REAPRECIAÇÃO DA PROVA
DECLARAÇÕES DE PARTE
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário

I – A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando do artigo 607.º, nº 3 do CPCivil que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, razão pela qual só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 615º.
II - Todavia, diferente deste vício, é a falta de fundamentação da decisão da matéria de facto que determinando a remessa do processo ao tribunal da 1ª instância, nas circunstâncias previstas no artigo 662.º, nº 2 al. d) ou a anulação do julgamento, ao abrigo da alínea c) do mesmo normativo, o vício que não gera, por isso, a nulidade da decisão.
III - A nulidade prevista na primeira parte da al. c) não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade.
IV - Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
V - A norma do nº 3 do art.º 466.º do CPCivill é claramente esclarecedora ao sujeitar as declarações de parte ao regime da livre apreciação da prova, exceto quando as mesmas constituírem confissão.
VI - Norteando-se o nosso sistema processual civil pela procura da verdade material e estando as declarações de parte sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova, não se lhes deve retirar a paridade valorativa com os demais meios de prova que o legislador consagrou de forma inovadora e, por assim ser, elas podem constituir causa única de justificação para dar certo facto como provado, revestidas que sejam das exigências bastantes para formar no julgador a convicção segura de que o facto ocorreu.

Texto Integral

Processo nº 2364/21.3YIPRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo Central Cível de Aveiro- J2
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Drª. ª Maria Fernandes de Almeida
2º Adjunto Des. Dr.ª Maria de Fátima Almeida Andrade
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
A..., Lda., com sede Rua ..., ...–..., ..., instaurou procedimento especial de injunção (posteriormente transmutado em ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum) contra B... Unipessoal, Lda., com sede em Rua ..., NIPC ...,
Pedindo a condenação da requerida no pagamento da quantia de € 89.867,00, a título de capital e de juros de mora, a quantia de € 2.200,00, acrescido de juros de mora vincendos e calculados à taxa legal.
Alega que realizou diversos serviços de construção em obras da Requerida que estão identificados e descriminados na fatura n.º ..., emitida em 28.09.2019, fatura n.º ... emitida em 22/07/2020, fatura n.º ... emitida em 02.01.2021, faturas que foram aceites pela requerida.
Identifica os trabalhos que realizou e que estão concretizados nas faturas mencionadas, sendo que a fatura n.º ... refere-se a trabalhos realizados na Obra designada por “Obra do Edifício 1...”, no valor de 20.000€ e as faturas n.º ... e ..., referem-se a trabalhos realizados na obra designada por “Obra ...”, no valor de 5.000€ e de 115.867,00€ respetivamente.
Mais alega que atenta a relação comercial existente, os créditos e débitos eram registados numa conta corrente, que apresentava um saldo em dívida de conta em favor da autora correspondente às três faturas identificadas no montante de 140.867,00€ tendo, no entanto, a requerida procedeu a pagamentos ao longo das obras referidas, num total de 51.000€, nada mais tendo pago.
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Regularmente citada, a ré apresentou contestação e deduziu reconvenção.
Em sede de contestação impugnou a versão dos factos alegada pela autora no requerimento de injunção (aperfeiçoado por requerimento de fls. 46 e seguintes), referindo que todos os serviços que foram acordados com a autora lhe foram pagos.
Mais alega que:
- A obra que a autora identifica como “Obra ...”, reporta-se a um contrato de 17-09-2019 e que a requerente não concluiu;
- Sobre a obra identificada como “Obra do Edifício 1...”, a requerente nada realizou, não existe qualquer relação contratual entre requerente e requerida sobre essa obra;
- Sobre a “Obra ...”, o que a autora realizou foi integralmente pago e faturado à requerente e a outras sociedades das quais o legal representante da autora é também representante, sociedades que identifica, tendo a autora recebido a quantia global de € 133.200,00;
- A autora recebeu em excesso o valor de 3.200,00€ da qual a requerida é credora.
Peticiona, assim, a título de reconvenção o pagamento desse valor.
Concluiu pela total improcedência da ação e procedência do pedido reconvencional.
Pede ainda a condenação da requerente como litigante de má-fé, no pagamento de uma multa e numa indemnização em favor da ré.
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A autora apresentou requerimento de réplica, impugnando a factualidade alegada pela ré/reconvinte.
Concluiu pela sua improcedência e absolvição do pedido reconvencional.
Mais deduziu incidente de litigância de má-fé contra a requerida, no pagamento de uma multa e de uma indemnização em favor da autora.
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Foi proferido despacho que admitiu a reconvenção deduzida, afirmou-se a validade e regularidade da instância e foi proferido o despacho previsto pelo artigo 596º do C.P.C.
Foram admitidos os meios de prova e requisitados vários documentos.
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Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal.
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A final foi proferida decisão do seguinte teor:
Por todo o exposto, julgo a ação parcialmente procedente e:
