CONTRATO DE SEGURO
DANO INDEMNIZÁVEL
DANO PRIVAÇÃO DE USO
PRIVAÇÃO DE USO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I - Limitando-se a defesa da ré a impugnar a verificação do sinistro, a decisão da matéria de facto não tem de declarar como provados ou não provados os factos instrumentais alegados pela ré para aquela impugnação, pelo que não há omissão de pronúncia que deva legar à anulação da decisão da matéria de facto negativa.
II - É à ré que tenha assegurado a cobertura de danos próprios, e não à segurada, que compete agir, e de forma diligente, para que o dano seja reparado, de modo que as implicações danosas acrescidas decorrentes do decurso do tempo correm por conta dela e não por conta da segurada. O custo do parqueamento da viatura sinistrada é dano indemnizável por ser consequência directa e adequada do incumprimento daquela prestação contratual.
III - A indemnização do dano da privação do uso de um veículo automóvel, quando não está coberto como risco próprio por um contrato de seguro facultativo de danos, só pode ser posta a cargo da seguradora se se provar que o comportamento desta, no tratamento do pedido do pagamento do capital seguro por um sinistro, foi a causa daquele dano, e não quando se provam, apenas, factos que têm a ver com a recusa, justificada do ponto de vista da seguradora, de aceitar a responsabilização pelo sinistro, acabando apenas por dar origem ao atraso no pagamento, indemnizável com juros de mora.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

C intentou uma acção comum contra a agora Seguros-SA, pedindo a condenação dela a pagar-lhe (a) a título de danos patrimoniais: 19.765,76€ [correspondente a i\ Reparação da viatura: 11.769,61€; ii\ Devolução do prémio de seguro: 306,15€; iii\ Imobilização da viatura: 1.845€; e iv\ Privação de uso: 5.845€]; (b) 20€/diários + IVA referente à imobilização da viatura; 35€/diários referente à privação de uso; e 1,84€/diários até à data em que a viatura for reparada e dada por apta a circular, quantia esta a liquidar, se não antes, em sede de execução de sentença; (c) a título de danos não patrimoniais: 3.500€; (d) os juros de mora já vencidos, calculados sobre o valor dos danos patrimoniais, a contar da data em que foi concluída a peritagem (10/11/2017), os quais se computam, na presente data, em 281,59€, e nos vincendos, até efectivo e integral pagamento.
Alega para tanto, em síntese, que celebrou com a ré contrato de seguro, com a cobertura facultativa de danos próprios, relativo ao veículo a que se refere o pedido; ter ocorrido um sinistro no qual ela, conduzindo esse veículo, embateu na traseira de outro veículo, com o que seu veículo sofreu estragos por força dos quais ficou impossibilitado de circular; o veículo foi levado por reboque para uma oficina; ela efectuou participação do sinistro junto da ré; a ré, apesar de ter realizado peritagem, não deu autorização para proceder à reparação do veículo e declinou a indemnização dos estragos, ficando o veículo imobilizado na oficina e ela privada do seu uso.
A ré contestou, por impugnação, dos factos alegados pela autora [i\ o perito nomeado pela ré tentou obter auto de ocorrência, junto da Esquadra de Trânsito da PSP de Lisboa, sendo que não existia registo de qualquer ocorrência no dia participado envolvendo o veículo seguro; ii\ no local, participado pela autora onde teria ocorrido o sinistro, não se verificou a existência de qualquer vestígio do mesmo, partes dos veículos sinistrados, derrame de fluidos, marcas no asfalto, apesar de iii\ os danos verificados nos radiadores do veículo seguro importarem necessariamente a escorrência de fluidos para o exterior, nomeadamente para o asfalto no local de embate/imobilização do veículo seguro; iv\ a autora e o condutor do veículo terceiro, quando ouvidos pelos peritos afirmaram não se conhecer; v\ ambos não só se conhecem, como tem relações pessoais bastante próximas; vi\ o veículo da autora após o acidente foi transportado para a oficina da HV-Lda, local onde acabou por ser objecto de peritagem; durante as convers[aç]ões quer com o perito averiguador, quer com o perito avaliador, o socio gerente da oficina o Sr. V tratou a autora sempre como uma normal e mera cliente, não demonstrando qualquer relação de conhecimento, amizade ou proximidade com a mesma, tratando-a por Sr.ª C; no entanto veio-se a apurar que entre ele e a autora existe efectivamente uma ligação familiar e pessoal muito estreita, sendo ambos casados ou pelo menos unidos de facto entre si; vii\ o condutor do veículo terceiro é amigo pessoal e de casa quer da autora quer do seu “marido” tudo conforme páginas publicada[s] no Facebook; viii\ o “marido” (gerente da oficina) está a pedir à autora, por carta, 20€/diários pelo deposito do veículo na oficina; ix\ as testemunhas da autora são o sócio do “marido” e o condutor do veículo terceiro; x\ os danos no veículo, no reforço da pára-choques, são consistentes com um embate numa superfície redonda e não no veículo terceiro; xi\ o veículo seguro apresentava danos muito avultados, nomeadamente, nos radiadores, no interior do veículo em si, em evidente contradição com os danos residuais e ligeiros apresentados pelo veículo terceiro, que sofreu leves arranhadelas as quais não apresentavam qualquer indícios de tinta do veículo seguro => tudo isto levanta muitas dúvidas e suspeitas]; impugna também os efeitos que a autora quer retirar dos quanto à privação do uso de veículo, pois que, diz a ré, não foi convencionada a cobertura de veículo de substituição; conclui no sentido da sua absolvição dos pedidos e, ainda, pela condenação da autora como litigante de má-fé.
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando a acção improcedente e, em consequência, absolvendo a ré dos pedidos.
A autora recorre desta sentença, impugnando a decisão da matéria de facto, no essencial quanto a não se ter dado como provado a ocorrência do sinistro; considerando-o provado, põe em causa a absolvição da ré.
A ré contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.    
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Questões que importa decidir: se deve ser alterada a decisão da matéria de facto e, em consequência, dar-se procedência aos pedidos da autora.
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Foram dados como provados os seguintes factos [aditaram-se os factos 14, 15, 16 e 17 em consequência da procedência parcial da impugnação da decisão da matéria de facto]:
1\ Em 28/06/2016, a autora acordou com a ré, por escrito, titulado pela apólice n.º 000, a transferência dos riscos emergentes da circulação do veículo automóvel de matrícula 00-00-00, marca Mercedes – Benz, com a denominação comercial C 220 CDI, pertencente à autora, mais acordando, além do mais, a cobertura facultativa de choque, colisão e capotamento, com o capital seguro de 32,949,99€ e franquia de 500€.
2\ Em 28/06/2017, o capital seguro ao abrigo da aludida cobertura facultativa de choque, colisão e capotamento era de 27.757,12€, com uma franquia de 500€, sendo que a autora procedeu à entrega do montante de 652,63€ a título de contrapartida / prémio.
3\ Em 31/10/2017, a autora participou à ré a ocorrência de um acidente, que envolvia o veículo com a matrícula 00-00-00, através da declaração amigável de acidente, na qual constam, entre outras, as seguintes menções:
[omitiu-se a imagem]
4\ Em 03/11/2017, o Mercedes, que se encontrava na oficina pertencente à HV- Lda [cujos sócios {com quotas iguais} e gerentes são H e V, sendo este último primo de F e namorado, à data, da autora] foi objecto de peritagem inicial por parte da ré, tendo o respectivo perito, JM, informado a oficina de que as peças deveriam ser desmontadas por conta e ordem da autora para o que aquela [a oficina] deveria solicitar autorização de desmontagem {este acórdão acrescentou a referência às quotas, porque está provada pelo doc. 5 junto em anexo à contestação, junto pela própria ré e o facto é invocado pela autora no recurso; constando do facto provado a referência às quotas, importa esclarecer que elas são iguais, com base no mesmo documento invocado pela sentença}.
5\ Em 10/11/2017, o veículo foi objecto de peritagem, tendo sido apurado que apresentava estragos na sua frente, que o mesmo não podia circular e que o custo da reparação era de 12.269,61€, incluindo IVA, correspondente o montante de 9.312,60€ a peças [revestimento de pára-choques, amortecedor do pára-choques, amortecedor do pára-choques, tubo, esquerdo, amortecedor do pára-choques, tubo, direito, suporte da chapa de matrícula, reforço do pára-choques, reforço lateral esquerdo e lateral direito e reforço superior do pára-choques, friso decorativo lateral esquerda e direita, friso lateral esquerda e direita, cobertura lava faróis (difusor) direito, grelha ventiladora, sensor de distância direito, sensor de distância dianteiro inferior esquerdo, sensor de distância frente lateral direita, cabos para ajuda de estacionamento, farol Xenon com pisca esquerdo e direito, expressor de lavagem de faróis esquerdo e direito, luz diurna esquerda e direita, grelha do radiador, capot, afinação, fecho lateral esquerdo e direito, gancho de segurança, suporte de fecho superior, suporte de farol esquerdo e direito, chapa frontal de apoio, chapa frontal apoio lateral direito, resguardo do motor, chapa de protecção frontal do motor, reservatório de água limpa pára brisas, buzina lateral esquerda e direita, tubo entrada filtro de ar, intercooler, tubo flex intercooler, radiador, revestimento superior e inferior do radiador, radiador de óleo da direcção assistida, ventilador completo, condensador / radiador do ar condicionado, tubo de ligação condensador (radiador), tubo aquecimento esguicho, tubo lava faróis, resguardo correias, resguardo radiador, suportes frente, suportes interior para choque frente, óleo direcção, anticongelante, carga ar condicionado], de 420€ a mão de obra, de 147€ a mão de obra de pintura, de 95,69€ a valor material de pintura.
6\ A autora contactou o seu mediador de seguros para saber se a ré tinha dado autorização para a reparação do seu veículo, tendo a mesma recebido as seguintes informações, através do portal da ré
[Omitiu-se a imagem – dela constava, na parte que interessa, que o perito informa que os danos se ajustam ao sinistro participado]
7\ Em 19/12/2017, a autora apresentou reclamação, através de formulário próprio, junto da ré, com o seguinte teor:
(…) Na data de 30/10/2017, tive o infortúnio de sofrer um acidente. Visto ter a minha viatura com seguro válido na …, imediatamente dei seguimento ao processo para resolução do mesmo, accionando os danos próprios. Foi enviada uma participação amigável, devidamente preenchida e assinada, para os vossos serviços, tendo sido de imediato aberto o processo número: 111. A viatura foi peritada no dia 03/11/2017. O relatório de peritagem ficou concluído com a desmontagem da viatura a meu encargo, conforme solicitado pela oficina. Hoje, dia 19/Dez, passados 51 dias da data do sinistro, não tenho qualquer informação sobre a minha viatura proveniente da Companhia de Seguros. Toda a informação que tenho é ou da oficina onde a viatura se encontra, que continua a aguardar autorização, ou por parte do mediador de seguro, que não percebe o que se passa. Acredito e aceito que naturalmente, qualquer sinistro, tenha que ser confirmado e analisado com pormenor, o que eu não entendo e não posso aceitar é que a Companhia de Seguros, leve mais de 50 dias, para iniciar, analisar, averiguar e autorizar um processo onde foram apenas envolvidas duas viaturas, onde houve uma participação amigável entregue imediatamente aos serviços da …, onde não existiram quaisquer feridos.”
