CONTRATO DE TRANSPORTE COMBINADO OU MULTIMODAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PERDA DAS MERCADORIAS
COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL
Sumário

I - Para a determinação da competência em razão da matéria deve atender-se ao pedido e à causa de pedir alegados na petição inicial, de acordo com a relação jurídica material controvertida apresentada em juízo pela autora.
II - Tendo sido invocado como causa de pedir na petição inicial a celebração de um contrato de transporte via marítima e terrestre (transporte combinado ou multimodal) entre a autora e a ré, imputando-se a esta responsabilidade contratual pela perda de mercadoria durante o transporte contratado, desconhecendo-se em que fase do transporte ocorreu tal perda, a competência material para conhecer dessas questões relativas a contratos de transporte por via marítima ou contrato de transporte combinado ou multimodal compete ao tribunal marítimo, em conformidade com o art. 113º nº 1 al. c) da LOSJ.

Texto Integral

Processo n.º 6528/22.4T8MAI.P1- Apelação
Juízo Local Cível da Maia- Juiz 4

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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO

1. A..., Lda intentou ação declarativa sob processo comum contra B..., SA tendo formulado os seguintes pedidos:
-ser a R. condenada a pagar à A. a quantia de Eur. 33.324,35, a título de danos patrimoniais – concretamente, atentos os montantes despendidos no pagamento do material não recebido e pago e direito alfandegários - acrescida de juros contados desde a citação e até integral pagamento.
Caso assim não se entenda,
-Sempre se dirá que deve a R. ser condenada a pagar à A. a quantia de Eur. 10.582,33 a título de taxas de sobre carga pagas e não devidas.
Para o efeito alegou em síntese que celebrou com a Ré um contrato de transporte, via marítima e terrestre, de mercadorias compradas a um fornecedor da China, contrato esse que a Ré cumpriu de forma defeituosa porquanto lhe entregou menos de 30 toneladas do que as adquiridas e contratadas transportar e em consequência viu-se lesada não só na carga que não recebeu, mas também no preço, taxas e impostos que pagou por algo que nunca recebeu, pretendendo ser indemnizada pela Ré por esta ter incorrido em responsabilidade contratual.

2. A Ré deduziu contestação, invocando a excepção da incompetência material do tribunal, defendendo que a competência para o julgamento desta ação cabe ao tribunal marítimo, tendo ainda apresentado defesa por impugnação e suscitado a intervenção principal provocada de terceiros.

3. Admitida a requerida intervenção de terceiros, as intervenientes apresentaram contestação, tendo a interveniente C..., SA suscitado a mesma excepção da incompetência material do tribunal cível, defendendo que a competência para o julgamento desta ação está atribuída ao tribunal marítimo.

4. Tendo sido concedido o exercício do contraditório à Autora, para se pronunciar por escrito sobre a matéria de excepção suscitada na contestação, a Autora pugnou pela improcedência da incompetência material, defendendo que a competência em razão da matéria compete ao tribunal cível onde a ação foi instaurada.

5. Foi proferida decisão em acta de Audiência Prévia de 17.05.2024, Ref. Citius 460259513, com o seguinte dispositivo (transcrição).
“Pelo exposto, julga-se procedente a exceção e declara-se este Tribunal incompetente em razão da matéria para apreciar a ação e absolvem-se a ré e as chamadas da instância.
Fixo o valor da ação em: € 33.245, 33
Custas pela autora, que fixo a T.J. em 1 U.C.
Registe e notifique.
Notifique.”

6. Inconformada com a decisão, a Autora interpôs recurso de apelação da decisão, formulando a seguinte
CONCLUSÃO
Única: A decisão recorrida, salvo o devido respeito, andou mal ao decretar a incompetência material do Tribunal Cível e ao entender que a competência para a presente ação devia ser deferida ao Tribunal Marítimo, violando as normas em que se estribou para o efeito e fazendo má interpretação (extensiva), concretamente do artº 113º, nº 1, alíneas c) e s), da Lei nº 62/2013, de 26.8.
Concluiu pedindo que o recurso mereça provimento e seja revogada a decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos no tribunal a quo.

