EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
SUBSÍDIOS DE FÉRIAS E DE NATAL
COMPENSAÇÃO
Sumário

Sumário da responsabilidade do relator (artº 663º nº 7 do Código de Processo Civil):
I- A exoneração do passivo restante, enquanto medida específica das pessoas singulares, tem como objectivo primordial conceder uma segunda oportunidade ao devedor, permitindo que se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no decurso do processo de insolvência ou nos três anos subsequentes (anteriormente à Lei nº 9/2022, de 11/1 esse período era de cinco anos), em ordem a evitar que ficasse vinculado a essas obrigações, até ao limite do prazo de prescrição, que pode atingir 20 anos.
II- Os subsídios de férias e de Natal devem ser adstritos ao pagamento dos credores, através da sua entrega ao fiduciário.
III- Se a cessão do rendimento disponível e o montante arbitrado ao devedor a título de sustento foram estabelecidos numa base mensal pelo Tribunal, não pode o apuramento do rendimento disponível ser feito numa base anual.
IV- Verificando-se a situação de, num determinado mês o rendimento do insolvente não alcançar o montante que lhe foi arbitrado para o seu sustento, não lhe assiste o direito de, mediante “compensação” ou “ajuste de contas”, não entregar ao fiduciário o excesso que se verifique nos restantes meses.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório
1- A devedora C.C… apresentou-se à insolvência, pedindo a exoneração do passivo restante.
2- Por Sentença proferida em 19/5/2022, foi decretada a insolvência da devedora.
3- Por decisão proferida em 23/9/2022 foi proferido despacho a deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante da insolvente, constando de tal decisão:
“Assim, perante os elementos que compõem o agregado e as despesas referidas, e ainda o rendimento mensal efetivamente recebido pelo agregado, entende-se ser razoável fixar o montante indisponível no equivalente a 1 RMMG acrescida de 1/3, enquanto se mantiver a composição do agregado familiar e os rendimentos nos termos apurados.
(…)
Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhes seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que sejam aptos;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
(…)
Sublinha-se que, como decorre do teor do despacho proferido, os montantes fixados foram calculados numa base mensal. Ou seja, o apuramento da quantia objecto de cessão não é feito no final de cada ano perante o rendimento globalmente auferido, uma vez que as despesas necessárias ao sustento do devedor são verificadas periodicamente a cada mês (ex. pagamentos água, luz, gás, renda, transportes etc…).
(…)”.
4-  Em 30/10/2023, o Fiduciário apresentou o seu Relatório Anual (ver art.º 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – C.I.R.E.), onde deu conta, além do mais, que “de acordo com a Tabela I, que se segue e faz parte integrante do presente relatório, verifica-se que a insolvente teria a ceder, a quantia de 608,19 € (seiscentos e oito euros e dezanove cêntimos), tendo cedido o montante de 412,13 € (quatrocentos e doze euros e treze cêntimos), pelo que é devedora da quantia de 195,46 € (cento e noventa e cinco euros e quarenta e seis cêntimos)”, mais acrescentando que a insolvente “informou não dispor de capacidade financeira para proceder à entrega daquela quantia de uma só vez, propondo o seu pagamento prestacional, em cinco prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira no valor de 55,46 €, a pagar em novembro de 2023, e as demais no valor de 35,00 €, a pagar em cada um dos meses subsequentes”, concluindo que “a insolvente incumpriu com os deveres a que se encontra adstrita, nos termos do art.º 239º do CIRE, uma vez que não entregou a totalidade das quantias a que se encontrava obrigada.  Porém, propôs o pagamento prestacional da mencionada quantia, a que o Fiduciário nada tem a opor, deixando à consideração do Exmº. Sr. Dr. Juiz e dos credores o que tiverem por conveniente”.
5-  Em 30/11/2023, o insolvente apresentou um requerimento a discordar do Relatório do Administrador da Insolvência, referindo que “uma vez que a sentença liminar de exoneração refere-se aos valores globais auferidos pela insolvente, os cálculos do AI, não só deverão somar os rendimentos globais desses período, fazendo os cálculos parciais de cada ano, com os limites sobre o salário mensal e sobre subsídios” e ainda que “tendo em conta que o salário mensal da insolvente é bastante inferior ao limite, que lhe foi fixado para a cessão, e se estamos a fazer um apuramento de valores globais, como refere a sentença, deverá ser somado o valor total de salários recebidos, incluindo nestes os subsídios, é só depois se dever verificar se o valor global recebido, excedeu o limite para a cessão e que parte o fez”.  Conclui, depois de efectuar os seus cálculos matemáticos que se a insolvente “já entregou à cessão 412,73€, fê-lo indevidamente, porque nada devia à massa insolvente, devendo tal verba ser-lhe devolvida”.