8\ Em 20/12/2020 [trata-se de lapso evidente de escrita da sentença; o ano é 2017], a ré, em resposta, comunicou à autora que:
(…) Em relação a reclamação que nos efectuou e após terminada a instrução do nosso processo, concluímos que os danos advindos do veículo 00-00-00 foram produzidos em circunstâncias diferentes daqueles que nos foram participados. Assim lamentamos não poder atender à reclamação que nos formulou.”
9\ Nessa data, a autora contactou o seu mediador de seguros, tendo recebido as seguintes informações, através do portal da ré:
[omitiu-se a imagem – dela constava, na parte que interessa, comentário anterior prejudicado]
10\ Em 28/12/2020 [trata-se de lapso evidente de escrita da sentença; o ano é 2017], a autora, por intermédio de advogado, remeteu e-mail à ré com o seguinte teor:
(…) Na qualidade de advogado da m/ Constituinte, e v/ cliente, C, venho pelo presente informar que tenho na m/ posse a v/ carta datada de 20/12/2017 através da qual comunicaram que concluíram que “os danos advindos do veículo 00-00-00 foram produzidos em circunstâncias diferentes daquelas que nos foram participadas”, motivo pelo qual declinaram a assunção da responsabilidade pelo sinistro ocorrido em 30/10/2017 e, consequentemente, a reparação da viatura 00-00-00. Antes de mais, importa referir que, da v/ parte, não foi dado cumprimento ao prazo previsto na alínea e) do nº 1 do art. 36 do DL 291/2007, de 21/08 (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel). Efectivamente, tendo o sinistro ocorrido em 30/10/2017, a participação ocorrida no dia imediatamente seguinte, 31/10/2017, e a peritagem sido realizada no dia 03/11/2017, tinham V. Exas até ao dia 18/12/2017. No entanto, só no dia 20/12/2017, e em resposta à reclamação apresentada pela m/ Constituinte no dia 19/12/2017, é que V. Exas se dignaram responder de modo vago e impreciso, alegando que os danos advindos do veículo 00-00-00 foram produzidos em circunstâncias diferentes daquelas que vos foram participadas. Ora, esta situação não se pode aceitar! O sinistro ocorreu do modo que está documentado na Declaração Amigável, tratou-se de um embate na traseira de uma outra viatura que parou num semáforo vermelho, e os danos produzidos foram-no na sequência de tal sinistro e não de qualquer outra circunstância. Aliás, a ser como V. Exas afirmam, terá ocorrido fraude – ou tentativa – situação que se repugna veementemente. Sendo que, como será certamente do v/ conhecimento, o ónus da prova desta situação compete a quem o alega. Nesta conformidade, venho solicitar que se dignem facultar todos os elementos que vos levaram a tomar tal decisão, nomeadamente os relatórios de averiguação do sinistro e respectivas conclusões – os quais, aliás, deveriam ter sido disponibilizados à m/ Constituinte no prazo de quatro dias úteis após a sua conclusão – no prazo máximo de dois dias, sob pena de me ver obrigado a agir judicialmente contra V. Exas peticionando não só o valor da reparação mas também uma indemnização pela imobilização da viatura (que, recordo, já leva cerca de 60 dias). (…)”
11\ Em 19/01/2018, a autora, por intermédio de advogado, remeteu carta à ré, por esta recebida em 22/01/2018, com o seguinte teor:
“(…) Venho à v/ presença na qualidade de advogado da m/ Constituinte C, proprietária do veículo Mercedes Benz de matrícula 00-00-00, interpelar V. Exas para o pagamento da quantia constante do Relatório de Peritagem com o número 000 de 10/11/2017, no valor de 12.269,61€, a cujo valor deverá ser deduzida a franquia (€ 500), pelo que o valor em causa é de 11.769,61€. A este valor deverá acrescer a indemnização decorrente da privação de uso do veículo supramencionado, o qual está imobilizado desde o dia do sinistro (30/10/2017) sem que V. Exas assumam a v/ responsabilidade, tanto mais que estamos a falar de uma apólice que cobre os danos próprios da viatura. A este título, tendo em conta que a m/ Constitui, que se encontra grávida e se vê privada de utilizar a sua viatura para as deslocações profissionais e pessoais, nomeadamente para transportar o seu filho de 2 anos para a escola e demais locais, entendo ser razoável o valor diário de 65€, o que perfaz, 80 dias volvidos desde o sinistro, 5.200€. Como tive oportunidade de referir no m/ e-mail que vos foi remetido no passado dia 28/12/2017, do qual V. Exas acusaram a recepção e ao qual não responderam, da v/ parte não foi dado cumprimento ao prazo previsto na alínea e) do nº 1 do art. 36 do DL 291/2007, de 21/08 (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel). Efectivamente, tendo o sinistro ocorrido em 30/10/2017, a participação ocorrido no dia imediata- mente seguinte, 31/12/2017, e a peritagem sido realizada no dia 03/11/2017, tinham V. Exas até ao dia 18/12/2017 para comunicar a assunção, ou não assunção, da responsabilidade. No entanto, só no dia 20/12/2017, e em resposta à reclamação apresentada pela m/ Constituinte no dia 19/12/2017, é que V. Exas se dignaram responder de modo vago e impreciso, alegando que os danos advindos do veículo 00-00-00 foram produzidos em circunstâncias diferentes daquelas que vos foram participadas. Ora, esta situação não se pode aceitar! O sinistro ocorreu do modo que está documentado na Declaração Amigável, tratou-se de um embate na traseira de uma outra viatura que parou num semáforo vermelho, e os danos produzidos foram-no na sequência de tal sinistro e não de qualquer outra circunstância.  Aliás, a ser como V. Exas afirmam, terá ocorrido fraude – ou tentativa – situação que se repugna veementemente. Sendo que, como será certamente do v/ conhecimento, o ónus da prova desta situação compete a quem o alega. Naquele e-mail, e antes de tomar qualquer posição definitiva, solicitei todos os elementos que vos levaram à conclusão de que os danos foram produzidos em circunstâncias diferentes daquelas que nos foram participadas, nomeadamente os relatórios de averiguação do sinistro e respectivas conclusões – os quais, aliás, deveriam ter sido disponibilizados à m/ Constituinte no prazo de quatro dias úteis após a sua conclusão. Porém, volvidos 22 dias do envio e recepção de tal e-mail, V. Exas nada disseram. Acresce que, na presente data, tenho na m/ posse documentos que demonstram inequivocamente que os v/ peritos concluíram exactamente o contrário, isto é, que “os danos se ajustam ao sinistro participado.” Nesta conformidade, serve o presente para interpelar formalmente V. Exas para o pagamento da quantia total de 16.969,61€, no prazo máximo de 5 dias a contar da recepção da presente. Caso tal pagamento não seja recebido nesse prazo, intentarei contra a v/ sociedade a competente acção judicial com vista à cobrança coerciva do crédito em causa, sem novo aviso, cabendo-me advertir que, em tal caso, terão de arcar com os encargos acrescidos, juros, custas e demais despesas e outros inconvenientes decorrentes de um processo judicial.”
12\ Em 21/02/2018, a gerência da HV-Lda, remeteu missiva à autora, por esta recebida em 27/02/2018, com o seguinte teor:
“(…) Conforme já anteriormente adiantado, desde o dia 31/10/2017, que a v/ viatura se encontra aparcada na n/ oficina sem que tenha existido, até hoje, qualquer ordem de reparação da mesma. Compreendemos, obviamente, a situação em que V. Exa se encontra, com o facto de a companhia de seguros, incompreensivelmente, ter recusado a assunção da responsabilidade pela reparação. Como é do s/ conhecimento, as n/ instalações não são muito grandes, e todo o espaço que temos tem de ser rentabilizado ao máximo. Para além disso, a permanência de uma viatura nas n/ instalações aumentam o nosso risco, na medida em que a responsabilidade pela sua conservação é nosso. Daí lhe termos dito, ainda no mês de Janeiro de 2018 que, caso não houvesse qualquer ordem de reparação, V. Exa teria de levar a viatura das n/ instalações, sob pena de, a partir do mês de Fevereiro de 2018, lhe começar a ser cobrado o valor diário de 20€, acrescido de IVA. Assim, serve a presente para informar que, na presente data, é V. Exa devedora à n/ sociedade do valor de 420€, acrescido de IVA, valor que aumenta por cada dia que a viatura se mantiver nos n/ instalações (…)”
13\ Em meados de Janeiro de 2022, o veículo foi reparado, na aludida oficina, tendo o mesmo sido vendido a terceiro em 29/04/2022.
14\ Em 30/10/2017, cerca das 20h, na Avenida Marechal Gomes da Costa, sentido Matinha → Parque das Nações, antes da entrada na Rotunda Expo 98, ocorreu um acidente envolvendo o Fiat Punto, com a matrícula 11-11-11, conduzida por F, e o Mercedes, referido em 1, conduzido pela autora.
15\ O acidente ocorreu em virtude de o Fiat ter parado repentinamente no semáforo, sem que a autora se apercebesse e sem que tivesse tido capacidade de imobilizar o seu veículo, por estar a tentar acalmar o seu filho de um ano que se encontrava no banco traseiro, o que provocou a colisão na traseira daquele.
16\ Em virtude deste acidente, o Mercedes sofreu vários danos em toda a zona frontal, impossibilitando-o de circular, tendo sido removida do local do acidente para a oficina referida em 4.
17\ A orçamentação referida em 5 foi feita pela ré.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
A autora entende que deve ser aditado aos factos provados o seguinte:
i\ Em 30/10/2017, cerca das 20h, na Avenida Marechal Gomes da Costa, sentido Matinha → Parque das Nações, antes da entrada na Rotunda Expo 98 (identificação das artérias disponível em google.pt/maps), ocorreu um acidente envolvendo o Fiat Punto, com a matrícula 11-11-11, conduzida por F, e o Mercedes [referido em 1], conduzido pela autora.
ii\ O acidente ocorreu em virtude de o Fiat ter parado repentinamente no semáforo, sem que a autora se apercebesse e sem que tivesse tido capacidade de imobilizar o seu veículo, por estar a tentar acalmar o seu filho de um ano que se encontrava no banco traseiro, o que provocou a colisão na traseira daquele.
iii\ Em virtude do acidente referido nos itens anteriores, o Mercedes sofreu vários danos em toda a zona frontal, impossibilitando-o de circular, tendo sido removida do local do acidente para a oficina [referida em 4].
Indica para tal os seguintes elementos de prova:
Relatório da D, aliado aos depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas G, F e V e às declarações de parte da autora [transcrevendo extensas passagens do depoimento dos três últimos]; a par da declaração amigável de acidente automóvel (doc.4 da PI), do recibo do serviço de reboque (doc.5 da PI), do relatório de peritagem [da ré] (doc. 7 da PI], da informação constante do portal… (doc.8 da PI). E ainda do depoimento do sócio da oficina, apenas quanto a iii\. E põe em causa o depoimento do perito averiguador da ré, JV, transcrevendo também as passagens apreciadas.                                                                 *
A fundamentação da decisão da matéria de facto pelo tribunal recorrido foi a seguinte, na parte que importa, isto é, na parte em que não dá como provado o acidente [este TRL acrescentou a numeração para possibilitar a referência a eles sem repetições]:
[…]
I\ No mais, a convicção do tribunal, com vista à formulação de juízo de verificação e falsificação das restantes circunstâncias fácticas alegadas pelas partes fundou-se na análise crítica e reflexiva da prova documental carreada aos autos, da livre apreciação da prova testemunhal e das declarações de [parte] da autora, à luz de critérios de lógica e de experiência.