7. Foi apresentada resposta pela interveniente C..., SA, pugnando pela manutenção do julgado.

8. Foram observados os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
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A questão a decidir é a seguinte:
- Se o tribunal cível é o tribunal materialmente competente para julgar a presente ação.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Para a decisão a proferir relevam todos os factos inerentes à tramitação processual e respectivas peças processuais, constantes do relatório acima elaborado.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
Na decisão recorrida foi determinado que competia ao tribunal marítimo a competência material para julgar a presente ação- sendo para tal incompetente o tribunal cível onde a acção foi instaurada- tendo em atenção a relação jurídica estabelecida entre a Apelante e a Apelada sempre na perspectiva apresentada na petição inicial, tendo sido feita alusão concreta à factualidade decorrente daquele articulado quanto à causa de pedir invocada expressamente pela aqui Apelante, nos termos que passamos a reproduzir:
“Materializando as noções supra expendidas ao caso que nos cumpre apreciar e decidir, resulta na petição inicial, a A. alega a seguinte factualidade: “ Após uma análise de mercado, optou por contratar os serviços da R., uma vez que esta se apresentou como tendo os meios e condições necessários para proceder ao transporte via marítima e terrestre daquele material, desde a sede da “D...., Ltd” até à sede da A.”; “ O representante da R. explicou, de forma detalhada, como se realizaria o transporte e as especificações a ter em conta atentas as condições de carga e das instalações da A., designadamente que:
a. O contrato de transporte a ser celebrado entre a A. e a R. incluiria a recolha da carga em local a definir posteriormente pelo fornecedor através de transporte terrestre até ao Porto Marítimo mais próximo na China;
b. De seguida, o transporte marítimo entre o Porto escolhido na China e o Porto de Sines;
c. O transporte de comboio entre o Porto de Sines e o Porto de Leixões;
d. Por fim, a trasfega da mercadoria dos contentores para camião, uma vez que a A. não tem cais de descarga adequado à “entrega/colocação” de contentores.”;
“ Foi ainda referido pelo representante da R. que a proposta apresentada pela R. incluía os seguros de carga e de transporte marítimo (na altura aconselhados pelo representante da R.), bem como os montantes relativos às taxas e direitos inerentes à importação de carga da China, nomeadamente, a referente ao antidumping, …”;
“ Atento a quantidade de carga que a A. pretendia adquirir, ficou definido entre A. e R. que a mercadoria seria transportada em 6 (seis) contentores e,”;
“ Para que fosse aproveitada ao máximo a potencialidade de carga dos mesmos a A. decidiu ainda que pretendia pagar a taxa de sobrepeso.”;
“ Assim, atento tudo o supra exposto, foram definidos os termos do contrato de transporte a celebrar entre A. e R.”;
Quando foram rececionados os três últimos contentores, as diferenças de peso relativamente ao VGM de cada um dos contentores revelaram-se muito relevantes já que correspondiam a uma perda de cerca de 10 toneladas por contentor. …”;
“ trata-se de uma diferença que, apenas se justifica, caso toda a carga adquirida e enviada, não tenha sido mantida no decurso de todo o transporte.”
Dos citados artigos da petição inicial resulta que a causa de pedir consiste no alegado cumprimento defeituoso pela R. de um contrato de transporte combinado ou multimodal de três contentores – por via terrestre (do local de recolha dos contentores até ao porto de embarque e do terminal de ... até à sede da A.), marítima (do porto de embarque até ao porto de Sines) e ferroviária (do porto de Sines até ao terminal de ...) –, traduzido na perda de cerca de 10 toneladas de carga por contentor no decurso do transporte.
Os pressupostos processuais, nomeadamente a competência do tribunal, devem ser apreciados à luz da relação material controvertida configurada na petição inicial, sendo que, no caso concreto, resulta dos factos alegados pela A. que a R. assumiu perante si uma obrigação de resultado – deslocar e entregar as mercadorias na sede da A. -, típica do contrato de transporte.
O art. 113º/1 da Lei nº 62/2013, de 26.8, dispõe que “Compete ao tribunal marítimo conhecer das questões relativas a: … c) Contratos de transporte por via marítima ou contrato de transporte combinado ou multimodal; … s) Todas as questões em geral sobre matérias de direito comercial marítimo.”.
Nos termos do mapa IV, anexo ao DL nº 49/2014, de 27.3, que procedeu à regulamentação daquela lei, a área de competência territorial do Tribunal Marítimo compreende a dos Departamentos Marítimos do Norte, Centro e Sul.
Assim, o tribunal materialmente competente para conhecer da acção é o Tribunal Marítimo, e não o Tribunal Cível.”
