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CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM
CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA
PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
INSUFICIÊNCIA ECONÓMICA PARA SUPORTAR CUSTOS COM A ARBITRAGEM
Sumário
I. Quem, depois de se ter vinculado a uma cláusula compromissória, fica, por insuficiência económica superveniente e fortuita, impossibilitado de suportar os custos inerentes à constituição e funcionamento de tribunal arbitral pode recorrer aos tribunais comuns, sem que lhe seja oponível a exceção de preterição de tribunal arbitral. II. Uma empresa que, desde 2020, se encontra sem atividade, apresenta resultados negativos superiores a € 740.000, capitais próprios negativos de mais de € 590.000, passivo de cerca de € 1.800.000, dos quais cerca de € 1.300.000 são de dívidas a fornecedores, e uma conta de clientes com cerca de € 1.000.000 correspondentes a créditos cujo pagamento não logrou obter por via extrajudicial e está a tentar obter pela via judicial, não tem capacidade económica para suportar o custo de constituição e funcionamento de um tribunal arbitral. III. O facto de a sentença recorrida não ter apreciado um determinado requerimento, nem os documentos com ele apresentados, não conduz à sua nulidade (por via do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC ou de qualquer outra disposição); o que poderia determinar nulidade seria a falta de apreciação de questões sobre as quais o tribunal se devesse pronunciar; as questões relevantes já tinham sido suscitadas na petição e a sentença recorrida pronunciou-se sobre elas; saber se o fez de forma adequada é questão de mérito (não de validade), cuja apreciação pode conduzir à revogação da sentença (não à anulação). IV. A anterior ação com idêntico objeto, na qual a autora não alegou insuficiência económica para suportar os custos da arbitragem, tendo a ré sido absolvida da instância por procedência da exceção de preterição de tribunal arbitral, não conduziu à preclusão do direito da autora de interpor a presente ação.
Texto Integral
Acordam os abaixo identificados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
“AA”, Lda., autora na presente ação declarativa de condenação, com processo comum, que move a “BB”, Lda., na qual intervém, como auxiliar da ré, “CC” Unipessoal, Lda., notificada do despacho saneador proferido em 5 de junho de 2024, que julgou o tribunal incompetente por preterição do tribunal arbitral, e com esse despacho não se conformando, interpôs o presente recurso.
Os fundamentos da ação constantes da petição inicial sumariam-se da seguinte forma:
- A autora celebrou um contrato de (sub)empreitada com a ré, em 01/10/2004, nos termos do qual se obrigou a proceder à construção de uma subestação, caminhos e plataformas para instalação de 37 aerogeradores que compõe atualmente o Parque Eólico da Serra dos Candeeiros, pelo preço de € 1.640.348,21, acrescido de IVA à taxa legal.
- Os trabalhos iniciaram-se em outubro de 2004 e foram concluídos em setembro de 2005, tendo a ré pago o valor referido.
- No entanto, no decurso da obra e por indicações da dona desta, a ré solicitou trabalhos a mais, que a autora realizou e que não foram pagos.
- Os ditos trabalhos, realizados pela autora e aceites pela ré, importaram em € 38.649,04 e € 103.960,50, que a ré também aceitou.
- Dois anos volvidos, os preços não estavam pagos, tendo as partes fixado o valor em dívida em € 155.771,96.
- Em 14/12/2007, a ré comunicou à autora que tinha acordado com a Enersis (dona da obra, antecessora da interveniente) que a ré assumia o pagamento definitivo e final de € 20.792,42 + IVA, e que o restante, no montante de € 134.979,54, seria negociado diretamente entre a ora autora e a Enersis.
- Confiante de que havia um acordo no sentido de que seria a Enersis a proceder ao pagamento do restante montante em falta, no dia 10 de dezembro de 2010, o representante legal da autora, tendo tido conhecimento da fusão da Companhia das Energias Renováveis da Serra dos Candeeiros, Lda. com a 2ª Ré, enviou uma carta ao Presidente do Conselho de administração do Grupo “CC”, interpelando aquela sociedade para proceder ao pagamento das quantias em falta.
- A administração do Grupo “CC” negou ter conhecimento ou documentos no sentido de ser devido o pagamento e, em 14.09.2011, comunicou à autora que não iria proceder ao pagamento.
- A autora voltou a interpelar a ora interveniente em 04.12.2012.
- No dia 4 de janeiro de 2018, ante o silêncio da ré e do Grupo “CC”, a autora comunicou a ambas as sociedades que iria lançar mão de ação judicial por forma a obter a satisfação do seu crédito, o que veio a suceder em 06.01.2018, com a instauração de ação que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo Central Cível J1 (Santarém) sob o nº …/18.1T8VRL, na qual a ré foi absolvida da instância e a “CC” absolvida do pedido por não ter sido dado como provado o alegado, quer pela autora quer pela ré, acordo de transmissão da dívida da ré para a “CC”.
- A ré, naquele e neste processo, não só admite que a autora prestou trabalhos a mais, como o seu valor.
- Nos termos do contrato celebrado entre as partes, depois de ultrapassado o prazo de 15 dias sobre a data do incumprimento pela ré “BB” da obrigação de pagamento dos serviços prestados pela autora, acrescia, por cada mês de incumprimento, ao valor devido pela ré, 1% sobre o montante em dívida.
- No contrato celebrado entre autora e ré, as partes acordaram submeter a arbitragem os litígios dele emergentes.
- Porém, a autora não dispõe de recursos financeiros que lhe permitam suportar os avultados custos da arbitragem, nomeadamente por causa da recusa da ré em proceder ao pagamento da quantia reclamada pela autora no âmbito dos presentes autos, com as inerentes dificuldades de tesouraria, entre outras situações que descreve, tendo tido inclusivamente de recorrer a um PER.
Termina pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe:
a) € 166.024,83 pelos trabalhos a mais executados e não pagos;
b) € 1.660,24 a título de cláusula penal por cada mês de atraso no pagamento da quantia devida à Autora a título de trabalhos a mais desde 15.11.2005 até efetivo e integral pagamento do montante referido na alínea anterior, e que, à data da propositura da ação, se cifra em € 335.368,48;
c) juros de mora vencidos e vincendos calculados à taxa de juro legal sobre o montante das cláusulas penais vencidas e não pagas no valor de € 1.660,24, devidas pela desde 15.11.2005, e que, nesta data se computam em € 105.777,02, ou, caso se entenda que não é devida a quantia referente a cláusula penal, que seja a ré condenada a pagar à autora os juros de mora vencidos sobre a quantia referida na alínea a) calculados à taxa de juro comercial desde 01.11.2005 até efetivo e integral pagamento computando-se em € 236.656,39.
A ré contestou, alegando, para o que ora releva, que a presente ação constitui repetição de outra proposta pela autora, a qual correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Cível – Juiz 2, sob o número de processo …/18.1T8VRL, no âmbito da qual a ré foi absolvida da instância por incompetência absoluta do tribunal judicial por preterição de tribunal arbitral; exceciona, também nos presentes autos, a preterição de tribunal arbitral, alegando ainda que a autora não demonstra as dificuldades financeiras que invoca; mais alega que a incompetência dos tribunais judicias para julgar o presente litígio se encontra definitivamente julgada e a coberto da figura jurídica do caso julgado.
Finalmente, confirma o acordo de pagamento dos trabalhos a mais em que interveio a dona de obra, pelo que pede a intervenção desta, em seu auxílio.
Deferida a intervenção, a interveniente “CC” apresentou contestação na qual: i. excecionou o caso julgado reportado ao processo .../18.1T8VRL, na qual a autora deduziu com a ora interveniente, ali ré, o mesmo pedido que agora formula apenas contra a aqui ré “BB”, tendo a “CC” sido absolvido do pedido naquele processo; ii. alegou a ausência de relação contratual entre si, interveniente “CC”, e a aqui ré “BB”, tendo celebrado, sim, um contrato com “BB2”; iii. excecionou a preterição de tribunal arbitral, convencionado entre autora e ré; iv. alega que a autora não pode peticionar os juros mensais de 1% a título de cláusula penal e ao mesmo tempo pedir a condenação da Ré no pagamento de juros moratórios; v. invoca a prescrição dos juros moratórios vencidos há mais de cinco anos; vi. impugna, em parte por os desconhecer, sem ter obrigação de os conhecer, os factos que poderiam conduzir à condenação.
A autora respondeu às exceções e juntou outros documentos tendentes à prova da sua situação económica.
Findos os articulados, o tribunal a quo conheceu da arguida exceção de incompetência absoluta por preterição de tribunal arbitral, declarando-se incompetente para conhecer do pedido e, consequentemente, absolveu a ré e a interveniente da instância.
A autora não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1. Por saneador-sentença datado de 05.06.2024, o Tribunal a quo julgou procedente a exceção da incompetência absoluta do Tribunal e declarou-se incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido formulado pela Autora nos presentes autos.
2. São três as questões suscitadas pela decisão ora em crise. a) A primeira é a de saber a superveniente insuficiência económica da Recorrente que a impossibilite de suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem constitui causa legítima de incumprimento da convenção de arbitragem permitindo a submissão da apreciação do litígio aos tribunais estaduais;
b) A segunda é a de saber se a Autora alegou e juntou aos autos meios de prova que permitam concluir pela sua insuficiência económica para suportar as custas do presente pleito, e que tal falta de recursos não deriva de culpa sua;
c) A terceira é a de saber se ao não ter invocado a insuficiência económica, sem culpa para obstar à preterição do tribunal arbitral no processo nº .../18.1T8VRL, à luz do princípio da estabilização processual, a Recorrente ficou impossibilitada de o vir fazer na presente ação.
4. A Jurisprudência tem sido unânime em considerar que a superveniência da insuficiência económica de uma das partes de suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem constitui causa legítima de incumprimento da convenção de arbitragem, não podendo a parte em convenção arbitral que, posteriormente à celebração desta, se viu, sem culpa sua, arrastada para uma situação de insuficiência económica que a impossibilitam de custear as despesas dessa arbitragem ser impedida de recorrer aos tribunais estaduais, pedindo a resolução do caso, sem que seja possível opor-lhe a competente exceção dilatória.