II\ O punctum crucis do presente juízo de verificação e falsificação radica na existência, ou não, do sinistro invocado por parte da autora [entenda-se, a circunstância de ter ocorrido um embate frontal do veículo com matrícula 00-00-00, conduzido pela autora, com a traseira do veículo com a matrícula 11-11-11, conduzido por F, e que tal evento foi fortuito, aleatório e imprevisto].
III\ É certo que o veículo da autora apareceu com estragos materiais, cf. teor do documento 7, junto em anexo à petição inicial, que como referido não se apresenta controverso entre as Partes [ainda, veja-se depoimento de JC, que, à data, era supervisor do gabinete de peritagem e, como tal, supervisor do perito, JM], contudo uma coisa é a demonstração de que o veículo apresenta estragos materiais outra distinta é a demonstração do modo como os mesmos foram produzidos [repita-se, que o embate alegado tenha ocorrido e seja reconduzível a um evento fortuito, aleatório, imprevisto].
IV\ E, aqui, refira-se, desde logo, que o contexto probatório se afigura adverso à demonstração da tese factual proposta por parte da autora, considerando que não foi carreada aos autos prova suficiente, com um nível de prova clara e preponderante, exigida em processo civil, para sustentar a sua convicção [quanto à respectiva verificação].
V\ Não se olvida quer as declarações de parte da autora quer o depoimento de F, contudo os mesmos desvelaram-se ambíguos e vagos na descrição da dinâmica do acidente [momento anterior, contemporâneo e ulterior], apenas aludindo à colisão entre os veículos [embate frontal do veículo da autora]; a ambiguidade e vaguidade resulta v.g. da dificuldade de identificação da zona do acidente / sinistro; da própria descrição do modo de interacção entre os condutores, apesar de se conhecerem, ante a relação familiar de F com o companheiro da autora [é certo que a autora refere que não tinha uma relação “próxima”, mas tendo-a – a relação / o conhecimento – ante a dinâmica descrita / alegada, não se consegue compreender a alegada falta de interacção / comunicação; mais, por hipótese, não se verificando tal interacção, não se compreende a circunstância de, aquando a averiguação da Seguradora, não ter sido feita menção à circunstância de se conhecerem, como infra se especifica]; da circunstância de não ter sido chamado qualquer entidade ao local [apesar da referência a um “forte embate”], com excepção dos pedidos de assistência [reboque]. Exigir-se-ia um plus em termos de coerência e concordância que permitisse, dos aludidos elementos, extrair a tese factual proposta pela autora.     
VI\ Mas, decisivamente, a ambiguidade e vaguidade radica na própria relação entre a dinâmica descrita e os estragos verificados quer no veículo da autora quer no veículo de F.
VII\ Apresentando-se, hic et nunc, decisivo o depoimento de JV, na qualidade de perito averiguador e de prestador de serviços à ré, desde 2010, em correlação com o registo fotográfico do relatório de averiguação por ele elaborado, junto em anexo à contestação [ainda, em anexo ao requerimento de ref.ª Citius 37893139 de 14/12/2023], que, de forma crível e coerente, explicitou que, da tentativa de recondução dos estragos verificados no veículo de F com os da autora, não se verificava qualquer transferência de tinta [documento n.º 12 e 18, juntos em anexo à contestação, página 14, 26 e 27 do registo fotográfico anexo ao requerimento de 14/12/2023, o que foi identicamente expresso por parte de JC, que acompanhou a peritagem de JM realizada na oficina]; os estragos verificados não se apresentavam compatíveis com a dinâmica descrita [travagem brusca, embate frontal do veículo da autora]; não se verificava a compatibilidade entre os estragos interiores do veículo da autora com os estragos exteriores do veículo de F, especificamente no que concerne à deformação da zona interior frontal do veículo da autora [reforço frontal], que seria reconduzível a uma superfície redonda, que o veículo de F não teria na retaguarda [documento n.º 8 a 10, ibidem; página 7 a 10 do registo fotográfico anexo ao requerimento de 14-12-2023]; a circunstância de os estragos no capot do veículo da autora se encontrarem no mesmo alinhamento dos estragos do reforço do pára-choques, sendo que o veículo de F não indiciava qualquer “vinco” na bagageira, qualquer deformação, ou seja, não evidenciava qualquer “contacto directo”; ainda, neste sentido, a circunstância de o veículo da autora ter superfícies arredondadas em ambos os extremos do reforço e que não se indiciava qualquer marca / sinal de embate, nessa zona, no pára-choques do veículo de F [documento n.º 19 e 20, ibidem, página 29 a 31 do registo fotográfico anexo ao requerimento de 14-12-2023]; concluindo assertivamente que “do modo como foi participado [o sinistro] não ocorreu”.
VIII\ Acresce que, do aludido depoimento, resultou a corroboração de que não houve intervenção de quaisquer autoridades, apenas a solicitação da assistência em viagem, de que os condutores, aquando das respectivas declarações, não referiram a relação familiar existente, mas antes a circunstância de “não ter qualquer relação pessoal ou profissional com o outro interveniente” – vide documentos de ref.ª Citius 37575711 de 14/11/2023.
IX\ Explicite-se que, apesar da menção constante do relatório de averiguação, especificamente dos registos fotográficos [documento n.º 6, junto em anexo à contestação; páginas 4 e 5 do registo fotográfico anexo ao requerimento de 14/12/2023] relativos à falta de indícios / marcas do acidente na zona/ local indicado, não se atendeu a tal circunstância / menção, porquanto a própria testemunha referiu que não se deslocou, em data próxima do sinistro participado, ao local [o que não exclui per si as restantes referências efectuadas].
X\ É certo que o aludido depoimento se apresenta contrastante com o depoimento de G, na qualidade de técnico da D, entidade à qual foi solicitado um relatório de “enquadramento de danos materiais”, vide documento junto em anexo ao requerimento de ref.ª Citius 20405548 de 03/10/2018 [relatório, esse, solicitado por parte do companheiro da autora, V, em 01/06/2018, e facturado à autora, cf. documentos anexos à informação prestada por parte da aludida entidade de ref.ª Citius 37906862 de 15/12/2023], porquanto o mesmo alude à circunstância de a deformação da zona interior frontal do veículo [reforço frontal de alumínio] ser resultado da absorção do impacto e de que os estragos verificados seriam compatíveis entre os dois veículos, sendo certo que o mesmo não fez referência a quaisquer vestígios de tinta, mais referindo que essa transferência [de tinta] ocorre com embate de maior intensidade [referência, esta, que se apresenta dúbia, por inclusive se apresentar contraditória com a própria expressão utilizada por parte da F “forte embate”].
XI| Apenas com o fito de perscrutar os restantes elementos probatórios produzidos, refira-se que, nesta sede, os mesmos se apresentam epistemicamente irrelevantes:
- H, na qualidade de sócio e gerente da sociedade, HV-Lda, “nada sabe do acidente”, porquanto o processo foi tratado pelo “outro sócio / gerente”, apesar de ter acompanhado o perito, aquando do relatório de peritagem, por aquele [V] não se encontrar presente.
- V, companheiro, à data, da autora [actualmente cônjuge], que relatou a retirada de reboque do veículo, a interacção com a ré, respectivo perito, a solicitação de peritagem à entidade D e correlativos procedimentos.
XII\ Eis que, em verdade, exigir-se-ia um plus fáctico e probatório para permitir extrair as circunstâncias fácticas atinentes ao sinistro / acidente alegado.
XIII\ A ambiguidade, rectius insuficiência dos mesmos é potenciada pela ausência de qualquer elemento probatório exógeno, que permita confirmar a versão carreada por parte da autora e / ou descrita na declaração amigável de acidente de viação / participação [note-se que, esta, não consubstancia per si um elemento exógeno], sendo certo que, no sopesamento das declarações de parte da autora, não está em causa a assunção do eventual carácter supletivo e vinculativo à esfera de conhecimento dos factos ou até da tese de princípio de prova, porquanto mesmo na avaliação da sua auto-suficiência / valor probatório autónomo, elas não permitem alcançar o standard de prova exigível para dar as aludidas circunstâncias fácticas como provadas.
XIV\ Estamos perante uma dúvida [ambiguidade e vaguidade] da descrição efectuada [entre os próprios condutores, a autora e F], não explicitando / concretizando o leitmotiv das respectivas condutas e / ou razoavelmente explicitando a razão da posição assumida após o sinistro, junto, v.g. do perito averiguador da ré.
XV\ Ainda, como referido, a dúvida é decisivamente reforçada quanto à compatibilidade, ou não, dos estragos materiais verificados no veículo da autora e os estragos materiais verificados no veículo de F perante as versões contrastantes, v.g. do perito averiguador da ré e do perito, cujo relatório foi solicitado por parte da autora / V [explicite-se tão só a irrelevância das informações constantes do portal / base de dados da ré, que a autora obteve / consultou, no âmbito do presente juízo de verificação e falsificação, porquanto não só as mesmas foram corrigidas, mas também delas não se pode extrair a circunstância de a seguradora ter considerado a compatíveis estragos verificados nos veículos – neste sentido veja-se o depoimento de JC e JV - nem as mesmas colocam em crise per si lógica, necessária e facticamente a averiguação efectuada; o eventual relevo de tais informações apenas poderá residir na própria avaliação da conduta procedimental da ré, correlativa interacção com a autora].
XVI\ Assertiva e normativamente: a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (artigo 414 do CPC), eis, pois, o critério que soluciona o presente juízo de verificação e falsificação.
XVII\ A dúvida radica, pois, na ausência de elementos que permitam concluir que os estragos verificados [inexiste controvérsia quanto ao mesmos] resultem do embate frontal [“rápido”, “forte embate”] do veículo da autora com o veículo de F e, como tal, posta em crise, em termos dubitativos, a respectiva compatibilidade, coloca-se decisivamente em crise a corroboração do sinistro [e correlativas características, ou seja, a sua fortuitidade, imprevisibilidade e aleatoriedade], por ausência de elementos probatórios epistemicamente relevantes e objectivos quanto à dinâmica alegada por parte da autora.
[…]
XVIII\ Não se logrou fazer prova em contrário, sendo que, no mais [restantes circunstâncias fácticas alegadas pelas partes], não foi carreada aos autos prova suficiente, com um nível de prova clara e preponderante, exigida em processo civil, para sustentar a sua convicção quanto à respectiva verificação.
A ré contrapõe às razões da autora (explanadas por 68 páginas, isto é, das páginas 12 a 80) pouco mais de 3 páginas de considerações genéricas de adesão à sentença recorrida (com três concretizações que serão analisadas mais à frente), sem transcrição de quaisquer passagens de quaisquer depoimentos.
