CONTRATO PROMESSA
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
CLÁUSULA CONTRATUAL
DESPESAS
CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL
DOCUMENTO PARTICULAR
ASSINATURA
BENFEITORIAS
BENFEITORIAS NECESSÁRIAS
BENFEITORIAS ÚTEIS
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
PRIVAÇÃO DE USO
BEM IMÓVEL
DANO INDEMNIZÁVEL
Sumário

I – Uma cláusula contratual num documento assinado pelas partes, em que os réus promitentes vendedores declararam que a autora, promitente compradora, suportou despesas e custos num dado valor, como obras necessárias num imóvel, contém uma confissão extrajudicial em documento particular assinado que tem força probatória plena qualificada.
II – Confessar as despesas não é o mesmo que confessar benfeitorias.
III – Despesas administrativas com a Câmara e com arquitectura em obras necessárias podem incorporar-se em benfeitorias necessárias e úteis, tal como o trabalho realizado pelo próprio autor da benfeitoria.
IV – Do art. 479 do CC resultam dois limites para o valor a restituir pelo enriquecido: valor das despesas no n.º1 e valor actual do enriquecimento no n.º 2. Provado o 1.º (valor das despesas) e não provado o 2.º, vale apenas aquele, pelo que o valor a restituir pode ser fixado nele, não tendo de ser remetido para liquidação posterior.
V - A prova por confissão de factos, constante de um documento particular assinado, cuja assinatura não seja posta em causa, pode ser impugnada quer como documento, invocando-se, grosso modo, a falsidade do mesmo, quer como confissão, invocando-se a invalidade da mesma.
VI – O direito à indemnização do valor das benfeitorias está sujeito ao prazo geral da prescrição, de 20 anos, do art. 309 do CC, que se inicia a partir do momento em que o titular do direito o pode exercer (art. 306/1 do CC), ou seja, quando tem conhecimento de que lhe é pedida a entrega do bem onde elas foram feitas.
VII – O direito à indemnização do valor das benfeitorias, a ser feito valer por reconvenção, não está sujeito a preclusão (art. 573/2 do CPC), embora depois, na execução para entrega da coisa, o direito de retenção com fundamento em benfeitorias não possa ser feito valer (art. 860/3 do CPC), sem que isso prejudique o direito de indemnização pelo valor das benfeitorias.
VIII – Tal como o facto de o titular da indemnização não ter invocado as benfeitorias nessa execução, cujos embargos só podem ter por objecto o direito de retenção, não preclude a faculdade de fazer valer o direito à indemnização em posterior acção declarativa.
IX - A jurisprudência do STJ está mais ou menos consolidada no sentido de que a privação de uso de bem imóvel, sendo um facto ilícito, “configurará também um dano indemnizável se puder concluir-se que o titular do respectivo direito se propunha aproveitar e tirar partido das vantagens ou utilidades que lhe são inerentes, só o não fazendo por disso estar impedido em virtude do facto ilícito. Para tanto, bastará, […], que os factos adquiridos para o processo mostrem que o lesado usaria normalmente a coisa”, não sendo de afastar num caso particular apenas por não se concordar com ela.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

C [daqui para a frente ‘autora’] intentou uma acção comum contra F e sua mulher, O [daqui para a frente ‘réus’], pedindo que os réus sejam solidariamente condenados a restituírem-lhe e pagarem-lhe, a título de reembolso e restituição de benfeitorias úteis, todas as despesas realizadas pela autora numa moradia que identifica, no montante de 113.725,92€, com juros de mora a partir da citação dos réus e em sanção pecuniária compulsória, se disso for caso, nos termos do previsto no artigo 829.º-A do Código Civil.
Para tanto alega, em síntese, que, em 19/08/1997, celebrou com os réus um “contrato promessa de compra e venda”, mediante o qual os últimos prometeram vender-lhe e ela prometeu comprar-lhes uma moradia unifamiliar, pelo preço de 104.747,56€, não ficando ajustada data para a celebração do contrato definitivo; o imóvel foi entregue à autora aquando da celebração do “contrato promessa”, mas não existia para o mesmo licença de habitação, nem estava em condições de ser habitado, decorrência do que a autora, com a autorização dos réus, realizou as obras necessárias à sua utilização, com o que despendeu os acima pedidos 113.725,92€, após o que foi residir para o imóvel; não foi possível emitir licença de utilização para o imóvel, implantado em área urbana de génese ilegal e os réus interpuseram contra ela uma acção de reivindicação, a qual foi julgada procedente, declarando-se que aqueles são os proprietários do imóvel e ordenando-se-lhe a sua restituição aos réus, pelo que a autora entende ter direito a ser indemnizada pelas benfeitorias que realizou no imóvel.
Os réus contestaram, excepcionando com o caso julgado [dizem que a autora, então na qualidade de ré, já teria deduzido pedido de indemnização por benfeitorias, no âmbito do processo 2113/12.7TBALM.L1, embora o tenha realizado fora de prazo; deduziu o mesmo pedido de indemnização no processo 3137/18.6T8ALM-A. A matéria ora alegada pela autora já foi apreciada nas decisões dos dois processos. A autora alega a vigência do contrato promessa, embora já tenha solicitada [sic] a mesma questão no âmbito do processo declarativo, no articulado de alegações de recurso; a questão do incumprimento do contrato e respectiva resolução, ficou decidida no âmbito do processo declarativo; tais decisões constituem caso julgado quanto à matéria alegada na petição inicial, o que obsta, enquanto excepção dilatória, a que o tribunal conheça do mérito da causa (art. 576/2 do CPC)] e a prescrição do direito invocado pela autora [“a decisão que obrigou a autora à restituição do imóvel transitou em julgado em Junho de 2016, tendo a presente acção sido interposta já em 2020, ou seja, decorridos mais de 3 anos (art. 482 do CC)”], e impugnando os seus fundamentos; e deduziram ainda pedido reconvencional, para tanto alegando, em suma, que a autora fruiu o imóvel durante 23 anos, sem contrapartida, com a inerente privação do seu uso por parte dos réus; o que determinou um prejuízo correspondente ao montante que eles poderiam obter pela concessão do seu gozo a terceiros, em regime de arrendamento, em valor não inferior a 2500€ mensais; pedem a condenação da autora no pagamento desses 2500€, por cada mês de fruição do imóvel, desde 19/08/1997, até entrega efectiva, livre de pessoas e bens.
A autora replicou, impugnando, de facto e de direito, as excepções e a reconvenção.
Como os réus deduziram reconvenção sem indicação do valor respectivo, foram convidados a suprirem tal omissão, sob pena de não ser atendida. Vieram então os réus indicar o valor de 30.000€ para a reconvenção; por despacho de 03/05/2022, foram notificados para que esclarecessem como compaginavam tal valor com o pedido deduzido. Os réus, por requerimento de 20/05/2022, vieram dizer que:
Consideram que deverá fixar-se, no mínimo, o valor de 500€ mensais pela privação de uso do imóvel, calculados desde a ocupação em 14/08/1997, até entrega efectiva em 10/02/2021. O que resulta num valor de 135.000€, atribuído à reconvenção. Com efeito, requer-se, ao abrigo do art. 265/2 do CPC, a alteração do pedido compreendido na reconvenção: condenando-se a autora no pagamento de uma quantia não inferior a 500€ mensais, por cada mês de fruição do imóvel, desde 19/08/1997 até 10/02/2021, acrescido de juros de mora à taxa legal, calculados desde a citação até integral pagamento.
Por despacho de 30/06/20222, foi decidido que: Na falta de indicação do valor do pedido reconvencional, após notificados nos termos previstos no art. 583/2 do CPC, vieram [os réus] finalmente indicar o valor de 13.500€ [quis-se escrever 135.000€ - TRL]. Concomitantemente requerem a redução do pedido de condenação d[a autora] na quantia mensal de 2.500€ para 500€ por mês pela privação do uso do imóvel desde a sua entrega à autora até à data da restituição. A alteração do pedido, reduzindo-o, é admissível nos termos consignados no art. 265/1 do CPC, pelo que, conformando-se o requerido com este normativo, defere-se o pedido de alteração do pedido para o valor agora indicado pelos réus.
No despacho saneador foi fixado à causa o valor de 248.725,92€ [não se explicou o caminho para lá chegar, mas é este: a autora tinha atribuído à acção o valor de 113.725,92€; o tribunal somou-lhe 135.000€; há, no entanto, um óbvio lapso de contas, dos réus, seguido pelo tribunal: de 14/08/1997 a 10/02/2021 vão 23 anos e 5 meses e não 22,5 anos; logo o valor da reconvenção deve ser corrigido para 281 meses x 500€ = 140.500€; e o valor da acção passa a ser de 254.225,92€]; foi julgada improcedente a excepção de caso julgado e foi relegada para a sentença a apreciação da excepção de prescrição.
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença, condenando os réus a pagar à autora a indemnização correspondente ao valor das benfeitorias que a autora realizou no prédio, elencadas no facto provado sob 11, em montante a liquidar em incidente ulterior à sentença, com o limite do pedido, no valor de 113.725,92€, acrescido de juros contados desde a citação e até pagamento, à taxa de 4%, e absolvendo-os do demais; e condenando a autora a pagar aos réus, a título de indemnização pela utilização ilícita do mesmo prédio, entre 11/01/2017 e 10/02/2021, a quantia mensal correspondente ao valor locativo desse bem, a liquidar em incidente posterior à sentença, com o limite do pedido de 2.500€ mensais, absolvendo-a do demais.
A autora recorreu, impugnando 2 pontos da matéria de facto, a falta de liquidação da condenação dos réus e a condenação da autora no pedido reconvencional.
Os réus recorreram subsidariamente, impugnando 4 pontos da matéria de facto e a condenação dos réus no pedido da autora; consideraram que as alegações deste recurso servem de contra-alegação ao da autora.
A autora não contra-alegou.
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Questões que importa resolver: se a decisão da matéria de facto deve ser alterada; se a condenação dos réus devia ter sido num valor líquido ou se eles não deviam ter sido condenados; se a autora não devia ter sido condenada.
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Estão dados como provados os seguintes factos:
1\ Por instrumento escrito datado de 19/08/1997, epigrafado de “Declaração”, cuja cópia consta de fls. 18 verso e 19, subscrito pelos réus e pela autora, declararam os mesmos o seguinte: “Para os devidos efeitos se declara que [os réus] prometem vender a moradia unifamiliar em alvenaria coberta de telha, composta de r/c e sótão, [à autora], que promete comprar pelo preço de 21.000.000$. Como sinal e princípio de pagamento a promitente compradora entrega ao promitente [vendedor] o cheque […], no valor de 200.000$.”
2\ Por instrumento escrito datado de 27/09/2002, epigrafado de “contrato promessa de compra e venda”, cuja cópia consta de fls. 19 verso, 20 e 20 verso, subscrito pelos réus e pela autora, declararam os mesmos, nas respectivas qualidades de “primeiros” e de “segunda”, entre o mais, o seguinte: “[...]
1/ Os primeiros são os únicos donos do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o número 0000, inscrito na matriz predial da freguesia de A sob o artigo número 000.
2/ Os primeiros prometeram vender à segunda, em 19/08/1997, cf. declaração de que se anexa fotocópia e que fica a fazer parte integrante do presente contrato, o prédio atrás identificado, pelo preço de 21.000.000$, hoje, 104.748€.
3/ A segunda pagou aos primeiros e até à presente data 1.210.000$ ou seja, 6.035€, como sinal, princípio e continuidade de pagamento de que os segundos agora prestam quitação.
4/ Os primeiros deram à segunda, a posse do objecto do presente contrato de compra e venda e da declaração, em 19/08/1997.
5/ Assim, a segunda começou a utilizar a casa construída no lote 000 e a fazer obras que entendeu por necessárias e possíveis.
6/ Tendo por isso, e até hoje, suportado despesas (administrativas), c/a Câmara e arquitectura, e aquisição de materiais e pagamento de mão-de-obra, tudo no valor de 22.800.000$, ou seja, 113.725,92€.
7/ Ainda não existe licença de habitação e, assim, prescindem da exibição da mesma.
8/ As partes não podem alegar a nulidade do presente contrato, declarando ambos que, caso o façam se obrigam, reciprocamente, a pagar à outra parte uma indemnização na quantia de 25.000.000$, ou seja, 125.000€, valor que é devido na data em que a nulidade comece a ter os seus efeitos.