5. O Tribunal Constitucional no seu acórdão do nº 311/2018 julgou inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 494.º, alínea j), do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de a exceção de violação de convenção de arbitragem ser oponível à parte em situação superveniente de insuficiência económica, justificativa de apoio judiciário, no âmbito de um litígio que recai sobre uma conduta a que eventualmente seja de imputar essa situação, por no seu entendimento, ao Estado está acometida a tarefa de todos assegurar acesso à justiça e no caso de a efetivação dessa garantia requer a prestação de apoio judiciário, não prevista no âmbito dos tribunais arbitrais, o único meio de evitar o resultado, constitucionalmente inaceitável, de denegação da justiça, é o reassumir de competência do tribunal judicial.
6. A decisão recorrida é omissa relativamente aos factos alegados pela Recorrente no seu requerimento de 18.10.2022, acerca da sua situação económica, e da falta de culpa acerca da mesma, não, procedendo sequer à análise dos IES de 2020 e 2021 que se mostram junto aos autos, documentos contabilísticos esses que de forma mais completa do que as declarações de IRC, retratam a vida societária da ora Recorrente.
7. Ao não proceder à análise de todos os factos alegados pela ora Autora acerca da situação económica da mesma e dos documentos financeiros da mesma, e consequentemente, o Tribunal a quo omitiu pronuncia sobe esses mesmos factos e como tal, está a decisão recorrida ferida de nulidade (art. 615, nº 1, al d) do CPC).
8. Efetivamente, da análise recorrida não aprecia todos os factos alegados pela Autora para justificar a sua situação financeira pois desconsidera todos aqueles que foram alegados no seu requerimento de 18.10.2022, nomeadamente dados financeiros, ações propostas pela Autora, a circunstância de não se titular de bens móveis, bem como o teor dos documentos juntos com o referido requerimento, entre os quais se inclui o IES de 2021 e mapa de responsabilidades bancárias, e comprovativos de pagamento feitos quer à AT, ISS, IP e CGD com as receitas que foi realizando.
9. A considerar-se que a decisão ora em crise não padece do referido vício de nulidade, deve, face aos factos alegados na petição inicial e no referido requerimento, reconhecer-se que a Autora não dispõe dos recursos financeiros que lhe permitam suportar os custos da constituição e financiamento da arbitragem que ascendem no mínimo a € 35 000, 00, e atual a situação financeira atual da Recorrente não deriva de culpa sua, pois as quantias pagas pela Ré foram entregues há quase 20 anos, e, desde então, não só o sector da construção civil enfrentou uma grave crise como o seu funcionamento importa elevados custos.
10. A última questão suscitada pelo Tribunal recorrido prende-se com saber se ao não ter invocado a insuficiência económica, sem culpa para obstar à preterição do tribunal arbitral no processo nº .../18.1T8VRL, à luz do princípio da estabilização processual, a Recorrente ficou impossibilitada de o vir fazer na presente ação.
11. Ao contrário do que resulta da decisão recorrida o que está em causa não é o princípio da preclusão, associado ao caso julgado material, mas saber se, no caso concreto, o conhecimento da questão relativa à competência do tribunal em razão da matéria constitui caso julgado material ou formal.
12. A resposta a tal questão surge no AUJ de 27.11.1991, onde expressamente se refere que «temos que se apresenta segura a matéria que ora importa considerar-se o juiz conheceu expressamente sobre uma questão concreta de competência e este seu despacho, nesta parte não for objeto de recurso forma-se caso julgado formal».
13. O caso julgado é meramente formal quando a decisão proferida é de absolvição da instância e tem os seus efeitos circunscritos ao processo concreto em que ela é proferida, ou seja, extinga a instância por causa diversa do julgamento (art. 277.º, CPC) ou constitua despacho interlocutório que não seja de mero expediente (art. 152.º-4, CPC).
14. A absolvição da instância, que produz caso meramente formal (art. 672º), não obsta a que, entre as mesmas partes o pedido se renove, fundado na mesma causa de pedir, não tendo, pois, lugar, na ação posterior a exceção do caso julgado e só no interior do mesmo processo o tribunal está impedido de se pronunciar novamente sobre a questão resolvida, não podendo, por exemplo, reapreciar a sua competência com o mesmo fundamento que o levou a julgar-se competente.
15. Assim sendo, e porque a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora absolveu a Ré da instância, mister se torna concluir que, à luz dos arts. 278º, nº 1, al a) e 279º, nº 1, do CPC nada obsta a que a Autora tenha instaurado nova ação contra a ora Ré.
16. A presente ação não é in totum uma repetição da causa de pedir e pedidos formulados na anterior ação proposta pela Autora, e, portanto, não se verifica in casu igualmente caso julgado material, uma vez que a mesma desconhecia que do mesmo constava uma cláusula penal segundo a qual, em caso de incumprimento pela Ré da respetiva obrigação do pagamento do preço pelos trabalhos executados pela Autora, assistia a esta última o direito de exigir da Ré o pagamento do valor equivalente a 1% do montante que se mostrasse em dívida, tendo a mesma formulado nos presentes autos o correlativo pedido.
17. Resumindo, face ao teor do AUJ 27.11.1991, mister se torna concluir que, no caso concreto, não se formou caso julgado material, mas sim formal, pois a Ré apenas foi absolvida da instância no âmbito do Proc. nº .../18.1T8VRL, e não do pedido formulado pela Recorrente, pelo que, tal como decore do art. 620, nº 1, do CPC as decisões proferidas que recaiam unicamente sobre a relação processual apenas têm força obrigatória dentro do próprio processo.
18. A decisão recorrida ser revogada e substituída por uma outra que julgue improcedente a exceção dilatória da preterição do tribunal arbitral, bem como a exceção do caso julgado material invocadas pela Ré e pela Chamada, e consequentemente ordene o prosseguimento dos presentes autos.
Termos em que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por um outro que julgue inverificadas as exceções dilatórias invocadas por Ré e Chamada e ordene o prosseguimento dos presentes autos, pois só assim se fará JUSTIÇA!»
A ré “BB” respondeu, concluindo da seguinte forma:
«a) O entendimento da Recorrente de que (i) está em situação de insuficiência económica, (ii) fez prova dessa insuficiência nos autos e, por fim, (iii) o facto de não ter invocado a insuficiência económica no âmbito do processo que correu termos perante o n.º .../18.1T8VRL, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Cível de Santarém, Juiz 2, não preclude o direito de o invocar nos presentes autos não merece acolhimento.
b) A Recorrente não produziu prova suficiente que demonstrasse a sua insuficiência económica, nem a razão de ser da alegada insuficiência económica.
c) A Informação Empresarial Simplificada da Recorrente, referente aos anos de 2020 e 2021, não permite concluir, sem margem para dúvidas, que a Recorrente esteja numa situação de dificuldades económicas ou financeiras.
d) Não releva para a decisão da presente causa, o facto de a Recorrente ter interposto ações para satisfazer créditos que lhe são devidos – sendo que a Ré desconhece, sem obrigação de conhecer, o desenrolar e desfecho de tais ações.
e) O facto, documentalmente insustentado, de a Recorrente não ser proprietária de quaisquer bens móveis ou imóveis ou deter fontes de rendimento – o que a Recorrida desconhece sem obrigação de conhecer – não releva para a decisão a ser proferida, na medida em que, por si só, não é um critério para aferir tal facto.
f) O facto de a Recorrente beneficiar do regime de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo, não é suficiente, per se, para demonstrar qualquer insuficiência económica e, se fosse entendido como tal, sempre denotaria que tal insuficiência não é superveniente, na medida em que no âmbito do processo n.º .../18.1T8VRL, já a Recorrente litigava com apoio judiciário.
g) A Recorrente só suportaria os custos da arbitragem, caso perdesse a ação, sendo que os emolumentos da arbitragem podem ser reduzidos em função do disposto no artigo 38.º, n.º 2 do Regulamento da ICC.
h) É evidente que não foi produzida prova que demonstre a insuficiência económica da Recorrente, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao declarar-se incompetente para julgar o presente caso, em razão da inexistência manifesta da alegada inexequibilidade de aplicação da convenção de arbitragem celebrada pelas Partes.
i) Não obstante, não tendo a Recorrente alegado quaisquer factos impeditivos, modificativos ou extintivos que impedissem a procedência da exceção de incompetência material, deduzida pela Recorrida no âmbito do processo n.º .../18.1T8VRL, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Cível de Santarém, Juiz 2, o direito de vir a invocar, mais tarde, qualquer contra exceção, precludiu.
j) A decisão sobre a incompetência material dos tribunais judiciais encontra-se definitivamente julgada e a coberto do caso julgado formado pela decisão tomada no âmbito da ação proposta pela Recorrente contra a Recorrida, que correu termos sob o n.º .../18.1T8VRL.
k) O Tribunal a quo pronunciou-se sobre todas as questões que foram colocadas à sua apreciação, não merecendo a sentença qualquer censura, nem se encontrando ferida de nulidade, sendo certo que, como resulta de jurisprudência assente dos tribunais superiores portugueses, nem todos os factos e argumentos carecem de pronúncia direta, sobretudo quando o seu conhecimento se encontra prejudicado pela resposta dada a outras questões.
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deverá o recurso de apelação ser julgado totalmente improcedente, e em consequência ser a decisão proferida pelo Tribunal a quo mantida nos seus exatos termos, com todas as legais consequências.»
A interveniente “CC” contra-alegou, concluindo:
«I. O presente recurso vem interposto o douto despacho saneador-sentença com a referência CITIUS n.º 161304974 que «declarou a incompetência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, em razão de matéria, para conhecer do pedido em apreço e, consequentemente, absolver a ré e a interveniente principal da instância».
II. Consabidamente, a delimitação objetiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspetivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio. Como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim ius novarum, i .e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
III. A douta decisão recorrida considerou por um lado que, a Recorrente não prova nem demonstra a sua situação de insuficiência económica, por um lado, nem demonstra por outro que essa alegada situação de insuficiência económica não procede culpa sua (cf. parágrafo 5 de pp. 7). Ademais por via, do princípio da preclusão processual a Recorrente, ao «não ter invocado a insuficiência económica, sem culpa, para obstar à exceção de preterição do tribunal arbitral no processo nº .../18.1T8VRL, (…) ficou impossibilitada de o vir a fazer posteriormente, pelo que sempre haveria que considerar definitivamente decidida a questão da competência dos tribunais arbitrais.»