Apreciação:
Para estes três factos que a autora pretende aditar foi produzida a seguinte prova no sentido de eles corresponderem à realidade:
As declarações de parte da autora e o depoimento do condutor do veículo em que ela foi embater, que descreveram o embate como tal. O depoimento do namorado da autora que foi ao local e viu os dois veículos embatidos e providenciou pela retirada do veículo da namorada por um reboque. O depoimento do perito da ré, JV, que confirmou (i) ter falado com o condutor do veículo que rebocou o veículo da autora para a oficina e que este lhe confirmou que também viu um outro veículo (o Fiat) em cima de outro reboque para ser levado do local (5:41); e (ii) “ter visto algumas marcas que nos levaram a crer que pudesse ter existido algum contacto, eventualmente para aumentar a veracidade daquilo que estava a ser participado” (14:26 a 14:38). A circunstância de a ré ter, pelo menos até ao dia 28/11/2017, 27 dias depois do acidente, considerado que “os danos se ajustam ao sinistro participado.”
Contra a força probatória das declarações de parte e do depoimento do condutor do Fiat, a sentença diz o seguinte, como já se viu:
As declarações de parte da autora e o depoimento do condutor do Fiat desvelaram-se ambíguos e vagos na descrição da dinâmica do acidente [momento anterior, contemporâneo e ulterior], apenas aludindo à colisão entre os veículos [embate frontal do veículo da autora]; a ambiguidade e vaguidade resulta v.g. da dificuldade de identificação da zona do acidente / sinistro.
Apreciação:
A autora e o condutor do Fiat não deixaram dúvidas de que o acidente ocorreu antes de uma passagem de peões que antecedia uma rotunda que era atravessada pela avenida por onde vinham. Não há aqui ambiguidade ou vacuidade. A autora e o condutor do Fiat não sabiam o nome da avenida. Não tem nada de especial, acontece a grande percentagem de pessoas não saberem o nome das avenidas por onde passam. A autora e o condutor do Fiat tiveram dificuldades em expressar-se na descrição do local do acidente, assim como já tinha ocorrido, segundo o perito da ré, JV, quando os ouviu ele próprio, tendo conseguido perceber, sem dúvidas (tanto que foi lá e esteve a tirar fotografias), onde era o local do acidente quando os ouviu utilizando o google maps e as imagens satélite do google, o que podia ter sido feito pelo tribunal para facilitar a compreensão das perguntas feitas pela advogada da ré e as respostas que a autora e o condutor do Fiat deram se a questão tinha algum relevo.
A ré tenta reforçar os argumentos da sentença, dizendo que “as declarações da autora […] revelaram[-se] furtivas, ambíguas e eivadas de imensas contradições, como seja a localização primária do sinistro, que resultou evidente que a autora localizou no sentido de trânsito contrário ao indicado pela testemunha F e aquele participado.”
A ré nem sequer indica as passagens das declarações da autora e do depoimento do condutor do Fiat donde tal poderá ter resultado. A audição da prova produzida, com perguntas propiciadoras de confusões não aponta de maneira nenhuma para que se tenha verificado o que a ré diz. E a testemunha da ré, perito JV, não confirma minimamente o que a ré diz, falando de outra coisa muito diferente: depois de perguntado explicitamente pela advogada da ré sobre a questão, diz que houve identificações distintas das vias (o nome que é dado às artérias…), não dos sentidos dos veículos (7:06 a 7:58).
No mesmo sentido do que este TLR está a dizer, apontam as extensas transcrições das passagens das declarações e depoimento em causa feitas pelo recurso da autora.
A sentença ainda acrescenta outras razões para a suposta ambiguidade e vacuidade das declarações da autora e do depoimento do condutor do Fiat, mas têm a ver com a prova produzida pela ré, pelo que elas serão analisadas à frente.
*
Quanto à prova produzida contra estes factos, destinada pois a provocar dúvida quanto à sua verificação (art. 346 do CC), a sentença seguiu, no essencial, a argumentação da ré que vinha da contestação, pelo que, para já, vai-se analisar essa argumentação, acrescentando-se, quando oportuno, aquilo que a sentença disse a mais:
Os argumentos da ré (e o acompanhamento do tribunal):
i\ O perito nomeado pela ré tentou obter auto de ocorrência, junto da Esquadra de Trânsito da PSP de Lisboa, sendo que não existia registo de qualquer ocorrência no dia participado envolvendo o veículo seguro.
Este argumento é acompanhado pela sentença recorrida que diz que do depoimento do perito JV “resultou a corroboração de que não houve intervenção de quaisquer autoridades, apenas a solicitação da assistência em viagem.”
E a sentença, mais à frente, ainda acrescenta “[…a] circunstância de não ter sido chamado qualquer entidade ao local [apesar da referência a um “forte embate”], com excepção dos pedidos de assistência [reboque].
Apreciação:
O argumento da ré é puramente retórico, destinando-se a sugerir que o acidente não ocorreu já que não foi participado às autoridades. Da participação amigável já constava que não foi feita participação à PSP pelo que a diligência era inútil como diz a autora. Quanto ao acrescento da sentença: as participações amigáveis destinam-se entre o mais a evitar que as autoridades públicas sejam chamadas para resolver problemas dos particulares quando e se estes puderem resolvê-los sem essa ajuda. Por isso, os particulares não podem ser acusados de não terem chamado as autoridades, quando estão de acordo, como no caso, com a culpa do acidente.
*
ii\ no local, participado pela autora onde teria ocorrido o sinistro, não se verificou a existência de qualquer vestígio do mesmo, partes dos veículos sinistrados, derrame de fluidos, marcas no asfalto (tudo conforme fotografias juntas como docs. 6 a 20).
Apreciação:
O argumento raia a má-fé. A leitura imediata pressuposta é a de que o perito foi lá no próprio dia do embate, ou pelo menos logo nos dias seguintes imediatos. Contribui para isso, por exemplo, o facto de a ré ter junto a descrição escrita do acidente pela autora, na contestação, sem a folha de onde consta a data da descrição. E na primeira parte do seu depoimento, o perito JV nunca diz que não foi ao local nos dias a seguir. Depois descobre-se que afinal o perito só lá foi 25 dias depois, ou seja, às 15h do dia 24/11/2017, quando o embate se deu no dia 30/10/2017. Ora, sendo o local do acidente uma avenida movimentada de Lisboa (na zona da Expo98), e estando-se já no Outono, com quase de certeza alguns dias de chuva, e tendo em conta que há limpeza de estradas pelas câmaras municipais, não seria normal que fossem encontrados vestígios de peças ou de fluidos (dos radiadores) na faixa de rodagem, nem, em sentido contrário, eventuais vestígios de uma eventual simulação do acidente.
A própria sentença não aceitou este argumento (o que vale para aquele que se segue, ligado a este).
*
Apesar de [este argumento está ligado ao anterior] iii\ os danos verificados nos radiadores do veículo seguro importarem necessariamente a escorrência de fluidos para o exterior, nomeadamente para o asfalto no local de embate/imobilização do veículo seguro.
Apreciação:
A haver vestígios de peças ou do líquido viscoso dos radiadores, estes seguramente teriam desaparecido em 2 ou 3 dias, tendo em conta o referido a propósito de ii\, pelo que é irrelevante que em 24/11/2024 (25 dias depois) não fossem lá encontrados vestígios do embate.
*
iv\ a autora e o condutor do veículo terceiro, quando ouvidos pelos peritos afirmaram não se conhecer.
Apreciação:
Desde logo, o alegado pela ré não corresponde nem sequer à prova que a ré tinha. O que a autora e o condutor do Fiat disseram foi “que não tinham relações pessoais ou profissionais” um com o outro. Ora, como isto não tinha qualquer valor, tanto mais que podia ser verdade – o que aliás não foi posto em causa, pois que não há qualquer prova de relações pessoais ou profissionais da autora com o condutor do Fiat – a ré distorceu o que eles tinham dito, agravando a afirmação para: eles diziam não se conhecer. Ora, a ré não fez qualquer prova disto, isto é, de que a autora e o condutor do Fiat tivessem dito que não se conheciam.
É certo que na 2.ª parte do depoimento, a testemunha JV, quando foi posto em causa com o que será referido no § a seguir, acrescentou o seguinte: apesar de não estar escrito, eles disseram que não se conheciam (isto foi negado pela autora e pelo condutor do Fiat em audiência); ora, se tivesse sido isto que eles tinham dito, era isto que tinha que ser escrito e não o que foi escrito; vir agora oportunamente a testemunha dizer, 6 anos depois, que eles disseram que não se conheciam, não tem qualquer valor. Lembre-se que a prova produzida sem sujeição ao contraditório não pode ser utilizada noutro processo (artigos 415 e 421/1, primeira parte, do CPC). Ora, aqui temos uma pessoa a trabalhar, contra pagamento, para uma parte, a ouvir em privado uma testemunha, sem qualquer contraditório nem outro tipo de controlo (pelo juiz), e depois a pretender provar uma afirmação com aquilo que uma outra testemunha lhe teria dito verbalmente, do que se lembrou (o prestador de serviços) 6 anos depois dos factos. É absolutamente inadmissível. Aliás, diga-se, desde já, que não foi só isto que o perito da ré resolveu vir dizer que as pessoas ouvidas disseram apesar de não o ter escrito. E revele-se desde já o que foi: o condutor do Fiat até teria dito que o Fiat nem sequer era utilizado, que para o pôr a andar teve que o pôr a descer uma estrada; e foi por isso que, depois do acidente, o Fiat não pegou e teve que ser rebocado. Narra-se isto para se pôr tudo em cima da mesa, mas repita-se que esta prova, pelo que já foi dito, é inadmissível e como tal não se tem em consideração. Para além de inadmissível é desleal. A ré não observa o contraditório nem dá as possibilidades de ele ser observado, permitindo que uma testemunha vá contar aquilo que não devia ser contado e de forma surpreendente. À cautela, entretanto, diga-se que a testemunha não convenceu que nada disto tenha sido de facto dito pelas pessoas que ouviu.
Por outro lado, a autora e o condutor do Fiat declararam que escreveram o que lhes tinha sido ditado pelo perito. E se o perito, num primeiro momento desmente indignadamente ter ditado seja o que for, acrescentando que se o tivesse feito todo o depoimento perderia credibilidade, instado pelo advogado da autora, no segundo dia da inquirição, acabou por dizer que disse à autora e ao condutor do Fiat, depois de lhes ter perguntado sobre elas, que escrevessem que não tinham relações pessoais ou profissionais com o outro que é a frase que costuma utilizar. Ora, isto é um ditado. O que aliás era uma evidência (o ditado), porque duas pessoas não juristas, ao descreverem um acidente, em dias diferentes (um a 21/11 e outro a 24/11), não terminam a “descrição do acidente”, espontaneamente, a escrever exactamente do mesmo modo uma referência a uma circunstância que não tem nada a ver com o acidente.
Vejam-se as transcrições feitas pela autora nas páginas 41 a 45 do seu recurso.
*
v\ Ambos não só se conhecem, como têm relações pessoais bastante próximas.
Apreciação:
Não foi produzida qualquer prova da 2.ª parte do argumento. O facto de o condutor do Fiat ser primo de um namorado não implica que ele tenha relações pessoais com a autora (nem aliás familiares, já que os afins não são família dos namorados). E o facto de uma ou duas vezes por ano se encontrarem em reuniões de família (do namorado da autora) também não quer dizer que tenham relações pessoais. Relembre-se que a autora e o condutor do Fiat não negaram, em audiência, conhecerem-se, e negaram ter negado esse conhecimento ao perito da ré.