a) Condeno a ré a pagar à autora a quantia de € 69.867,00 (sessenta e nove mil, oitocentos e sessenta e sete euros) relativa à “Obra ...”, valor acrescido de juros e mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal devida para os juros comerciais, desde a citação e até efetivo pagamento.
b) Absolvo a ré dos demais pedidos formulados pela autora;
c) Julgo improcedente o pedido reconvencional, absolvendo a autora/reconvinda do pedido formulado.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Ré interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:
1 - A decisão recorrida errou no julgamento da matéria de facto e de direito, ao decidir como decidiu os factos considerados como provados sob os números 13, 14 (aqui por defeito) e 15 dos factos provados e, consequentemente, não devia valorar positivamente as declarações de parte do legal representante da Autora, o qual não é credível.
Assim:
2 - O Tribunal “A quo” deveria ter dado como provado que:
1. A Ré nada deve à Autora.
3. A Ré jamais aceitou as faturas.
4. Nunca foi interpelada para proceder ao respetivo pagamento.
5. A Autora não concluiu a “Obra ...”.
6. A Ré pagou à Autora a quantia global de Euros: 133.200,00
5. A Autora deve ao Réu a quantia de Euros: 3.200,00.
6. A Autora apenas propôs a presente ação após ser interpelada pela Ré para proceder ao pagamento das quantias que a mesma se arrogava ter direito;
7. A Autora litiga com má-fé.
8. Ao decidir como decidiu o douto Tribunal “A quo” cometeu um erro notório na apreciação da prova carreada para os autos, designadamente, da prova documental e testemunhal, dando como provados factos, e outros como não provados, que se consideram incorretamente julgados, tudo sem esquecer uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão enfermando, pois, a douta Sentença também de vício que acarreta a sua nulidade
9. A douta Sentença proferida pelo Tribunal “A quo” não se encontra devidamente fundamentada, ou seja, peca por uma incorreta interpretação e análise crítica da prova produzida em Audiência de Julgamento, de acordo com o princípio de livre apreciação da prova e em absoluta inobservância dos critérios da experiência comum e da lógica do homem médio, nomeadamente, quanto aos factos dados como provados e não provados, à sua fundamentação, à convicção formada e à aplicação do direito, enfermando, consequentemente, de erro no julgamento da matéria de facto ao decidir como decidiu.
10. A douta Sentença proferida pelo Tribunal “A quo” não fez uma correta aplicação do direito à matéria de facto provada e não provada, pelo que, obviamente, devia ter decidido de forma diversa.
11. Competia à Autora o ónus da prova do direito que se achava titular, ou seja, devia fazer prova que tinha o direito em reclamar o pagamento da Recorrente, nos termos do disposto no artigo do artigo 342.º, nº 1 do Código Civil.
12. Prova essa que não fez.
12 - As declarações de parte são manifestamente insuficientes para por si só, o tribunal “a quo” motivar a sua decisão, servindo tão só para apoiar a prova dos factos (que não existiu) tudo conjugado com os demais elementos de prova-vide a propósito-douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.6.2014,
13 - A ação não pode proceder já que a Autora/Recorrida não fez qualquer prova como lhe competia do crédito sobre a Ré.
14 – O tribunal “a quo” incorreu numa manifesta violação das regras relativas à distribuição do ónus da prova, bem como do disposto no artigo 466.º, do Código de Processo Civil.
15. O Tribunal “A quo” ao não fazer uma correta aplicação do direito à matéria de facto provada violou os princípios do direito probatório. *
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPCivil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se a sentença padece das nulidades que lhe vêm assacadas;
b)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
c)- decidir em conformidade com o julgamento da impugnação da matéria de facto.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
São os seguintes os factos que vêm dados como provados na sentença recorrida:
1.º-A A. no exercício do seu objeto social realizou diversos serviços de construção em obras da Ré, obras solicitadas por esta, também no exercício do seu objeto social;
2.º- As partes mantiveram entre si várias relações comerciais, durantes muitos anos, quer com a empresa aqui Ré, quer com as demais empresas que o representante da Ré também representa.
3.º- No âmbito dessas relações comerciais, as partes outorgaram entre si o documento junto com a oposição como doc. n.º 7 denominado como: “Contrato de Empreitada de Obra”, (fls. 13 a 18), cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos.
4.º- A autora emitiu a fatura com o n.º ..., em 22/07/2020, no valor de € 5.000,00, constante de fls. 31 verso e cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido;
5.º- A fatura referida no ponto anterior tinha no seu descritivo o seguinte: “Fornecimento e aplicação de materiais diversos. Obra ... (…)”;
6.º- A autora emitiu a fatura n.º ..., com data de 02.01.2021, no valor de € 115.867,00, constante de fls. 55 verso e cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido;
7.º- A fatura referida no ponto anterior tinha no seu descritivo o seguinte: “Fornecimento e aplicação de materiais diversos. Referente ao contrato de empreitada ....;
8.º- As faturas n.ºs ... e ... referem-se a trabalhos realizados na obra designada por “Obra ..., no âmbito do contrato de empreitada identificado no ponto 3º;