IV. A Recorrente invoca nas suas conclusões três fundamentos essenciais de recurso: (i) a falta de pronúncia relativamente a todos os «factos alegados (…) acerca da [sua] situação económica» – vide conclusões 6, 7, e 8; (ii) ainda, assim o tribunal a quo deveria reconhecer a sua insuficiência económica – vide conclusões 9; (iii) e finalmente a Recorrente, alega que a decisão na ação judicial que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo Central Cível J1 (Santarém) sob o nº .../18.1T8VRL, tem mero efeito de caso julgado formal, não resultando qualquer efeito preclusivo – vide conclusões 10 a 18.
V. A invocada nulidade com fundamento no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil (CPC), tem de ser aferida tendo em consideração o disposto no artigo 608.º, n.º 2 do CPC.
VI. De todo o modo, cabe referir que o tribunal a quo não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas - e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito - de todas as "questões" suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto.
VII. Nesta conformidade, a arguição de nulidade da sentença carece de fundamento, não sendo, como sabemos, o mecanismo processual adequado para a Recorrente manifestar a sua discordância quanto ao decidido, a fim de, por esta via, reverter o sentido decisório a seu favor.
VIII. A Recorrente perspetiva o seu raciocínio no contexto do direito de acesso aos tribunais, mas alega a impossibilidade de cumprir uma obrigação acessória da obrigação principal, o que nos termos do disposto no artigo 790.º do Código Civil, implicaria uma extinção desta última, fundada em impossibilidade de cumprimento da mesma por causa não imputável ao devedor, decorrendo desta posição o afastamento da estatuição do artigo 494.º alínea j) do Código de Processo Civil seria consequência afinal, do preenchimento da hipótese legal do referido artigo 790.º do Código Civil.
IX. Sucede que a Recorrente não alega nem demonstra que esteja efetivamente em situação de insuficiência económica. O elemento patrimonial não é um fator decisivo na sua verificação. Do IES de 2021 e do mapa de responsabilidades bancárias não se retira, nem pode retirar que a Recorrente esteja em situação de insuficiência económica. De igual modo, os comprovativos de pagamento feitos quer à AT, ISS, IP e CGD com as receitas que foi realizando, não demonstra a sua situação de insuficiência económica.
X. A Recorrente litiga com apoio judiciário não na modalidade total, mas apenas na dispensa do pagamento da taxa de justiça, o que significa que a Recorrente suporta os honorários da sua mandatária e beneficiou de um financiamento de cerca de € 300.000,00 (trezentos mil euros).
XI. A Recorrida não aceita que a Recorrente esteja em situação de insuficiência económica, mas se tal sucede não demonstra igualmente que não seja por culpa sua.
XII. Se Recorrente tivesse atuado com a diligência própria que se impõe aos seus gerentes (cf. artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais) teria seguramente capacidade para custear as despesas do tribunal arbitral, até porque tinha faturado e recebido no período de um ano da Ré e via do contrato dos autos, a quantia de € 1.640.348,21, acrescido de IVA à taxa legal (cf. p 1 do despacho sentença).
XIII. O tribunal a quo entendeu, e bem, que a Recorrente ao ter sido confrontada na ação decidida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo Central Cível de Santarém – Juiz 1, sob o nº .../18.1T8VRL, com a exceção da competência material dos tribunais civis não contra-alegou nem invocou a sua situação de insuficiência económica, podendo «ler-se no acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 12.05.2022, proferido no âmbito do referido processo, em nota de rodapé 3, que «A empreiteira, inicialmente demandada, foi absolvida da instância por preterição da cláusula de arbitragem no acordo celebrado, o que determinou a incompetência dos tribunais estaduais. Não tendo invocado dificuldades financeiras como fundamento para defender a competência destes tribunais, isto a despeito de ter requerido o apoio judiciário, inexistia motivo para aplicação do entendimento consagrado no acórdão do TC 311/2008 (…)».»
XIV. Pelo que está agora impedida de o fazer nesta ação por força do disposto no n.º 3 do artigo 193.º do CPC.
XV. Falecem, inteiramente, todos os fundamentos para que este recurso seja julgado procedente, estando suficientemente demonstrado que ao abrigo do disposto nas normas legais citadas e, ainda, no artigo n.º 576.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, procede a arguida exceção de incompetência absoluta do tribunal a quo em razão da matéria para conhecer do pedido em apreço e, consequentemente, devem absolver-se as Recorridas da instância.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve ser lavrado douto Acórdão que, considerando não provido o recurso formulado pela Recorrente, mantenha a douta decisão recorrida.
Assim, Vossas Excelências farão a costumada Justiça.»
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocar-se-iam as seguintes questões:
a) A superveniente insuficiência económica da recorrente que a impossibilite de suportar as despesas com a constituição e o funcionamento da arbitragem constitui causa legítima de incumprimento da convenção de arbitragem permitindo a submissão da apreciação do litígio aos tribunais estaduais?
b) A autora alegou e juntou aos autos meios de prova que permitem concluir pela sua insuficiência económica, por causa que não lhe é imputável, para suportar o custo da submissão do litígio a tribunal arbitral?
c) Não tendo invocado a insuficiência económica, sem culpa para obstar à preterição do tribunal arbitral, no processo nº .../18.1T8VRL, a recorrente ficou impossibilitada de o fazer na presente ação?
II. Fundamentação de facto
Os factos provados são os que constam do relatório e os que vão resultar da apreciação do recurso feita no ponto III.2.2.
III. Apreciação do mérito do recurso III.1. Do problema da preterição da cláusula compromissória por insuficiência económica superveniente de uma das partes que a impossibilita de recorrer ao tribunal arbitral III.1.1. Do identificado problema, em geral
Antes de chegarmos à análise do problema da preterição da cláusula compromissória por insuficiência económica superveniente de uma das partes que a impossibilita de recorrer ao tribunal arbitral, há que recuar à situação mais geral da convenção de arbitragem e ao seu regime jurídico. Em geral, as partes num contrato podem convencionar a submissão de eventuais litígios dele decorrentes à apreciação e decisão de um tribunal arbitral, composto por árbitros privados. É o que se designa por convenção de arbitragem ou cláusula compromissória (sendo esta uma das espécies da primeira).
À data da celebração do contrato de subempreitada entre as partes (2004), vigorava a Lei 31/86, de 29 de agosto (Lei da Arbitragem Voluntária de 1986, ou LAV-1986), dispondo o seu artigo 1.º, sob a epígrafe «Convenção de arbitragem», que, desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros (n.º 1). Se a convenção de arbitragem tiver por objeto um litígio atual, ainda que se encontre afeto a tribunal judicial, designa-se por compromisso arbitral, se tiver por objeto litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica contratual ou extracontratual, trata-se de uma cláusula compromissória (n.º 2 do mesmo artigo).
A convenção de arbitragem tinha de ser reduzida a escrito, assim se considerando a constante de «documento assinado pelas partes, ou de troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de telecomunicação de que fique prova escrita, quer esses instrumentos contenham diretamente a convenção, quer deles conste cláusula de remissão para algum documento em que uma convenção esteja contida» (artigo 2.º da LAV-1986).
Entretanto vigora a Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei 63/2011, de 14 de dezembro (de ora em diante, LAV). À luz desta, as regras são, para o que ora nos ocupa, idênticas, ainda que mais completas ou atualizadas. Assim, desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial, ou a interesses transacionáveis, pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros (n.ºs 1 e 2 do artigo 1.º). A convenção de arbitragem deve adotar forma escrita, tendo-se esta por satisfeita quando a convenção conste de documento escrito assinado pelas partes, troca de cartas, telegramas, telefaxes ou outros meios de telecomunicação de que fique prova escrita, incluindo meios eletrónicos de comunicação; ou quando a convenção conste de suporte eletrónico, magnético, ótico, ou de outro tipo, que ofereça as mesmas garantias de fidedignidade, inteligibilidade e conservação (artigo 2.º da LAV).
No caso dos autos, o litígio (emergente de contrato de subempreitada, trabalhos a mais, falta de pagamento dos mesmos) não respeita a direitos indisponíveis, respeita a direitos patrimoniais, e não está afeto por lei especial exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, pelo que as partes podiam, como fizeram, convencionar a cláusula compromissória.
Nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 1, da LAV, o tribunal estadual no qual seja proposta ação relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê‐lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível. O artigo 18.º, n.º 1, da mesma Lei estabelece que o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção.
Da conjugação destas duas normas resulta que: a) havendo convenção de arbitragem, a competência para aferir da competência do tribunal cabe, em primeira linha, ao tribunal arbitral – trata-se do efeito positivo do princípio designado por Kompetenz-Kompetenz; b) o tribunal estadual deve abster-se de apreciar matérias atribuídas ao tribunal arbitral, antes de este ter oportunidade de o fazer – dimensão negativa do princípio Kompetenz-Kompetenz. Sobre o tema, exemplificativamente, João Luís Lopes dos Reis, «A Excepção de Preterição do Tribunal Arbitral (Voluntário)», Revista da Ordem dos Advogados, ano 58 (1998) III, pp. 1115-1132 (1120-1123); António Sampaio Caramelo, «A “autonomia” da cláusula compromissória e a competência da competência do tribunal arbitral», in Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles 90 Anos, Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Almedina, 2007, pp. 105-128 (117-120). Na jurisprudência, a título de exemplo, Ac. STJ de 20-01-2011, proc. 2207/09.6TBSTB.E1.S1 (Álvaro Rodrigues); Ac. STJ de 20-03-2018, proc. 1149/14.8T8LRS.L1.S1 (Henrique Araújo); Ac. STJ de 10-04-2024, proc. 13/24.7YRPRT.S1 (Nelson Borges Carneiro); Ac. STJ de 07-03-2023, proc. 3868/20.0T8PRT-A.L1.S1 (Nuno Pinto Oliveira).