6- Em 15/1/2024, o Tribunal proferiu o seguinte despacho:
“Conforme resulta claramente do despacho inicial proferido em 29.03.2023, ficou determinado que, durante esse período, o rendimento disponível que a devedora viesse a obter, em tudo o que exceda a quantia global equivalente a 1 RMMG acrescida de 1/3, se considera cedido ao fiduciário nomeado.
Tal rendimento implica integram o cálculo para efeitos de determinar o quantum da cedência todas as quantias acima daquele limite, independentemente da natureza que revistam.
Para além disso, o cálculo tem por base um apuramento mensal e não anual, uma vez que as despesas necessárias ao sustento do devedor são verificadas periodicamente a cada mês.
Pelo exposto, deve a insolvente proceder ao pagamento da quantia total 195,46 €, que se mostra em falta.
Notifique”.
7- Inconformada com tal decisão, dela recorreu a insolvente, para tanto apresentando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“A) Do teor dos quadros elaborados pelo AI comprova-se (art.º 371º nº 1 do CC) que os rendimentos da insolvente nunca excederam o valor excluído da cessão de 1,3 SMN mensal e 70% dos subsídios.
B) Nesses valores excluídos da cessão incluem-se as partes destes rendimentos retidas na fonte que mais tarde lhe foram devolvidos pela AT.
C) E por isso o insolvente nada tinha a devolver, ao contrário do que se indica no despacho recorrido, uma vez que esses valores foram excluídos da cessão, pelo despacho liminar de exoneração ex vi da alínea b), do nº 3, do artigo 239º do CIRE;
D) “Nos casos em que o rendimento do insolvente, em determinados meses, não chega a alcançar o valor fixado como o mínimo de subsistência ou nem sequer há rendimento, terá necessariamente de ocorrer uma compensação relativamente aqueles em que o exceda, sob pena de aquela ficar comprometida.
E) Para esse efeito, terá de apurar-se o montante mensal médio dos rendimentos auferidos pelo insolvente num determinado ano fiscal e cotejá-lo com valor mensal fixado pelo Tribunal.
G) Se tal montante mensal médio não exceder o valor mensal fixado pelo Tribunal, a obrigação de entrega ao fiduciário a que alude a alínea c) do nº 4 do art.º 239º do C.I.R.E. é inexistente” in Acórdão da Relação de Évora de 17.01.2019 (proc. 344/16.0T8OLH.E1), acessível in:
https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/ef909f700d1b515980258393003533fa?OpenDocument
Fundamentos estes suficientes para que a sentença recorrida seja revogada.
Assim decidindo será feita, mais uma vez, Venerandos Desembargadores/as, a V.ª costumada Justiça”.
8- Não foram apresentadas contra-alegações.

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II – Fundamentação
a)  A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório supra, para o qual se remete.
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 b)  Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Assim, perante as conclusões das alegações da recorrente, as questões em recurso consistem em determinar:
- Se o período de referência para o apuramento do rendimento disponível deve ser anual.
- Se deve ser entregue à fidúcia o reembolso do IRS recebido pela recorrente no ano de 2023.
- Se há lugar à compensação de montantes.
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c)  Vejamos:
A exoneração do passivo restante é uma inovação do C.I.R.E., que corporiza o expresso objectivo de conjugação do princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, permitindo-lhes a sua reabilitação económica.
Como se lê no nº 45 do Preâmbulo do C.I.R.E., “O princípio do “fresh start” para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante”.
O instituto está previsto e regulado nos artºs. 235º a 248º do C.I.R.E., para devedores singulares em relação a dívidas que não sejam integralmente pagas no processo de insolvência nem nos três anos (anteriormente à Lei nº 9/2022, de 11/1 esse período era de cinco anos) subsequentes ao seu encerramento (cf. art.º 235º do C.I.R.E.).
A exoneração do passivo restante, enquanto medida específica das pessoas singulares, tem como objectivo primordial conceder uma segunda oportunidade ao devedor, permitindo que se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no decurso do processo de insolvência ou nos três anos subsequentes, em ordem a evitar que ficasse vinculado a essas obrigações, até ao limite do prazo de prescrição, que pode atingir 20 anos (art.º 309º do Código Civil) – cf. Menezes Leitão, in “Direito da Insolvência”, pgs. 305 e 306.
Nos termos do disposto no art.º 238º do C.I.R.E., o pedido de exoneração será liminarmente indeferido se se verificar alguma das circunstâncias elencadas nas alíneas do seu nº 1. Como é Jurisprudência pacífica (cf., por exemplo, o Acórdão do S.T.J. de 21/1/2014, e os Acórdãos da Relação de Lisboa de 12/12/2013, 3/10/2013 e de 24/4/2012, todos consultados na “internet” em www.dgsi.pt/), não tem o insolvente de demonstrar a não verificação dos requisitos negativos ali listados.  A ocorrência de alguma das circunstâncias descritas nessas alíneas constitui facto impeditivo ou extintivo do direito do insolvente, pelo que o respectivo ónus de prova impenderá sobre os credores ou sobre o administrador (art.º 342º nº 2 do Código Civil).
Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, o qual determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (o designado período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade, designada fiduciário, escolhida pelo Tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência (art.º 239º nºs. 1 e 2 do C.I.R.E.).
O fiduciário afectará os montantes recebidos ao pagamento aos credores, por forma a que, no fim desse período, tendo o devedor cumprido todos os deveres que assumiu com os credores, seja libertado das dívidas que ainda não tenham sido liquidadas, por se extinguir o que não foi pago no processo no período de cessão.
É um benefício, no entanto, que se concede com contrapartidas e condições directamente ligadas à satisfação mínima dos credores, pois, como convém não esquecer, o princípio fundamental que informa todo o C.I.R.E. é o do ressarcimento dos credores.
Assim, durante o período de cessão, o devedor fica obrigado a mostrar uma conduta exemplar, designadamente, nos termos das als. a) e c), do art.º 239º nº 4 do C.I.R.E., a não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o Tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado e entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.
Pois, uma vez que parte dos seus rendimentos (a parte disponível) será para ceder ao fiduciário, este tem de ser informado, bem como o Tribunal, de qualquer circunstância que afecte os mesmos de forma a apurar se se encontra a ser cumprido o dever previsto na referida al. c), que, por sua vez, impõe ao devedor que os entregue de imediato, mal os receba e que não espere por qualquer momento mais oportuno para si para o fazer.
Assunção Cristas (em artigo publicado na Revista Themis, edição especial 2005, “Novo Direito da Insolvência”, F.D.U.N.L, pg.167) agrupa estas obrigações em três áreas :  Obrigações destinadas a garantir a transparência da situação patrimonial e pessoal do insolvente (als. a) e b)), obrigações destinadas a garantir que o devedor é diligente na procura da manutenção de um rendimento que possa satisfazer os credores (als. b) e d)) e obrigações que se destinam a atestar a probidade e lisura de comportamento do próprio devedor (als. a), c) e e)).
Por sua vez, nos termos do disposto no art.º 239º nº 3 do C.I.R.E., integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
- Dos créditos a que se refere o art.º 115º do C.I.R.E., cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz.
- Do que seja razoavelmente necessário para:
i.  O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do Juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii.  O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii.  Outras despesas ressalvadas pelo Juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Acresce que, como se dispõe no art.º 243º nº 1, als. a) e b) do C.I.R.E., antes ainda de terminado o período da cessão, deve o Juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando :
- O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art.º 239º do C.I.R.E., prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
- Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas als. b), e) e f) do nº 1 do art.º 238º do C.I.R.E., se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente.
- Quando o requerimento se baseie nas als. a) e b) do nº 1, o Juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão ;  a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe for fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
Acontece que a primeira causa da cessação antecipada (prevista no art.º 243º nº 1, al. a) do C.I.R.E.) exige uma dupla condição:  Por um lado, que exista dolo grave ou culpa grave na violação; por outro lado que essa violação seja causa adequada a prejudicar o ressarcimento creditório.
Não tendo havido lugar a cessação antecipada, o Juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência, nos termos do art.º 244º nº 1 do C.I.R.E., acrescentando-se no seu nº 2, que a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior (isto é, o art.º 243º do C.I.R.E.).
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d)  Vejamos, então, se o período de referência para o apuramento do rendimento disponível deve ser mensal ou anual.
Defende a recorrente que esse cálculo deverá ser feito anualmente, até porque, desse modo, o apuramento de valores levado a cabo pelo Administrador da Insolvência implicaria que a apelante é credora do valor de 412,73 € e não devedora da quantia de 195,46 €.
Passamos a transcrever o que foi dito, sobre tal questão, no Acórdão da Relação de Lisboa, de 5/3/2024 (Procº 386/23.9 T8VPV-C.L1, Relatora Renata Linhares de Castro, consultado na “internet” em www.dgsi.pt/):
“(…) dir-se-á que a jurisprudência se divide quanto ao tratamento da questão agora em apreciação”.
“Uma corrente, claramente maioritária, defende que o cálculo terá que ser feito mês a mês, integrando os subsídios o rendimento a ceder (devendo as entregas ocorrer nos meses em que cada um dos subsídios é processado e na medida em que ultrapassem o montante mensal fixado como rendimento indisponível), sem que seja possível compensar, nos meses com maior rendimento, os meses nos quais o rendimento indisponível fixado não tenha sido alcançado”.