9.º- Com data de 4 de janeiro de 2021 a ré enviou a autora a carta junta aos autos de fls. 9 verso a 10 e que a autora recebeu (fls. 10 verso e 11 verso), relativa a uma obra a realizar em ... (Edifício ...) cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos.
10.º Com a mesma data a ré enviou à autora outra carta, mas tendo por objeto o contrato de empreitada do Edifício 2..., (fls. 11 verso a 12 verso) cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
11.º A autora na obra ... executou os trabalhos mencionados no contrato de empreitada.
12.º Entre as partes existia uma conta corrente relativa a esta obra e outras.
13.º Foi pago pela ré à autora em diversos momentos ao longo da obra ... várias quantias num total de 51.000€.
14.º Os pagamentos da quantia de 51.000€, foram realizados do seguinte modo:
- 25.000,00€, em numerário, correspondente ao pagamento inicial;
- 10.000,00€, através de cheque em 10.10.2019;
- 3.500,00€, através de Transferência bancária do sócio gerente em 25.03.2020;
- 1.500,00€, através de Transferência bancária do sócio gerente em 01.04.2020;
- 3.500,00€, através de Transferência bancária do sócio gerente em 22.04.2020;
- 5.500,00€, através de Transferência bancária do sócio gerente em 14.05.2020;
- 2.000,00€, através de Transferência bancária do sócio gerente em 16.06.2020;
15.º Em relação à obra ... ficou por liquidar a quantia de 69.867€ (sessenta e nove mil, oitocentos e sessenta e sete euros).
16.º AA é sócio da Requerida e de outras empresas, nomeadamente das sociedades C..., Lda., D..., Lda. e E..., Lda.
17.º A obra ... não foi concluída até ao dia 10 de março;
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Factos não provados:
PI aperfeiçoada
Não se provou que:
6.º A fatura n.º ... refere-se a trabalhos realizados na Obra designada por “Obra do Edifício 1...”, no valor de 20.000€;
10.º Relativamente à Obra ..., foram realizados os seguintes trabalhos: aplicação de azulejos em cozinha e wc, e de pavimento flutuante, pinturas interiores e exteriores, recuperação de escada interior e colocação de sanitários;
11.º Tudo conforme solicitado e orçamentado, no orçamento de 14/2019 de 5 de fevereiro de 2019, adjudicado pela Ré à A., conforme documento que junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos;
12.º Obra essa devidamente concluída em final de setembro de 2019;
19.º Sendo que a obra ficou terminada, em junho de 2020, em condições de ser ocupada para o fim habitacional pelos Arrendatários da Ré, o que sucedeu logo no mês de julho de 2020;
20.º Provado apenas o que consta do facto 12º;
23.º Provado apenas o que consta do facto 15.º.
Contestação/reconvenção
4.º Não provado
Artigo 6.º
Artigos 7.º e 8º
Artigo 11.º Provado apenas que obra não ficou concluída em março de 2020.
13.º Conforme acordado entre Requerente e Requerida, a empreitada relativa à Obra ... foi integralmente paga tendo a mesma sido faturada quer à Requerida, quer às sociedades C..., Lda., D..., Lda. e E..., Lda.
14.º O que, aliás, decorre dos documentos denominados “Obra ...” e declarações de recebimento feitas pelo punho e assinadas por BB e CC.
Artigos 16º a 19º: provado apenas o que consta dos pontos 14º e 15º dos factos provados
Artigo 20.º No dia 10 de agosto de 2019, a Requerida pagou à Requerente, em numerário, a título de antecipação/adiantamento da Obra ..., o montante de Euros: 25.000,00, do qual ainda aguarda a emissão da respetiva fatura/recibo.
Artigo 21.º No dia 27 de junho de 2019, a Requerida também pagou à Requerente, em numerário, relativamente à Obra ..., o montante de Euros: 6.300,00, do qual ainda aguarda a emissão da respetiva fatura/recibo
Artigo 23.º Finalmente, no dia 25 de maio de 2020, a Requerida efetuou o pagamento à Requerente da quantia de Euros: 4.400,00, inerente à Obra ....
Artigos 24.º e 25º: O que perfaz o montante global de Euros: 133.200,00. Donde resulta que a Requerida é, além do mais, credora da Requerente da quantia de Euros: 3.200,00.
26.º Como se infere do Doc.º n.º 9, em 30 de abril de 2020, o montante já pago era de Euros: 117.500,00. 12.500,00.
Artigo 27.º A alegada fatura n.º ..., que a Requerente diz ter emitido em 02/01/2021 (sábado) jamais foi rececionada pela Requerida.
Artigo 28.º Desconhecendo a Requerida qual o seu descritivo, sendo certo que, a existirem, apenas vinculam a Requerente, já que não tem qualquer correspondência com a realidade.
Artigo 31.º Na realidade a emissão das faturas foi previamente acordada entre Requerente e Requerida.
Artigo 32.º A Requerente não prestou às sociedades C..., Lda., D..., Lda. e E..., Lda. os serviços constantes das faturas acima identificadas, mas sim e apenas à ora requerida.
Artigo 35.º A Requerida, atento o montante entregue em excesso, que se computa em Euros: 3.200,00, solicitou sem sucesso a emissão da correspondente Nota de Crédito e consequente entrega de tal quantia.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que colocada no recurso prende-se com:
a) - saber se a sentença padece das nulidades que lhe vêm assacadas.
Importa, desde logo, que se diga que as alegações recursivas não primam pela clareza.
Na verdade, e quanto ao segmento das nulidades invocadas a apelante ora fala em falta de fundamentação, esta também reportada à falta de exame critico das provas, ora em contradição entre a decisão e os seus fundamentos, ou seja, numa amalgama de simples expressões conclusivas sem concretizar, em retas contas, em que se traduzem tais nulidades.
Mas analisemos quando um pretensos vícios que a decisão recorrida diz a apelante padecer.

Nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 615.º a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Parece-nos, porém, salvo o devido respeito, que existe por parte da recorrente alguma confusão na invocação deste vício.
Com efeito uma coisa é falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, outra coisa é nulidade da sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão [al. b) do citado artigo 615.º].
A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando do artigo 607.º, nº 3 que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Como é entendimento pacífico da doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 615º.
A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.[1]
Ora, para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e os não coloque na base da decisão[2], coisa que, manifestamente, no caso em apreço não acontece, pois que, o Sr. Juiz, como o evidência a sentença recorrida, aí descriminou os factos que resultaram provados e não provados e aí indicou, interpretou e aplicou as normas jurídicas correspondentes.
Portanto, ao contrário do que afirma as recorrentes, a sentença recorrida não enferma da nulidade que lhe vem assacada e constante da alínea b) do nº 1 do artigo 615.º
Todavia, diferente deste vício, é a falta de fundamentação da decisão da matéria de facto.
Como estatui o artigo 607.º, nº 3
“1. (…)
2. (…)
3. (…)
4. Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
5 (…)
6 (…)”
Resulta deste normativo que a motivação não pode nem deve ser meramente formal, tabelar ou formatada, antes devendo expressar as verdadeiras razões que conduziram à decisão no culminar da audiência de discussão e julgamento.
O juízo probatório é a decisão judicativa pela qual se julgam provados ou não provados os factos relevantes, controvertidos e carecidos de prova, mediante a livre valoração dos meios probatórios apresentados pelas partes ou determinados oficiosamente.
Como refere Teixeira de Sousa “o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente”.[3]
Anote-se ainda o que diz Lebre de Freitas, para quem “o tribunal deve, por exemplo, explicitar porque acreditou em determinada testemunha e não em outra, porque se afastou das conclusões dum relatório pericial para se aproximar das de outro, por que razão o depoimento de uma testemunha com qualificações técnicas o convenceu mais do que um relatório pericial divergente ou por que é que, não obstante vários depoimentos produzidos sobre certo facto, não se convenceu de que ele se tivesse realmente verificado”[4].
Ou o que, também a este respeito, escreve Lopes do Rego quando refere que o juiz deve proceder à indicação dos fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, com especificação dos meios de prova e das razões ou motivos substanciais por que relevaram ou obtiveram credibilidade.[5]
Neste contexto, impondo-se, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, que se estabeleça o fio condutor entre os meios de prova usados na aquisição da convicção (fundamentos) e a decisão da matéria de facto (resultado), fazendo a apreciação crítica daqueles, nos seus aspetos mais relevantes, a decisão encontrar-se-á viciada quando não forem observadas as regras contidas no artigo 607.º, nº 3.[6]
Todavia, apesar do juiz dever efetuar o exame crítico das provas respetivas não é falta de tal exame que basta para preencher a nulidade prevista na al. b) do artigo 615.º, essa só se verifica nos termos atrás referidos.
Por sua vez a falta de motivação no julgamento da matéria de facto determina a remessa do processo ao tribunal da 1ª instância, nas circunstâncias previstas no artigo 662.º, nº 2 al. d) ou a anulação do julgamento, ao abrigo da alínea c) do mesmo normativo, ou seja, o vício também não gera, por isso, a nulidade da decisão.
Não obstante, não se poderá dizer que, ao contrário do que defende a apelante, a decisão exarada pelo tribunal recorrido, sobre o julgamento da matéria de facto, não esteja fundamentada e que a mesma não tenha feito a análise crítica da prova.