9/ A segunda obriga-se a pagar aos primeiros o remanescente em dívida, 98.712,10€, logo que faça a escritura de hipoteca ao banco junto do qual vai pedir empréstimo, para poder proceder ao pagamento de todo o valor em dívida.
10/ Os primeiros obrigam-se, caso seja necessário, a assinar o que for preciso, para que a propriedade do prédio aqui referido venha a ser transferida e venham a ser requeridos os registos provisórios, a favor da segunda e do Banco.
11/ O presente contrato foi feito em duplicado, ficando o original na posse do segundo e o duplicado na posse dos primeiros.”
3\ O Lote 000 passou a ser designado de n.º 111.
4\ Mostra-se inscrita no registo predial, pela ap. 00 de 00/01/2007, a aquisição, por adjudicação em processo judicial de divisão de coisa comum (AUGI), a favor dos réus, casados um com o outro, sob o regime da comunhão de adquiridos, do [referido] prédio urbano, com a área total de 000 m2, composto de moradia unifamiliar de rés-do-chão, sótão e logradouro, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 000 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o número 000.
5\ A autora casou com J no dia 06/10/1999, sob o regime da separação de bens.
6\ No processo 2113/12.7TBALM, da Comarca de Lisboa – Almada – Instância Local Cível – J2, instaurado pelos réus contra a autora, foi proferida sentença no dia 13/05/2015, a qual foi confirmada por acórdão do TRL de 19/05/2016, do qual não foi admitido recurso de revista interposto no STJ [por acórdão deste, de 20/10/2016], transitado em julgado no dia 11/01/2017, decisão na qual o tribunal declarou que os réus são proprietários daquele prédio e condenou a autora a restitui-lo aos réus, livre e devoluto de pessoas e bens, bem como a abster-se de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização pelos réus, absolvendo-se a autora do pagamento da quantia de 2.000€, nos termos constantes do documento de fls. 215 e 219 a 233v, cujo teor se dá por reproduzido [este TRL acrescentou a referência ao ac. do STJ e ligou o trânsito em julgado a este acórdão, para pôr o ponto de facto de acordo com o que resulta da certidão junta aos autos a 26/10/2023].
7\ Essa sentença contém a seguinte fundamentação:
“No caso em apreço, verifica-se que do contrato promessa não foi convencionado qualquer prazo para a outorga da escritura (cf. facto provado em 4), nem tão pouco da correspondência trocada resulta que os [réus] tenham fixado um prazo peremptório à [autora] para a realização da escritura, tendo-se limitado a referir que “seria bom que a C preparasse a papelada para o próximo mês de Setembro” do ano de 2010 (cf. facto provado em 4 e 5).
Certo é que a [autora], apesar de ter conhecimento da intenção dos [réus] celebrarem o contrato definitivo com a maior brevidade possível, designadamente em Setembro de 2010, não empreendeu quaisquer acções tendentes à sua realização e passou a furtar-se ao contacto com os [réus] não lhes dando quaisquer explicações (cf. factos provados em 6 a 8), pese embora se encontrasse a fruir do imóvel conforme resulta da cláusula 4 do contrato promessa transcrito em 3 dos factos provados.
Ora, este comportamento da [autora] traduz-se, no nosso entendimento, num incumprimento definitivo do contrato definitivo na modalidade da recusa da [autora] na sua celebração, sendo que esta modalidade de incumprimento vem sendo admitida tanto a nível doutrinário como jurisprudencial (cf. por exemplo, Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 2011, pág. 256 e segs, Nuno Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, 2011, pág. 864 e segs.; ac. do STJ de 10/1/2012).
Refira-se que a recusa de cumprimento deverá ser clara e inequívoca, podendo, porém, ser expressa ou tácita, sendo que a concludência do comportamento deverá ser retirada de factos relevantes, tornando-se necessário que se “crie a convicção de que o devedor não realizará a prestação” (cf. Brandão Proença, loc. cit., pág. 263).
No caso em apreço, verifica-se que a [autora] beneficia da entrega do imóvel prometido desde 19/08/1997, sendo que, por volta de Setembro de 2010, quando foi contactada pelos [réus] para diligenciar no sentido da formalização da escritura pública de compra e venda, por o terreno já se encontrar legalizado, optou por não tratar da documentação necessária para o efeito, designadamente pela obtenção da licença de utilização e aprovação do empréstimo bancário, ao contrário do que se obrigou, e passou a furtar-se ao contacto com os [réus], até que estes decidiram intentar a competente acção judicial com vista à recuperação do imóvel, sendo que também a sua citação foi levada a cabo por via edital por as tentativas de contacto pessoal se terem frustrado.
Ponderando a factualidade apurada, verifica-se que a [autora], com o seu comportamento e ponderando o largo lapso temporal em que já se mantém na posse do imóvel (desde 1997) revelou um total desinteresse na celebração da escritura pública de compra e venda o que se traduz numa verdadeira recusa de cumprimento do contrato promessa de compra e venda.
Nestes termos, comprovando-se a recusa de cumprimento, como modalidade de incumprimento definitivo, têm os [réus] o direito de resolução do contrato, cuja comunicação se tem que considerar operada por via da citação da presente acção à [autora], pelo que havendo tradição da coisa deve, desde logo, a [autora] proceder à entrega do imóvel aos [réus], repondo a situação jurídica anteriormente existente (cf. artigos 436 e 434 do CC).”
8\ No processo 3137/18.6T8ALM-A, de embargos de executado, do Juiz 1, do Juízo de Execução de Almada, no qual figura como embargante a autora e como embargados os réus, por sentença de 19/07/2017 [trata-se de lapso: a sentença data de 19/09/2019 - TRL], constante de fls. 109v a 124v e cujo teor se dá por reproduzido, foram os embargos julgados improcedentes, por não provados, determinando-se o normal prosseguimento da execução, nos precisos termos em que foi instaurada, com a imediata entrega do imóvel aos embargados/exequentes, bem como foi julgado improcedente, por não provado, o pedido de diferimento da desocupação do imóvel, sendo a embargante condenada como litigante de má fé, em multa de 5 UC e no pagamento de indemnização à contraparte, no valor de 5000€.
A sentença recorrida dá por reproduzida esta sentença, passando este TRL a transcrever dela aquilo que importa:
A [autora] veio deduzir embargos de executado à execução que lhe é movida p[elos réus]; […] conclui pela procedência dos embargos, pedindo e, em consequência, seja ordenado, nos termos do artigo 437 do CC a modificação do contrato promessa de compra e venda, e ainda seja ordenada a suspensão das diligências executórias contra a executada.
[…]
Foi proferido despacho liminar em 04/06/2018.
Devida[mente …] notificados, os exequentes defenderam-se […] alegando que: a oposição deduzida pela executada carece de fundamento legal […].
[…]
O processo reúne já todos os elementos para que seja possível proferir decisão de mérito, uma vez que a questão a decidir é apenas de direito e além disso as partes foram devidamente notificadas do despacho de 28.05.2019 e concordaram com o mesmo.
[…] Encontram-se provados, por documentos e acordo das partes, os seguintes factos:
1\ Entre os aqui exequentes e executada foi celebrado contrato-promessa de compra e venda do imóvel […]
2\ O contrato celebrado entre ambos foi declarado resolvido, por incumprimento definitivo da aqui executada, por via judicial (Proc. 2113/12 […] tendo esta sido condenada a proceder à entrega do imóvel aos autores, repondo a situação jurídica anteriormente existente.
3\ Tal sentença transitou em julgado em Junho de 2016.
4\ No entanto, até à data, o imóvel ainda não foi entregue aos aqui exequentes.
5\ No decurso da acção judicial declarativa, a executada furtou-se sucessivamente à citação, protelando o desfecho do processo, mantendo-se indevidamente na posse do imóvel desde 19/08/1997.
6\ Foi dada à execução a sentença condenatória datada de 13/05/2015 proferida no processo identificado no ponto 2., constando da sua parte decisória: “a) Declara-se que os [réus] são proprietários do prédio […] b) Condena-se [a autora] a restituir aos [réus] o prédio urbano aludido em a) livre e devoluto de pessoas e bens, bem como a abster-se de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização pelos autores”.
*
III - Objecto do litígio:
A questão decidenda é a relativa à admissibilidade de embargos de executado deduzidos contra execução de sentença com os fundamentos que a embarga[nte] apresenta, ou seja, “não estando convencida” pela acção declarativa, transitada em julgado, pretende voltar a discutir os factos já apreciados na mesma ou de factos que deveria ter carreado para os autos de acção declarativa em sede de contestação, não o tendo todavia feito.
*
IV – Fundamentos de Direito:
[…]
Baseando-se a execução em sentença, e não em título executivo extrajudicial, existindo, portanto, uma apreciação jurisdicional anterior, não pode o executado opor à execução toda a defesa que lhe era lícito apresentar na acção declarativa, ou seja, defesa por impugnação e defesa por excepção, nos termos do estipulado pelo artigo 571, n.ºs 1 e 2, do CPC, sendo necessário preservar a autoridade do caso julgado.
Não podem, por isso, quando se trata de oposição à execução baseada em título judicial, invocar-se, sem qualquer limite temporal, todas as causas impeditivas ou extintivas do direito do exequente, sob pena de violação do princípio da autoridade do caso julgado.
O caso julgado material que se forma nas acções contempla a defesa apresentada pelo réu, de modo a impedir a reapreciação das questões que já tenham sido decididas, quanto ao mérito, mas, também, os factos que o réu teria podido deduzir, no processo declarativo, mas que, de facto, acabou por omitir.
A executada deveria, na contestação da acção declarativa inicial, em que se formou o presente título executivo, ter deduzido toda a defesa, com base no disposto pelo artigo 573/1 do CPC, sob pena de, não tendo, então, invocado os factos relativos a benfeitorias, ficar precludida a faculdade jurídica de a suscitar, ulteriormente.
Por outro lado, tendo a sentença transitado em julgado, não pode a executada vir pretender reapreciar a questão discutindo de novo pontos que já foram discutidos na acção declarativa, sob o “fundamento” que “não ficou convencida na acção declarativa”.
Convencida ou não, o certo é que ficou vencida e encontra-se obrigada ao cumprimento de uma sentença judicial transitada em julgado.
A inexistência ou insubsistência da obrigação exequenda, em matéria de oposição à execução fundada em sentença ou equiparada, restringe-se aos factos não precludidos pelo caso julgado, isto é, aos factos modificativos ou extintivos da obrigação, desde que posteriores ao encerramento da discussão no processo de declaração, que se provem por documento, a menos que se trate da prescrição do direito ou da obrigação, que pode ser provada, por qualquer meio, pelo que, sendo anteriores, mesmo que o executado deles não tenha conhecimento ou não disponha do documento necessário para os demonstrar, não podem servir de fundamento de oposição à execução.
[…]
Na petição inicial de oposição à execução a embargante/executada invocou a compensação de créditos (embora não seja admissível, em nossa opinião, a compensação da entrega do imóvel com o pagamento de uma quantia em dinheiro).
De qualquer forma, a questão tem de ser apreciada.
[…]
No tocante ao fundamento de oposição previsto no art. 729/-h do CPC - "contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos" -, para além de se exigir a verificação dos pressupostos da compensação previstos no art. 847 do CC, o executado só poderá invocar esse fundamento desde que tal não tenha sido possível no âmbito do processo declarativo em que se formou o título executivo judicial, além de que, por identidade de razão (art. 9 do CC), será ainda necessário que se prove por documento o facto constitutivo do contracrédito, em conformidade com a parte final do art. 729/-g do CPC.
[…]
No caso presente não resulta demonstrada a superveniência (objectiva) do facto extintivo, que no caso consiste na alegada compensação de créditos.
A situação de possível compensação (caso fossem provados os respectivos factos em que se alicerça) estava verificada na data em que a executada foi citada na acção declarativa, não tendo a executada contestado, por inércia sua, em virtude de se furtar sucessivamente à citação com a decorrência da citação edital. Sibi imputet.
É, pois, manifesto, sem necessidade de mais considerandos por absolutamente desnecessários, que os presentes embargos devem improceder.”
9\ O imóvel referido de 1 a 4 foi entregue à autora pelos réus em 19/08/1997.