“Já outra corrente, acolhendo a base de cálculo mensal e a inclusão dos subsídios no rendimento a ceder, admite, de forma excepcional, alterar/corrigir a forma de cálculo sempre que o caso concreto o imponha para salvaguarda do sustento com um mínimo de dignidade (designadamente por se verificar oscilação de rendimentos)”.
“Mais recentemente, encontramos jurisprudência que, não obstante aceitar a base de cálculo mensal, recorre, por regra, à fórmula que engloba anualmente os subsídios de férias e de Natal, considerando como base de cálculo de cada mês um duodécimo de 14 meses de RMMG (RMMGx14:12)”.
“Julgamos que a posição que se mostra mais equilibrada e consentânea com os princípios subjacentes ao da fixação dos rendimentos a excluir da cessão (com vista à salvaguarda de um sustento minimamente condigno do devedor) é a que defende que o rendimento indisponível deverá corresponder, pelo menos, à RMMG multiplicada por catorze (porquanto tal remuneração é recebida 14 vezes no ano), sendo depois o resultado obtido dividido por doze”.
“Sendo certo que, em face da expressão constante do corpo do nº 3 do artigo 239º – “rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor” – sempre os montantes pagos por conta dos subsídios de férias e de Natal, ou quaisquer outros que venham ser a recebidos pelo devedor, integrarão o conceito de rendimentos para os efeitos previstos, há também que referir que, quando este preceito alude na sua al. b)-i) a salário mínimo nacional(agora denominado RMMG) fá-lo enquanto valor de referência de um mínimo de subsistência condigna, em respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana (cfr. artigo 1.º da CRP)”.
“E certamente que o legislador quando assim estipulou não ignorava que o mesmo era pago 14 vezes ao ano.  Aliás, mais se acrescentará, o próprio montante fixado para efeitos de RMMG (o qual é alvo de actualização anual) tem necessariamente subjacente a circunstância de ser essa a frequência do seu pagamento (pelo que cada um desses catorze pagamentos se assumirá como estritamente necessária ao mínimo de subsistência condigna)”.
“Como se escreveu no acórdão desta Secção de 22/03/2022 (Proc. n.º 15004/21.1 T8LSB-B.L1, Relatora Isabel Fonseca, o qual não se encontra publicado) :  “A questão põe-se, de forma similar, no âmbito da ação executiva e em face do que dispõe o art.º 738º, nº 3 do CPC – com correspondência, ainda que com alterações, no anterior art.º 824º, nº 2 –, tendo já sido objeto de apreciação pelo TC, nomeadamente no acórdão nºs 770/2014, de 12-11-2014, em que se se decidiu, “não julgar inconstitucional a norma extraída “da conjugação do disposto na alínea b) do nº 1 e no nº 2 do artigo 824º do C.P.C., na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor não seja superior ao salário mínimo nacional mas que, coincidindo temporalmente o pagamento desta e subsídio de natal ou de férias se penhore, somando as duas prestações, na parte que excede aquele montante”. // No entanto, o acórdão não obteve a unanimidade dos respetivos juízes, lendo-se na fundamentação expressa na declaração de voto de um dos Juízes (…): // “No caso das pensões pagas mensalmente com direito a subsídio de férias e de Natal, a impenhorabilidade tem que salvaguardar qualquer uma das suas prestações, incluindo os subsídios, quando estas têm um valor inferior ao do salário mínimo nacional. E o facto de, nos meses em que são pagos aqueles subsídios, a soma do valor da pensão mensal com o valor do subsídio ultrapassar o valor do salário mínimo nacional, não permite que tais prestações passem a estar expostas à penhora para satisfação do direito dos credores, uma vez que elas, por serem pagas no mesmo momento, não deixam de ser necessárias à subsistência condigna do seu titular. // Não é o momento em que são pagas que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência. // Aliás, quando o Tribunal Constitucional escolheu o salário mínimo como o valor de referência para determinar o mínimo de subsistência condigna teve necessariamente presente que o mesmo era pago 14 vezes no ano, circunstância que tem influência na fixação do seu valor mensal, tendo entendido que o recebimento integral de todas essas prestações era imprescindível para o seu titular subsistir com dignidade. Foi o valor dessas prestações, pagas 14 vezes ao ano, que se entendeu ser estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador. // E se os rendimentos de prestações periódicas deixam de ter justificação para estar a salvo, quando o executado dispõe de outros rendimentos ou de bens que lhe permitam assegurar a sua subsistência, os subsídios de férias e de Natal não podem ser considerados outros rendimentos para esse efeito, uma vez que eles integram o referido mínimo dos mínimos. Os subsídios de férias e de Natal não são outros rendimentos diferentes da pensão paga mensalmente, mas o mesmo rendimento periódico, cujo momento de pagamento coincide com o das prestações mensais. // Daí que tenha defendido que a interpretação sindicada deveria ser julgada inconstitucional por violação do direito fundamental de qualquer pessoa a um mínimo de subsistência condigna, o qual se extrai do princípio da dignidade da pessoa humana condensado no artigo 1º da Constituição””.