A análise jurídica constante da decisão recorrida, por recurso à factualidade que consubstancia a causa de pedir invocada pela aqui Apelante na petição inicial, em sintonia com o enquadramento da relação submetida à apreciação do tribunal, acompanha de perto os ensinamentos da generalidade da doutrina e jurisprudência, segundo os quais para determinação da competência em razão da matéria deve atender-se ao pedido e à causa de pedir alegados na petição inicial, isto é, à relação jurídica material controvertida segundo a versão apresentada em juízo pela autora.[1]
Nesse sentido, entre vários outros, citamos o recente Ac STJ de 23.01.2024, segundo o qual a competência material do tribunal deverá ser apreciada consoante os termos em que a ação é proposta, atendendo-se ao pedido e à causa de pedir formulados pelo autor.[2]
Tendo os tribunais de comarca uma competência residual (art. 80º nº 1 da LOSJ), para determinar qual o tribunal competente para julgar esta ação, importaria, tal como procedeu o tribunal a quo, apurar em primeiro lugar se a competência cabia ao tribunal marítimo, tribunal de competência territorial alargada (art. 83º nº 1 al. c) da LOSJ), conforme propugnava a Apelada e a Interveniente nas respectivas contestações.
Conforme se fez menção na decisão recorrida, de acordo com o art. 113º nº 1 da LOSJ (Lei 62/2013 de 26.08), ao tribunal marítimo compete conhecer das questões relativas a:
(…)
c) Contratos de transporte por via marítima ou contrato de transporte combinado ou multimodal;
(…)
s) Todas as questões em geral sobre matérias de direito comercial marítimo.
Em função da causa de pedir apresentada pela própria Apelante na petição inicial, tendo esta invocado a celebração entre ela e a Apelada de um contrato de transporte via marítima e terrestre (transporte combinado ou multimodal) e imputando àquela responsabilidade contratual pela perda de mercadoria durante o transporte contratado, peticionando uma indemnização decorrente do cumprimento defeituoso do referido contrato, está correcta a decisão recorrida que determinou estar atribuída a competência material para conhecer das questões relativas a contratos de transporte por via marítima ou contrato de transporte combinado ou multimodal ao tribunal marítimo, em conformidade com o art. 113º nº 1 al. c) da LOSJ, e não ao juízo cível onde a ação foi instaurada.
Apesar de a aqui Apelante em sede deste recurso argumentar que o que está em causa neste processo é o incumprimento das obrigações de operador transitário e de logística e de controlo de carga relativamente aos diversos transportes envolvidos, a causa de pedir invocada na petição inicial não foi assim apresentada, nunca tendo sido apontado qualquer cumprimento defeituoso das obrigações da Apelada enquanto transitária, mas um cumprimento defeituoso do contrato de transporte de cuja organização a Apelada havia sido incumbida, no decurso do qual parte da mercadoria transportada terá desaparecido, desconhecendo apenas a Apelante em que momento do transporte tal terá sucedido.
Independentemente de a Apelante ter alegado na petição inicial que a Apelada se dedica à atividade de transitário e de logística, relacionadas com o transporte de mercadorias por via aérea e marítima, certo é que alegou ter com ela celebrado um contrato de transporte de mercadorias por via terrestre e marítima que aquela cumpriu de forma defeituosa, estando-se perante uma questão comercial marítima, relativa a serviços fornecidos pela Apelada à Apelante no âmbito de um contrato de transporte multimodal, no qual se incluiu o transporte via marítima.
E não é a mera qualidade de agente transitário que invalida que o contrato celebrado haja sido um contrato de transporte, apesar de englobar quer o tratamento das questões de carga e descarga e de natureza aduaneira, quer a deslocação das mercadorias por via terrestre e marítima, e de o transporte poder não ter sido por meios próprios da Apelada mas através de terceiros por ela contratados.
A Apelante repetiu de forma abundante na petição inicial que “optou por contratar os serviços da R., uma vez que esta se apresentou como tendo os meios e condições necessários para proceder ao transporte via marítima e terreste daquele material”(art. 5 da PI); que “o representante da R. explicou, de forma detalhada, como se realizaria o transporte e as especificações a ter em conta atentas as condições da carga e das instalações da A., designadamente que:
a. O contrato de transporte a ser celebrado entre A.e R. incluiria a recolha da carga em local a definir posteriormente pelo fornecedor através de transporte terrestre até ao Porto Marítimo mais próximo na China;
b. De seguida, o transporte marítimo entre o Porto escolhido da China e o Porto de Sines;
c. O transporte por comboio entre o Porto de Sines e o Porto de Leixões;