10\ Quando a moradia construída no imóvel referido de 1 a 4 foi entregue à autora, a sua construção não estava terminada, pois não tinha cozinha, nem instalação eléctrica, nem canalizações, nem, pelo menos, uma das duas casas de banho.
11\ A autora, após 19/08/1997, durante os seguintes 2 a 3 anos e com termo em data incerta, mas não posterior ao final do Verão de 2000, foi realizando, no imóvel, as obras necessárias à sua utilização, incluindo instalação eléctrica completa, instalação de rede de gás e casinha de suporte para as bilhas, canalizações gerais, encerramento dos acessos ao primeiro piso, incluindo janelas e portas, por imposição da Câmara Municipal de A, colocação de janelas com vidros duplos, colocação de estores térmicos, reparação das paredes interiores e exteriores, colocação de sanitários, azulejos e chão numa das casas de banho, que não existiam, construção de uma garagem, colocação de portas de entrada e grade, colocação de pedra à volta das paredes exteriores da casa, colocação de portões exteriores, pintura e remodelação dos muros, pintura e colocação de ferragens nas portas do interior, colocação de churrasqueira, colocação de dois roupeiros, construção de todo o espaço de jardim no exterior, construção de passadeira em calçada portuguesa do portão de acesso até à garagem.
12\ Após esses trabalhos, é que a autora passou a residir no imóvel com o marido e a filha.
13\ As obras realizadas em 11 foram autorizadas e eram do conhecimento dos réus.
14\ Os réus, desde antes de 19/08/1997 e até ao presente, residem nos Estados Unidos da América.
15\ A mencionada moradia vem descrita na caderneta predial urbana como correspondendo a um prédio em propriedade total, sem andares, nem divisões susceptíveis de utilização independente, tratando-se de uma moradia unifamiliar em alvenaria, coberta de telha, composta de rés-do-chão, com três divisões, cozinha, duas casas de banho, vestíbulo, despensa e sótão com quatro divisões esconsas, casa de banho e arrumos, destinada a habitação, com o valor patrimonial de 225.431,50€, determinado no ano de 2018.
16\ A mesma moradia não tem licença de utilização.
17\ O imóvel foi restituído aos réus no dia 10/02/2021 no âmbito de diligência realizada na execução referida em 8.
18\ Esta acção foi instaurada no dia 13/02/2020.
19\ É desconhecida a data da citação dos réus [nesta acção - TRL]
20\ Os réus contestaram a acção em 18/09/2020.
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Da impugnação da decisão de facto pela autora
O tribunal da 1.ª instância considerou que não se provou a seguinte afirmação de facto feita pela autora:
NP22\ Com as obras descritas em 11 a autora despendeu 113.725,92€ e valorizou o imóvel em idêntico valor.
A fundamentação desta decisão consta do seguinte:
No que se refere à ausência de demonstração da matéria vertida sob 21 a 26 [todas afirmações de facto que não foram dadas como provadas] resultou a mesma da circunstância de não ter sido produzida prova bastante e apta a corroborá-la, pois sobre tais eventos não recaiu a respectiva confissão das partes, nem as testemunhas inquiridas os confirmaram com conhecimento, nem sobre esses factos incidiram outros meios de prova com aptidão para revelar a sua veracidade, incluindo prova documental ou outra.
Em particular, foi absoluta a ausência de prova que tenha recaído sobre os factos 21 e 26.
Relativamente ao facto 22, que representa o maior foco de controvérsia entre as partes, constata-se que, do teor do documento de fls. 19 verso a 20v apenas se consegue extrair que os réus declararam reconhecer que a autora suportou as despesas que vêm indicadas na sua cláusula sexta, mas as quais são muito mais abrangentes que os trabalhos que invoca na sua petição corresponderem a melhoramentos realizados no imóvel que restituiu aos réus e não são coincidentes na sua descrição, além de que apenas a autora e o seu marido apontaram para um valor total aproximado despendido com tais trabalhos, o que não constitui, logicamente, meio de prova seguro e adequado a sustentar com a segurança e o rigor exigíveis a realidade do facto 22.
[…]
Termos em que outra alternativa se não pode impor que não seja a de considerar o apontado acervo factual (elencado sob 21 a 26) como não demonstrado, tal como se decidiu, atenta a debilidade da prova oferecida para sustentar a sua realidade.
A autora diz que devia ter sido dado como provado que:
O valor das benfeitorias que a autora realizou no prédio urbano foi [de] 113.725,92€.
Isto com base na argumentação sintetizada nas seguintes conclusões:
6\ Da apreciação articulada das declarações da autora com o depoimento da testemunha JG, conclui-se que as benfeitorias realizadas pela autora [descritas no facto 11 – embora por lapso a autora refira 10 – também invocado no corpo das alegações como elemento probatório], à data da subscrição do contrato ascendiam a 113.725,92€.
7\ A conclusão reforça-se com a conjugação com a prova documental: contrato-promessa e confissão dos réus vazada no mesmo documento [e com as regras da normalidade e da experiência comum da vida, que a autora também invoca no corpo das alegações].
Contra isto, os réus dizem aquilo que consta de 6 a 11, 13 [2.ª parte], 14, 16, 20 e 26 a 28 da impugnação que deduzem contra os factos 10 a 13 [transcrita mais à frente - a numeração foi agora colocada, para se poder remeter para ela sem necessidade de ser repetida].
Apreciação
As passagens das declarações da autora e do depoimento do seu marido que a autora invoca limitam-se a dar conta de um valor total de despesas que eles não justificaram minimamente quanto a parcelas. Compreende-se que não o tenham feito dado que estavam a contar com aquilo que foi feito constar do contrato, mas não evita que se conclua que aquilo que eles disseram não era prova suficiente daquilo que de facto gastaram, independentemente do valor que possa ser atribuído a outra prova.
Quanto ao que consta do ponto 6 da declaração subscrita pela autora e réus no documento de 27/09/2002 (facto 2) - “Tendo […], e até hoje, [a autora] suportado despesas, (administrativas), c/a Câmara e arquitectura, e aquisição de materiais e pagamento de mão-de-obra, tudo no valor de 113.725,92€.” – diga-se o seguinte:
Há aqui uma declaração de ciência dos réus, num documento também subscrito pela autora, a reconhecerem dois factos que podem ser vistos como desfavoráveis para eles e favoráveis para a autora. Estamos, pois, perante uma confissão (art. 352 do CC), extrajudicial (art. 355 do CC), em documento particular assinado (art. 358/2 do CC) e, por isso, com força probatória plena qualificada (art. 358/2 do CC, parte final) [veja-se Lebre de Freitas, A acção declarativa, 2023, 5.ª edição, Gestlegal, páginas 276-277, nota 13, pág. 287, nota 42, pág. 308, especialmente nota 13: Não se confunde a força probatória do documento particular com a da confissão: o documento prova que quem o subscreve fez a declaração dele constante; esta declaração, porque desfavorável ao subscritor, tem força de confissão. O art. 376-2 CC contém assim uma norma probatória relativa à confissão e não já ao documento.; e páginas 325-326: Quando extrajudicial, a confissão é, enquanto facto que constitui um meio de prova pré-constituído, trazido ao processo, mediante a apresentação do documento, escrito ou outro, que a contém (o documento prova a declaração de ciência da parte e esta, por sua vez, prova a realidade do facto confessado) […]; e na Introdução ao processo civil, 5.ª edição, 2023, Gestlegal, 205-206, nota 9: Imaginemos que consta em documento particular o reconhecimento por A, que com B tinha celebrado con­trato-promessa de compra e venda dum bem móvel, que deste recebeu um sinal: o documento prova que A fez a declaração dele constante (art. 376-1 CC); desta decla­ração, porque confessória (art. 352 CC), deduz-se a realidade da entrega (art. 376-2 CC)].
Mas este reconhecimento diz respeito à realização de despesas e seu valor, não ao reconhecimento daquilo que a autora pretende estar provado, isto é, que se trata de benfeitorias, sem mais, e de qual o seu valor. As benfeitorias não se confundem com despesas e, por outro lado, o valor das benfeitorias, ao menos das úteis, não se confunde com o valor das despesas, ou, dito de outro modo, o valor das benfeitorias úteis não é o valor que se gasta a fazê-las, mas o valor que trazem ao bem a que dizem respeito as despesas.
Como o que consta do contrato-promessa já consta dos factos provados, não há nada que tenha de ser acrescentado para que tal matéria já possa ser considerada – se for necessário - na fundamentação de Direito do acórdão.
Quanto aos argumentos dos réus contra a argumentação da autora a maior parte deles são errados, insuficientes ou irrelevantes [quanto a 6 e 28: os réus nem dizem qual é esse valor, nem demonstram que tal valor não possa ser ultrapassado na prática; quanto a 7: não é assim que se afastam confissões; quando a 8, não cumpre o disposto no art. 640/1b-2b; quanto a 14 e 16, são argumentos processuais intempestivos, para além de errados; quanto a 13, 2.ª parte, e 20: as razões invocadas são insuficientes, só por si, para afastar o valor do depoimento; quanto a 26, é argumento substantivo errado: já que o trabalho do próprio, para efeitos do art. 216 do CC, é uma despesa], mas, face ao decidido agora, não interessam.
*
Da impugnação da decisão de facto pelos réus
Os réus entendem que os factos 10 a 13 deviam ter sido dados como não provados.
Isto com base na seguinte fundamentação:
1/ A decisão fundamentou-se nas declarações da autora em conjugação com os depoimentos da filha, da sogra e do marido.
2/ O tribunal a quo, deu, incompreensivelmente, especial relevância às declarações da autora, em detrimento das declarações do réu, pondo em causa o princípio da igualdade das partes.
3/ Refere o tribunal a quo, que “em particular, a autora descreveu, com coerência, as obras que tiveram lugar na casa em questão desde o final de 1997 ...”
4/ Não nos podemos esquecer que foi a autora que incumpriu culposamente o contrato promessa celebrado com os réus furtando-se ao pagamento do preço do imóvel e ao contacto com os réus, tudo conforme descrito no ac. do TRL transcrito no facto 7.
5/ Também não nos devemos esquecer que foi a mesma autora, aí executada, condenada como litigante de má-fé no processo executivo para a entrega do imóvel (atente-se o teor do facto 8).
6/ Ademais, é facto notório que a autora falta à verdade, pois o valor que a autora diz ter gastado em obras (113.725,92€), à data de 1997, daria para construir de raiz uma casa, completamente nova, atento o valor da construção por metro quadrado à época!
7/ A declaração constante do contrato promessa celebrado em 2002, tratou-se evidentemente de mais uma manobra falaciosa da autora, na qual o tribunal a quo não poderia ter sucumbido!
8/ A autora sabia que os réus residiam nos Estados Unidos (facto 14) e que não acompanhariam, nem vigiariam quaisquer obras que entendesse levar a cabo.
9/ A autora alega ter realizados as obras em 1997 e que as mesmas duraram 2 a três anos.
10/ No entanto, nunca apresentou qualquer tipo de prova relativo ao tipo de obras realizadas, facturas ou despesas gastas.
11/ Sabendo que o imóvel não era seu, caso tivesse realizado obras em tal montante, seria natural manter consigo a prova dessas despesas.
12/ No entanto preferiu juntar ao processo fotografias, as quais apesar de impugnadas, e de não ter sido feita qualquer prova sobre as mesmas, foram tidas em consideração erroneamente pelo tribunal a quo na fundamentação da decisão.
13/ Pelas razões aduzidas, o depoimento da autora não deveria merecer qualquer credibilidade, nem o das testemunhas por si arroladas, nomeadamente da filha que referiu ter 6/7 anos na altura, nem da sogra e muito menos do marido com interesse directo na acção.
14/ Este último, tao pouco deveria ter sido admitido a prestar depoimento como testemunha, pois como se referiu, como cônjuge da autora, tem interesse directo no desfecho da acção.
15/ Acresce que, as declarações da autora, nada tiveram de pacifico, pois para alem de uma completa surdez inicial, manteve uma postura no decurso audiência para a qual foi chamada a atenção pelo tribunal a quo, em virtude de se frequentemente responder em voz alta às perguntas que iam sendo feitas as testemunhas, como acenava com a cabeça tentando manietar as respostas que iam sendo dadas pelas testemunhas.
16/ A tal ponto que, chegou mesmo a ser solicitada a sua saída da sala de audiências, incidente que deveria ter ficado registado em acta.