O princípio da competência do tribunal arbitral para apreciar a sua competência só é excecionado na medida explicitada no artigo 5.º, n.º 1, da LAV: apenas em casos de manifesta nulidade, ineficácia ou de inexequibilidade da convenção de arbitragem é que o tribunal estadual pode julgar improcedente a exceção de preterição do tribunal arbitral e manter a sua própria competência. A nulidade, ineficácia ou inexequibilidade da convenção apenas é manifesta quando se consegue aferir pela sua mera análise, sem necessidade de mais prova. Tais irregularidades ou insuficiências relacionar-se-ão com requisitos externos da convenção, como a sua forma ou a arbitrabilidade do litígio; à partida, está afastada qualquer alegação de vícios da vontade na celebração do contrato.
Quando o tribunal judicial decide julgar procedente a exceção de preterição de tribunal arbitral limita-se a declarar que a convenção de arbitragem não é manifestamente nula, manifestamente ineficaz ou manifestamente inexequível, pelo que o tribunal arbitral poderá, posteriormente, na apreciação da sua competência, vir a decidir que é incompetente, com fundamento na invalidade, ineficácia ou inexequibilidade da convenção.
O tribunal judicial será competente se a convenção de arbitragem for julgada inválida, ineficaz ou inexequível pelo tribunal arbitral.
Perante o acima exposto regime e sua interpretação pacífica, poderia pensar-se que a superveniente insuficiência económica (impecuniosidade, na terminologia corrente em Direito da Arbitragem) de uma das partes, que a impossibilite de recorrer ao tribunal arbitral, seria irrelevante.
A questão já foi colocada algumas vezes perante os tribunais comuns, tendo alguns dos respetivos processos chegado aos tribunais superiores, sem unanimidade.
No sentido de que a convenção continua a ser oponível à parte que fica impossibilitada de recorrer ao tribunal arbitral por insuficiência superveniente de meios, o Ac. STJ de 26-04-2016, proc. 1212/14.5T8LSB.L1.S1 (Ana Paula Boularot):
Do seu sumário, extratamos:
«III. A Lei 47/2007, de 28 de Agosto no seu artigo 7º veio consagrar o princípio da inaplicabilidade do instituto do apoio judiciário às pessoas colectivas com fins lucrativos, entendendo-se que as pessoas colectivas que tenham sido instituídas por particulares para a realização de actividades económicas geradoras de lucros, devem, pela sua própria natureza, encontrar-se dotadas de uma organização financeira que lhes permita fazer face aos custos da sua própria actividade, incluindo aqueles que possam eventualmente resultar de uma litigância causada pelo seu giro comercial, o que implica que a aqui Autora não tem direito a tal benesse nos Tribunais comuns e tão pouco nos Tribunais arbitrais por nestes não ter aplicação tal instituto. (…) V. O CIRE no seu artigo 87º, nº 1 inserido no capítulo referente aos efeitos da declaração de insolvência, prevê a suspensão da eficácia das convenções arbitrais em que o insolvente seja parte, desde que nos litígios se ponham questões cujo resultado possa influenciar o valor da massa, sem prejuízo do disposto em tratados internacionais aplicáveis, excepcionando o seu nº 2, os processos pendentes, os quais prosseguirão os seus termos. VI. Se esta disposição pudesse ser aplicável aos processos de revitalização, o que desde já se afirma que nos repugna conceder, tendo em atenção os objectivos prosseguidos com este específico procedimento, uma vez que os presentes autos foram instaurados antes da propositura do PER, nunca a Recorrente poderia chamar à colação, a seu favor, o ali preceituado. VII Por outro lado, continuando no pressuposto da aplicação paralela do artigo 87º ao PER, uma eventual suspensão da convenção arbitral, apenas seria de admitir durante o prazo das negociações, o que significa que apenas seria por um período de três meses, prazo este correspondente ao período legal de negociação do plano de recuperação, artigo 17º-D, nº 5 do CIRE, mas tão somente quanto às eventuais acções em que a Recorrente fosse Ré e não Autora, como no caso em análise. (…) IX. A ausência de possibilidades económicas para suportar os custos com a propositura de uma acção – judicial ou arbitral – dependerá sempre da alegação e prova dos factos consubstanciadores de tal situação, o que, adiante-se, nem sequer foi feito in casu, sendo que a nossa Lei não contém qualquer disposição que preveja esta específica situação, a não ser no caso especial da suspensão da convenção arbitral naquele especifico caso de declaração de insolvência, nem consente que o Tribunal se exima ao deferimento da excepção dilatória de preterição do Tribunal Arbitral, oposta por uma parte à outra, sendo antes injuntiva a norma que obriga ao seu conhecimento e à imediata absolvição da instância o que decorre inequivocamente do disposto no artigo 21º, nº 1 da LAV. XI. É a própria Constituição ao admitir a existência de outras realidades jurisdicionais, como os Tribunais Arbitrais, no seu artigo 209º, nº2, que afasta o monopólio estadual da administração da justiça, atribuindo a particulares a solução de um litígio, gozando a decisão por estes proferida de força executiva idêntica à das sentenças judiciais, nos termos do artigo 705º, nº 2 do CPCivil. XII. O confronto entre a garantia da tutela arbitral, constitucionalmente consagrada, artigo 209º, nº 2 e 3 da CRP bem como o direito da personalidade na vertente da auto-determinação das partes e a tutela do direito ao direito, prevenida no artigo 20º, nº 1 daquele diploma fundamental, tem de ser ponderado e dirimido na sede própria, qual é a dos Tribunais Arbitrais, sem prejuízo de, se assim vier a ser entendido, a questão poder vir a ser tratada nos Tribunais comuns, se e quando aqueles Órgãos concluírem pela sua incompetência, com a inaplicação da cláusula compromissória.»
O argumento do ponto III do sumário deixou de se aplicar por força do Ac. TC n.º 242/2018, 7 de junho, que declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 7.º, n.º 3, Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, na redação dada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, na parte em que recusa proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela concreta situação económica das mesmas, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da CRP.
Relativamente ao argumentado dos números V a VII, no caso sub judice, o que releva não é se há ou não uma previsão legal que relacione o processo especial de revitalização com a (in)eficácia de convenção de arbitragem. Tal norma não existe e, segundo entendemos, dessa inexistência nada se pode concluir sobre a questão em análise que é a de saber se uma empresa que, por força de impecuniosidade superveniente e fortuita, fica impossibilitada de suportar os custos que o recurso a um tribunal arbitral implica, pode desconsiderar a cláusula compromissória e recorrer aos tribunais comuns.
Sobre o argumentado de IX a XII debruça-se o Ac. do TC 311/2008, de 30-05-2008 (Joaquim de Sousa Ribeiro), que julgou «inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 494.º, alínea j), do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de a excepção de violação de convenção de arbitragem ser oponível à parte em situação superveniente de insuficiência económica, justificativa de apoio judiciário, no âmbito de um litígio que recai sobre uma conduta a que eventualmente seja de imputar essa situação».
A matéria do artigo 494.º do CPC-1961 (lista exemplificativa de exceções dilatórias) transitou para o artigo 577.º no CPC-2013. Na al. j) do artigo 494.º do CPC-1961 (que deixou de existir no artigo 577.º do CPC-2013), contemplava-se «A preterição do tribunal arbitral necessário ou a violação de convenção de arbitragem».
O facto de esta alínea ter desaparecido no CPC-2013, pouco altera: i. o recurso aos tribunais judiciais em violação de convenção de arbitragem continua a ser uma exceção dilatória, mas agora inominada e que se tem por incluída na alínea a), que afirma que a incompetência do tribunal é uma exceção dilatória; e, ii. à interpretação da al. a) do atual artigo 577.º do CPC no sentido de a violação de convenção de arbitragem ser oponível à parte em situação de superveniente insuficiência económica, de tal forma grave que a impossibilite de recorrer a um tribunal arbitral, continua a fazer sentido a aplicação da doutrina do Ac. do TC 311/2008, de 30-05-2008.
Além do citado Acórdão do Tribunal Constitucional, vários são os arestos dos tribunais superiores que têm afirmado a inoponibilidade da convenção de arbitragem à parte que não tem meios para fazer face às despesas do tribunal arbitral.
Vamos trazer cinco exemplos, dando conta de alguns dos seus argumentos, ainda que apenas nos dois primeiros a doutrina da inoponibilidade da exceção tenha tido aplicação no caso concreto.
No Ac. TRL de 18-06-2020, proc. 3504/19.8T8FNC.L1-6 (Maria de Deus Correia), sumariou-se: «Litigando o Autor com o benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido pela Segurança Social, depois de comprovada a sua situação de insuficiência económica, poderá o Autor afastar a eficácia da convenção de arbitragem propondo a acção no tribunal judicial, sem que lhe seja oponível a excepção dilatória da preterição do tribunal arbitral». O tribunal de 1.ª instância tinha-se julgado incompetente, por preterição do tribunal arbitral, e a Relação revogou o despacho, mandando o processo prosseguir.
Lê-se, entre o mais, no citado Acórdão:
«[E]ste regime jurídico [da convenção de arbitragem] tem de ser compaginado com o princípio constitucional consagrado no art.º 20.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa através do qual a “todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
E em cumprimento deste imperativo constitucional, o artigo 1.º da Lei n.º 34/2004 de 29 de Julho (acesso ao direito e aos tribunais) estabelece que:
“1 - O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos.
2 - Para concretizar os objectivos referidos no número anterior, desenvolver-se-ão acções e mecanismos sistematizados de informação jurídica e de protecção jurídica.”
Cabe assinalar, porém, que estes mecanismos de protecção jurídica estão previstos apenas para os casos de acesso aos tribunais estaduais e não nas situações de acesso aos tribunais arbitrais.
Ora, é tendo presente este pano de fundo que se coloca a questão de saber se a superveniência de uma situação de insuficiência económica que impossibilite uma das partes na convenção arbitral de suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem constitui ou não causa legítima de incumprimento dessa convenção, isto é, se nesse caso, a parte que se viu impossibilitada de custear as despesas de arbitragem pode ou não deixar de a ela recorrer e submeter o litígio que a oponha à outra parte aos tribunais estaduais.
“Esta questão não encontra resposta directa na lei. A lei contém, tão só no domínio das obrigações, uma norma – n.º 1 do artigo 790 do Código Civil - que estabelece que a obrigação se extingue quando se torna impossível por causa não imputável ao devedor.