d. Por fim, a trasfega da mercadoria dos contentores para camião, uma vez que a A. não tem cais de descarga adequado à “entrega/colocação” de contentores (art. 8 da PI); “foi ainda referido pelo representante da R. que a proposta apresentada pela R. incluía os seguros de carga e transporte marítimo (na altura aconselhados pelo representante de R.), bem como os montantes relativos às taxas e direitos inerentes à importação de carga da China, nomeadamente, a referente ao antidumping” (art. 9 da PI);tendo sido explicitamente alegado que “atento tudo o supra exposto, foram definidos os termos do contrato de transporte a celebrar entre A. e R.” (art. 12 da PI) contrato esse que foi efectivamente celebrado, porquanto alegou ainda que “A R. emitiu, relativamente a cada um dos contentores pelos quais era responsável pelo transporte, a “Bill Of Lading”, isto é, um documento emitido por uma transportadora a um expedidor, no qual se confirma que as mercadorias foram recebidas em determinado estado, estando as mesmas prontas para envio. Ou seja, em síntese, trata-se de um contrato entre o expedidor, o destinatário e a transportadora, que estipula os Termos e Condições do transporte” (arts. 38 e 39 da PI), e relativamente ao cumprimento defeituoso de tal contrato foi alegado que “a R. declarou e assumiu que recebeu a carga para transportar em boas condições aparentes, não tendo aposto qualquer reserva às mesmas, contudo (…) a R. entregou à A. menos de, aproximadamente, 30 toneladas, do que as adquiridas e contratadas transportar (art. 44 e 45 da PI), afirmando que “a A. pagou à R. o serviço de transporte para a quantidade de carga contratada (aproximadamente 27 toneladas por contentor), contudo a R. entregou-lhe – incumprindo o contratado – cerca de menos 30 toneladas de chapa” (art. 79 da PI), pretendendo ser reembolsada dos custos que pagou à Apelada relativos à carga que não recebeu.
Como se essa factualidade não bastasse para reconduzir a causa de pedir ao cumprimento defeituoso de um contrato de transporte, concluiu a Apelante nos arts. 87 a 90 da PI que “A. e R. celebraram um contrato mediante o qual a R. se obrigou a deslocar os bens comprados pela A. na China, para as suas instalações, em ... e que, segundo o que a R. transmitiu à A., tal transporte iria ser realizado – como foi – via terrestre e marítima, pelo que a A. não interferiu, nem tem conhecimento, no modo, propriamente dito, como foi efetuado o transporte da sua mercadoria, isto é, se por meios próprios da R. ou se esta recorreu à subcontratação (total ou parcialmente) para a realização do mesmo, motivo pelo qual, sempre se dirá, que é a R. totalmente responsável por todos os segmentos do transporte e todas as circunstâncias a que cada um desses está subjacente e, consequentemente, por todo e qualquer dano que a A. haja sofrido – como sofreu – pelo cumprimento defeituoso da obrigação da R.”
Deste modo, independentemente da alegação feita pela Apelante no art.3 da petição inicial de a Apelada se “dedicar à atividade de transitário e de logística, relacionadas com o transporte de mercadorias por via aérea e marítima”, resulta evidente que foi alegado pela própria Apelante na petição inicial que no contrato entre elas celebrado foi contratado o transporte das mercadorias (multimodal) e que foi no decurso desse transporte que ocorreu o dano cuja reparação a Apelante pretende obter da Apelada, estando perfeitamente definida a causa de pedir e o pedido reportados ao cumprimento defeituoso do contrato de transporte combinado ou multimodal.
Tal como já havia sido decidido no Ac STJ de 9.07.2014, o facto de a Apelada se dedicar à actividade de transitário não impede que possa incluir nos serviços que presta o serviço de transporte e por ele venha a ser responsabilizada em caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso, pois que “um contrato de prestação de serviços de actividade transitária pode incluir a celebração de contratos de transporte, pelo agente transitário, por conta da outra parte e, nessa eventualidade, o agente transitário garante o pagamento de indemnizações que venham a ser devidas pelo transportador material, por cumprimento defeituoso do serviço de transporte, nos termos do regime aplicável ao contrato de transporte.”[3]
Deste modo, devendo ser definido o contrato celebrado entre a Apelante e a Apelada em função das obrigações assumidas pela Apelada, que foram as de transportar as mercadorias adquiridas pela Apelante do fornecedor estrangeiro para a sede daquela- por via marítima e terrestre-e tendo a própria Apelante alegado repetidamente que celebrou com a Apelada um contrato de transporte cujo cumprimento defeituoso lhe imputa, considera-se inócua a argumentação expendida pela Apelante contra a interpretação extensiva do art. 113º al. c) da LOSJ de que o tribunal a quo se socorreu, de forma subsidiária, para também incluir o contrato de expedição ou trânsito por via marítima ou com recurso a mais do que um meio de transporte na competência do tribunal marítimo.