17/ Por outro lado, o depoimento da sogra foi tudo menos seguro e despretensioso, voltando constantemente com a palavra atrás a instâncias da mandataria dos réus:
Vejamos o depoimento de 00:58:39 a 01:27:40:
Adv. dos réus: Falou aqui que foi o seu filho que fez as obras?
Testemunha: Fez, mas ele não fez sozinho ... Ele trabalhou sempre, ... até mesmo o pai da C fazia alguma coisa ... e ele tinha que ajudar
Adv. dos réus: Mas a Sr.ª visitava a obra com frequência?
Testemunha: Sim ia lá sempre
Adv. dos réus: Ia lá fazer o quê?
Testemunha: Ia la almoçar, ia la ajudar... a arrancar o chão, Ia la almoçar ia lá fazer alguma coisa.
Adv. dos réus: Puseram-na a si também a trabalhar?
Testemunha: Não puseram, eu é que ia lá, eu sentia-me bem lá, ia ajudar fazer alguma coisa.
Adv. dos réus: Disse que ia la almoçar era isso?
Testemunha: Era.
Adv. dos réus: Então aí tinha, tinha canalizações?
Testemunha: Não, não tinha canalizações, nós íamos lá almoçar como eles iam almoçar a minha casa ou jantar, e a gente íamos para lá, íamos para lá trabalhar
Juiz: O que a Sr.ª Dr.ª está a tentar dizer é se estavam lá a cozinhar o almoço?
Testemunha: Não, a casa não tinha condições, só começamos a almoçar depois das obras feitas.
...
Confrontada com fl.125 dos autos:
Adv. dos réus: Conhece essa fotografia?
Testemunha: Ah isto são os meus netos!
Juíza: São os seus netos?
Testemunha: Eu não tenho é os óculos de ver ao perto.
Juíza: Parece-lhe os seus netos, eu ouvi bem?
Testemunha: É o meu neto.
Adv. dos réus: O seu neto tem que idade?
Testemunha: Tem 38 anos
Adv. dos réus: Conhece a casa?
Sim conheço.
Juíza: Que casa é para si? A Sr.ª conhece a casa como sendo a casa de que falou?
Testemunha: A casa do meu filho e da minha nora,
Adv. dos réus: A primeira vez que foi lá estava assim a casa?
Testemunha: Não sou capaz de diferenciar isto, não me lembro.
Juíza: lembra-se que a Sr.ª já descreveu como estava a casa,
Testemunha: Sim eu sei como estava a casa, só que aqui a conversa é outra!
Juíza: Parece-me que é, mas agora já não disse fui lá uma primeira vez que não me lembro de ver a casa assim
Testemunha: Assim tudo partido?
Testemunha: Aqui é o chão...O muro...
Adv. dos réus: Tinha muros?
Os muros não tinha
Adv. dos réus: O portão estava agarrado a que?
Testemunha: àqueles muros, um muro de cada lado para segurar o portão...
Adv. dos réus: Lembra-se se entrou por estes portões?
Testemunha: O portão era verde.
Adv. dos réus: Tinha portões quando a Sr.ª lá entrou?
Testemunha: Sim, arranjaram muros.
Adv. dos réus: Sabe se o que esta aqui foi deitado abaixo e construído um novo?
Testemunha: Não sei.... Acho que a casa nem sequer é como aquela que lá estava, porque aquele portão grande era em frente
Juíza: Dentro do que Sr.ª se recorda
Test.: Tem coisa que já não sei. Os portões para já eram de outra cor, aquele portão grande era em frente onde eles fizeram a garagem. ....
Resposta e interferência da autora
Pois... não... a traseira também não é... Não agora não sei
Juíza: A Sr.ª está confusa e não tem a certeza se é esta casa
18/ A testemunha demonstrou ter uma memoria circunscrita ao que lhe era perguntado da parte da autora, não conseguindo responder, nem tão pouco identificar a casa, a instâncias da mandataria [dos réus]
19/ O seu depoimento foi cheio de dúvidas não merecendo qualquer credibilidade!
20/ Da mesma forma que o depoimento da filha não merece qualquer credibilidade pois esta testemunha, na altura, tinha apenas 7 anos de idade.
[…]
21/ Relativamente aos factos considerados provados, o tribunal a quo fez tabua rasa das declarações do réu, pondo em causa como se referiu, o princípio da igualdade (tendo ficado gravado das 00:00:01 às 00:56:08).
22/ Assim, como não teve em consideração os depoimentos das testemunhas arroladas pelos réus, fazendo-os adaptar às declarações e discurso da autora.
23/ Os depoimentos das testemunhas dos réus foram unanimes em referir que a casa tinha sido construída há pouco tempo, e que estava pronta a habitar, ressalvadas algumas pequenas correcções, faltando apenas a ligação de água e luz à rede, e os móveis da cozinha.
24/ Nesse sentido, vão os depoimentos de AA (das 01:28:46 às 01:52:40) e de MV (das 01:53:47 às 02:19:04).
25/ Tais depoimentos deveriam merecer credibilidade pois foram espontâneos, credíveis, são pessoas fora do seio familiar, tendo as habituais limitações de memoria face ao tempo decorrido;
[…]
26/ Resulta clarividente da prova produzida em audiência que as obras foram realizadas pela própria, autora, seu marido ou companheiro, e demais familiares.
27/ Tornando-se evidente que jamais a autora gastou tal montante no imóvel.
28/ Acresce ainda que, é facto notório que seria impossível gastar tal montante, atendendo ao valor de construção por metro quadrado da época.
29/ Assim como não poderia ter dado como provado os factos 10 a 13 por ausência de prova credível, isenta e imparcial.
30/ Por outro lado, o tribunal a quo considerou erroneamente que a construção não se encontrava em “estado de nova”, sem atender à documentação junta aos autos, nomeadamente ao doc.17 junto com a PI, que atesta que o alvará de construção tem o número de processo 471/97, o que significa que a construção teve inicio em 1997.
31/ O que revela que, contrariamente referido na sentença na sua fundamentação, a construção poderia estar inacabada, por ter acabado de ser edificada.
32/ Andou mal o tribunal a quo, ao atender apenas à prova testemunhal da autora, não dando relevância à prova documental dos autos, nem à [prova] testemunhal apresentada pelos réus.
33/ Acresce que, das fotografias juntas pela autora (doc.12 junto com a PI) podemos observar a construção de um imóvel concluída, com muros, contrariamente ao referido pelas testemunhas.
34/ As declarações da autora e das testemunhas por si apresentadas, entram em contradição com a reportagem fotográfica que juntou com a PI (doc.12), pois como pode ver-se da mesma o imóvel aí representado tinha muros e gradeamento, ao contrário do referido pela autora e pelas testemunhas.
A sentença fundamentou – aqui como de seguida - exaustivamente a decisão impugnada (com 7 páginas de minuciosa análise da prova produzida de parte a parte). Dado o tipo de impugnação deduzida pelos réus, não tem interesse estar aqui a reproduzir a da sentença.
Apreciação:
Não tendo os pontos em causa agora impugnados unidade de sentido, a argumentação em bloco dos réus é uma confissão implícita da falta de razão para a impugnação, ou seja, de que não podem apresentar argumentos reais quanto a cada um deles.
Por outro lado, basta a leitura daquela fundamentação dos réus para se ver que ela não tem nada a ver com o que consta dos factos 12 e 13.
Quanto aos factos 10 e 11, não é invocado, em concreto (desde logo em violação do art. 640/1b-2b do CPC; a indicação do início e termo do depoimento de todas as testemunhas dos réus, não é a indicação das passagens de gravação que importam), qualquer elemento de prova que ponha em causa o que foi realmente dado como provado (isto é, o concreto estado do imóvel e o que concretamente foi feito; entre o mais, no facto 10 não se diz, ao contrário do que os réus sugerem, que foi a autora que construiu os muros); isto mesmo no caso em que os réus terão procedido a transcrições (apenas do depoimento da sogra), pois que das passagens [mas, repete-se, sem indicação do período do tempo da passagem, que não é o mesmo que o período de gravação de todo o depoimento, que é aquele que está indicado] em causa (mesmo com os aditamentos dos argumentos 18 e 19) não resulta o contrário do que consta dos factos 10 e 11, nem a impossibilidade de ser dado como provado o que aí consta com base na prova invocada pela decisão recorrida.  
Isto para além do erro de parte da argumentação; para além do já assinalado acima a propósito da discussão do ponto não provado 22, diga-se, quanto aos argumentos 1 e 2, que é evidente que o facto de o tribunal ter dado mais valor a dada prova do que a outra, não é, por si, violação do princípio da igualdade das partes, desde que o tribunal tenha explicado, como extensamente explicou (sendo que a impugnação dos réus não tenta rebater essa explicação), o diferente valor atribuído a cada elemento de prova; quanto aos argumentos 4 e 5 são razões irrelevantes para apreciação do valor dos elementos de prova; quanto às razões invocadas em 10, 11, 12, 15 e 16, elas não afastam a credibilidade da autora na parte aproveitada pelo tribunal recorrido; o que consta da 1.ª parte do argumento 13, repetido em 20, não afasta o valor do depoimento da filha, na parte aproveitada.
Em suma, para além da rejeição dos elementos de prova que não observaram o disposto no art. 640/1b-2b do CPC, o resto da argumentação não convence minimamente que a decisão recorrida não pudesse dar como provado os factos 10 e 11, sendo que a impugnação não teve nada a ver, repete-se, com o que consta dos factos 12 e 13.
*
O tribunal da 1.ª instância decidiu que não se provou a seguinte afirmação de facto feita pelos réus:
NP25/ O conteúdo do acordo referido em 2 não foi negociado entre as partes.
Os réus entendem que esta afirmação que eles fizeram devia ter sido dado como provada.
Isto com base nos seguintes meios de prova:
O depoimento da testemunha MA, mulher do actual procurador dos réus, com conhecimento directo dos factos e que acompanhou os réus na assinatura do último contrato assinado em 2002.
Esta testemunha confirmou que os réus não leram o contrato pois confiavam na autora e pai desta, por serem família, e que a autora não lhes prestou quaisquer contas.
O depoimento desta testemunha ficou gravado das 00:03:20 às 00:32:20, do qual se transcreve o seguinte:
Adv. dos réus: Ele depois assinou mais um contrato tem ideia disso?
Testemunha: sim, em 2002... isso recordo-me perfeitamente, não me recordo onde exactamente, mas sei que era aqui em Almada, não me recordo o advogado. Mas sim celebraram um contrato que o sr. F achava que era um contrato para finalizar a venda da casa, foi-lhe dado a assinar, mas como o senhor F e a O já são de uma idade um tanto ou quanto avançada, e como muitos de nós fazemos, não lemos nas entrelinhas. Eles não lerem de facto nada, confiaram mais uma vez na C e assinaram, e nada se resolveu.
Adv. dos réus: Tem ideia se nesse dia eles estavam para ir de volta para os Estados unidos
Testemunha: Eles estavam com pressa sim. O Sr. F e D. O jamais desconfiariam do Sr. A e da Sr.ª D. C uma vez que eram família

Sabe se prestaram contas?
Testemunha: não! Prestaram contas como!?
...
Sem ler, sem ter conhecimento do que estava a assinar e também o português era um bocado pobre
Adv. dos réus: E aí a Sr.ª C não lhe prestou contras nenhumas?
Juiz: como é que tem a certeza? A Sr.ª estava lá ao pé dele?
Testemunha: Estava, estava.
[…]
A instâncias do mandatário da autora:
Testemunha: Não leram o contrato
...                     
Juiz: É que o contrato são duas folhinhas
Testemunha: Eu sei Dr.ª
Eu compreendo, mas eles estavam cansados da situação que já se estava a arrastar há algum tempo e a D. C não cumpria com o que combinou.
...
Acresce que os réus não entenderam o teor do contrato, e ao contrário do alegado pela autora, nunca reconheceram o direito à devolução do valor 113725,92€.
Apreciação:
Os momentos da assinatura de um contrato não são os momentos da negociação do contrato. As passagens transcritas pelos réus não têm a ver com os momentos da negociação do contrato, pelo que não põem em causa o que consta da decisão de facto impugnada. De resto, não são indicados os períodos das passagens da gravação. Por fim, as afirmações feitas no recurso (último §) não são elementos de prova.