Tendemos a concordar com esta última posição.
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e)  Porém, em bom rigor, a mesma não será possível de aplicar “in casu”.
Com efeito, diz-se no despacho inicial de deferimento do período de cessão e de fixação do valor dos rendimentos indisponíveis, proferido em 23/9/2022 foi dito explicitamente:
“Sublinha-se que, como decorre do teor do despacho proferido, os montantes fixados foram calculados numa base mensal. Ou seja, o apuramento da quantia objecto de cessão não é feito no final de cada ano perante o rendimento globalmente auferido, uma vez que as despesas necessárias ao sustento do devedor são verificadas periodicamente a cada mês (ex. pagamentos água, luz, gás, renda, transportes etc…)”.
Ora, a verdade é que o C.I.R.E. não impõe que o critério temporal de cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do art.º 239º nº 3, al. b), ponto i), seja mensal.
Desde logo, porque inexiste norma expressa nesse sentido.
Tal não resulta, por exemplo, do art.º 239º nº 4, al. c) do C.I.R.E..  Este preceito estabelece que, durante o período da cessão, o insolvente fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.  Mas daí não se retira, de forma concludente, que a Lei tenha optado por um dos critérios em discussão:  Mensal, anual ou outro.
Podemos, assim, concluir que o C.I.R.E. não impõe que o critério em causa seja mensal. 
Não o fazendo, a Lei abre a porta a que o Juiz estabeleça, no despacho inicial, o critério que melhor se ajuste às particularidades de cada caso concreto, tendo especialmente em vista o objectivo estabelecido pelo art.º 239º nº 3, al. b), ponto i) (garantia, através da exclusão do rendimento disponível, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar).
Quando tal fixação seja feita (assim aconteceu no caso dos autos) há que respeitá-la, como é evidente.
E “in casu”, no despacho de apreciação liminar do pedido de exoneração do passivo, foi fixado, de forma clara e expressa que “os montantes fixados foram calculados numa base mensal”.
Tal decisão transitou em julgado, não se opondo a apelante, na ocasião, à posição assumida pelo Tribunal.
Deste modo, e porque tal foi decidido pelo Tribunal em decisão que não foi alvo de recurso, há que concluir que o período de referência para o apuramento do rendimento disponível deve ser mensal.
Improcede, pois, o recurso, nesta parcela.
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f)  Defende ainda a recorrente que não deve ser entregue à fidúcia o reembolso do IRS por ela recebido no ano de 2023.
Para tanto, defende que “os valores recebidos a título desse reembolso do IRS, são a devolução das retenções feitas sobre os rendimentos dos meses de Janeiro a Setembro de 2022, e portanto já auferidos antes da sentença liminar de exoneração, que portanto está parcialmente fora dos rendimentos cedidos, sendo essas retenções partes dos vencimentos de 2022, que estão excluídas da cessão”.
Vejamos:
A questão a decidir é, pois, saber se deve ser excluído do rendimento disponível para efeitos de cessão de rendimentos da recorrente, em benefício dos credores, o valor correspondente ao reembolso de IRS relativo ao ano de 2022 (meses de Janeiro a Setembro), mas pago pela Autoridade Tributária à recorrente no decurso do período de cessão de rendimentos cujo início foi declarado em 23/9/2022, por decisão devidamente transitada em julgado.
“In casu”, estamos perante um insolvência requerida pela própria devedora, agora recorrente, na qual foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela mesma e fixado que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível (até ao montante em dívida) que a devedora venha a auferir se considera cedido ao Administrador da Insolvência.
Mais se verifica que a recorrente ficou adstrita ao cumprimento das obrigações enumeradas no art.º 239º nºs. 2 e 4 do C.I.R.E., entre as quais a obrigação de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão (art.º 239º nº 4, al. c) do C.I.R.E.).
Ora, o art.º 239º nº 3 do C.I.R.E., já acima citado, enuncia expressamente os rendimentos que integram o rendimento disponível, esclarecendo para o efeito que “integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”, enumerando de seguida os casos de rendimentos que se excluem da entrega ao fiduciário.
Assim, “no período da cessão, considera-se cedido ao fiduciário o rendimento disponível que o devedor venha a auferir.  E isto apesar de a massa insolvente só abranger, em regra, “o património do devedor à data da declaração de insolvência” e os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo” (art.º 46º, 1).  A cessão abrange todos os rendimentos que o devedor receba, seja a que título for, apenas se excluindo os que são indicados no artigo 239º, nº 3, do CIRE” (cf. Alexandre Soveral Martins, in “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2ª ed., 2017, pg. 600).