No caso, porém, não se está no domínio das obrigações em sentido técnico, mas de uma vinculação, e a "prestação", ou seja, a obrigação de recorrer a tribunal arbitral, não se tornou impossível. O que se tornou impossível foi o pagamento das despesas da arbitragem, que o mesmo é dizer, de uma "obrigação" acessória da "obrigação" principal. O que então pode perguntar-se é se esta ideia da extinção da obrigação fundada na impossibilidade do seu incumprimento por causa não imputável ao devedor, não deverá valer aqui também. Se uma tal ideia for transponível para o domínio da convenção arbitral, então haverá que concluir que, não podendo uma das partes custear as respectivas despesas, deve ela ficar desonerada da obrigação de recorrer à arbitragem, podendo, em tal caso, dirigir-se aos tribunais estaduais, não obstante a convenção que subscreveu e, nesse caso, não lhe será oponível a excepção dilatória de violação da convenção de arbitragem”».
Em idêntico sentido, o Ac. do STJ de 18-01-2000, proc. 99A1015 (Aragão Seia), de cujo sumário, entre o mais, consta:
«I- Da convenção arbitral nasce um direito potestativo para as partes e se para a resolução de um litígio objecto dela uma parte recorrer ao tribunal comum deve a outra arguir, sem isso importar qualquer restrição do direito de acesso aos tribunais, a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, a qual não é de conhecimento oficioso. (…)
V- Se, posteriormente à celebração da convenção arbitral, a parte se viu, sem culpa sua, na impossibilidade de custear as despesas da arbitragem a que se comprometeu submeter o caso, pode recorrer, sem lhe ser oponível a excepção dilatória, aos tribunais estaduais. (…)
VI- A norma constante da última parte da alínea j) do n. 1 do artigo 494 do CPC, na actual redacção, antiga alínea h) não é inconstitucional: ela não viola o n. 1 do artigo 20 da Constituição da República Portuguesa, nem qualquer outra norma ou princípio constitucional.»
O tribunal de 1.ª instância tinha julgado procedente a exceção de preterição do tribunal arbitral; o Tribuna da Relação confirmou o despacho; interposta revista do acórdão da Relação, o STJ julgou-a procedente.
Manifestando em abstrato a possibilidade de afastar a convenção arbitral quando a parte não tem meios para fazer face às despesas do tribunal arbitral, mas não aplicando esta possibilidade ao caso ali sub judice, o Ac. TRL de 02-11-2010, proc. 454/09.0TVLSB.L1-7 (Graça Amaral):
Sumário: «(…) VI - A superveniência de uma situação de insuficiência económica, que impossibilite uma das partes de suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem, constitui causa legítima de incumprimento da convenção de arbitragem. (…)» No saneador tinha sido conhecida a exceção de preterição do tribunal arbitral, que foi julgada procedente, tendo a ré sido absolvida da instância. A autora recorreu, mas foi julgada improcedente a apelação, confirmada a sentença recorrida.
Lê-se na fundamentação do Acórdão, para o que ora releva: «Mostra-se posicionamento pacífico considerar que a superveniência de uma situação de insuficiência económica, que impossibilite uma das partes de suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem, constituirá causa legítima de incumprimento da convenção. Consequentemente, a parte impossibilitada poderá submeter a apreciação do litígio nos tribunais estaduais.
Este entendimento, porém, não possui resposta directa na lei, mas assume acolhimento legal a nível constitucional (a justiça não pode ser denegada por carência de meios económicos - cfr. art.º 20, n.º4, da CRP) e da legislação ordinária que, no direito das obrigações, contém norma que prevê a extinção da obrigação fundada na impossibilidade do seu incumprimento por causa não imputável ao devedor - art.º 790, n.º1, do Código Civil.» Em idêntico sentido o Ac. TRL de 11-01-2024, proc. 6421/22.0T8LSB.L1-6 (Teresa Soares), com o seguinte sumário:
«- O recurso ao tribunal estadual, quando existe uma cláusula compromissória, só pode ser legalmente admissível quando a situação económica do contraente revele, de forma evidente e incontornável, falta de capacidade económica para suportar os custos do funcionamento do tribunal arbitral.
- Contrariamente ao que se decidiu na decisão recorrida, não cremos que caiba ao tribunal arbitral aferir da situação económica do contraente para suportar os custos desse tribunal, (nesse sentido Ac. do STJ de 26/4/2016 relatado por Ana Paula Boularot e disponível em www.dgsi.pt) pois isso sempre pressupunha a constituição prévia do tribunal com os custos que lhe estão associados.»
Também no caso concreto deste acórdão, apesar da doutrina manifestada no sumário, em 1.ª instância tinha sido julgada procedente a exceção de preterição do tribunal arbitral, com a consequente absolvição da ré da instância, decisão que a Relação confirmou.
Também assim sucedeu, mutatis mutandis, Ac. STJ de 12-11-2019, proc. 8927/18.7T8LSB-A.L1.S1 (Pedro de Lima Gonçalves). No saneador tinha sido julgada improcedente a exceção de preterição do tribunal arbitral; a ré recorreu e a Relação julgou procedente o recurso, absolvendo a ré da instância; a autora recorreu para o STJ, mas a revista foi negada, confirmado o acórdão recorrido. Não obstante as particularidades do caso que ali conduziram a que fosse considerada a convenção, em geral foi consignado que «[a] insuficiência económica superveniente, e sem culpa, da parte para custear as despesas com a convenção de arbitragem, fará com que a exceção de preterição de tribunal arbitral não se lhe possa opor, porquanto conduziria a uma situação de denegação de justiça (e de acesso aos tribunais) e à consequente violação do disposto no artigo 20º, nº 1, da CRP» (ponto IV do sumário).
Também na doutrina encontramos a análise da questão que ora nos ocupa e que, relembramos, consiste em saber se, não obstante a vinculação a uma cláusula compromissória, a parte que, por força de impecuniosidade superveniente e sem culpa sua, fica impossibilitada de suportar os custos do tribunal arbitral pode desconsiderar a convenção e recorrer aos tribunais comuns, sem que lhe seja oponível, nessas circunstâncias, a exceção de preterição do tribunal arbitral. A título de exemplo, leiam-se os artigos de Armindo Ribeiro Mendes, «A falta de capacidade económica superveniente para suportar os custos da arbitragem», Francisco Prol, «La responsabilidad de las instituciones de arbitraje (especial referencia a la "impecuniosity")», Mariana França Gouveia e Ana Coimbra Trigo, «L'affaire Garoubé: Responsabilidade das instituições arbitrais e impecuniosidade das partes», e Nuno Pena, «Reflexões sobre o regime da impecuniosidade nos sistemas de Common Law e em Portugal», todos no número especial Arbitragem e Impecuniosidade das Partes da Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação, n.º XI, 2018.
Podemos sintetizar que o afastamento da cláusula compromissória pela parte que, por insuficiência económica superveniente, ficou impossibilitada de suportar os custos do tribunal arbitral, tem sido ancorado no artigo 20.º, n.º 1, da CRP, que a todos assegura o «acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos»; e, na lei ordinária, alicerçado, ora na extinção da obrigação por impossibilidade de cumprimento (artigos 790.º e ss. do CC), ora na resolução do contrato por alteração das circunstâncias (artigos 437.º e ss. do CC).
Em qualquer dos casos, a parte afetada pela insuficiência económica pode recorrer aos tribunais comuns sem necessidade de previamente ter invocado perante a parte contrária, seja a impossibilidade de cumprimento da cláusula compromissória, seja resolução da mesma por alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a convenção de arbitragem. Tudo quanto a parte afetada tem de fazer é, na ação judicial que intenta, alegar e provar a sua insuficiência económica superveniente. Sendo sucedida nessa prova, é-lhe inoponível a exceção de preterição de tribunal arbitral.
III.1.2. Do identificado problema neste concreto recurso – ajustamento do objeto da apelação
A fundamentação da decisão recorrida que, relembramos, é de absolvição da ré da instância por incompetência do tribunal judicial, consiste no seguinte:
«A questão de saber se a superveniente insuficiência económica de uma das partes, que a impossibilite de suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem, constitui causa legítima de incumprimento da convenção de arbitragem, permitindo a submissão da apreciação do litígio nos tribunais estaduais, tem sido controvertida.
No caso, a autora aporta a questão da denegação de justiça e de acesso aos tribunais, remetendo para jurisprudência do Tribunal Constitucional Acórdão 311/08, de 30.05.2008, que decidiu julgar inconstitucional, por violação do art. 20º, nº1, da CRP, a norma do art. 494º, alínea j), do Cód. de Proc. Civil (na redação anterior à Lei 41/2013, de 26.06), quando interpretada no sentido de a exceção de violação de convenção de arbitragem ser oponível à parte em situação superveniente de insuficiência económica, justificativa de apoio judiciário, no âmbito de um litígio que recai sobre uma conduta a que eventualmente seja de imputar essa situação.
Neste âmbito, se tem decidido que a «superveniência de uma situação de insuficiência económica, que impossibilite uma das partes de suportar as despesas com a constituição e funcionamento da arbitragem, constitui causa legítima de incumprimento da convenção de arbitragem» - vd., entre outros, o Ac. do TRL de 02.11.2010, processo 454/09.0TVLSB.L1-7, in www.dgsi.pt.
No contexto e antes do mais, importa, pois, aferir, se se delineia situação de insuficiência económica superveniente e se a mesma não procede de culpa da própria autora na sua gestão, procedendo, nomeadamente, de conduta imputável à outra parte. Assim, a autora:
- litiga com proteção jurídica concedida na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, tendo mandatária constituída, não se podendo retirar desta concessão, alicerçada em informações e documentação que se desconhece, a conclusão de insuficiência económica, sendo certo que a «mera concessão de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, sem qualquer outra alegação de insuficiência económica superveniente e sem culpa da parte, não é suficiente para afastar a procedência da exceção de preterição do tribunal arbitral» - Acórdão do STJ de 12.11.2019, processo 8927/18.7T8LSB-A.L1.S1, in www.dgsi.pt;
- refere a instauração – e eventual pendência – de ação judicial com vista ao pagamento de quantia superior a um milhão de euros (1.243.002,47€), em ano que se desconhece, mas se logra situar entre 2013 e 2015, pela leitura do documento 27 junto com a p.i., o que dá nota da monta dos contratos que logra celebrar;
- além da apresentação de um PER processo 85/15.5T8MTR -, homologado há mais de oito anos, desconhecendo-se os termos do acordo e da sua evolução, sendo certo que «a circunstância de uma sociedade comercial se encontrar em PER ou em processo de insolvência, não significa a se que não tenha meios económicos para suportar as custas com um procedimento arbitral» - Acórdão do STJ de 26.04.2016, processo 1212/14.5T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt;
- e que não dispõe da quantia necessária para suportar os custos da arbitragem, como se pode alcançar do respetivo IES, que junta, relativo a 2020, quando a ação é instaurada em 29.07.2022.