Segundo se consegue perceber, por quem está pouco familiarizado com estas coisas, a página de Facebook da autora tem uma fotografia com um comentário do condutor do Fiat, aparentemente uma pergunta a uma tal RS, datada de 24/04/2016; a página de Facebook do namorado do autora tem uma fotografia com 11 adultos, sentados a uma mesa do que parece ser uma sala de uma casa particular, entre eles, aparentemente, a autora, o namorado e o condutor do Fiat, com data de 25/12/2015; a página de Facebook do condutor do Fiat tem uma fotografia do namorado da autora ao lado da indicação “adicionar amigo” e mais à frente uma fotografia de um jeep e ao lado o que parece um comentário: “C TT, parece que de 24/05/2015, seguido da menção “com V e F.” A ré não explica estas três páginas para retirar delas relações pessoais bastantes próximas. Estes três documentos demonstram apenas o seguinte, tendo em conta o que já se sabe para cima, aquilo que a autora admite no articulado de 21/05/2018, e usando de alguma imaginação: o condutor do Fiat fez, num dia feriado de 2016, um comentário/pergunta numa fotografia do Facebook da autora; num dia de Natal de 2015, a autora, o namorado e o condutor do Fiat terão estado a partilhar uma refeição numa casa particular, junto com outras 8 pessoas, sendo uns familiares e outros namorados; o namorado da autora e o condutor do Fiat (ou seja, os primos) terão estado juntos num dia de Maio de 2015 numa actividade de um club todo o terreno.
É justo o comentário da autora naquele articulado de 21/05/2018: art. 16: Aliás, não deixa de ser curioso o facto de a ré juntar apenas duas fotos, que distam entre si cerca de quatro meses, em que [se] vê a autora e o F, nada mais, e é com base nessas duas fotografias que conclui que ambos têm relações pessoais bastante próximas!
*
vi\ o veículo da autora após o acidente foi transportado para a oficina da HV- LDA, local onde acabou por ser objecto de peritagem; durante as convers[aç]ões quer com o perito averiguador, quer com o perito avaliador, o socio gerente da oficina o Sr. V tratou a autora sempre como uma normal e mera cliente, não demonstrando qualquer relação de conhecimento, amizade ou proximidade com a mesma, tratando-a por Sr.ª C; no entanto veio-se a apurar que entre o Sr. V e a autora existe efectivamente uma ligação familiar e pessoal muito estreita, sendo ambos casados ou pelo menos unidos de facto entre si.
Apreciação:
Apenas a testemunha supervisor refere o tratamento formal do namorado da autora. Não diz – nem fica a ideia – de que a autora estivesse na oficina no momento da visita. Não diz quantas vezes, no decurso do contacto, é que o namorado da autora a terá tido que mencionar. A testemunha não qualifica a relação que ele, supervisor, tem com o namorado da autora. Neste contexto, não tem nada de especial que o dono da oficina, a tratar com um supervisor de seguros, profissionalmente, não se tenha referido à autora tratando-a como namorada, mas antes por Sr.ª C. Isto a admitir-se que tal aconteceu, não se sabendo a propósito de quê (isto é, em que momento da conversa, profissional, teria sido normal, o dono da oficina, ter-se referido à dona do carro, como sua namorada; ou, de outro modo, em que momento da conversa seria anormal, estranho, que o dono da oficina não se tivesse referido à dona do carro como sendo sua namorada).
*
vii\ o condutor do veículo terceiro é amigo pessoal e de casa quer da autora quer do seu “marido” tudo conforme páginas publicada[s] no Facebook.
Apreciação:
As impressões das páginas do Facebook já foram analisadas acima. Delas não resulta prova de que o condutor do Fiat fosse amigo pessoal [da autora ou do namorado] e de casa [da autora e do namorado].
*
Os argumentos iv, v e vii são desenvolvidos pela sentença recorrida em V\, VIII\ e XIV\.
Apreciação:
Tudo aquilo está errado, pois que não há prova de que a autora e o condutor do Fiat tenham dito que não se conheciam. Para o mais que não está em contradição com isto, vale tudo o que já foi dito em apreciação de iv, v e vii.
*
viii\ o “marido” (gerente da oficina) está a pedir à autora, por carta, 20€/diários pelo deposito do veículo na oficina
Apreciação
Isto está provado se for feita a precisão de que se trata da sociedade que está a exigir, mas a situação não tem nada de especial: a oficina é de uma sociedade e não do namorado e trata-se de uma sociedade comercial, por isso dedicada ao lucro, que não tem obrigação de guardar em depósito o veículo da namorada de um dos sócios e muito menos de evitar à ré o pagamento desse depósito (se se provar a responsabilidade da ré). A carta serve para prova e por isso justifica-se perfeitamente. Aliás, a ré veio requerer a junção do a/r, para tentar aproveitar uma eventual falha de prova (o que foi feito). O que demonstra que, se não houvesse carta com a/r, a ré se teria aproveitado disso, para negar o facto.
*
ix\ as testemunhas da autora são o sócio do “marido” e o condutor do veículo terceiro.  
Apreciação:
Este facto está provado (e até se pode acrescentar que o actual marido também foi ouvido como testemunha), mas o condutor do Fiat tinha que ser testemunha; e ou era o namorado ou o sócio que tinham que ser testemunhas das questões da oficina. A autora não pode ser impedida de produzir prova.
*
x\ os danos no veículo, no reforço da pára-choques, são consistentes com um embate numa superfície redonda e não no veículo terceiro.
Este argumento é desenvolvido pela sentença recorrida em VII\ com base no depoimento de JV, e em X\ e XV\. Veja-se mais devagar esse desenvolvimento:
Apreciação:
O relatório da D – que, ao contrário do que a ré diz nas contra-alegações, não foi feito muitos anos depois do acidente, mas cerca de 11 meses depois do acidente, tendo sido pedido logo a seguir à contestação da ré, quando, finalmente, a autora pôde saber as razões concretas pelas quais a ré se recusava a assumir as consequências do sinistro -, diz que os estragos no veículo da autora são consistentes com o alegado embate. O depoimento do signatário deste relatório, em audiência, é praticamente inaudível, mas é perfeitamente claro, da sua audição, que o mesmo vai confirmando tudo que lá está e as razões que deu e, na instância da advogada da ré, são ouvidas algumas perguntas sobre a matéria, o perito responde sucintamente, e as respostas não suscitam qualquer reacção / desenvolvimento da advogada ré. A parte do suposto embate com a superfície redonda não tem vestígios de embate, mas de deformação. Até 28/11/2017 (29 dias depois), a ré dizia que os estragos eram compatíveis com o alegado embate, como se vê da informação do portal…. Ora, se fosse tão evidente como a ré pretende (pela voz do perito JV e da sua advogada, na audiência, que dizem que o estrago na travessa de reforço da parte da frente do Mercedes resultou de um embate numa peça tipo suporte de reboque na traseira de outro veículo), os peritos da ré (o “avaliador” JM - que a ré não chamou a depor como testemunha – e o seu supervisor), também teriam dado conta disso logo à primeira vista dos dois veículos e quem introduziu a informação de 28/11/2017 não teria assumido a compatibilidade dos danos.
Registe-se especificamente em relação às afirmações da sentença:
Antes de mais, o perito JV tem apenas o 12.º ano e uma frequência (não diz qual frequência) de uma licenciatura de informática, não é engenheiro, nem mecânico, nem revela qualquer formação na matéria; lembre-se que a ré não transcreveu uma única passagem do depoimento desta sua testemunha, e isto tem uma fácil justificação: a testemunha não deu uma única explicação estruturada e articulada, com manifesto conhecimento de causa, ao contrário do que costuma acontecer quando é alguém que fala com conhecimento de causa das matérias a que depõe. E lembre-se que a ré teve 5 anos até à audiência final, para apresentar um contra-relatório feito por alguém com verdadeiro conhecimento da matéria. De resto este perito da ré admitiu algumas marcas do embate (como já se transcreveu acima) e nas fotografias que se vão ver a seguir vêem-se vestígios de tinta preta no Fiat vermelho; o engenheiro Palhas disse ter visto vestígios de tinta vermelha no Mercedes (esta parte do depoimento é audível); a autora nunca afirmou ter feito uma travagem brusca (e nesta parte, a autora, no recurso, perde muito tempo com a questão sem qualquer interesse, tendo em conta, repete-se, que a autora não disse ter travado); o facto de as informações constantes do portal / base de dados da ré terem sido corrigidas não impede que elas se possam aproveitar, visto que a ré não explicou com que fundamento elas foram introduzidas e depois corrigidas. Significativamente, repita-se, a ré não arrolou o seu perito JM como testemunha.
Relativamente aos pontos assinalados pela sentença:
- não se verificava qualquer transferência de tinta
Apreciação:
Note-se que o embate não se deu de raspagem entre os veículos.  De qualquer modo, as seguintes fotografias, da ré, mostram transferências da tinta do Mercedes preto para o Fiat vermelho:
A 2.ª da página 27 (numeração da ré) do requerimento de junção das fotografias a cores:
[omitiram-se as imagens]
A 1.ª da pág. 7:
*
- os estragos verificados não se apresentavam compatíveis com a dinâmica descrita [travagem brusca, embate frontal do veículo da autora];
Apreciação:
1.º A autora nunca falou em travagem brusca. 2.º Contra a afirmação conclusão da incompatibilidade, veja-se o que já se disse acima e o que ainda se dirá a seguir.
*
- não se verificava a compatibilidade entre os estragos interiores do veículo da autora com os estragos exteriores do Fiat, especificamente no que concerne à deformação da zona interior frontal do veículo da autora [reforço frontal], que seria reconduzível a uma superfície redonda, que o Fiat não teria na retaguarda [documento n.º 8 a 10, ibidem; página 7 a 10 do registo fotográfico anexo ao requerimento de 14-12-2023];
Apreciação:
Em contrário: veja-se o seguinte:
1.º as imagens do relatório da D [teve-se que se tirar uma fotografia de modo a manter as anotações; daí a má qualidade da imagem que aparece neste acórdão; o mesmo vale para as duas imagens que se seguem]:
O comentário do relatório:
[omitiram-se as imagens]
Da imagem acima, onde consta ambos os veículos à escala, é possível identificar que a zona superior da frente do veículo Mercedes (capot e grelhas) é coincidente com a zona inferior da tampa da mala que se apresenta deformada do sinistro participado, bem como a zona de impacto com danos do sinistro é coincidente com os danos dos dois veículos intervenientes.
O comentário do relatório:
[omitiram-se as imagens]
As imagens acima demonstram localização do reforço frontal interior do veículo Mercedes e a sua deformação prevista aquando de um sinistro. A função principal deste componente em alumínio é a absorção do impacto frontal, apresentando o mesmo um comportamento deformação ao centro num impacto por absorção, pela fixação e força contrária nas extremidades das longarinas principais do veículo. Adicionalmente, verificámos que a zona de maior deformação do referido componente não apresenta qualquer vestígio de contacto direto com outro elemento/obstáculo, situação que valida a sua deformação em consequência do impacto frontal.
Comentário do relatório:
[omitiram-se as imagens]
Nas imagens acima, é possível identificar as marcas no reforço traseiro do veículo Fiat que, em nosso parecer técnico, resultam do impacto frontal do veículo Mercedes, mais concretamente, com as zonas de maior rigidez estrutural, como é o caso da zona de fixação do reforço frontal às longarinas principais do veículo Mercedes.