De facto, basta lê-la para ver que assim não é.
Pode dela discordar-se, não pode é afirmar-se que ela está ausente da decisão recorrida.

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Alega depois a apelante que a decisão recorrida padece de uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
De acordo com a alínea c) do nº 1 do citado artigo 615º a sentença é nulaquando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
A propósito desta nulidade diz, Lebre de Freitas[7]entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se”.
E, como é jurisprudência pacífica, esta nulidade só se verifica quando os fundamentos indicados pelo juiz deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao que se contém na sentença.
Como refere Antunes Varela[8]Nos casos abrangidos pelo artigo 668.º nº 1 al. c), há um vício real de raciocínio do julgador (…): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direção diferente”.[9]
Todavia, analisada a sentença, não se divisa qualquer oposição entre a decisão e os seus fundamentos.
Com efeito, os fundamentos aí indicados estão em perfeita consonância com a parte dispositiva da decisão, ou seja, a fundamentação vai claramente no sentido da decisão proferida.
Pode a apelante dele discordar, alegando erro de julgamento, todavia, isso não inquina a decisão com esse vício formal.
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A segunda questão colocada no recurso prende-se com:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
O artigo 640.º do CPCivil estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, concretizando a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar–delimitar o objeto do recurso-, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto-fundamentação-e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[10]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[11]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[12]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à Ré apelante, neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
Como já noutro passo se referiu, as alegações recursivas revelam-se manifestamente confusas, o que também se verifica a nível da impugnação da matéria de facto.
Se bem entendemos a referida peça a apelante entende que deviam ter sido dados como não provados os pontos 13.º, 14.º (este por defeito) e 15.º dos factos provados.
Os pontos 13.º e 15[13] têm, respetivamente, a seguinte redação:
“Foi pago pela ré à autora em diversos momentos ao longo da obra ... várias quantias num total de 51.000€;
Em relação à obra ... ficou por liquidar a quantia de 69.867€ (sessenta e nove mil, oitocentos e sessenta e sete euros)”.
Alega a apelante que, em relação aos referidos pontos factuais, o tribunal recorrido apenas valorou as declarações de parte do legal representante da Autora/apelada.
Na motivação da decisão da matéria de facto o tribunal a quo e quanto aos pontos em questão discorreu do seguinte modo:
“Artigos 13.º e 14º: É matéria admitida pela autora na PI e corroborada pelo depoimento do seu legal representante. Os documentos juntos pela ré de fls. 18 verso e seguintes, explicados um a um pelo legal representante da autora, contribuíram para a sua confirmação, nomeadamente que essa concreta quantia destinou-se à obra ... e não a outras que a autora também estava a fazer para a ré e outras geridas pela mesma pessoa.
A repartição dos pagamentos foi alegada pela autora no artigo 22º e não foi posto em causa pela ré. O legal representante da autora foi confrontado em audiência com cada um dos documentos juntos pela ré de fls. 18 verso a 32, identificado as transferências aqui mencionadas, identificando quais as que se reportavam à obra ... e quais as que se reportavam a outras obras, depoimento não contraditado com outros meios de prova na medida em que foi a única pessoa que conseguiu trazer alguma “clareza” sobre os diversos documentos juntos pela ré e as diversas obras em execução pela autora para a ré, foi precisamente o legal representante da autora. A outra testemunha nada sabia
Explicou ainda e de forma credível que muitos dos documentos juntos pela ré reportavam-se a outras obras, tendo explicado que a fatura n.º ... não tinha qualquer relação quer com a obra ..., quer com a ..., apesar de na PI ter sido invocado o contrário. O seu depoimento foi sincero e admitiu que nada fez na obra do Edifício 1..., tendo emitido a fatura a pedido da ré, como muitas fazia e havia acordo entre as partes sobre essa matéria, para justificarem outros pagamentos, pratica que existia não só com a ré mas com outras empresas detidas pelo mesmo gerente e com quem o legal representante da autora manteve uma relação profissional de muitos anos e que cessou quando as partes se desentenderam por desacordo sobre os pagamentos e encontros e contras de outras obras.
Artigo 15º: O valor obtido corresponde ao somatório dos valores das duas faturas n.ºs ... e ..., ao qual foi subtraído o valor de 51.000,00€ que a autora admitiu ter recebido”.