Caracterizando a figura jurídica da cessão do rendimento disponível, reconhece Luís de Menezes Leitão (in “Direito da Insolvência”, 7ª ed., 2017, pg. 345) que “existe aqui uma efectiva cessão de bens ou de créditos futuros, determinada por decisão judicial, o que implica que sejam aplicados neste caso os arts. 577º e ss. do CC”, referindo, em conformidade, que “os rendimentos que o insolvente venha a adquirir transferem-se, no momento da sua aquisição, para o fiduciário, independentemente do consentimento dos devedores desses rendimentos (art.º 577º, nº 1, CC), transmitindo-se igualmente as garantias e outros acessórios dos créditos que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (art.º 582º, nº 1, CC)”, para depois concluir :  “A cessão do rendimento disponível abrange todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, não se estando, portanto, apenas perante rendimentos em sentido técnico, sendo antes abrangidos quaisquer acréscimos patrimoniais.  Assim, se o insolvente receber uma herança durante o período de cessão, o património hereditário que lhe compete deve igualmente considerar-se cedido ao fiduciário.  A tal não obsta o art.º 2028º, nº 2, dado que a cessão do rendimento disponível constitui uma hipótese legalmente prevista”.
Deste modo, e tal como referem ainda Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª ed., 2015, pgs. 858 e 859), em anotação ao art.º 239º do C.I.R.E., “segundo o nº 3, constituem rendimento disponível os rendimentos que advenham ao devedor após o despacho inicial, qualquer que seja a sua fonte, que não estejam excluídos nos termos das als. a) e b) desta norma”.
*
g)  Assim, a resolução da questão que ora nos ocupa depende apenas de saber se os rendimentos em referência (o reembolso do IRS recebido pela apelante no ano de 2023) integram, em concreto, alguma das exclusões previstas no art.º 239º nº 3, als. a) e b) do C.I.R.E..
Tal como salientam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª ed., 2015, pg. 859), em anotação ao referido normativo, “as exclusões referidas nestas alíneas assumem mais de uma modalidade, tendo fundamentos diferentes.  Assim, a da al. a), como a remissão nela contida deixa perceber, articula-se com a eficácia de cessões de créditos feitas pelo devedor nos termos do art.º 115º (…).  Estão em causa créditos futuros emergentes de contratos de trabalho ou de prestação de serviços (ou de prestações sucedâneas futuras, nomeadamente, subsídios de desemprego ou pensões de reforma) ou de rendas ou alugueres, cedidos antes da declaração de insolvência”.
“(…)”
“Quanto à al. b), há que distinguir:”
“As exclusões previstas nas suas subals. i) e ii) decorrem da chamada função interna do património, enquanto suporte de vida económica do seu titular.  Em qualquer delas, embora em planos diferentes, está em causa essa função”.
“(…)”
“Quanto à subal. iii) da al. b), prevê-se nela a exclusão da parte dos rendimentos do devedor “razoavelmente necessária” para satisfazer outras despesas que o Juiz expressamente ressalve.  Esta ressalva depende de requerimento do devedor, podendo constar, desde logo, do despacho inicial ou de outra decisão posterior.  Na falta de critério específico, a determinação do valor dos rendimentos excluídos da cessão é deixada ao prudente arbítrio do Juiz”.
Assim sendo, teremos de concluir que apenas a exclusão prevista no art.º 239º nº 3, al. a) do C.I.R.E. configura uma verdadeira norma de exclusão de rendimentos, “no sentido de que afasta do rendimento disponível certa categoria de rendimentos do devedor” (cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 28/3/2017 (Procº 178/10.5 TBNZR.C1, Relator Emídio Francisco Santos, consultado na “internet” em www.dgsi.pt), ou seja, atendendo à natureza dos rendimentos ou correspondentes acréscimos patrimoniais.
No caso “sub judice” resulta evidente, que o rendimento em apreciação, correspondente ao reembolso de IRS relativo ao ano de 2022 (meses de Janeiro a Setembro) mas pago pela Autoridade Tributária à recorrente no decurso do período de cessão de rendimentos cujo início foi declarado em 23/9/2022, não está abrangido pela exclusão prevista na al. a), do nº 3 do art.º 239º do C.I.R.E., integrando, assim, atenta a sua natureza, o rendimento disponível cedido ao fiduciário por configurar uma rendimento que adveio ao devedor e não exceptuado por lei (neste sentido, cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 19/9/2019, Procº 2984/18.3 T8GMR-E.G1, Relator Paulo Reis, consultado na “internet” em www.dgsi.pt/).