E o que consta do relatório:
No dia 26/06/2018, foram disponibilizados aos nossos serviços técnicos ambos os veículos intervenientes no sinistro para análise quanto ao enquadramento entre os danos verificados e a colisão traseira, tendo resultado da mesma o presente relatório técnico.
Da análise realizada ao veículo Mercedes, foi identificada a presença de danos em toda a extensão da parte da frente do veículo, com deformação homogénea sobre todos os componentes, mais concretamente, ao nível do pára-choques, capot, ópticas, grelhas e estrutura interior, nomeadamente reforço de absorção central e respectivos radiadores, conforme se demonstram nas fotos que apresentamos abaixo.
Dos danos verificados na zona frontal do veículo Mercedes, em nosso parecer técnico, os mesmos apresentam uma tipologia e extensão, coincidentes com um típico embate traseiro, em que os veículos se encontrariam praticamente alinhados, dada a deformação uniforme e constante identificada sobre toda a frente do veículo.
Adicionalmente, a zona interior frontal do veículo, mais concretamente o reforço frontal em alumínio ter-se-á deformado por via da absorção do impacto traseiro no veículo Fiat, resultando na sua deformação em “V” que potenciou os danos nos radiadores frontais do veículo Mercedes e, consequentemente, a fuga de líquido refrigerante (água). Dos danos verificados, não se registou qualquer fuga de óleo lubrificante do motor ou outro líquido do motor.
Da análise do veículo Fiat, foi identificado que o pára-choques traseiro já se encontraria reparado dos danos do sinistro, apresentando ainda a tampa da mala e zona interior do pára-choques com deformação e danos de sinistro. Da referida análise, foi possível identificar que a tampa da mala e estrutura interior traseira apresentam-se deformados de forma continua e numa extensão constante sobre todo o perfil traseiro do veículo, indiciando estes danos o enquadramento com um embate típico traseiro, em que os danos na zona da tampa da mala resultam da deformação e contacto da parte superior frontal do veículo contrário, nomeadamente zona do capot e grelhas.
Adicionalmente, verifica-se que a saia traseira do veículo que fixa o reforço encontra-se deformada, situação que resultou na cedência da soldura interior entre a saia e o piso inferior traseiro, evidenciando a intensidade considerável do impacto no veículo contrário.
Com base na informação apurada na verificação presencial dos veículos pelos nossos serviços técnicos, e com recurso à base de dados geométricos de veículos, foi possível realizar o enquadramento geométrico dos danos acima identificados e respectiva análise técnica dos mesmos, tendo em vista o apuramento da compatibilidade entre os danos verificados e o sinistro em que os veículos foram intervenientes.
Desta análise resultou as imagens técnicas que apresentamos no presente relatório.
[…]
Face ao exposto anteriormente, nomeadamente à análise dos danos verificados nos veículos e respectiva análise geométrica dos perfis com recurso às imagens técnicas à escala dos veículos intervenientes, em nosso parecer técnico, os danos que o veículo Mercedes apresenta resultam de um impacto num veículo cujo os danos são tecnicamente enquadráveis com os identificados no veículo Fiat, tanto quanto à sua extensão, localização e tipologia, pelo que, em nosso entendimento, consideramos os danos verificados são tecnicamente enquadráveis com o sinistro participado.
Agora as fotografias da ré:
A 1.ª da pág. 25:
A 1.ª da pág. 26
A 1.ª de pág. 28:
A 2.ª de pág. 28:
[omitiram-se as imagens]
*
- a circunstância de os estragos no capot do veículo da autora se encontrarem no mesmo alinhamento dos estragos do reforço do pára-choques, sendo que o Fiat não indiciava qualquer “vinco” na bagageira, qualquer deformação, ou seja, não evidenciava qualquer “contacto directo”;
Apreciação:
Em contrário: vejam-se ainda as seguintes fotografias, para além das já reproduzidas, do relatório da Dekra:
*                
- ainda, neste sentido, a circunstância de o veículo da autora ter superfícies arredondadas em ambos os extremos do reforço e que não se indiciava qualquer marca / sinal de embate, nessa zona, no pára-choques do Fiat [documento n.º 19 e 20, ibidem, página 29 a 31 do registo fotográfico anexo ao requerimento de 14-12-2023];
Apreciação
Em contrário: para além de tudo o já reproduzido, vejam-se as seguintes fotografias:
Primeiro do relatório da Dekra:
E agora as fotografias da ré:
A 1.ª de pág. 29:
A 2.ª de pág. 29:
A 4.ª de pág. 29:
[omitiram-se as imagens]
*
xi\ o veículo seguro apresentava danos muito avultados, nomeadamente, nos radiadores, no interior do veículo em si, em evidente contradição com os danos residuais e ligeiros apresentados pelo veículo terceiro, que sofreu leves arranhadelas as quais não apresentavam quaisquer indícios de tinta do veículo seguro.
Apreciação:
Já se disse que até 28 dias depois do acidente, a ré tinha considerado que os danos eram compatíveis com o acidente alegado.
De qualquer modo: é notório, até pelas fotografias já reproduzidas, que a frente do Mercedes tem muitas mais peças susceptíveis de estragos do que a traseira do Fiat.
Vejam-se as fotografias, acima, da zona do Fiat atingida, e, por contraposição, a imensidade de estragos que podem ter sido produzidos em múltiplas peças do Mercedes como melhor resulta das seguintes fotografias da ré:
A 1.ª da pág. 28:
A 2.ª da pág. 11:
[omitiram-se as imagens]
*
Em suma: a prova positiva a favor dos factos que a autora pretende aditar foi feita e a prova que foi produzida em sentido contrário não chega a provocar dúvidas sobre os factos em causa. Pelo que os factos se devem considerar provados (art. 346 do CC).
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A autora pretende ainda o aditamento, dos seguintes factos, na parte útil:
iv\ A orçamentação referida em 5 foi feita pela própria ré (documento 7 junto em anexo à petição inicial).
v\ A ré recusou-se, ilícita e ilegitimamente, a assumir a responsabilidade contratual emergente da celebração do contrato de seguro referido em 1, com a alteração de valor referida em 2.
vi\ A ré violou os seus deveres de gestão e de diligência e prontidão estabelecidos nos artigos 33 e 36 do DL 291/2007, de 21/08 (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel).
Apreciação:
Quanto a iv\ O próprio tribunal, para prova do facto 5, invoca “o teor do relatório de peritagem [como referido, não é posto em crise]”, que é o doc.7. Não há dúvida que se trata do orçamento da ré. Daí que o aditamento faça sentido e daí o acrescento do facto 17.
Quanto a v\ e vi\: tratam-se de conclusões de direito, a tirar, se necessário, na fundamentação de direito da sentença.
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Da anulação da decisão de facto negativa
No projecto que não fez vencimento propunha-se a anulação “da decisão de facto negativa devendo repetir-se o julgamento quanto aos mesmos a saber aos factos alegados pela ré na sua contestação e consubstanciadores da alegada simulação de acidente, constantes da contestação, acima referidos.” 
Mas a ré limitava-se a negar a verificação do sinistro alegado pela autora. Ou seja, a alegação da ré traduzia-se numa impugnação do acidente alegado pela autora, não na alegação de factos base de excepção ou excepções.
Assim sendo, o não se terem dado como provados ou não provados os factos alegados pela ré é irrelevante.
Tal é o equivalente ao que acontecia no antigo regime da base instrutória, onde, neste caso de simples impugnação, só deveriam ser quesitados os factos alegados pela autora; se se provassem, a autora teria ganho de causa. Se não se provassem, a autora perdia a acção. Os factos instrumentais alegados pela ré, como matéria de impugnação, não ficavam a constar dos factos provados ou não provados.
Pelo que não se devia anular a decisão da matéria de facto negativa, devendo, sim, apreciar-se a impugnação da decisão da matéria de facto: se a autora tivesse razão, aditavam-se aos factos provados outros que levariam à conclusão da verificação do sinistro. Caso contrário, o recurso seria improcedente.
Aliás, fazendo-se julgamento para pronúncia do tribunal sobre os factos instrumentais alegados pela ré, das duas uma: ou os factos não se provavam e continuava-se na mesma, ou os factos em causa provavam-se e continuavam a ser irrelevantes, porque os factos que permitiriam a conclusão do sinistro não estavam provados.
Dito de outro modo: a referência genérica a não se terem logrado provar quaisquer outros factos e não se terem considerado as circunstâncias fácticas irrelevantes para o presente juízo jurisdicional, que constava da decisão de facto, por ser compatível com a posição da ré no processo [que se limitou a rebater a produção do acidente como alegada], não dá origem a uma omissão de pronúncia.
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Do recurso sobre matéria de direito
A sentença julgou a acção improcedente porque “não se logrou demonstrar a ocorrência do evento (sinistro), que permita a corroboração de que o mesmo se encontra compreendido no risco tipificado no contrato [de seguro]. […] Explicite-se que o direito do segurado à reparação / indemnização com base em contrato de seguro de danos próprios não depende apenas da prova dos danos, mas ainda da prova de que esses danos foram causados por um dos riscos cobertos pelo seguro, ou seja, da ocorrência do sinistro alegado e do nexo causal entre aquele e os danos [factos constitutivos do direito indemnizatório invocado]. [Assim], sem necessidade de maiores considerandos, a pretensão da autora é integralmente improcedente ([…] artigo 342/1 do CC), quedando prejudicada a apreciação das restantes questões convocadas (artigo 608/2 do CPC).”
Agora, face à procedência da impugnação da decisão da matéria de facto (com o aditamento dos factos 14 a 16), está verificado o sinistro cuja cobertura foi contratada com o seguro celebrado com a ré, pelo que a autora tem direito à indemnização para reparação dos estragos produzidos com o acidente, já que o seguro abrange os danos próprios (art. 102 da LCS).
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Estragos/reparação
Os danos foram orçamentados pela própria ré (factos 5 e 17) em 12.269,61€, incluindo IVA. Retirando os 500€ de franquia (factos 1 e 2), a autora tem direito ao valor, pedido, de 11.769,61€.
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Devolução parcial do prémio do seguro
Devido ao acidente a autora ficou sem a possibilidade da utilização do veículo, para o qual contratou o seguro, desde 30/10/2017 e a ré não assumiu a obrigação de o reparar até ao termo da anuidade paga pela autora a 28/06/2017 (facto 1). Pelo que ficou inutilizado o período coberto pelo seguro de 31/10/2017 a 27/06/2018, o que é igual a 240/365.
O pedido de devolução da parte proporcional do prémio de seguro – embora com erro de contas: a autora, na PI, de 16/03/2023, referia-se ao valor de 306,15€, e ao valor diário de 1,84€; ora, 652,63€ a dividir por 365 dias dá 1,788€ diários, não 1,84 €. E 137 dias (de 31/10/2017 a 16/03/2018) a 1,788€ dá 244,96€ e não 306,15€ - que a autora não fundamentou, percebe-se: o contrato de seguro pressupõe a existência de um risco (art. 44/1 da Lei do Contrato de Seguro). Não havendo risco o contrato é nulo. Deixando de haver risco, o contrato de seguro deixa de produzir efeitos, como se pode retirar do art. 44/3 da LCS. Nestes casos, o tomador do seguro tem direito à devolução do prémio (art. 44/4 da LCS), sendo que no segundo essa devolução deve ser proporcional ao período durante o qual o risco não existe. No caso, o risco deixou de existir na esfera da autora, enquanto o veículo esteve na oficina, desde o acidente e durante o período que não foi reparado porque a ré não assumiu as obrigações decorrentes da verificação do sinistro).