*
O tribunal da 1.ª instância decidiu que não se provou a seguinte afirmação de facto feita pelos réus:
NP26\ Foram os trabalhos que a autora realizou no mencionado imóvel que impediram a obtenção de licença de utilização.
Os réus dizem que impugnam desta decisão, o que terá como base o que, a dada altura, escrevem:
O depoimento da testemunha MA […]
[…]
O depoimento desta testemunha ficou gravado das 00:03:20 às 00:32:20, do qual se transcreve o seguinte:
Adv. dos réus: A casa estava pronta a habitar?
Testemunha: Sim estava...
Adv. dos réus: A casa não tinha licença de utilização?
Não tem. Ainda hoje não tem.
Quem ficou de tratar da licença de utilização?
Na altura havia uma comissão de moradores. E pai da D. C ficou de finalizar
...
Testemunha: há uma ordem de demolição...
Adv. da RR: A casa vai ser demolida é isso?
Testemunha: sim
Apreciação:
Das passagens transcritas nem sequer decorre um início de prova do que os réus pretendem provar.
Em suma, improcedem as impugnações da decisão da matéria de facto.
*
Dos recursos sobre matéria de direito
Quanto à acção:
A sentença reconhece o direito da autora ao valor das benfeitorias necessárias e úteis (art. 216 do CC) do ponto 11 dos factos provados (art. 1273 do CC), que não podem ser levantadas sem detrimento para o imóvel;  direito que decorre do facto de elas terem sido feitas pela autora no imóvel que lhe tinha sido entregue para habitação por efeito desse contrato-promessa (art. 410/1 do CC) entretanto resolvido e porque foi condenada a devolvê-lo aos réus, por condenação transitada em julgado a 11/01/2017, o que fez a 10/02/2021.
No entanto, dizendo que “o valor das benfeitorias úteis não corresponde estritamente ao montante da quantia gasta para sua implementação, mas antes à valorização que dela decorre para o imóvel” e defendendo que não foram “determinados os concretos valores do material e da mão-de-obra empregues, nem a real valorização do imóvel, embora não possa ser negado que a mesma ocorreu”, relega para a liquidação da sentença a fixação do montante concreto a restituir pelos réus à autora, com o limite do pedido (art. 609/2-1 do CPC).
A autora, na impugnação da decisão de facto, quis que fosse concretizado esse valor, entre o mais com base na confissão que consta da cláusula 6 do contrato-promessa (facto 2).
Não lhe foi dada razão, na decisão da impugnação da decisão de facto, mas concordou-se com a qualificação dada pela autora daquilo que resulta da cláusula 6 do contrato-promessa: uma confissão, com força probatória plena qualificada, de que a autora fez despesas no imóvel no valor de 113.725,92€.
Esse valor inclui despesas “(administrativas), c/a Câmara e arquitectura” e a fundamentação da decisão de facto [transcrita na parte deste acórdão relativa à impugnação do facto NP22] sugere que nesta parte não são benfeitorias ou que vão para além das alegadas pela autora. Mas sem razão: aquelas despesas, classificadas como tal pelos próprios réus e autora, fazem parte das benfeitorias já que se pressupõe que sem elas estas não podiam ser realizadas. São despesas necessárias à realização das obras feitas para a conservação e aumento do valor do imóvel e, como tal, parte dessas benfeitorias. E a autora, alegando umas e juntando o contrato também como prova delas, estava implicitamente a fazer referência também às outras (despesas administrativas, arquitectura).
É certo, entretanto, que na cláusula 6 do contrato não se qualificam as despesas e gastos como benfeitorias necessárias, úteis ou voluptuárias, e estas últimas não dariam direito ao valor delas. Mas é também evidente que não estão em causa benfeitores voluptuárias, pois que o que consta da cláusula 6 vem na sequência da cláusula 5 e esta refere-se às obras necessárias e possíveis.
Havendo assim prova da realização de despesas e gastos num valor certo, por um lado não importa que o valor das benfeitorias pudesse ser superior (porque iria beneficiar a autora e ela não o pediu) e, por outro, não foi alegado e provado, pelos réus, que era inferior.
O art. 1273 do CC dá o direito à indemnização das benfeitorias necessárias e das benfeitorias úteis. As primeiras, naturalmente, correspondem ao valor das despesas. Quanto às segundas, o valor da indemnização delas é calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa, ou seja, nos termos do art. 479 do CC.
O art. 479 do CC dispõe que “1. A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. 2. A obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento à data da verificação de algum dos factos referidos nas duas alíneas do artigo seguinte.”
Estas normas são vistas como salvaguardas do enriquecido, estabelecendo limites àquilo que ele é obrigado a restituir (Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, páginas 42-43; Júlio Gomes na anotação ao art. 479 do Comentário ao CC, Direito das obrigações, das Obrigações em Geral, UCP/FD/UCE, 2018, páginas 264-267). O valor das despesas (aquilo que o empobrecido gastou) é um dos limites (art. 479/1). O valor do enriquecimento actual é outro limite (art. 479/2). Os réus confessaram o valor das despesas e não alegaram e provaram que o valor do enriquecimento actual fosse inferior. Assim, o que há que restituir é valor das despesas que está provado e, por isso, não há necessidade de ulterior liquidação.
Pelo que, nesta parte, o recurso da autora procede, devendo o valor da condenação dos réus ser fixado nos confessados 113.725,92€.
É certo que o valor alcançado podia ser actualizado, como dívida do valor, “em função da depreciação que o valor da moeda, entretanto tenha sofrido” (Pires de Lima e Antunes Varela, obra e local citados). Mas tal é irrelevante porque correria em benefício da autora, não em seu prejuízo, e a autora não pediu essa actualização (art. 609/1 do CPC).
Não devendo haver lugar a uma condenação líquida, tal também é válido para os juros moratórios. A sentença diz que estes se vencem desde a citação. Tal como pedido. Mas, ao mesmo tempo, nos factos provados, diz que não se sabe quando é que a citação ocorreu (facto 19).
Nos factos provados consta que a acção foi intentada a 13/02/2020 (facto 18). Nos termos do art. 323/2 do CC, “se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.” Como não há qualquer facto que permita imputar a falta de demonstração da data da citação à autora, a citação considera-se feita a 18/02/2020 (pois que se prescrição se interrompe a partir de então é porque se presume que a citação foi então feita).
*
Contra isto, os réus sugerem que o trabalho da própria autora não é uma despesa para efeitos de benfeitoria. Da forma como se está a considerar o caso – o valor das despesas foi confessado, sem distinções – a questão é irrelevante. De qualquer modo, diga-se que sempre se entendeu que o trabalho do próprio empobrecido é, para estes efeitos, uma despesa a ter em conta como benfeitoria (por exemplo: Marta Sá Rebelo, em anotação ao art. 216 do CC, Comentário citado, Parte Geral, 2014, pág. 483: “Em rigor, trata-se [as benfeitorias] de alterações ou intervenções sobre determinada coisa que originam uma despesa. Podem envolver a realização de obras, a incorporação de outras coisas ou simplesmente trabalho, ainda que levado a cabo pelo próprio autor da benfeitoria.”).
Os réus tentaram afastar o valor desta confissão, simplesmente dizendo que não negociaram o contrato – o que nem sequer provaram - ou que assinaram sem ler, mas nada disto era susceptível de pôr em causa uma confissão extrajudicial subscrita no mesmo documento também pela parte contrária. Enquanto constante de um documento, não tendo impugnado a veracidade da sua assinatura, teriam de ter alegado e provado a alteração do documento, ou o preenchimento abusivo do documento ou que não sabiam ou não podiam ler; enquanto confissão extrajudicial com força probatória plena, os réus, para a pôrem em causa teriam que a impugnar nos termos do art. 359 do CC, por falta ou vícios da vontade, isto com as devidas adaptações tendo em consideração a natureza da confissão como declaração de ciência e não de vontade, o que implica a inexistência de qualquer elemento subjectivo que não seja a consciência de declarar; pelo que teriam de alegar e provar ou que (i) ela foi predisposta, por afirmação da realidade dum facto que não se verificou, num esquema de fraude à lei ou de simulação negocial, (ii) ou que foi produzida por coacção física, com falta de consciência ou de seriedade da declaração ou com erro na declaração, ou que (iii) ficou a dever-se a erro-vício, que consiste ou num erro sobre o objecto da confissão, ou na ignorância de que se verificou também um facto sem cuja veri­ficação o facto confessado não poderia, natural ou fisicamente, influir numa situação jurídica do confitente, ou que (iv) ficou a dever-se a dolo ou coacção moral (seguiram-se as páginas 281, 283-284 e 315 a 318 d’A Acção declarativa de Lebre de Freitas, citada acima). Ora, nada disto foi alegado, nem provado, nem os réus pretenderam o aditamento de factos provados sobre esta matéria.
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Contra esta condenação, os réus, para além do que antecede, têm as seguintes conclusões:
8\ O incumprimento definitivo do contrato promessa, foi imputável exclusivamente à autora, tendo a resolução sido operada apenas por culpa exclusiva desta, donde resulta dever de indemnizar da sua parte e não o direito a ser indemnizada!
[…]
13\ O imóvel em questão não tinha licença de utilização, facto que era do conhecimento da autora.
14\ Tal como se encontra demostrado nos autos, o procurador e responsável por concluir o processo de licenciamento seria o pai da mesma.
15\16 Com efeito, tendo a mesma incumprido o contrato e não tendo terminado o processo de licenciamento, tudo indica que, propositadamente, no sentido de se furtar à celebração da escritura e pagamento do preço, agiu por sua conta e risco, sendo a única responsável pelo seu alegado investimento em imóvel alheio.
[…]
19\ A autora não tem direito a benfeitorias porque não as realizou […]
Apreciação:
O direito ao valor das benfeitorias decorre dos pressupostos previstos no art. 1273 do CC, não tendo nada a ver com o incumprimento do contrato-promessa.
Por outro lado, é óbvio que foram realizadas despesas qualificáveis como benfeitorias e os réus confessaram-nas, tal como confessaram o respectivo valor.
Por fim, note-se a incongruência entre o que consta da impugnação da decisão do facto não provado sob 26 e o que agora os réus dizem sobre a mesma matéria em 15 e 16. E, por isso, é óbvio que o que consta de 15 e 16 nem sequer tem qualquer suporte factual. É certo que na fundamentação da sentença transcrita no facto 7 se referem alguns destes factos, mas os factos provados num processo, não podem, sem mais, ser transpostos para outro processo. O art. 421 do CPC refere-se ao valor extraprocessual da prova, não dos factos.
Em suma, os argumentos dos réus são manifestamente improcedentes.
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Da prescrição
Sobre a questão, a sentença recorrida disse, entre o muito mais, que:
“No caso vertente, o direito reclamado tem a sua previsão no art. 1273 do CC, mediante o qual a lei assegura à autora um meio específico de indemnização, de cuja previsão legal deflui singelamente que lhe são aplicáveis as regras do enriquecimento sem causa, no tocante estritamente ao cálculo do valor das benfeitorias úteis e nada mais, atenta a natureza subsidiária de tal instituto (art. 474, do CC).
Não é, assim, aplicável o prazo prescricional previsto no art. 482 do CC, o qual estabelece que “o direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento.”
Perante o exposto, será antes aplicável o prazo de prescrição ordinário consagrado no art. 309 do CC, nesse sentido se podendo ver, entre outros, o ac. do TRE de 15/04/2021, proc. 1104/19.1T8PTG-A.E1: “O direito à indemnização das benfeitorias necessárias e úteis, nos termos do artigo 1273 do CC, está sujeito ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos.”
Os réus dizem contra isto apenas o seguinte (tanto no corpo das alegações quanto nas conclusões do recurso):
19\ […] caso [a autora] tivesse direito à restituição, o mesmo estaria prescrito ao abrigo do disposto no artigo 482 do CC.
20\ O direito à restituição por enriquecimento sem causa prescreve no prazo de 3 anos.
21\ Segundo alega a autora, as alegadas benfeitorias foram realizadas antes da habitação do imóvel, ou seja, há mais de 20 anos.
Apreciação:
Os réus nem sequer argumentam contra a sentença, sendo manifesto que esta tem razão ao dizer que o prazo de prescrição do crédito por benfeitorias é de 20 anos e não de 3 anos. Para além de que o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido (1.ª parte do art. 306/1 do CC – preceito também aflorado na sentença recorrida).