A autora não junta uma única declaração de IRC e, tudo ponderado, não se pode afirmar que resulte demonstrada a existência de uma insuficiência económica que a impeça de recorrer ao tribunal arbitral cumprindo o acordado – mesmo sem ponderar as regras do Regulamento de Arbitragem da CCI quanto aos custos da arbitragem, atualmente a permitir a determinação de honorários em valores inferiores aos da tabela e a fixação de custos da arbitragem, qual a parte da suportá-los e a sua repartição art. 38º, nºs 1, 2, 3 e 4, em vigor.
Sem prejuízo, a autora ainda omite a razão de ser da alegada situação de insuficiência económica, não permitindo concluir que, seja a situação económica a sua a que for, a mesma não lhe é imputável, que não deriva de culpa sua. Menos ainda se poderá afirmar encontrar-se tal razão em omitido pagamento da quantia de 134.979,54€ (pois que a ré realizou o pagamento de 20.972,42€, por referência ao montante acordado de 155.771,96€ relativamente aos trabalhos a mais executados objeto dos autos), num contrato firmado pelo preço de € 1 640 348, 21 acrescido de IVA à taxa legal, e que foi pago pela ré artigos 8 e 10 da p.i..
Assim e porque, face «ao princípio consagrado no artigo 18º, nº1, da LAV, segundo o qual incumbe ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem -, os tribunais judiciais só devem rejeitar a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respetivo âmbito de aplicação», e assumindo-se que a «insuficiência económica superveniente, e sem culpa, da parte para custear as despesas com a convenção de arbitragem, fará com que a exceção de preterição de tribunal arbitral não se lhe possa opor, porquanto conduziria a uma situação de denegação de justiça (e de acesso aos tribunais) e à consequente violação do disposto no artigo 20º, nº1, da CRP» - Acórdão do STJ de 12.11.2019, cit. -, tal não se verifica no caso em apreço, porquanto a autora não logrou demonstrar a dita insuficiência económica superveniente e sem culpa. Ademais, concluindo-se diversamente, sempre haveria que ponderar o efeito do conhecimento da mesma exceção no âmbito do processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo Central Cível de Santarém Juiz 1, sob o nº .../18.1T8VRL.
Neste processo intentado pela autora contra a ré e a interveniente principal, a ré excecionou a preterição do tribunal arbitral e, na sua procedência, foi absolvida da instância.
A autora litigou com apoio judiciário e, arguida a exceção, não contra alegou/contrapôs a situação de insuficiência económica – aliás, pode ler-se no acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 12.05.2022, proferido no âmbito do referido processo, em nota de rodapé 3, que «A empreiteira, inicialmente demandada, foi absolvida da instância por preterição da cláusula de arbitragem no acordo celebrado, o que determinou a incompetência dos tribunais estaduais. Não tendo invocado dificuldades financeiras como fundamento para defender a competência destes tribunais, isto a despeito de ter requerido o apoio judiciário, inexistia motivo para aplicação do entendimento consagrado no acórdão do TC 311/2008 (…)».
O que importaria ponderar a inadmissibilidade da instauração da presente ação nos tribunais estaduais, por preclusão.
Com efeito, definindo-se a preclusão como a inadmissibilidade da prática de um ato processual pela parte depois do prazo perentório fixado, pela lei ou pelo juiz, para a sua realização, a mesma desempenha duas funções, a ordinatória e a função de estabilização, segundo a qual «uma vez inobservado o ónus de praticar o ato, estabiliza-se a situação processual decorrente da omissão do ato, não mais podendo esta situação ser alterada ou só podendo ser alterada com um fundamento específico, sendo que quando «referida a factos, a preclusão é correlativa não só de um ónus de alegação, mas também de um ónus de concentração: de molde a evitar a preclusão da alegação do facto, a parte tem o ónus de alegar todos os factos relevantes no momento adequado. «Quer dizer: a propositura de uma ação impõe ao demandado um ónus de concentração de toda a sua defesa na ação pendente, obstando, portanto, à admissibilidade de uma ação destinada a contrariar o efeito pretendido pelo autor». «A preclusão intraprocessual torna-se uma preclusão extraprocessual quando o que não foi praticado num processo não pode ser realizado num outro processo. Importa salientar um aspeto essencial: a preclusão intraprocessual e a preclusão extraprocessual não são duas modalidades alternativas da preclusão (no sentido de que a preclusão é intraprocessual ou extraprocessual), mas duas manifestações sucessivas de uma mesma preclusão: primeiro, verifica-se a preclusão da prática do ato num processo pendente; depois, exatamente porque a prática do ato está precludida nesse processo, torna-se inadmissível a prática do ato num outro processo. Portanto, a preclusão começa por ser intraprocessual e transforma-se em extraprocessual quando se pretende realizar o ato num outro processo.».
Na verdade, a função estabilizadora que é normalmente atribuída ao caso julgado não é afinal outra que não a função de estabilização que decorre da preclusão, pois que o «caso julgado, em si mesmo, não produz nenhum efeito preclusivo da invocação de um facto num outro processo: essa preclusão é anterior ao trânsito em julgado da decisão final proferida na ação e pode operar mesmo antes deste trânsito em julgado. A preclusão emancipou-se do caso julgado e estabeleceu-se como um efeito processual autónomo e próprio: utilizando a terminologia alemã, pode dizer-se que toda a preclusão (Präklusion) é alheia ao caso julgado (rechtskraftfremd). A preclusão da alegação de factos não invocados num processo não é efeito de mais nada do que da própria omissão dessa alegação. (…) o caso julgado apenas impede a alteração da decisão transitada com base num fundamento precludido. (…). Há, assim, que distinguir a preclusão enquanto efeito das exceções de litispendência e do caso julgado e a preclusão como efeito da omissão de um ato: aquela não permite a prática do mesmo ato duas vezes e esta não permite a prática do ato omitido uma única vez.». – Teixeira de Sousa, «Preclusão e Caso Julgado» in www.academia.edu/22453901/TEIXEIRA_DE_SOUSA.
Ao não ter invocado a insuficiência económica, sem culpa, para obstar à exceção de preterição do tribunal arbitral no processo nº .../18.1T8VRL, à luz do princípio da estabilização processual, nos moldes vindos de enunciar, a parte ficou impossibilitada de o vir a fazer posteriormente, pelo que sempre haveria que considerar definitivamente decidida a questão da competência dos tribunais arbitrais.
Posto o que, tudo ponderado, se conclui ser da competência dos tribunais arbitrais o litígio a dirimir nos presentes autos, procedendo a arguida exceção dilatória consubstanciada na sua preterição.
(…)»
As ênfases a negrito foram por nós acrescentadas, para evidenciar o essencial do raciocínio que conduziu à decisão objeto da presente apelação.
Assim reproduzida a fundamentação jurídica da decisão recorrida, torna-se evidente que a argumentação do tribunal a quo trilha o seguinte percurso:
1.º Admite, socorrendo-se de jurisprudência do Tribunal Constitucional e dos tribunais judiciais, que a superveniência de uma situação de insuficiência económica, que impossibilite uma das partes de suportar as despesas com a constituição e o funcionamento do tribunal arbitral, possa legitimar a preterição da convenção de arbitragem (pelo menos, quando tal insuficiência económica não tenha sido culposamente criada pelo autor) – 1.º, 2.º e 3.º §§ do acima reproduzido extrato do despacho recorrido.
2.º Enuncia os factos alegados relativos à situação económica da autora, fundamenta a sua consideração dos mesmos como provados ou não provados, e aprecia a (in)suficiência desses factos para efeitos da admissibilidade de recurso aos tribunais comuns, com preterição da convenção de arbitragem – §§ 4.º a 9.º do acima reproduzido extrato do despacho recorrido.
3.º Conclui que os factos em que comprovadamente se consubstancia a situação económica da autora não são suficientes para concluir que esteja efetivamente impedida de fazer face às despesas do tribunal arbitral – §§ 10.º a 12.º do acima reproduzido extrato do despacho recorrido.
4.º Em seguida, a partir do parágrafo iniciado por «Ademais, concluindo-se diversamente, sempre haveria que ponderar…», aduz a latere, como argumento subsidiário, uma pretensa preclusão da possibilidade de invocar nesta ação insuficiência económica para suportar as despesas da arbitragem, uma vez que não o fez na ação antes intentada contra a ré e na qual a mesma foi absolvida da instância por incompetência do tribunal judicial decorrente da preterição do tribunal arbitral – §§ 13.º a 20.º do acima reproduzido extrato do despacho recorrido.
No recurso, a apelante identifica e debate três questões, a saber:
a) Nas conclusões 4.ª e 5.ª: A superveniente insuficiência económica da recorrente, que a impossibilite de suportar as despesas com a constituição e o funcionamento do tribunal arbitral, constitui causa legítima de incumprimento da convenção de arbitragem, permitindo a submissão do litígio à apreciação dos tribunais comuns?
b) Nas conclusões 6.ª a 9.ª: A recorrente alegou e juntou aos autos meios de prova que permitam concluir pela sua insuficiência económica para suportar o custo do julgamento por tribunal arbitral, e que tal falta de recursos não deriva de culpa sua?
c) Nas conclusões 10.ª a 18.ª: Ao não ter invocado, no processo n.º .../18.1T8VRL, a insuficiência económica para suportar o tribunal arbitral, a recorrente ficou impossibilitada de o vir fazer na presente ação?