No entanto, o pedido é contrário ao regime legal, como decorre da situação paralela do art. 107/1 da LCS: Salvo disposição legal em contrário, sempre que o contrato cesse antes do período de vigência estipulado há lugar ao estorno do prémio, excepto quando tenha havido pagamento da prestação decorrente do sinistro […]. (sobre a explicação do regime, veja-se a anotação de Pedro Romano Martinez ao art. 107, na pág. 405 da LCS anotada, 4.ª edição, Almedina, 2020).
Sendo que a hipótese de ter havido pagamento é equivalente à hipótese em que a seguradora seja condenada no pagamento.
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Depósito na oficina
A autora pediu a indemnização de 20€/diários + IVA, desde o dia 01/02/2018. Isto porque é esse o valor que a oficina lhe exige pela ocupação do espaço na oficina, como decorre do facto 12. No recurso, põe um termo final ao pedido, com referência à data em que o veículo foi vendido, isto é, 29/04/2022. O que dá 1549 dias e perfaz o montante de 30.980€ + IVA.
Por força do contrato de seguro e verificação do sinistro, a ré estava obrigada a pagar à autora a reparação da viatura. Não a pagando incorreu num incumprimento contratual que a obriga a reparar os danos que esse incumprimento causar à autora (art. 798 do CC).
As pessoas celebram contratos de seguro para estarem a coberto dos riscos inerentes. Se o risco é a verificação de um dano próprio, está inerente a intenção de, com a intervenção da seguradora, que se contratou para o efeito, se reparar o dano sem ter que se fazer essa reparação com bens próprios. Verificado o sinistro, o segurado tem direito a que a seguradora providencie pela reparação dos danos em causa, à custa dela, correndo por conta dela o facto de não o fazer em tempo.
Daí que seja usual dizer, como, por exemplo, está dito no ac. do TRG de 26/04/2012, proc. 2082/09.0TBBRG.G1, embora para um caso de responsabilidade civil de terceiro e por isso a ser lido com adaptações, não podendo ser aproveitado para a questão analisada mais à frente da privação do uso, que “É ao autor da lesão (e, consequentemente, à seguradora para quem tenha sido transferida a responsabilidade), e não ao lesado, que compete agir, e de forma diligente, para que o dano seja reparado, de modo que as implicações danosas acrescidas decorrentes do decurso do tempo correm por conta do obrigado à reparação do dano e não por conta do lesado. Quer o aluguer de veículo, quer o custo do parqueamento da viatura sinistrada são danos indemnizáveis por serem consequência directa e adequada da privação do uso do veículo e da necessidade da sua reparação ainda não efectuada, resultantes do acidente de viação.
A seguradora podia não proceder à prestação contratual a que estava obrigada se estava convencida que tinha razão para o fazer. Mas correndo o risco dessa razão não se provar e, então, ter de reparar os danos causados pela não realização atempada dessa prestação. Não é à autora, que contratou um seguro para o efeito, que cabe adiantar as despesas necessárias à reparação dos danos. E só perante circunstâncias excepcionais – que por isso têm de ser alegadas por quem delas se quer prevalecer – é que pode haver lugar à mitigação dos danos a serem reparados pelo “lesante” (art. 570 do CC).
Note-se que não há nenhuma razão para dizer – nem foi dito – que a autora podia (tinha condições para isso) ter levado o veículo (que estava impossibilitado de circular - facto 16), para outro local onde o pudesse parquear sem custos e sem riscos, ou que o podia ter mandado reparar sem nenhum sacrifício adicional.
E sempre se podia dizer o contrário: muito mais fácil seria à seguradora, para não correr o risco do agravamento do dano (para o que tinha sido devidamente advertida pela petição inicial desta acção, menos de um mês depois do início do período de parqueamento pago), fazendo, à cautela, as necessárias reservas de direito, ter retirado o veículo e levado o mesmo para um local próprio ou ter mandado reparar o veículo.
Pelo que a ré deve ser condenada no pagamento do custo do parqueamento que está a ser pedido à autora: a dívida já está constituída, sendo, pois, um elemento patrimonial negativo do seu património e é um dano causado pela falta de cumprimento da prestação contratual.
Mas com as seguintes ressalvas temporais: a ré, só com a citação – o que ocorreu em 23/03/2018 - teve conhecimento de que a autora tinha sido notificada da dívida do custo de parqueamento e, por outro lado, o veículo foi reparado em meados de Janeiro de 2022 e, por isso, a permanência na oficina já não se justificava.
Assim, a autora só tem direito aos 20€/diários desde 23/03/2018 a 16/01/2022 (num total de 1394 dias a 20$ diários = 27.880€ + IVA).
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Privação de uso:
A autora pede 35€/diários pela privação do uso do veículo, desde o dia 10/11/2017 até 29/04/2022 (1600 dias), o que perfaz o montante de 56.000€.
Antes de mais lembre-se o disposto no art. 130/2-3 da LCS: “No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado. O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem.”
Seguindo, em parte a sentença recorrida objecto do ac. do TRL de 04/06/2020, proc. 422/19.3T8LSB.L1 (acórdão relatado pelo signatário do actual e que nesta parte se passa a seguir, com algumas adaptações), pode-se entender, que “relativamente ao atraso injustificado no pagamento da indemnização garantida pela cobertura do risco por perda total, necessária para compra de outro veículo”, a jurisprudência está dividida em duas posições: 
- “A que defende que estando em causa uma obrigação pecuniária, e porque se trata de responsabilidade contratual, a indemnização pela mora corresponde aos juros legais, salvo convenção em contrário, pelo que em caso de mora do devedor na realização da prestação indemnizatória, não há lugar à indemnização de outros danos, nomeadamente, o dano da privação do uso do bem, a não ser que o credor prove que a mora lhe causou dano superior aos juros, mas [apenas] quando se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco.”
Acrescente-se que esta corrente diz que se não for assim, então não teria sentido a cobertura do risco da privação do uso (art. 130/2-3 da LCS), pois que este estaria sempre coberto: ou seja, seria o mesmo, para um segurado, cobrir aquele risco ou não.
Neste sentido, por exemplo, os acórdãos do TRC de 23/05/2006, proc. 1323/06; do TRL de 25/06/2009, proc. 1515/05.0TBMTJ.L1-2; do TRP de 15/05/2012, proc. 1900/10.5TBVFR.P1; do TRP de 13/06/2013, proc. 4438/11.0TBVNG.P1; do TRG de 10/10/2013, proc. 598/12.0TBVCT.G1 (com voto de vencido); do TRP de 23/6/2015, proc. 4393/13.1TBMAI.P1; do TRG de 15/12/2016, proc. 291/15.2T8FAF.G1; do TRP de 07/02/2017, proc. 842/14.0TJPRT.P1; do TRG de 09/02/2017, proc. 104/15.5T8PTL.G1.do TRG de 30/03/2017, proc. 122/15.3T8VRM.G1; do STJ de 13/07/2017, 188/14.3T8PBL.C1.S1 (acabou por atribuir a indemnização pelo dano em causa, mas com outra fundamentação, isto é, porque no caso estava prevista a cobertura de um veículo de substituição sem limite de tempo); do TRP de 06/02/2018, proc. 446/15.0T8AMT.P1; e do TRP de 21/02/2018, proc. 32/17.0T8GDM.P1
- “Outra que fundamenta a ressarcibilidade destes danos com base na violação de um dever secundário ou acessório da obrigação. O inexplicável atraso no andamento do processo de pagamento da indemnização ao segurado, traduz-se, na violação de um dever acessório da prestação, que, não resultando do contrato de seguro, resulta do princípio da boa-fé, consubstanciado na violação de um dever de diligência e lealdade. Assim, o segurador que venha a incorrer em responsabilidade contratual, por esta via, está obrigado a indemnizar o dano que resultou para a contraparte, o segurado.”
Neste sentido, vão, entre outros, os acórdãos do TRP de 25/01/2011, proc. 3322/07.6TJVNF.P1; do TRG de 05/12/2013, proc. 607/10.8TBFLG.G1; do TRC de 19/05/2015, proc. 127/14.1TBSCD.C1 (que, no entanto, não concedeu a indemnização por entender que, “segundo a alegação mesma do recorrente […], não estava em causa a ofensa de um dever daquela espécie – mas a violação do dever principal ou primário de prestar, ele mesmo); do TRP de 14/03/2016, proc. 4876/12.0TBSTS.P1 (admite a hipótese da condenação – por exemplo, se tivesse havido uma aceitação incondicional e sem reservas da responsabilidade (nomeadamente quanto à quantificação da indemnização) por parte da seguradora e o posterior e incoerente adiamento da realização da prestação, com manobras e argumentos dilatórios, mas não no caso em concreto; e diz que a tese do recorrente, levada às últimas consequências, assumiria contornos fundamentalistas, traduzidos na seguinte asserção: sempre que um contraente recusasse o incumprimento, vindo a ser condenado em acção intentada com esse fim, estaria a violar deveres acessórios de conduta); do TRL de 13/10/2016, proc. 716/14.4TJLSB.L1-2; do TRG de 20/10/2016, proc. 2884/11.8TBBCL.G1; do STJ de 14/12/2016, proc. 2604/13.2TBBCL.G1.S1; do TRG de 09/03/2017, proc. 4076/15.8T8BRG.G1; do TRC de 07/11/2017, proc. 131/16.5T8SAT.C1; do STJ de 23/11/2017, proc. 2884/11.8TBBCL.G1; do STJ de 23/11/2017, proc. 4076/15.8T8BRG.G1.S2; do TRP de 21/02/2018, 1069/16.1T8PVZ.P1; do TRL de 15/03/2018, proc. 20028/15.5T8LSB.L1-8; do STJ de 08/11/2018, proc. 1069/16.1T8PVZ.P1.S1 (com voto de vencido); do TRP de 11/11/2018, proc. 2528/15.9T8PRD.P1; do STJ de 27/11/2018, proc. 78/13.7PVPRT.P2.S1; do TRC de 28/05/2019, proc. 1442/18.0T8CBR.C1; do TRL de 22/10/2019, proc. 115/18.8T8FAR.L1-7 (mas não concedeu a indemnização por ter entendido que o dano, no caso, não se verificava); do TRG de 05/12/2019, proc. 2949/18.5T8BRG.G1; e do TRG de 07/12/2019, proc. 72/18.1T8CMN.G1.