Ora, como dizem “a propósito desta questão, Pires de Lima e Antunes Varela, no seu Código Civil Anotado, volume III, 2.ª edição, 1987, página 43, em anotação ao referido artigo 1273.º, […]: «O direito do possuidor à indemnização das benfeitorias necessárias e úteis só pode ser exercido quando o proprietário reivindica triunfantemente a coisa, sendo como que um contradireito relativamente à pretensão reivindicatória (…). Trata-se de um direito de natureza creditória, sujeito, como tal, ao prazo ordinário de prescrição. […]” (citou-se, por facilidade, através do ac. do TRE invocado na sentença recorrido, que remete ainda para vários outros acórdãos do STJ e das Relações).
Ou melhor, nos termos postos por Armando Triunfante na anotação III ao art. 1273 do CC, Comentário já citado, Direito das Coisas, pág. 70, com invocação do ac. do STJ de 07/03/2017, 3585/14.0TBMAI.P1.S1 [é invocado outro, mas não se encontrou], “o regime das benfeitorias apenas pode ser invocado pelo possuidor formal que se veja na contingência de ver a coisa reivindicada pelo tribunal do direito.”
Assim, no caso, o direito só poderia ser exercido depois de a autora ter sido citada para a acção de reivindicação, o que só ocorreu depois de 2012, por isso, haviam apenas decorrido 8 anos quando esta acção, em que a autora pede a indemnização pelas benfeitorias, foi intentada (em 2020).
Sendo por isso evidente que o direito não estava prescrito.
Note-se que a sentença, nesta parte, não segue esta fundamentação, pois que considera como relevante o momento em que as benfeitorias terão sido realizadas, mas o resultado prático, no caso, é o mesmo.
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Do caso julgado
A sentença recorrida diz, em síntese muito curta deste TRL, que no processo 2113/12 está em causa uma acção de reivindicação e nesta acção o que está em causa é o reconhecimento do direito da autora a ser indemnizada pelo valor das benfeitorias que realizou no imóvel, como consequência da restituição do imóvel ordenada naquela outra acção. E que nos embargos de executado, a autora visou obstar ao prosseguimento da execução, almejando a sua extinção ou, pelo menos, o protelamento da restituição do imóvel em sede executiva. Neste conspecto, verifica-se que não é manifestamente coincidente a causa de pedir e o pedido em ambas as acções, nem nos embargos de executado, pois que em nenhuma dessas acções foi apreciado e decidido o mérito do pedido que nestes autos foi formulado, de indemnização pelas alegadas benfeitorias realizadas no imóvel reivindicado, não podendo defluir a [identidade] das causas de pedir que sustentam os aludidos pedidos da singela circunstância de ser o mesmo o contrato promessa invocado pelas partes para sustentar as respectivas pretensões.
Contra isto, os réus limitam-se a repetir aquilo que já diziam na contestação, para onde se remete para se evitar duplicação de transcrições.
Apreciação:
Antes de mais, diga-se que não há qualquer prova de que seja verdade o que dizem os réus, isto é, que a autora tenha deduzido um pedido de indemnização por benfeitorias nos embargos de executado. Os réus apenas juntaram certidões das decisões judiciais proferidas, não dos articulados em que tivessem sido formulados pedidos.
Por outro lado, a sentença proferida nos embargos (foi transcrita acima, a propósito do facto 8, na parte que importa para puder ser tida agora em conta), não diz que tenha sido feito um pedido de indemnização, embora diga, na fundamentação de direito, que a autora, nos embargos, invocou a compensação de créditos que não é o mesmo que fazer um pedido a este título.
Na acção de reivindicação, os próprios réus esclarecem que o pedido [se tiver existido, do que não há prova] não foi deduzido em prazo, pelo que não tem sentido invocar algo que, na prática, não existe.
Assim, desde logo se poderia excluir a existência de caso julgado, nos termos em que a questão é aparentemente colocada pelos réus.
No entanto, os réus, na contestação, ao invocarem o ac. do TRC de 16/06/2015, proc. 967/15.4T8PBL-A.C1, permitem o tratamento da questão de outra perspectiva:
Poderia então dizer-se que o caso julgado está ligado ao princípio da preclusão consagrado no art. 573/2 do CPC: como os réus não podem, depois da contestação, deduzirem novos meios de defesa dependentes da sua vontade que não tenham apresentado na contestação, o caso julgado não tem só a ver com o que foi decidido, mas também com aquilo que podia ter sido decidido. Ora, se a autora, ao ser citada para a acção de reivindicação, podia ter invocado o seu direito de indemnização ao valor das benfeitorias que fez no imóvel que poderia ser condenada a restituir, então, não o tendo feito, o seu direito estaria precludido, e já não o poderia exercer mais tarde. Reflexo disto seria a norma do art. 860/3 do CPC: A oposição com fundamento em benfeitorias não é admitida quando, baseando-se a execução em sentença condenatória, o executado não haja oportunamente feito valer o seu direito a elas. Ou, mais latamente, a norma do art. 729/-h do CPC, força de uma certa interpretação que a liga ao art. 729/-g, ao princípio da preclusão decorrente do art. 573/2 do CPC e ainda à norma do art. 732/6 do CPC, poderia fundamentar tal conclusão em geral para qualquer tipo de execução.
No entanto, o próprio acórdão invocado pelos réus dá resposta a isto lembrando que: “É certo que essa justificação não procederá inteiramente relativamente ao direito de indemnização por benfeitorias que, configurando um direito com existência autónoma, não se extingue pela mera circunstância de não ter sido invocado em determinada acção; tal direito não fica abrangido pelo caso julgado formado pela decisão proferida numa acção onde ele não foi invocado e, portanto, o seu exercício não ficará precludido pelo facto de não ter sido invocado na acção declarativa onde era pedida a entrega da coisa onde foram realizadas tais benfeitorias.”
A argumentação feita acima (no penúltimo §), implicitamente defendida na sentença de embargos, esquece, na sua aplicação à reconvenção, que a reconvenção não é um meio de defesa e, por isso, não está englobada no âmbito de aplicação do art. 573/2 do CPC.
Assim, mais simplesmente, pode dizer-se que a autora não era obrigada, na acção de reivindicação intentada pelos réus contra si, a deduzir uma reconvenção contra os réus pedindo o reconhecimento do seu direito a benfeitorias feitas no imóvel (art. 266/2-b do CPC). A reconvenção não é uma obrigação processual, nem um ónus processual, mas uma simples faculdade (veja-se, por exemplo, Lebre de Freitas e outros, no CPC anotado, vol. 3.º, 3.ª edição, 2022, Almedina, pág. 885).
Num comentário de 01/10/2019 publicado sob Jurisprudência 2019 (87) a um acórdão do TRL que defendeu tal solução - A regra da natureza facultativa da reconvenção sofre excepções, casos havendo em que a dedução de pedido reconvencional constitui um ónus – acto que o réu terá de exercer, sob pena de a respectiva pretensão ficar abrangida pelo caso julgado, não podendo ser mais tarde deduzida em acção autónoma – o Prof. Miguel Teixeira de Sousa diz o seguinte:
Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar a solução defendida no acórdão da RL no que respeita à matéria da compensação.
Se se defende que a dedução da reconvenção destinada a obter a compensação constitui um ónus (tal como vale para as excepções peremptórias), então há que concluir que o réu que a não deduziu não pode alegar o contracrédito na parte que podia ser utilizada para provocar a compensação em nenhuma acção posterior.
Perante isto, a pergunta que se pode colocar é a de saber se esta consequência - que, na prática, se traduz numa perda total ou parcial do montante do contracrédito - é aceitável.
Numa época em que se tende a diminuir o efeito preclusivo no processo, cabe perguntar se é razoável impor um efeito preclusivo - e, portanto, uma perda patrimonial efectiva - num caso em que o mesmo não resulta da lei.
Não está em causa que, em certas situações, a reconvenção constitua um ónus do demandado. Isso só sucede, no entanto, quando a procedência do pedido reconvencional seja incompatível com a procedência do pedido formulado pelo autor (como acontece, por exemplo, quando autor e réu discutem qual dos dois é o proprietário de um imóvel).
Ora, no caso da compensação é seguro que isso não acontece: o reconhecimento do crédito do autor e o reconhecimento do crédito do réu não são incompatíveis entre si (antes pelo contrário, dado que é o reconhecimento de ambos os créditos que possibilita a compensação).
Como é evidente, não deve ser confundida a situação em que o direito alegado em juízo apenas pode pertencer ao autor ou ao réu com a situação em que são reconhecidos créditos recíprocos ao autor e ao réu. Assim, nada justifica que a dedução da reconvenção destinada a obter a compensação possa ser entendida como um ónus do demandado.
[…]
Num outro estudo, publicado a 24/05/2017 no blog do IPPC, sobre A problemática da dedução da compensação: breves notas, o mesmo Prof. diz que a tese de que
“a declaração de compensação efectuada pelo réu condenado na acção declarativa depois do termo desta [não] pode ser alegada como fundamento de oposição à execução nos termos do art. 729.º, al, g), CPC. […] equivale a atribuir uma eficácia preclusiva à omissão da alegação da compensação através da reconvenção, ou seja, equivale a negar qualquer diferença, quanto às consequências preclusivas, entre a reconvenção e a excepção. Convém recordar que o ónus de concentração da defesa na contestação (cf. art. 573.º, n.º 1, CPC) vale para a defesa por impugnação e para a defesa por excepção, mas não para a reconvenção (que não é defesa, mas contra-ataque).
Há, aliás, um ponto que não é esclarecido pelos adeptos da preclusão decorrente da omissão da alegação do contracrédito na acção declarativa. Importa saber, na verdade, se o que fica precludido é a declaração de compensação com base nesse contracrédito ou é a própria alegação do contracrédito. Isto é: se o réu não alegar, através da reconvenção, o contracrédito na acção declarativa, isso significa que esse demandando perde a faculdade de o utilizar para extinguir, por compensação, o crédito do autor ou perde o seu próprio crédito?
Admita-se que os defensores da referida orientação escolhem a resposta menos radical e entendem que apenas fica precludida a declaração de compensação. Se o réu não perde o seu crédito (será imaginável que a consequência possa ser outra?), isto significa que aquele crédito continua a integrar o activo patrimonial do anterior réu e agora executado. Se assim é, então nada obsta à penhora desse crédito na execução nos termos do disposto no art. 773.º CPC, porque, naturalmente, não há nenhum obstáculo a que sejam penhorados créditos do executado sobre o exequente. Estes créditos constituem um activo patrimonial que é penhorável como qualquer outro activo.
Cabe então perguntar: é coerente recusar a oposição à execução com base no contracrédito, mas aceitar que este mesmo contracrédito possa ser penhorado na execução? Noutros termos: o que pode justificar que uma execução que podia ter terminado através da alegação do contracrédito continue para permitir a penhora deste mesmo contracrédito? Esta perguntas levam imediatamente a uma outra: não será a referida solução própria de um formalismo dificilmente justificável e compreensível e também dificilmente compaginável com os parâmetros substancialistas do actual processo civil? Todos conhecem o princípio do primado do fundo sobre a forma, mas são muitos os que o esquecem quando se trata de definir as melhores soluções processuais.
[…]
Por outro lado, a posição defendida implicitamente pela sentença de embargos transcrita no facto 8 pressupõe que para a invocação do crédito por benfeitorias (art. 729/-h do CPC) vigora a mesma regra do art. 729/-g do CPC quanto aos factos extintivos ou modificativos da obrigação. Ora, esta aplicação não tem suporte legal.
Contra a harmonização das alíneas h e g do art. 729 do CPC, veja-se o comentário crítico de Miguel Teixeira de Sousa ao ac. do TRC de 06/2/2024, proc. 857/23.7T8ANS-A.C1, comentário publicado em 06/09/2024 sob o título Oposição à execução e compensação: a lei distingue o que a lei impõe que se distinga; entre o mais:
“[…] Há efectivamente uma diferença objectiva entre a regra (geral, se assim se pode dizer) que consta do art. 729.º, al. g), CPC para a generalidade dos factos extintivos ou modificativos e a regra (excepcional, se se pode utilizar esta terminologia) que se encontra no art. 729.º, al. h), CPC para a compensação: a primeira regra impõe uma preclusão à invocação do facto extintivo ou modificativo, a segunda não impõe nenhuma preclusão à alegação da compensação.