Com efeito, a devolução de imposto excessivamente retido não deixa de ser um rendimento, proveniente do trabalho, e que deve estar sujeito a cessão na medida em que exceda o rendimento indisponível.
E como se salienta no já aludido Acórdão da Relação de Guimarães de 19/9/2019 (Procº 2984/18.3T8GMR-E.G1, Relator Paulo Reis, consultado na “internet” em www.dgsi.pt/), referindo-se a reembolso de IRS referente ao ano de 2018, mas recebido em 2019, em pleno período de cessão de rendimentos, ou seja, uma situação em tudo similar à ora “sub judice” :
“Acresce que à luz do enquadramento jurídico antes traçado e em face do quadro fático apurado a tal não pode obstar a circunstância de se tratar de reembolso de IRS relativo ao ano de 2018 porquanto se verifica que o mesmo foi pago pela Fazenda Pública à recorrente no decurso do período de cessão de rendimentos cujo início foi declarado em 28-01-2019.  Na verdade, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 96º, 97º, 98º, 102º-A e 102º-B todos do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, os reembolsos devem ser efectuados após verificação, na liquidação anual de IRS, que foi retido ou pago por conta imposto superior ao devido, ou seja, somente após confirmação de que no período a que se reportam os rendimentos existe uma diferença favorável ao sujeito passivo entre o imposto devido afinal e o que tiver sido entregue em resultado de retenção na fonte ou de pagamentos por conta, até 31 de Agosto do ano seguinte àquele a que respeitam os rendimentos”.
Ora, como se viu, constituem rendimento disponível os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor após o despacho inicial, qualquer que seja a sua fonte, ou seja, independentemente da sua proveniência ou designação.
Deste modo, teremos de concluir, tal como fez o Tribunal “a quo”, que o reembolso do IRS em referência, efectuado no decurso do período de cessão de rendimentos, enquadra-se, pela sua natureza, no rendimento disponível previsto no art.º 239º nº 3 do C.I.R.E. enquanto crédito da recorrente sobre as Finanças, ou seja, enquanto direito de receber determinada quantia da Autoridade Fiscal, devendo incluir-se na entrega à fiduciária independentemente do período a que se reportam os rendimentos.
Deste modo, teremos de concluir que, também nesta parcela o recurso improcede.
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h)  Por fim, vejamos se, como defende a apelante, haverá lugar à compensação de montantes.
Alega a apelante, citando Jurisprudência deste Tribunal da Relação (Acórdão da Relação de Lisboa, de 17/6/2022, Procº 18925/16.0 T8SNT.L1, Relatora Amélia Sofia Rebelo, consultado na “internet” em www.dgsi.pt/) que “nos casos em que o rendimento do insolvente, em determinados meses, não chega a alcançar o valor fixado como o mínimo de subsistência ou nem sequer há rendimento, terá necessariamente de ocorrer uma compensação relativamente aqueles em que o exceda”.
Vejamos se lhe assiste razão.
Questão idêntica à que agora analisamos, foi já objecto de decisão em Tribunais Superiores, passando a transcrever-se parte do Acórdão do S.T.J. de 9/3/2021 (Procº 11855/16.7T8SNT.L1.S1, Relator José Rainho, consultado na “internet” em www.dgsi.pt/), a cujo teor aderimos na íntegra :
“Em boa verdade, a tese em que se suporta o Recorrente revela alguma incompreensão acerca do que é e para que serve o instituto da exoneração do passivo”.
“É que o instituto da exoneração do passivo não tem por finalidade precípua garantir ao devedor o recebimento (no caso, mensal) de um certo montante a título de sustento (no caso, o equivalente, por mês, a uma vez e meia o SMN).  Isso seria próprio de uma acção de alimentos propriamente dita”.
“No procedimento de exoneração do passivo restante ninguém (fiduciário, credores ou quem quer que seja) está vinculado a garantir a intangibilidade do montante estabelecido a título do sustento (no caso, mensal) do devedor”.
“Pelo contrário, a finalidade própria da exoneração do passivo restante é desonerar o devedor ao fim do período da cessão, mas, até quer isso aconteça, o rendimento que o devedor vai adquirindo passa, juridicamente, a estar afecto à satisfação das suas dívidas”.
“Compreende-se que assim seja:  subjacente à exoneração do passivo restante não está só o interesse do devedor, está também o interesse dos credores, que gozam do direito à satisfação dos seus créditos à custa dos rendimentos que forem sendo produzidos pelo devedor durante cinco anos.  A exoneração do passivo restante não pode ser encarada como um mecanismo tendente pura e simplesmente ao descarte das dívidas do devedor”.