(A sentença recorrida fala numa terceira corrente, “que entende que a indemnização é devida, por a mesma ser um corolário lógico da contraprestação inerente ao risco assumido pelo segurador, pois de outro modo ficaria esvaziada de conteúdo a contraprestação do segurador nestes casos ou, pelo menos, a correspectividade das prestações mostrar-se-ia desequilibrada, em prejuízo do tomador do seguro.”, mas trata-se apenas de uma posição isolada – não se encontrou outro acórdão no mesmo sentido - de um ac. do TRG de 12/03/2009, proc. 634/04.4TBBCL.G1. Contra esta posição, pode-se responder com aquele argumento da primeira corrente: o que o segurado contrata não é, nestes casos, a cobertura do risco da privação do uso, pelo que indemnizar este dano, sem mais, equivale a acrescentar, sem contrapartida de um prémio para a seguradora, a cobertura de um risco)
A situação jurisprudencial não se alterou entretanto, como se pode constatar pela leitura do ac. do TRC de 09/01/2024, proc. 1962/21.0T8LRA.C1:
[…]
2\ Em regra, a prestação devida pela seguradora, em virtude da cobertura dos danos próprios no bem seguro - seguro de dano em coisa do próprio - é uma quantia em dinheiro e não a reconstituição da situação que existiria se não tivesse ocorrido o dano. Por conseguinte, está excluído do dever de indemnizar, neste tipo de obrigações, em consequência da mora, qualquer outro dano diverso do gerado pela simples indisponibilidade do dinheiro inerente à prestação pecuniária, nomeadamente o dano pela privação do uso do bem, tese suportada no disposto no art.º 130º, n.ºs 2 e 3, do RJCS.
3\ Sendo esta a regra à luz dos preceitos legais aplicáveis, podem ocorrer desvios à mesma, v. g., caso se prove que a seguradora incumpriu, de forma abusiva e em violação dos mais elementares deveres de boa fé, o seu dever de indemnizar, na parte contratada.
4\ Daí que haja necessidade de alegação e prova da específica e concreta violação de tais deveres, em função dos contornos que o desenrolar da vida da relação contratual venha a manifestar; há que apurar se a seguradora actuou em manifesto desrespeito pelos mais elementares deveres de lisura e boa fé, fazendo-se valer de uma posição de superioridade, alicerçada na falta de consequências pela mora no cumprimento (para além dos juros moratórios).          
*
Ora, parece indesmentível que se o comportamento da seguradora, no processamento da reclamação do pagamento do capital seguro, devido pela verificação do sinistro, vier a provocar danos na esfera jurídica ou pessoal do segurado, por violação daquilo que se chamam os deveres acessórios da conduta, esses danos devem ser indemnizados, pois que, se não, não se estaria a ter em consideração o disposto nos artigos 798, 562, 564/1 e 566, todos do CC.
O ponto é que se demonstre que os danos invocados foram provocados pela violação daqueles deveres acessórios de conduta.
Segue-se, por isso, esta segunda corrente, sendo que, vários dos acórdãos da primeira corrente têm argumentos que levam a pensar que, nos casos concretos em que se prove que realmente o comportamento da seguradora causou aqueles danos, eles também aceitariam que a seguradora fosse condenada a ressarci-los.
A aceitação desta segunda corrente não corresponde, já se vê, como decorre do que se expôs, que sempre que a seguradora não entregue o capital seguro na sequência do sinistro verificado, se imponha, só por isso, a sua condenação numa indemnização pelos danos invocados. Pois, caso contrário, como sugere o ac. do TRP de 14/03/2016, citado acima, teria que se entender que sempre que um contraente – todos eles, não só as seguradoras – recusasse, bem ou mal não interessa, o cumprimento, vindo a ser condenado em acção intentada com esse fim, deveria ser condenado não só nas consequências normais do incumprimento das correspondentes obrigações, como, por exemplo, no caso de obrigações pecuniárias, nos juros de mora (art. 806/1 do CC), mas ainda numa série de outras indemnizações.
Posto isto, o que interessa é, então, que se possa dizer que o comportamento da seguradora é, por si, causador de outros danos que não aqueles que já decorrem da mora no cumprimento da obrigação; sendo que se tem de admitir, como sempre, que as seguradoras, como qualquer outro contraente, possa ter um entendimento diverso daquele que foi atingido pelo tribunal sobre a verificação dos pressupostos da obrigação cujo cumprimento lhe é pedido e que, por isso, a simples assunção desse entendimento – como a recusa em pagar a indemnização por entender que não se verifica a hipótese coberta ou que se verificam as cláusulas de exclusão – não é nem fonte daqueles outros danos, nem poderia, só por si, ser fonte da obrigação de os indemnizar.
Posto isto,
Segundo o art. 102/1 da LCS, “o segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências.” O art. 102/2 da LCS acrescenta: “para efeito do disposto no número anterior, dependendo das circunstâncias, pode ser necessária a prévia quantificação das consequências do sinistro.” E o art. 104 da LCS termina: “A obrigação do segurador vence-se decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o artigo 102.”    A estas regras acrescem, no que importa ao caso, as decorrentes do artigo 36 do regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por força do art. 92 do mesmo regime.
Artigo 36.º Diligência e prontidão da empresa de seguros:
1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve:
a) Proceder ao primeiro contacto com o tomador do seguro, com o segurado ou com o terceiro lesado no prazo de dois dias úteis, marcando as peritagens que devam ter lugar;
b) Concluir as peritagens no prazo dos oito dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea anterior;
c) Em caso de necessidade de desmontagem, o tomador do seguro e o segurado ou o terceiro lesado devem ser notificados da data da conclusão das peritagens, as quais devem ser concluídas no prazo máximo dos 12 dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea a);
d) Disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo dos quatro dias úteis após a conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão;
e) Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico;
[…]
2 - Se a empresa de seguros não detiver a direcção efectiva da reparação, os prazos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior contam-se a partir do dia em que existe disponibilidade da oficina e autorização do proprietário do veículo.
3 - Existe direcção efectiva da reparação por parte da empresa de seguros quando a oficina onde é realizada a peritagem é indicada pela empresa de seguros e é aceite pelo lesado.
6 - Os prazos referidos nas alíneas b) a e) do n.º 1:
a) São reduzidos a metade havendo declaração amigável de acidente automóvel;
[…]
8 - Os prazos previstos no presente artigo suspendem-se nas situações em que a empresa de seguros se encontre a levar a cabo uma investigação por suspeita fundamentada de fraude.
No caso, o acidente foi participado a 31/10/2017 através de uma participação amigável. Assim, no dia 02/11/2017 iniciou-se a contagem do prazo de 30 dias úteis do art. 36/1-e do regime do DL 291/2017, que, assim, terminava a 18/12/2017. A 20/12/2017, a ré comunicou à autora que tinha terminado a instrução do processo, que concluía que os danos advindos ao veículo foram produzidos em circunstâncias diferentes daqueles que nos foram participados e que não podia atender à reclamação que nos formulou (facto 8), pelo que, há um atraso em dois dias úteis no cumprimento daquele prazo (tal como aliás resulta da carta do advogado da autora constante do facto 10). Não há que descontar qualquer suspensão de prazos porque a seguradora não invocou uma suspeita fundamentada de fraude.
De qualquer modo, este atraso de dois dias úteis na comunicação da não assunção da responsabilidade é irrelevante só por si, sendo que nada mais foi alegado. E a não assunção da responsabilidade é legítima, embora, naturalmente, se no fim se apurasse, como se apurou, que a ré devia ter assumido a responsabilidade, tenham lugar as normais consequências legais, ou seja, a colocação em mora desde a data em que o devia ter feito, com obrigação do pagamento de juros.
Assim sendo, tem que concluir que não se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar, com base na violação de deveres decorrentes da boa-fé, outros danos – como o da privação do uso do veículo - para além dos juros de mora à taxa legal.
Em suma: o relatado comportamento da ré consubstancia o incumprimento da prestação principal do contrato, a possibilitar desde logo a exigência judicial do cumprimento (art. 817 do CC), com pedido de indemnização moratória. Mas não é, por si, causador de outros danos que não sejam aqueles, precisamente, que decorrem do incumprimento do contrato.
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A autora pede 3500€ de danos não patrimoniais. Estes são por ela referidos à falta de informação dada pela ré sobre o desenrolar da participação, mais ao choque pela não assunção da responsabilidade, mais à falta de resposta aos constantes pedidos de esclarecimentos; e ao ter-se visto do seu meio de transporte, passando a estar dependente da boa vontade e disponibilidade de terceiros, situação que a autora há muitos anos não experienciava.
Não há dúvida de que os danos não patrimoniais são indemnizáveis mesmo na responsabilidade contratual, mas exige-se que esses danos tenham gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito (art. 496 do CC) e que “a natureza da prestação contenda essencialmente com valores de ordem não patrimonial.” (António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, Teses, 1990, pág. 34).
Ora, a natureza da prestação em causa não contende com aquele tipo de valores, nem nada do que consta dos factos provados ou que decorre deles pode ser visto como danos desse tipo com gravidade suficiente para merecerem a tutela de direito.
Por fim, esta indemnização não poderia ser uma forma ínvia de dar cobertura ao dano da privação do uso.
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A obrigação da seguradora, quando à indemnização dos estragos do veículo, vence-se 30 dias após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, incluindo a quantificação desta (arts. 102 e 104 da LCS). Já acima se viu que, no caso, a seguradora estava em condições de assumir a sua responsabilidade a 18/12/2017 (em vez de a ter negado a 20/12/2017), pelo que a obrigação se venceu a 18/01/2018, sendo a partir de então devidos juros de mora à taxa legal (arts. 806 e 559 do CC).
Quanto ao custo do parqueamento, são devidos juros a partir do fim de cada dia de permanência do veículo na oficina.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida e condenando agora a ré a pagar à autora 11.769,61€ pelos estragos no veículo, e    27.880€ + IVA pela permanência do veículo na oficina desde 24/03/2018 a 16/01/2022, com juros de mora à taxa legal desde 18/01/2018 quanto ao primeiro valor (estando vencidos 82,55€ à data da petição) e desde o fim de cada dia quanto aos 20€ diários e vincendos até integral pagamento.
Custas, na vertente de custas de parte (não há outras), quer da acção quer do recurso, pela autora (49,67%) e pela ré, em 50,33%.

Lisboa, 19/12/2024
Pedro Martins, relator por vencimento 
João Paulo Raposo
Vaz Gomes, voto vencido conforme projecto meu enquanto primitivo Relator que assim sumario:

I - Não obstante a exaustiva motivação da decisão de facto feita no Tribunal recorrido, a verdade é que os factos alegados pela Ré na sua contestação quer os factos essenciais constitutivos da matéria exceptiva concretizadores da alegação de que o acidente se não deu do modo referido na petição inicial por em suma ser uma simulação, quer os complementares resultantes dos depoimentos, designadamente, da testemunha JV, não encontram reflexo na decisão de facto proferida, ou seja, o Tribunal convenceu-se dos factos alegados no articulado da contestação e também produzidos pelas testemunhas, todavia os mesmos não encontram reflexo na decisão positiva recorrida, do mesmo modo que não encontram reflexo expresso numa qualquer decisão negativa; é que, sendo negativa a decisão sobre esses factos da matéria exceptiva, haveria óbvia contradição entre a convicção do Tribunal recorrido reflectida nessa motivação e a própria decisão que genericamente refere “Não se lograram provar quaisquer outros factos, não foram consideradas as conclusões, as alegações de direito e as circunstâncias fácticas irrelevantes para o presente juízo jurisdicional”. Não podendo ocorrer uma tal contradição a conclusão é a de que há omissão de pronúncia sobre essa matéria factual.
II - Essa omissão de julgamento impede que esta Relação reaprecie factos não julgados que foram decisivos para as dúvidas do julgador na 1.ª instância quanto à versão do Autor trazida ao processo e justificam a anulação do julgamento nos termos do art.º 662/2/c do C.P.C.
Lxa. 19/12/2024
Juiz Desembargador Vaz Gomes