Quer dizer: ao contrário do que se verifica quanto à regra estabelecida no art. 729.º, al. g), CPC para a generalidade dos factos extintivos e modificativos, a regra que se encontra no art. 729.º, al. h), CPC quanto à invocação da compensação dispensa qualquer preclusão.
Ainda assim, há quem pretenda submeter a invocação da compensação a uma regra de preclusão que a lei não estabelece. Pergunta-se: porquê unificar um regime que o legislador criou como diverso, tendo certamente presente que o facto extintivo ou modificativo do art. 729.º, al. g), CPC deve ser invocado por via de excepção (art. 576.º, n.º 3, CPC) e que a compensação referida no art. 729.º, al. h), CPC opera através de reconvenção (art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC).
O regime legal é coerente: o disposto no art. 729.º, al. g), CPC é uma decorrência necessária do disposto no art. 573.º, n.º 1, CPC quanto à concentração da defesa na contestação; o estabelecido no art. 729.º, al. h), CPC harmoniza-se com o disposto no art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC e com o carácter facultativo da reconvenção. Disto decorre que a "harmonização" entre o disposto nas alíneas g) e h) do art. 729.º CPC implica afinal uma "desarmonização" entre regimes que são coerentes com as bases em que assentam, dado que determina a aplicação ao que pode ser alegado através de reconvenção do regime que vale para o que tem de ser invocado na contestação. Só desconhecendo esta diferença se pode procurar criar um regime único para a invocação quer de um facto extintivo ou modificativo em geral, quer da compensação em especial. […]”
No mesmo sentido, num outro comentário crítico publicado a 14/11/2016 sob Jurisprudência (479), ao acórdão do TRC 7/6/2016 (5590/15.0T8CBR-A.C1), o mesmo Prof. diz o seguinte:
“[…] não se pode acompanhar […] o obiter dictum segundo o qual a compensação deduzida na oposição à execução tem de se basear num contracrédito posterior ao encerramento da discussão no processo no qual foi proferida a condenação do executado.
O art. 729.º, al. h), CPC não exige essa superveniência e há boas razões para não o ter feito. Na verdade, na acção declarativa a compensação deve ser invocada ope reconventionis (art. 266.º,n.º 2, al. c), CPC), e não, portanto, ope excepcionis. Como se sabe, ao contrário do que sucede quanto às excepções peremptórias (para as quais vale o princípio da concentração da defesa: cf. art. art. 573.º, n.º 1, CPC), a dedução da reconvenção não está, em regra, sujeita a nenhum ónus e, por isso, não pode estar submetida a uma regra de preclusão.
Se o réu não tem o ónus de alegar a reconvenção na acção declarativa, não pode haver nenhuma preclusão num processo posterior da alegação do direito que poderia ter sido invocado ope reconventionis naquela acção. A justificação é muito simples: onde não há um ónus de alegação não pode haver nenhuma preclusão da alegação, dado que a preclusão pressupõe a violação de um ónus de alegação.
Apenas mais uma nota complementar. Contra o referido não pode argumentar-se como se fez no acórdão que a inadmissibilidade da alegação na oposição à execução de um contracrédito anterior ao encerramento da discussão no processo declarativo no qual se formou o título executivo é imposta pelo "respeito ao caso julgado" da sentença condenatória. Independentemente de tudo o mais, a entender-se assim ter-se-ia que concluir que, após a condenação, o réu condenado, para respeitar aquele caso julgado, teria necessariamente que pagar a dívida e não poderia declarar extraprocessualmente a compensação, dado que também esta declaração (que obsta ao cumprimento da dívida) importaria um desrespeito desse caso julgado.
É certo que, nas execuções para entrega de coisa certa, por força do art. 860/3 do CPC, se o réu não tiver invocado as benfeitorias na acção declarativa, não pode opor à entrega o direito de retenção por elas. Mas é uma regra específica daquelas execuções e que não tem reflexo no direito de indemnização fundamentado nas benfeitorias. Neste sentido, Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. 3.º, já citado, pág. 885, que ainda tira outro corolário do que antecede: “A não invocação das benfeitorias nos embargos de executado preclude o direito deste ao seu levantamento ou à retenção da coisa, mas não à indemnização.” No mesmo sentido, o acórdão do TRC 16/06/2015, proc. 967/15.4T8PBL-A.C1, já citado acima. E os seguintes 4 acórdãos, os três primeiros citados por Lebre de Freitas na obra citada:
Do STJ de 08/06/2017, proc. 214/14.6T8BJA.E1.S1:
I. O direito a benfeitorias, ainda que emergente da relação jurídica complexa em que radica o direito à restituição da coisa, traduz-se num direito de crédito distinto deste direito à restituição e que pode ser accionado tanto por via de acção autónoma como, facultativamente, por via reconvencional nos termos do art.º 266.º, n.º 2, alínea b), do CPC.
II. A não invocação do direito a benfeitorias por via de reconvenção em acção declarativa em que se pretenda a restituição da coisa não fica alcançada, de forma excludente, pelos efeitos do caso julgado material, negativos ou positivos, nos termos previstos nos artigos 619.º, n.º 1, e 621.º do CPC, decorrentes da condenação nessa restituição, nem tão pouco abarcada pela preclusão dos meios de defesa prescrita no artigo 573.º do mesmo Código, dado, neste caso, não se tratar dum meio exceptivo intrínseco ao direito à restituição da coisa.
III. De igual modo, sucede nos casos em que o executado demandado em sede de execução para entrega de coisa certa, deixe de invocar o direito a benfeitorias em relação a essa coisa como fundamento dos embargos.
IV. Todavia, se o executado for demandado em execução para entrega de coisa certa e não invocar ou não lhe for já permitido invocar o direito a benfeitorias que autorizem a retenção da coisa, uma vez efectuada a entrega judicial, com tal entrega extingue-se o direito de retenção de que porventura gozasse, nos termos do artigo 761.º, parte final, do CC.
V. Nessas circunstâncias, aquela não invocação equivale a uma renúncia tácita do direito de retenção, sem prejuízo da subsistência do direito a benfeitorias que lhe estiver associado, agora desprovido daquela garantia.
Do TRG de 10/05/2018, proc. 59/16.9T8MNC-B.G1:      
“Face ao disposto no art. 860º/3 do CPC, quando a execução para entrega de coisa certa se baseie em sentença, os executados apenas poderão deduzir-lhe oposição com fundamento em benfeitorias e no inerente direito de retenção, caso não tenham tido a oportunidade de fazer valer esse direito na acção declarativa; se, na acção declarativa, não fizeram valer esse direito, apesar de terem tido oportunidade de o fazer, não poderão vir invocá-lo, posteriormente, em sede de oposição à execução, para paralisar os efeitos decorrentes da sentença condenatória que serve de base à execução e para obstar à imediata entrega da coisa que foi determinada por tal sentença […]
É certo que essa justificação não procederá inteiramente relativamente ao direito de indemnização por benfeitorias que, configurando um direito com existência autónoma, não se extingue pela mera circunstância de não ter sido invocado em determinada acção; tal direito não fica abrangido pelo caso julgado formado pela decisão proferida numa acção onde ele não foi invocado e, portanto, o seu exercício não ficará precludido pelo facto de não ter sido invocado na acção declarativa onde era pedida a entrega da coisa onde foram realizadas tais benfeitorias.
Do TRP de 08/03/2019, proc.14725/16.5T8PRT-A.P1:
VII - O direito a benfeitorias não pode constituir fundamento de embargos a uma execução para entrega de coisa certa em que se dá à execução uma sentença proferida numa acção de execução específica de um contrato-promessa, em que o embargante poderia ter exercido aquele direito, por via de reconvenção, sem que o tenha feito, pois que a isso obsta o nº 3 do art. 860º do CPC. Sem prejuízo, isso não obsta ao exercício desse direito, noutra sede.
              Ac. do STJ de 02/07/2024, proc. 5753/21.0T8GMR.G1.S1:
III – O direito a benfeitorias, ainda que emergente da relação jurídica complexa em que radica o direito à restituição da coisa, traduz-se num direito de crédito distinto deste direito à restituição e que pode ser accionado tanto por via de acção autónoma como, facultativamente, por via reconvencional nos termos do art. 266/2-b, do CPC.
IV – A não invocação do direito a benfeitorias por via de reconvenção em acção declarativa em que se pretenda a restituição da coisa não fica alcançada, de forma excludente, pelos efeitos do caso julgado material, negativos ou positivos, nos termos previstos nos artigos 619/1 e 621 do CPC, decorrentes da condenação nessa restituição, nem tão pouco abarcada pela preclusão dos meios de defesa prescrita no artigo 573 do mesmo Código.
Em suma: o facto de a autora não ter deduzido na acção declarativa reconvenção onde invocasse o direito à indemnização pelo valor das benfeitorias, e também não o ter feito na oposição à execução para entrega de coisa certa, não precludiu a possibilidade de o fazer agora, não havendo caso julgado material a recair sobre ele.
As considerações tecidas na sentença de embargos, transcritas no facto provado sob 8, são razões para o não conhecimento das questões levantadas no embargos, não são o conhecimento de mérito de um pedido de indemnização fundamentado nelas [daí que tal sentença diga que o objecto do litígio é a admissibilidade dos embargos e mais à frente refira que “A situação de possível compensação (caso fossem provados os respectivos factos em que se alicerça)…” Ou seja, não conheceu dos factos que podiam estar na base da compensação…].
De resto, como se diz no ac. do TRE de 28/02/2019, proc. 1326/18.2T8SLV-B.E1: “I - A oposição à execução para entrega de coisa certa com fundamento em benfeitorias só é de aceitar quando estas autorizem a retenção da coisa até ao embolso da sua importância; II - Caso contrário, i.e. a invocação de benfeitorias sem direito de retenção, reconduzir-se-ia a um pedido reconvencional não permitido em sede de oposição à execução; III - Tendo os executados realizado benfeitorias na coisa cuja entrega lhes era peticionada na precedente acção após a citação para a mesma, fizeram-nas necessariamente de má-fé (art. 564/-a do CPC) e por isso não gozam de tal direito de retenção por força do disposto no art. 756/-b do CC que o exclui dos que tenham realizado de má- fé as despesas de que proveio o seu crédito. IV- Ainda que possam ter direito ao seu reembolso noutra acção não têm é o direito de reter a coisa perante a pretensão executiva de entrega que lhes é aqui formulada.” Isto é, como dizem Lebre de Freitas e outros, na obra citada acima, 3.º vol., pág. 883, ao referirem tal acórdão: “a invocação das benfeitorias tem como função evitar ou postergar a entrega da coisa e só esta é objecto da acção executiva.” Ou seja, o objecto dos embargos não é, nem era no caso, um pedido de indemnização por benfeitorias.
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Quanto à reconvenção
A sentença recorrida tem a seguinte fundamentação, nesta parte, em síntese:
Depois de demonstrar a violação ilícita e culposa, por parte da autora, do direito de os réus de usarem, fruírem e disporem do imóvel de modo pleno e exclusivo (art. 1305 do CC), cita, entre vários outros, para efeitos de dar como verificado o requisito do dano como pressuposto da obrigação de indemnizar, o ac. do STJ de 28/01/2021, processo 14232/17.9T8LSB.L1.S1, que diz que: “III\ Competindo ao lesado provar o dano da privação do uso, não é suficiente, para tanto, a prova da privação da coisa, pura e simples, mas também não é de exigir a prova efectiva do dano concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante. IV\ Sendo o imóvel em questão um prédio urbano, será, assim, suficiente demonstrar que o mesmo se destinava a ser colocado no mercado de arrendamento, correspondendo, neste caso, a indemnização pela privação do uso ao seu valor locativo.”
E conclui que “os réus, não fora a conduta da autora, poderiam usar e fruir do imóvel que lhes pertence sem qualquer limitação, mormente retirando dele um rendimento mensal fixo. Pelo que se verifica também o necessário nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos.”
Por fim, lembra que “no caso vertente, não se apurou a exacta expressão pecuniária das perdas sofridas pelos réus, pois, não tendo o imóvel licença de utilização, nem se tendo demonstrado que tenha algum concreto valor locativo, não foi possível descortinar o dano verificado.”