Nos termos do artigo 396.º do CCivil e do princípio geral enunciado no artigo 607.º, nº 5 do CPCivil, o depoimento da testemunha é um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador.

O mesmo ocorre com as declarações de parte, dispondo o n.º 3 do artigo 466.º do CPC que admite a livre valoração pelo juiz de todo o conteúdo das declarações que não se reconduza à figura da confissão, sendo esta valorada em sede própria.

Nas palavras do Professor Alberto dos Reis, que mantêm plena atualidade, “[…] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”.[14]

Como elucidam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida”.[15]

Essa certeza subjetiva, com alto grau de probabilidade, há de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica.

É da conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante que se confere credibilidade a determinados elementos de prova.

Sobre a valoração das declarações de parte, referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[16], “a doutrina e a jurisprudência vêm assumindo três posições essenciais: tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos; tese do princípio de prova; tese da autossuficiência das declarações de parte. Segundo a primeira, as declarações de parte têm uma natureza essencialmente supletiva, sendo insuficientes para fundamentar, por si só, um juízo de prova, salvo nos casos de prova única, em que inexiste outra prova. A tese do princípio de prova propugna que as declarações de parte não são suficientes, por si só, para estabelecer qualquer juízo de aceitabilidade final, sendo apenas coadjuvantes da prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova, ou seja, as declarações de parte terão de ser corroboradas por outros meios de prova (…). Para a terceira tese, as declarações de parte, pese embora a sua especificidade, podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo um valor probatório autónomo, em função da livre apreciação…”.

Como decidido no Acórdão de 20/6/2016, proferido por este Tribunal[17]:

Dúvidas não existem de as declarações de parte que, diga-se, divergem do depoimento de parte, devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. Não se pode olvidar que, como meio probatório são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação. Efetivamente, seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos. Não obstante o suprarreferido, o certo é que são um meio de prova legalmente admissível e pertinentemente adequado à prova dos factos que sejam da natureza que ele mesmo pressupõe (factos em que as partes tenham intervindo pessoalmente ou de que as partes tenham conhecimento direto). Todavia, tais declarações são apreciadas livremente pelo tribunal (466.º, n.º 3, do CP Civil) e, nessa apreciação, engloba-se a sua suficiência à demonstração do facto a provar. A afirmação, perentória e inequívoca, de as declarações das partes não poderem fundar, de per si e só por si, um facto constitutivo do direito do depoente, não é correta, porquanto, apresentada sem qualquer outra explicação, não deixaria de violar, ela mesma, a liberdade valorativa que decorre do citado n.º 3 do artigo 466.º do CPC. Mas compreende-se que, tendencialmente as declarações das partes, sem qualquer corroboração de outra prova, qualquer que ela seja, não apresentem, ainda assim, e sempre num juízo de liberdade de apreciação pelo tribunal, a suficiência bastante à demonstração positiva do facto pretendido provar.

Neste contexto de suficiência probatória, e não propriamente de valoração negativa e condicionada da prova (e só assim pode ser, respeitando o princípio que se consagra no artigo 466.º, n.º 3 do CPC) parece-nos claro que nunca pode estar em causa a violação da norma constitucional que salvaguarda a tutela efetiva do direito (artigo 20.º, n.º 5, da CRP). Evidentemente que, perspetivando de modo inverso o problema, também a admissão da prova por declaração de parte num sentido interpretativo de onde decorresse, em qualquer circunstância, a prova dos factos constitutivos do direito invocado por mero efeito das declarações favoráveis, não deixaria de violar a norma constitucional, na medida em que, num processo de partes como é o processo civil, deixaria sem possibilidade de defesa–e aí, sem tutela efetiva–a parte contrária.