Relevante é que a decisão de incompetência material foi proferida em função da causa de pedir e do pedido alegados pela Apelante, a qual se reconduz, como vimos, aos factos essenciais relativos ao alegado cumprimento defeituoso do contrato de transporte, cujo conhecimento está inegavelmente previsto como sendo do tribunal marítimo, no referido normativo legal, independentemente da actividade do contraente ser ou não uma actividade de transitário, relevando apenas o conteúdo das obrigações assumidas no contrato e os termos em que a relação material controvertida foi descrita na petição inicial pela Apelante, que apontam para a existência de um contrato de transporte multimodal (que inclui o transporte marítimo) que não foi devidamente cumprido pela Apelada.
Uma última palavra para referir que, a nosso ver, a decisão proferida no douto Ac RP de 13.03.2017 (proferido no Proc. Nº 869/15.4T8AVR-A.P1) convocado pela Apelante em abono da sua posição, não é transponível para a hipótese destes autos, porquanto naquele aresto está devidamente definido que o Tribunal Marítimo não era o tribunal materialmente competente “em função dos termos em que a demanda foi proposta, considerando-se a forma como a Autora estruturou o pedido e os respectivos fundamentos” (…) porquanto havia sido peticionada “indemnização pela perda (furto) da mercadoria, ocorrido durante a execução do contrato de transporte terrestre da ajuizada mercadoria”(…) e o que se discutia era se o seguro de carga celebrado para cobrir os riscos que ocorressem na fase do transporte via marítima abrangeria ou não os sinistros ocorridos na fase do transporte terrestre.
Naquele caso, embora estivéssemos também perante um contrato de transporte multimodal, foi logo definido pela autora na petição inicial que o incumprimento do contrato de transporte havia ocorrido durante o transporte terrestre, pelo que é compreensível que a competência especializada dos tribunais marítimos tenha sido naquele caso específico arredada.
Não obstante, no caso em apreço não foi nada disso alegado, porquanto, tal como as partes reconhecem, foi alegado ter sido celebrado entre a Apelante e a Apelada um contrato de transporte multimodal, que em parte foi executado por via marítima, desconhecendo-se em qual das modalidades do transporte o dano se verificou, estando em aberto que o tenha sido na fase do transporte marítimo.
Por conseguinte, considerando que estamos perante a apreciação de um litígio cuja causa de pedir complexa consubstancia o alegado cumprimento defeituoso de um contrato de transporte multimodal celebrado entre Apelante e Apelada, no qual as mercadorias foram transportadas também por via marítima e durante o transporte em parte desapareceram, as questões a resolver, de natureza comercial, deverão ser analisadas à luz do referido contrato e do direito comercial marítimo, designadamente das legislações abstratamente aplicáveis ao caso concreto, nas quais se inclui o DL nº 352/86 (que rege o contrato de transporte de mercadorias por mar), o DL nº 191/87 (que estabelece normas relativas ao contrato de fretamento de navio), sem prejuízo da eventual articulação com o DL nº 255/99 de 7.07 (que estabelece o regime jurídico aplicável ao acesso e exercício da actividade transitária) e, como tal a competência material para a resolução de um litígio desta natureza- em função da causa de pedir e do pedido tal qual apresentados pela Apelante/Autora na petição inicial- está atribuída pelo art. 113º al. c) e s) da LOSJ ao tribunal marítimo.
Concluindo, o litígio sub judice, face ao nele peticionado e à respetiva causa de pedir alegados na petição inicial, cabe na área de competência do tribunal marítimo, à luz das alíneas c) e s) do n.º 1 do art.º 113.º da LOSJ, o que determina a confirmação da absolvição da instância da Ré decidida na decisão recorrida, por ser o juízo cível, onde a ação foi instaurada, materialmente incompetente para decidir a presente acção.

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V. DECISÃO:
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso interposto pela Apelante, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da Apelante.

Notifique.






Porto, 11.12.2024
Maria da Luz Teles Meneses de Seabra
(Relatora)

Lina Castro Baptista
(1ª Adjunta)

Maria Eiró
(2ª Adjunta)


(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)

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[1] Ac STJ de 21.09.2010, proc. Nº 1096/08.2TVPRT.P1.S1, www.dgsi.pt; A Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, pág. 679
[2] Ac STJ de 23.01.2024, Proc. Nº 493/23.8T8VNG.P1.S1, www.dgsi.pt
[3] Proc. Nº 7347/04.5TBMTS.P2.S1, www.dgsi.pt