“Se o devedor gerou em certo mês um rendimento que é inferior ao montante atribuído para seu sustento, é sobre ele (e não sobre o fiduciário ou os credores) que recai essa desvantagem circunstancial.  Tal desvantagem não é adequadamente causada pelo funcionamento próprio da exoneração do passivo, mas sim por um factor externo:  a insuficiência ocasional do rendimento auferido pelo devedor”.
“É certo que este nunca poderá ficar inibido do seu direito a uma subsistência minimamente digna, mas isso é para ser resolvido noutros contextos, nomeadamente no contexto do sistema assistencial público”.
“O que o devedor não goza é do direito a que no procedimento de exoneração do passivo restante lhe seja obrigatoriamente assegurado todos os meses, ainda que a operacionalizar de modo indirceto (no caso, com recurso a operações contabilísticas de “compensação” ou “ajuste de contas”), o montante estipulado a título de sustento”.
“Vistas as coisas assim, como nos parece que devem ser vistas, logo se alcança que não se pode argumentar validamente com a circunstância de haver meses em que se aufere menos do que aquilo que foi arbitrado a título de sustento, para a partir daí construir a tese de que terá de haver uma “compensação” pela diferença, sendo esta a fazer através dos meses (“antecedentes” e “subsequentes”, nas palavras do Recorrente) em que se aufere mais”.
“As coisas devem ser vistas precisamente ao contrário:  se o devedor gerou rendimentos que excedem o que lhe foi arbitrado para seu sustento, tem de entregar a diferença ao fiduciário ;  não goza da faculdade de reter ou usar essa diferença para “compensação” com a sua insuficiência de rendimentos de pretérito ou de futuro.  Se não gerou rendimentos excedentes, nada tem de entregar ao fiduciário, mas não lhe assiste o direito a que lhe seja assegurado o recebimento do que lhe foi arbitrado a título de sustento.  Repete-se que o fim precípuo do instituto da exoneração do passivo não é garantir ao devedor um certo rendimento, pelo que não faz sentido falar-se aqui numa espécie de direito ao reequilíbrio económico de um equilíbrio que foi (ou poderá vir a ser) rompido”.
“Daqui que os invocados “mecanismo de compensação”, “ajuste de contas” e recurso ao “rendimento médio mensal” não têm, quanto a nós, a menor lógica ou cabimento jurídico dentro daquilo que constitui a finalidade e o funcionamento próprios da exoneração do passivo restante”.
“(…)”
“Acresce que, como é entendimento comum (assim, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., p. 860 ;  Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 7ª ed., p. 345 ;  Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 327), a cessão do rendimento disponível traduz-se numa efectiva cessão de bens ou de créditos futuros, que tem fonte na lei e que opera independentemente da vontade ou intermediação do devedor.  Os rendimentos que o devedor adquire transferem-se no momento da sua aquisição para o fiduciário, de sorte que o devedor não tem legitimidade para deles dispor, nomeadamente para proceder às visadas “compensações” ou “ajuste de contas””.
“Independentemente do que fica dito, sempre haveria que ver que a alínea c) do nº 4 do art.º 239º do CIRE estabelece que o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário a parte dos seus rendimentos objecto da cessão”.
“Este dever de entrega imediata não é compatível com operações contabilísticas como aquelas que preconiza o Recorrente, cujo efeito acaba por reduzir a nada tal dever”.
Assim, temos de concluir que, pelos motivos expostos acima, não assiste razão à apelante, pelo que o recurso improcede nesta parte.
*
i)  Em face de tudo o que se expôs, é manifesto que o recurso terá de improceder, havendo que confirmar a decisão recorrida.

*  *  *

III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.
Custas:  Pela recorrente (art.º 527º do Código do Processo Civil).

Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 10 de Dezembro de 2024
Pedro Brighton
Renata Linhares de Castro
Amélia Sofia Rebelo (Junta Declaração de Voto)

Declaração de Voto:
Concordo com o julgamento da improcedência do recurso na medida em que, no caso, e conforme consta dos fundamentos do acórdão, “no despacho de apreciação liminar do pedido de exoneração do passivo, foi fixado, de forma clara e expressa que “os montantes fixados foram calculados numa base mensal. Tal decisão transitou em julgado, não se opondo a apelante, na ocasião, à posição assumida pelo Tribunal”. Da mesma forma que transitou em julgado na parte em que fixou os termos da contabilização dos subsídios de férias e de Natal no apuramento dos rendimentos disponíveis, no sentido de afetar 30% do valor dos mesmos à cessão.  O caso julgado formado pelo despacho inicial obsta a que o cômputo dos rendimentos disponíveis seja realizado como agora a recorrente requer, por referência aos rendimentos anuais, incluindo os auferidos a título de subsídios”.

Amélia Sofia Rebelo