Perante o que consta do despacho recorrido, acima transcrito e sintetizado, a primeira das questões invocadas no recurso é uma falsa questão: não está em discussão nos presentes autos a possibilidade de recurso aos tribunais comuns, à revelia da convenção de arbitragem, pela parte que, após aquela convenção, se tornou economicamente carenciada, a ponto de não poder suportar os custos inerentes à constituição e funcionamento do tribunal arbitral.
Com efeito, o tribunal a quo admitiu que assim é e suportou a sua decisão nesse pressuposto; a recorrente tem a mesma posição; nenhuma das partes passivas requereu a ampliação do âmbito do recurso; logo, a questão não é objeto deste.
Assim, passamos à apreciação da segunda questão.
III.2. Da insuficiência económica da apelante para suportar os custos da arbitragem III.2.1. Da invocada nulidade da sentença por omissão de pronúncia
A este respeito, a apelante alega que:
- A decisão recorrida é omissa relativamente aos factos alegados pela recorrente no seu requerimento de 18/10/2022, acerca da sua situação económica e da falta de culpa sua na mesma situação, e não analisa documentos juntos aos autos (IES de 2020 e 2021 que de forma mais completa do que as declarações de IRC retratam a situação da recorrente).
- Consequentemente, o despacho é nulo por omissão de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, al d) do CPC).
Apreciando e decidindo. Na sua petição inicial, para o que ora releva, a autora alegou (as ênfases a negrito foram por nós acrescentadas):
«79. Sucede, porém, que, a Autora não dispõe de recursos financeiros que lhe permitam suportar os avultados custos da arbitragem pelos motivos que se passam a expor.
80. Com efeito, como se não bastasse a recusa da Ré em proceder ao pagamento da quantia reclamada pela Autora no âmbito dos presentes autos,
81. E as dificuldades de tesouraria causadas por tal situação.
82. a Autora, em 2013, celebrou um outro contrato de subempreitada, e, devido a erros e omissões na documentação que instruía o caderno de encargos,
83. a Autora executou trabalhos de correção desses mesmos erros e omissões que não lhe foram pagos.
84. Em virtude de tal facto, a Autora viu-se obrigada a socorrer-se dos meios legais ao seu dispor, nomeadamente, de uma ação judicial tendo em vista obter o pagamento da quantia de € 1 243 002,47 – vide doc. nº 27,
85. bem como a apresentar um Plano Especial de Revitalização – vide doc. nº 28.
86. uma vez que ficou desprovida dos rendimentos necessários para honrar os compromissos perante os seus credores.
87. Importa sublinhar que, nas ações por si movidas, a Autora tem pleiteado com recurso ao benefício de apoio judiciário, como sucede nos presentes autos,
88. uma vez que não dispõe de recursos financeiros para assegurar os custos decorrentes das mesmas.
89. E, se a Autora não dispõe de rendimentos que lhe permitam suportar as taxas de justiça da presente ação,
90. Muito menos dispõe de rendimentos par suportar os custos administrativos de uma arbitragem.
91. É que, de acordo com a tabela que é parte integrante do art. 4º do Regulamento de Arbitragem da CCI, as despesas administrativas da presente ação que são pagas em dólares ascendem USD 9 348, 90, o equivalente a € 9168, 28 à taxa de câmbio atual,
92. ao referido valor acresce ainda os honorários dos três árbitros, que de acordo com a referida tabela auferirão uma percentagem do valor da disputa a fixar entre um mínimo de 0,9540% e 4,0280%,
93. ou seja, que no limite auferirão, em conjunto, um total de USD 74815, 92 (24 938, 64 x 3), ou seja, € 73 370, 52 – vide doc. nº 29,
94. quantia essa de que a Autora não dispõe conforme se pode alcançar do respetivo IES – vide doc. nº 30.» No requerimento de 18/10/2022 – resposta às exceções deduzidas na contestação – a autora acrescenta sobre o mesmo tema (as ênfases a negrito foram por nós acrescentadas):
«5. Tal como já referido na petição inicial as dificuldades financeiras da Autora remontam, sobretudo, a 2013, na sequência da recusa de pagamento por parte do Consórcio responsável pela construção do Poste de Corte de Vieira do Minho de trabalhos de correção de erros do relatório geológico-geotécnico que instruía o caderno de encargos (vide doc. nº 27 junto com a petição inicial),
6. sendo, portanto, superveniente à data da outorga do contrato celebrado entre Autora e Ré.
7. Quanto às dificuldades financeiras da Autora também salvo o devido respeito por melhor opinião, ao contrário do sustentado pela Ré no seu articulado, o IES de 2020, que era o que estava disponível à data da propositura da presente ação,
8. e o IES de 2021, que ora se junta sob o doc. nº 1, demonstram essas mesmas dificuldades e a insuficiência económica da Autora.
9. Conforme resulta quer do IES de 2020 quer do IES de 2021, a Autora apresenta resultados negativos de € 740 727, 01,
10. Mais decorre do doc. ora junto sob o nº 1, que a Autora tem capitais próprios negativos de € 590 727, 01,
11. sendo que o valor referido na conta clientes de € 1 000 758, 18,
12. corresponde a valores cujo pagamento a Autora não logrou obter por via extrajudicial e se viu obrigada a lançar mão dos meios legais para obter o seu pagamento,
13. conforme, aliás, já explicado pela Autora na sua petição inicial.
14. São eles os valores peticionados no âmbito do Proc. nº 5827/16.9T8PRT que corre termos no J7 dos Juízos Centrais Cíveis do Tribunal judicial da Comarca do Porto, no Proc. nº 17468/17.9T8LSB que corre termos nos Juiz 2 dos Juízos de Comércio de Lisboa – vide doc. nº 27 junto com a petição inicial, 2, 3 e 4.
15. Conforme deflui do IES de 2021, devido ao elevado valor de dívida de e para com terceiros viu-se obrigada a parar a sua atividade na expectativa de obter através das ações judiciais por si instauradas os proventos necessários para efetuar o pagamento das dívidas aos seus credores,
16. e retomar a sua atividade.
17. Note-se que, nas três ações por si instauradas, entre as quais se inclui a presente ação, a Autora reclama o pagamento da quantia de € 1 858 678, 34,
18. valor esse indispensável para que a Autora possa não só pagar aos seus credores, entre os quais se inclui o Estado e instituições bancárias, os respetivos débitos – vide doc. nº 5,
19. mas também retomar a respetiva atividade sem qualquer constrangimento financeiro.
20. A Autora não tem bens móveis nem imóveis – vide doc. nº1,
21. nem qualquer fonte de rendimento como, aliás, decorre da listagem das respetivas contas que figura na base de dados de constas do Banco de Portugal e do respetivo mapa de responsabilidades – vide doc. nº 6 e 7.
22. motivo pelo qual lhe foi concedido o benefício de apoio judiciário.
23. Cumpre referir que, tal como resulta do plano da recuperação da Autora a mesma tinha € 222 326, 96 a título de retenções nas diversas obras que tinha até então, realizado,
24. sendo que € 69 423, 13 foram entregues à CGD para pagamento parcial do respetivo crédito – vide doc. nº 8,
25. e o remanescente foi entregue à Segurança Social e à AT para pagamento parcial dos respetivos créditos – vide doc. nº 9 a 12.
26. Importa também sublinhar que a Autora desde que foi aprovado o plano de recuperação da empresa tudo tem feito para honrar os compromissos com os seus credores,
27. consciente que está de que, caso a mesma não honre os seus compromissos não é apenas a sobrevivência da mesma que está em causa, mas também a de outras empresas da sua região que aguardam o desfecho das ações por si movidas,
28. para obterem a satisfação dos seus créditos e ultrapassar as dificuldades de tesouraria que as mesmas têm enfrentado.»
A matéria da resposta acabada de extratar é de explicação e concretização de factos já constantes da petição e que a autora se viu na necessidade de concretizar na sequência do conteúdo da contestação: por exemplo, na contestação da ré “BB” (artigos 43 e 44) critica-se o facto de a autora apenas ter apresentado o IES de 2020, desconhecendo-se a situação atual; na sequência, a autora explica na resposta (artigos 7.º e ss.) que o IES de 2020 era o que estava disponível à data da propositura da presente ação, juntando com a resposta o IES de 2021, que demonstra as mesmas dificuldades e insuficiência económica.
Aparentemente, o tribunal a quo não atentou no requerimento de 18/10/2022 nem nos documentos com ele juntos, constando do despacho recorrido: «como se pode alcançar do respetivo IES, que junta, relativo a 2020, quando a ação é instaurada em 29.07.2022».
Por o tribunal não ter atendido ao requerimento de 18/10/2022 e aos documentos com ele apresentados, a recorrente conclui que o despacho objeto de recurso é nulo ao abrigo do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Nos termos desta norma, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Questões não são requerimentos; questões também não são documentos; e, no requerimento de 18/10/2022 não são suscitadas novas questões, mas sim concretizadas e aprofundadas as contidas na petição.
O termo “questão” na al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, tem o significado que lhe é mais comum em processo civil: um assunto (um tema, uma matéria) objeto de controvérsia no âmbito do processo, e que carece de análise pelo julgador, com vista à decisão do pleito.
Quase sempre, no CPC, a “questão” vem, expressa ou implicitamente, acompanhada de “controvertida”, “suscitada”, “a decidir” (artigos 50.º, 93.º/1, 95.º, 104.º/3, 105.º, 115.º, 168.º/1, 109.º, 226.º/5, 317.º/2, 322.º/2, 323.º/4, 354.º/2, 450.º/3, 476.º/2, 501.º, 538.º/2, 564.º/c), 593.º/3, 595.º, 607.º/2, 608.º, 615.º/1d), 617.º, 636.º, 652.º, 654.º/2, 655.º/2, 656,º, 657.º, 663.º, 665.º/2, 676.º/1, 678.º/4, 681.º, 695.º/1, 723.º/1d, 734.º/1, 755.º/4, 838.º, 917.º/2b), 926.º, 928.º, 942.º/3, 973.º/3, 983.º/2, 1104.º/3, 1105.º, 1106.º/3, 1109.º, 1110.º/1a), 1115.º/4, 1122.º/1 1123.º/3, 1132.º/4 – quando o termo surge em mais do que um número do artigo, indicou-se simplesmente o artigo).