Como assim, a prova por declarações de parte, nos termos enunciados no artigo 466.º do Código de Processo Civil, é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, na certeza de que a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias e que, neste enquadramento, a declaração de parte que é favorável e que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie, será normalmente insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir” (negrito e sublinhado nosso).

Refere Luís Filipe Pires de Sousa[18] que na apreciação das declarações de parte, assumem especial acutilância parâmetros como:
i. “contextualização espontânea do relato, em termos temporais, espaciais e até emocionais”: “[u]m relato autêntico/espontâneo que faça uma contextualização pormenorizada e plausível colhe credibilidade acrescida por contraposição a um relato seco, estereotipado/cristalizado ou com recurso a generalizações”.
ii. a “existência de corroborações periféricas que confirmem o teor das declarações da parte”: [a]s corroborações periféricas consistem no facto das declarações da parte serem confirmadas por outros dados que, indiretamente, demonstram a veracidade da declaração. Esses dados podem provir de outros depoimentos realizados sobre a mesma factualidade e que sejam confluentes com a declaração em causa. Podem também emergir de factos que ocorreram ao mesmo tempo (ou mesmo com antecedência) que o facto principal, nomeadamente de circunstâncias que acompanham ou são inerentes à ocorrência do facto principal. Abarcam-se aqui sobretudo os factos-bases ou indícios de presunções judiciais”.
iii. parâmetros, normalmente aplicáveis à prova testemunhal, que podem desempenhar um papel essencial na valoração das declarações da parte”, (….) designadamente [a] produção inestruturada, [a] quantidade de detalhes, [a] descrição de cadeias de interações, [a] reprodução de conversações, [a]s correções espontâneas, [a] segurança/assertividade e fundamentação, [a] vividez e espontaneidade das declarações, [a] reação da parte perante perguntas inesperadas, [a] autenticidade do testemunho. São também aqui pertinentes os sistemas de deteção da mentira pela linguagem não verbal e a avaliação dos indicadores paraverbais da mentira.”
Por nossa parte entendemos que a norma do nº 3 do art.º 466.º é claramente esclarecedora ao sujeitar as declarações de parte ao regime da livre apreciação da prova, exceto quando as mesmas constituírem confissão.
E, por outro lado, também advogamos que, norteando-se o nosso sistema processual civil pela procura da verdade material e estando as declarações de parte sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova, não se lhes deve retirar a paridade valorativa com os demais meios de prova que o legislador consagrou de forma inovadora.
Adotamos, assim, a posição que admite que as declarações de parte constituam causa única de justificação para dar certo facto como provado, revestidas que sejam das exigências bastantes para formar no julgador a convicção segura de que o facto ocorreu.
Ora, convocando o iter decisório do tribunal recorrido acima transcrito o que se verifica é que nele foram valoradas as declarações de parte do representante legal da Autora/apelada conjugadas com as explicações dadas pelo mesmo quando confrontado com os documentos juntos pela Ré a fols. 18 verso a 32.
E, como nesse iter decisório também se refere, o representante legal da Autora nos documentos em causa identificou as transferências a que se refere o ponto 14.º dos factos provados, identificando quais as que se reportavam à obra ... e quais as que se reportavam a outras obras.
Para além disso esse mesmo representante legal explicou ainda, de forma convincente que muitos dos documentos juntos pela ré reportavam-se a outras obras e que a fatura n.º ... não tinha qualquer relação quer com a obra ..., quer com a ..., apesar de na p.i. ter sido invocado o contrário, tendo também afirmado que nenhuns trabalhos fez no Edifício 1... e que apenas emitiu a fatura a pedido da Ré, como muitas vezes fazia face ao acordo que, nesse sentido, havia com esta, para justificarem outros pagamentos, prática que existia não só com a ré mas com outras empresas detidas pelo mesmo gerente e com quem o legal representante da autora manteve uma relação profissional de muitos anos.
Como é bom de ver tratou-se de um relato devidamente contextualizado, pormenorizado e plausível que colheu a credibilidade do tribunal recorrido.
Ora, a apelante não convoca qualquer elemento probatório capaz de contrariar, sob este conspecto, a motivação da decisão da matéria de facto do tribunal recorrido.
A única testemunha ouvida, das arroladas pela apelante, DD, técnica oficial de contas ao serviço daquela desde a sua constituição, nada sabia sobre os factos em questão.