O que, diz, “justifica que o seu [da indemnização] montante seja liquidado ulteriormente à sentença (cf. art. 609/2 do CPC, o qual advém da multiplicação do número de meses durante os quais a autora ocupou abusivamente o imóvel, entre 11/01/2017 e 10/02/2021 (e não desde que lhe foi entregue por efeito de contrato então válido), pela quantia mensal correspondente ao valor locativo do bem […] com o limite do pedido, equivalente ao valor de 2.500€ mensais.” (para o que antes tinha invocado o art. 609/1 – embora por lapso tenha escrito 508 - do CPC).
Quanto a esta condenação, a autora diz o seguinte:
1\ De todo o acervo dos factos dados como provados, nem um só se reporta à intenção de os recorridos pretenderem ceder onerosamente o uso do imóvel dos autos a terceiros e por via disso obterem trocas vantajosas.
2\ O tribunal de 1ª instância não apurou qualquer valor real e efectivo ou meramente indicativo de quanto valeria a cedência do uso do imóvel em causa, entre 2019 e 2021.
3\ O tribunal de 1ª instância deu como não provado [sob 24] que como contrapartida da concessão do gozo do imóvel referido a terceiros, os réus obteriam o pagamento de uma contrapartida mensal não inferior a 2.500€.
4\ O tribunal a quo fez errada aplicação do direito ao considerar um valor como limite de compensação mensal que se não provou, cabendo o ónus da prova aos réus, violando o previsto no artigo 342 do CC.
5\ No caso dos autos não existem quaisquer elementos fácticos, nem qualquer alusão tópica por parte do tribunal de 1ª instância, mesmo no encalço da verdade e da justiça material, relativamente aos quais se possa dizer que deitou mão dos princípios acima enunciados: o princípio da prudência, da razoabilidade e sobretudo da proporcionalidade.
Apreciação:
A possibilidade de uso de uma coisa faz parte do conteúdo de um direito de propriedade (art. 1305 do CC). A violação dessa possibilidade corresponde à ilicitude da conduta como pressuposto da responsabilidade civil (art. 483 do CC). Mas o dano é um outro pressuposto daquela responsabilidade, pelo que algo mais terá de acrescer. Esse algo mais é a privação de concretas vantagens decorrentes da possibilidade de uso de uma coisa (neste sentido, Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, vol. I, Coimbra Editora, 2008, páginas 568 a 596, especialmente a partir 568 a 577 e 585 a 596), naturalmente provocada de forma adequada pela conduta do lesante (nexo de causalidade – um outro requisito da responsabilidade civil). 
“O dano da privação do gozo ressarcível é, assim, a concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não logo qualquer perda da possibilidade de utilização do bem – a qual pode não ser concretizável numa determinada situação” (Paulo Mota Pinto, obra citada, págs. 594-596).
A jurisprudência mais ou menos consolidada do STJ tem ido, no entanto, no sentido de que a privação de uso de bem imóvel, sendo um facto ilícito, “configurará também um dano indemnizável se puder concluir-se que o titular do respectivo direito se propunha aproveitar e tirar partido das vantagens ou utilidades que lhe são inerentes, só o não fazendo por disso estar impedido em virtude do facto ilícito. Para tanto, bastará, […], que os factos adquiridos para o processo mostrem que o lesado usaria normalmente a coisa” (na síntese do ac. do STJ de 01/03/2018, proc. 4685/14.2T8FNC.L1.S1).
O que, pelo menos acaba por ser uma forma de dar relevo à “concreta vontade ou possibilidade de utilização da coisa” pelo seu proprietário de que fala Paulo Mota Pinto (obra citada, pág. 591).
Pelo que, mesmo nesta versão menos rigorosa dos pressupostos da responsabilidade civil (a mais rigorosa, que se considera ser a citada, de Paulo Mota Pinto, foi seguida no voto de vencido do ac. do STJ de 17/11/2021, proc. 6686/18.2T8GMR.G1.S1, e no ac. do TRL de 10/11/2020, proc. 8625/18.1T8LSB.L1-7), não basta a verificação da simples privação da possibilidade de uso do bem.
Assim, por exemplo, entre muitos outros:
O acórdão do STJ, de 08/05/2007, proc. 07A1066:
“2. A mera privação (do uso) da fracção reivindicada, impedindo, embora, o proprietário do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição nos termos do art.1305 do CC, só constitui dano indemnizável se alegada e provada, pelo dono, a frustração de um propósito real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante.”
O ac. do STJ de 03/10/2013, proc. 1261/07.0TBOLHE.E1.S1:
I - A privação do direito de uso e fruição integrado no direito de propriedade configura, por si só, uma desvantagem económica que se reflecte necessariamente no valor do mesmo.
II - Em decorrência da teoria da diferença consagrada no n.º 2 do art. 566.º do CC, tal dano – normativo e meramente abstracto – não é autonomamente ressarcível, só o sendo quando se reconduz a dano emergente ou lucro cessante.
III - O ónus de alegação e prova de tais danos incumbe ao lesante.
IV - A fixação equitativa da indemnização supõe a existência de limites quantitativos provados.
V - Se na pendência de uma acção de reivindicação os autores não logram provar os danos emergentes (impossibilidade de habitar e fazer obras no prédio) e lucros cessantes (frustração efectiva do arrendamento do imóvel) por si invocados, fica inviabilizado o recurso à equidade para determinação da indemnização pela privação do uso.
[…]
O ac. do STJ de 07/03/2017, 3585/14.0TBMAI.P1.S1:
V - Competindo ao lesado provar o dano, não basta a prova da privação da coisa, sendo ainda necessário que o autor demonstre que dela pretende retirar utilidades que, normalmente, lhe seriam proporcionadas se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante).
O acórdão do TRE de 03.12.2020, proc. 436/19.3T8SSB.E1 tem um sumário inaceitável [porque dá a ideia de que o acórdão segue as três posições referidas a seguir, todas ao mesmo tempo] que não foi elaborado pela respectiva relatora (veja-se a nota [17], sendo que os três primeiros números do sumário correspondem às três teses que se diz que são seguidas pela jurisprudência sobre o assunto [na síntese feita pelo ac. do STJ de 01/03/2018, proc. 4685/14.2T8FNC.L1.S1, tal como explicado pela relatora], e o acórdão segue a segunda [não concedendo a indemnização no caso concreto], não a primeira.
Veja-se:
i) a simples privação de uso do imóvel consubstancia, em si, um dano concreto, estando o proprietário ofendido dispensado de alegar e provar o fim a que se propunha afectá-lo ou que virtualidade de uso pretendia extrair dele.
ii) sendo um facto ilícito, a privação de uso de bem imóvel configurará também um dano indemnizável se puder concluir-se que o titular do respectivo direito se propunha aproveitar e tirar partido das vantagens ou utilidades que lhe são inerentes, só o não fazendo por disso estar impedido em virtude do facto ilícito; para tanto, bastará, todavia, que os factos adquiridos para o processo mostrem que o lesado usaria normalmente a coisa.
iii) a obrigação de indemnizar neste campo pressupõe, para além da privação de uso – facto ilícito –, a demonstração dos demais pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente, a verificação de um concerto e específico dano patrimonial.
Não se considera correcta, pois, a posição de alguma outra jurisprudência, que entende que há um dano já na simples privação da possibilidade de utilização do bem, independentemente da possibilidade e/ou vontade de utilização da coisa pelo proprietário.
No caso dos autos, decorre dos factos provados que os réus desde 1997 estão a tentar vender o prédio, convertendo-o em capital fonte de rendimentos civis, deste modo demonstrando que não tratavam o imóvel como se fosse uma propriedade abandonada, indiferentes à produção de rendimentos que pudessem retirar dele.
Assim, está justificada a atribuição da indemnização pela privação por parte da sentença recorrida.
O 1.º argumento da autora contra isto, traduz-se em pretender, contra a referida jurisprudência mais ou menos consolidada, a demonstração da verificação de um concerto e específico dano patrimonial. Ou seja, traduz-se em pretender que se seguisse a terceira corrente da jurisprudência, afastando a tese seguida por aquela jurisprudência mais ou menos consolidada, em prejuízo do princípio da segurança jurídica.
O 2.º argumento, não leva em conta que, por isso mesmo (o que é dito pela autora), o tribunal não fixou um valor líquido, mas ilíquido, justificando devidamente o tê-lo feito.
Os 3.º e 4.º argumentos, não tomam em consideração que o limite máximo lembrado pelo tribunal não depende de prova desse valor, mas sim da lei (art. 609/1 do CPC, citado pelo tribunal recorrido, ou seja, o limite legal decorrente do pedido). No entanto, há que corrigir o erro manifesto do tribunal (o que se diz para efeitos do art. 616/2-b do CPC), que não teve em conta o limite decorrente da redução do pedido operada pelo despacho de 30/06/2022, em consequência do requerimento dos réus de 20/05/2022: 500€ mensais e não 2500€ mensais.
Sendo um limite superior, ele não quer dizer, antes pelo contrário, que na liquidação de tal valor o tribunal não tenha em conta as variações de renda que possam resultar das circunstâncias locais, tal como sugerido pela autora (se a renda no período de Verão é superior à dos outros períodos, ou se o valor anual da renda alcançável tem ou deve ter ou não em consideração essa variação sazonal).
O 5.º argumento da autora esquece que a equidade só seria invocável se o tribunal, como explicou, tivesse ficado convencido de que não podia ser averiguado, em liquidação posterior, o valor exacto dos danos (art. 566/3 do CC).
Assim, foi bem reconhecida aos réus, pelo tribunal recorrido, uma indemnização pela privação do uso do bem, mas que deve ter o limite máximo de 500€ mensais e não dos 2500€.
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Custas
O valor da acção corrigido do erro de cálculo referido acima (página 3 deste acórdão) é, incluindo a reconvenção de 140.500€, de 254.225,92€. A autora apenas perde a acção quanto à indemnização pela utilização ilícita do mesmo prédio, entre 11/01/2017 e 10/02/2021, ou seja, relativamente a 49 meses, pelos quais pode vir a ser condenada, no máximo a 24.500€. Se 254.225,92€ correspondem a 100%, então 24.500€ corresponde a 9,64%, sendo este o seu decaimento (sendo um decaimento provisório, na condenação em custas na liquidação, poderá ser alterado).
A condenação da autora, na reconvenção, podia corresponder a 49 meses x 2500€ = 122.500€. Agora, já só pode vir a ser condenada, na liquidação posterior, a 24.500€. Assim, autora conseguiu reduzir o prejuízo a 1/5, quanto à reconvenção. Quanto ao recurso da condenação ilíquida dos réus, o recurso foi procedente, julgando-se como correcto fixar o valor do decaimento, em 50% (é impossível saber o que é que de facto ocorreria na liquidação, pelo que a dúvida tem de correr contra ambas as partes). Pelo que a decaimento da autora, no seu recurso, é de 1/5 na reconvenção e 50% na acção. Assim, em relação a 113.725,92€, 50%, e em relação a 122.500€, 20%. Pelo que o decaimento reporta-se a 81.362,96. Se 236.225,92€ = 100%, então 81.362,96€ = x. Ou seja, um decaimento de 34,44%.
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Pelo exposto, julga-se o recurso da autora parcialmente procedente, alterando-se a sentença para o seguinte: condena-se agora os réus a pagar à autora, em vez do valor ilíquido fixado na sentença, o valor certo de 113.725,92€ de indemnização correspondente ao valor das benfeitorias que a autora realizou no prédio, elencadas no facto provado sob 11, valor acrescido de juros contados desde a citação, que agora se considera feita a 18/02/2020, e até pagamento, à taxa de 4%, e absolvendo-os do demais; e condena-se agora a autora a pagar aos réus, a título de indemnização pela utilização ilícita do mesmo prédio, entre 11/01/2017 e 10/02/2021, a quantia mensal correspondente ao valor locativo desse bem, a liquidar em incidente posterior à sentença, com o limite do pedido de 500€ mensais [em vez dos 2500€ referidos na sentença], absolvendo-a do demais.
E julga-se o recurso dos réus improcedente.
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Custas, na vertente de custas de parte (não há outras):
Quanto à acção, com o valor de 254.225,92€: são a suportar pela autora em 9,64% e pelos réus em 90,36%.
Quanto ao recurso da autora: são a suportar 34,44% pela autora e 65,56% pelos réus.
Quanto ao recurso dos réus: a suportar pelos réus.

Lisboa, 19/12/2024
Pedro Martins
Ana Cristina Clemente
Paulo Fernandes da Silva