tenham aceitado a herança, devendo assim satisfazerem, em prazo, o valor do legado); no entanto, e como dissemos já, quanto a tal apenas juntam os mencionados documentos n.º 9 a n.º 11.º([21]).
Ora, um ano depois do envio do documento n.º 9, ou seja, aos 18/05/2023 – e até à data – o legado está por cumprir – ao passo que se pretende o recebimento do “valor locatício”.
Atente-se que tal data ocorreu antes do despacho, proferido aos 21/06/2023 a determinar a perícia, em que se pretendia, entre o mais, apurar o valor locatício do imóvel – fixado na perícia em 307,33 Euros – e anterior ao fim do encerramento da audiência de discussão e julgamento (alegações orais – o que referimos tendo em conta o disposto nos artigos 609.º, n.º 2, e 611.º, n.º 1, do C.P.C.), ocorrido no dia 15/02/2024.
Estávamos a mencionar o entendimento de “valor locatício” pelas partes (que, independentemente do teor da dita perícia, foi objeto de acordo pelas partes); tendo visto a petição inicial, vejamos agora a contestação: resulta claramente dos artigos 7.º e 10.º (e 11.º) que a aceitação, pela R., do “valor locatício” mencionado pelos AA. foi na lógica de obter a compensação do que configura o seu crédito: o do valor do usufruto, ainda por receber, com o valor locatício pretendido pelos AA.
Assim, acabamos por não perceber o sentido do que os AA. afirmam no art.º 6.º da réplica: “ter a R. efetivamente legitimidade de exigir em dinheiro o legado proveniente do testamento, nomeadamente a quota disponível, motivo pelo qual não se compreende a reconvenção deduzida”.
E, a nosso ver, bem, a reconvenção foi admitida por despacho de 16/05/2023, nos termos dos artigos 266.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) e c), “[o] réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor. [A] reconvenção é admissível nos seguintes casos: a) quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à [defesa] c) [q]uando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor”([22]) e 583.º do C.P.C.
Tendo em conta o que dissemos já quanto ao valor locatício, tal como invocado e entendido pelas partes (até para efeito da economia do processo), e que estamos no âmbito de interesses disponíveis, importava por isso que o tribunal a quo tivesse apurado, entre outros factos, pelo menos o valor do legado([23]), linha de raciocínio que a data altura parece ter sido abandonada, concluindo (de forma “conclusiva” – perdoe-se-nos o pleonasmo), e sem os devidos considerandos (ou seja, perfunctoriamente, até logo na motivação da decisão da matéria de facto) que a pretensão da ré, a compensação, teria de improceder, sem mais.
Antes de terminarmos e sem qualquer pré-juízo, apenas para nos explicarmos o mais claramente possível.
Imagine-se, a título de exemplo, que os valores referidos na (depois ignorada) perícia até teriam cabimento. Então, as contas seriam as seguintes:
74904,38 Euros (valor locativo à data do óbito) X 66,66% (quota do testador na herança) = 49931,25 Euros;
49931,25 Euros: 1/3 (quota disponível, que, como dissemos, pressupõe o da herança) = 16.643,75 Euros (como o usufruto é vitalício, este seria o valor máximo do mesmo).
Então, e estando as partes de acordo num “valor locatício mensal de 300 Euros”([24]) (se outro não for apurado([25]), pois que o constante da perícia, ainda que aproximado, é o de 307,33 Euros) o acerto de contas ou montante de crédito não seria uma operação difícil([26]), tendo, entre o mais, a vantagem económico-processual de evitar mais um processo às partes.
De acordo com o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do C.P.C., cuja epígrafe é “[m]odificabilidade da decisão de facto”, “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que é aplicável em casos de recurso sobre a matéria de facto, desde que cumpridos os ónus previstos no art.º 640.º do C.P.C. ou então, mesmo que não o tenham sido, se estiver em causa a violação do direito probatório material([27]).
Segundo o mesmo artigo, mas na previsão do n.º 2, al. c), “[a] Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: c) [a]nular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”([28]) ([29]).
Esta última hipótese da norma é aquela que corresponde ao que vimos expondo: entre outros, e para a justa composição do litígio à luz de todas as plausíveis soluções de Direito, e o mais celeremente possível (como resulta, entre outros, também do art.º 6.º do C.P.C.) importa determinar o valor do legado, entre outros factos que, neste âmbito, sejam tidos por relevantes([30]), nos termos que expusemos.
Pelo exposto, por ser indispensável a ampliação da matéria de facto, com vista ao prévio apuramento do valor da quota disponível do inventariado (e aferir o limite máximo do valor do usufruto legado, para que não se torne inoficioso) a sentença será anulada nesta parte objeto de recurso (segmento decisório da al. d) e improcedência da reconvenção).
III – DECISÃO
Pelos motivos expostos, e nos termos das normas invocadas, acordam os juízes destes autos no Tribunal da Relação do Porto, por maioria, em anular a sentença recorrida no atinente ao objeto deste recurso (segmento decisório da al. d) e improcedência da reconvenção) para ampliação da matéria de facto, nos termos acima analisados.
Custas da apelação pelos AA. que contra-alegaram, nos termos do art.º 527.º do C.P.C.
Porto, 11/12/2024.