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Como assim, e mantendo-se na fundamentação factual os pontos 13.º a 15.º, torna-se evidente que, por lógica implicância, não podem ser dados como provados, sob pena de contradição, os factos constantes da resenha dos factos dados como não provados relativos à contestação reconvenção[19] e enumerados na conclusão 2ª.[20]
Aliás, em relação a tais factos a apelante, em bom rigor, não dá cumprimento ao ónus imposto pela al. c) do nº 1 do artigo 640.º.
Com efeito limita-se a alegar, de forma manifestamente conclusiva que, e passamos a citar:
“- Atenta a prova documental e testemunhal tais factos dados como não provados devem ser dados como provados (…);
-Salvo o devido respeito, e analisada toda a prova testemunhal e documental junta aos autos, óbvio se torna que o Tribunal “A quo” valorou de forma errónea tal prova”.
Ora, isso não basta.
A lei impõe aos recorrentes que indiquem o porquê da discordância, isto é, em que é que os referidos meios probatórios contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decido e o que consta dos citados meios probatórios.
É exactamente esse o sentido da expressão legal “quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação... que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida” (destaque e sublinhados nossos).
Repare-se na letra da lei: “Imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida”!
Trata-se, aliás, da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detetada.
Em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório.
Não basta, pois, identificar meios de prova.
A parte terá de elaborar e expor uma análise crítica da prova e concluir no sentido que pretende o que, manifestamente, o recorrente não fez.
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Para além disso, quase todos os pontos em questão não contêm factos, mas meras conclusões que, como se torna evidente, não podem constar da fundamentação factual (cf. artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
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Destarte, temos de convir, salva outra e melhor opinião, que as discordâncias que a apelante convoca para que se imponha uma decisão diversa sobre a impugnação da matéria de facto em causa, não são de molde a sustentar a tese que vem por ela expendida, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo que afirmar ter a Mmª juiz captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem.
Numa apreciação distante, objetiva e desinteressada esta é a única conclusão lícita a retirar, refletindo a fundamentação dos factos os meios probatórios trazidos aos autos que não podiam conduzir a conclusão diversa, que sempre teria de ser alicerçada em certezas e sem margem para quaisquer dúvidas.
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Aqui chegados e uma vez que o recurso apenas ataca a decisão de mérito da sentença recorrida no pressuposto da procedência da impugnação da matéria de facto nele deduzida, mantendo-se esta inalterada, nada temos a censurar à construção jurídica que nela é feita, há que concluir pela improcedência do recurso.
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Improcedem, desta forma, todas as conclusões formuladas pela apelante e, com elas, o respetivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela Ré/apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 11 de dezembro de 2024.
Manuel Domingos Fernandes
Fernanda Almeida
Fátima Andrade
__________________
[1] Neste sentido, ver Alberto dos Reis, CPC Anotado, V, 140 e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 669.
[2] Cf. Antunes Varela, obra citada pág. 670.
[3] Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 348.
[4] CPC Anot., vol. II, pág. 628.
[5] Comentários ao C.P.Civil, pág. 434.
[6] Cf. Lebre de Freitas, CPC Anot., vol. II, pág. 628.
[7] In “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2, Coimbra, 2001, pág. 670.
[8] Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 671.
[9] No mesmo sentido escreve Alberto dos Réis in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 141 “(…) o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.
[10] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[11] Cf. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[13] O ponto 14.º do elenco dos factos provados descreve o parcelário a data e modo de pagamento da referida quantia de € 51.000,00.
[14] Professor Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Volume IV, Reimpressão, Coimbra, 1987, p. 569.
[15] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436.
[16] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, pág. 574.
[17] Acórdão de 20/6/2016, proferido no Processo nº 2050/14.0T8PRT.P1, acessível em www.dgsi.pt..
[18] Luís Filipe Pires de Sousa, As malquistas declarações de parte, em Revista Julgar online, julho de 2015.
[19] E que são os seguintes:
- A Ré nada deve à Autora.
- A Ré jamais aceitou as faturas.
- Nunca foi interpelada para proceder ao respetivo pagamento.
- A Autora não concluiu a “Obra ...”.
- A Ré pagou à Autora a quantia global de Euros: 133.200,00
- A Autora deve ao Réu a quantia de Euros: 3.200,00.
- A Autora apenas propôs a presente ação após ser interpelada pela Ré para proceder ao pagamento das quantias que a mesma se arrogava ter direito;
- A Autora litiga com má-fé.
[20] Ficamos, aliás, por saber se é apenas essa conclusão que engloba todos esses factos, pois que não existe sequência na numeração das conclusões.