As questões podem ser de facto – sobre situações, acontecimentos, eventos (quem, quando, onde, como) –, ou de direito – referentes à interpretação de normas jurídicas e à forma como se relacionam com os factos, do caso ou do processo (umas e/ou outras estão referidas com essas designações – questão de fato e/ou questão de direito – por exemplo, nos artigos 3.º/3, 40.º/2, 475.º/1, 640.º/1c), 678.º/1 c), 1090.º/a), 1095.º). Também as há “fundamentais de direito” (artigos 629.º/2, c) e d), 671.º/2 b), 672.º, 686.º/3, 687.º/1, 688 – a propósito da apelação, da revista excecional e do julgamento ampliado da revista para uniformização de jurisprudência).
Por vezes, a “questão” é “acessória” (v.g., artigo 663.º/4), ou “incidental” (v.g., 91.º), ou “prejudicial” (v.g., 92.º, 1093.º), mas sempre algo que demanda apreciação do tribunal considerando o litígio que lhe foi submetido.
As questões são veiculadas por requerimentos, mas não se confundem com estes. Dos cerca de duzentos artigos nos quais o CPC se refere a requerimentos (quase sempre no singular), podemos dizer que requerimento, em processo civil, é qualquer peça escrita que veicula um ato processual pelo qual uma parte, ou afim, requer algo ao tribunal.
Os documentos, como define o CC, são quaisquer objetos elaborados pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto (artigo 362.º do CC) e são em geral referidos, sobretudo em processo civil, pela sua finalidade probatória; destinam-se à prova de factos.
Este pequeno desvio serve para concluir que o facto de a sentença recorrida não ter apreciado o requerimento de 18/10/2022, nem os documentos com ele apresentados, não conduz à sua nulidade (por via do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC ou de qualquer outra disposição). O que poderia conduzir à nulidade seria a falta de apreciação de questões sobre as quais o tribunal se devesse pronunciar. As questões, porém, já estavam suscitadas na petição e a sentença recorrida pronunciou-se sobre elas, como determinado no artigo 608.º, n.º 2 do CPC.
Concretizando, no caso, o juiz não deixou de se pronunciar sobre a questão da incapacidade económica da autora para suportar os custos do tribunal arbitral, questão que, como tinha de ser, foi suscitada logo na petição inicial. Fê-lo claramente nos §§ 4.º a 12.º do extrato reproduzido em III.1.
Os factos de, nessa pronúncia sobre “a questão”, o julgador não se ter debruçado sobre todos os factos a ela relativos que foram articulados no requerimento de resposta, nem ter analisado determinados documentos não invalidam a pronúncia sobre a mesma “questão”. A pronúncia existiu e não é nula, é válida. Isto não significa que tenha sido a adequada, não significa que a matéria de facto tenha sido bem selecionada, de acordo com as provas produzidas, nem que os factos tenham sido bem apreciados à luz das normas que com eles se relacionam. Mas esta aferição já está no domínio do mérito da pronúncia que o tribunal a quo validamente fez sobre a matéria ou “questão”.
Impõe, face ao recurso, reapreciar a questão da incapacidade económica da autora para suportar os custos do tribunal arbitral, como faremos em seguida. De dizer, num parênteses, que, se o despacho fosse nulo por omissão de pronúncia, o desfecho seria o mesmo, pois teríamos do todo o modo de conhecer do objeto da apelação, em substituição do tribunal recorrido, como impõe o artigo 665.º do CPC.
III.2.2. Da efetiva carência económica da apelante para suportar os custos da arbitragem
Na sentença recorrida, o tribunal a quo considerou os seguintes factos, mas desvalorizou-os nos seus efeitos:
- que a autora litiga com proteção jurídica concedida na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo;
- a instauração – e eventual pendência – de ação judicial com vista ao pagamento de quantia superior a um milhão de euros (1.243.002,47€), entre 2013 e 2015;
- a apresentação de um PER – processo 85/15.5T8MTR –, com plano de recuperação homologado há mais de oito anos, desconhecendo-se os termos do acordo e da sua evolução.
Para reapreciar a questão, vamos percorrer cada um dos factos com ela relacionados e aferir, após análise dos respetivos meios de prova, se se encontra ou não provado:
1. Em 2013, a autora celebrou um contrato de subempreitada, relativamente ao qual recorreu a juízo com vista a obter o pagamento da quantia de € 1.243.002,47, correndo o processo termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto sob o n.º 5827/16.9T8PRT. A este facto (1) reportam-se os artigos 82 a 84 da p.i. e 14 da resposta (requerimento de 18/10/2022). A sua prova alicerça-se num formulário de petição inicial submetido via Citius e na respetiva petição, ambos juntos como doc. n.º 27 da p.i. e na certidão judicial junta como doc. n.º 2 com o requerimento de 18/10/2022.
2. Em 2015, a autora recorreu a um processo especial de revitalização, que correu termos no Tribunal de competência genérica de Vila Real, sob o n.º 85/15.5T8MTR, tendo no âmbito do mesmo sido aprovado e homologado plano de recuperação.
O facto 2, alegado nos artigos 85 e 86 da p.i., mostra-se provado pela informação judicial junta com a p.i. como doc. n.º 28.
3. A autora é credora da insolvente Isolux – Ingeneria, S.A., tendo no respetivo processo de insolvência, que corre termos no Juízo de Comércio de Lisboa sob o n.º 17468/17.9T8LSB, reclamado créditos que foram verificados e graduados.
Ao facto 3 reporta-se o artigo 14 da resposta (requerimento de 18/10/2022), em concretização das dificuldades de tesouraria alegadas na p.i., e a sua prova resulta dos documentos n.ºs 3 e 4 juntos com aquele requerimento, constituídos pela reclamação de créditos, relação de créditos reconhecidos e sentença de verificação e graduação de créditos do identificado processo.
4. Nas ações por si movidas, a Autora tem pleiteado com recurso ao benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça, como sucede nos presentes autos, que lhe foi atribuído por se reconhecer que não dispõe de recursos financeiros para assegurar os custos decorrentes das mesmas.
O facto 4 foi alegado nos artigos 87 e 88 da p.i. e é admitido pelas rés nas contestações. O que as rés não admitem é que esse facto seja suficiente para a inoponibilidade da cláusula compromissória.
5. De acordo com a tabela que é parte integrante do art. 4.º do Regulamento de Arbitragem da CCI, as despesas administrativas da ação arbitral ascendem a USD 9.348,90, e os honorários dos árbitros, de acordo com a referida tabela, importam numa percentagem do valor da disputa a fixar entre um mínimo de 0,9540% e 4,0280%.
Este facto (5) foi alegado nos artigos 91 a 93 da p.i. e está provado pelo doc. n.º 29, junto com a mesma, e que as rés não impugnaram, ainda que a ré “BB” venha referir que: a mesma tabela, apesar de seriamente recomendável pela Corte de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, não é obrigatória para as partes, por a convenção de arbitragem dos autos ser anterior a 2017; que a arbitragem se pode fazer com um árbitro apenas, em vez de três, e que o valor decorrente da aplicação da tabela é apenas devido em caso de perda da ação.
6. Desde pelo menos início de 2020, inclusive, que a autora está sem atividade, apresenta resultados negativos superiores a € 740.000 (€ -740.139,47 em 2020 e € -740.727,01 em 2021), tem capitais próprios negativos de € 590.727,01, o total do passivo ascende a cerca de € 1.800.000 (€ 1.771.761,21 em 2020 e € 1.811.879,66 em 2021), dos quais cerca de € 1.300.000 (€ 1.303.244,45 em 2020 e € 1.285.971,34 em 2021) são de dívidas a fornecedores, a conta clientes apresenta € 1.000.758,18, valores cujo pagamento a autora não logrou obter por via extrajudicial e está a tentar obter pela via judicial.
Os dados coligidos no facto 6, alegados nos artigos 9.º a 13.º e 20.º do requerimento de 18/10/2022, em concretização da insuficiência económica alegada, nomeadamente, nos artigos 79.º a 94.º da p.i. Os dados ora em causa resultam quer do IES de 2020, quer do IES de 2021, juntos aos autos, respetivamente, como doc. nº 30 com a p.i. e doc. nº 1 com a resposta de 18/10/2022.
7. A autora, além de estar inativa, não tem qualquer fonte de rendimento.
O facto 7 foi alegado no artigo 21.º do requerimento de 18/10/2022, em concretização da insuficiência económica alegada, nomeadamente, nos artigos 79.º a 94.º da p.i., e provado pelos docs. 30 com a p.i. (IES-2020), 1 (IES-2021), 6 e 7 (informações do BP) com o req. de 18/10/2022.
8. A autora tinha, aquando do PER, € 222.326,96 a título de retenções nas diversas obras que havia realizado, dos quais € 69.423,13 foram entregues à CGD para pagamento parcial do respetivo crédito e o remanescente foi entregue à Segurança Social e à AT para pagamento parcial dos respetivos créditos.
Os factos coligidos em 8 foram alegados nos artigos 23.º a 25.º do requerimento de 18/10/2022, em concretização da insuficiência económica alegada, nomeadamente, nos artigos 79.º a 94.º da p.i. Mostram-se provados pelos docs. 5 (PER da autora), 8 (extrato CGD), e 9 a 12 (informações da AT) com o req. de 18/10/2022.
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Aqui chegados, não pode haver dúvidas de que a autora não reúne condições para suportar as despesas inerentes a um tribunal arbitral, mesmo que acordasse com a ré na sua constituição com um só arbitro, o que seria muito improvável.
Se a autora não pudesse continuar com a presente demanda, não teria hipóteses de submeter o pleito à decisão de um tribunal, ficar-lhe-ia totalmente vedada a possibilidade de fazer valer o direito que invoca, tal é a penúria em que se encontra.
A autora não tem qualquer disponibilidade financeira, quando a tiver terá de a canalizar para o pagamento de avultadas dívidas, não tem possibilidade real de recurso a crédito – não se concede crédito ou garantias a quem não se prevê que possa pagar –, não tem atividade há anos. A única forma de vir a ultrapassar a situação em que se encontra será a de reiniciar atividade, mas para isso carece de fundos, pois quem é que vai dar negócio a uma empresa que nem teria como pagar a empregados, prestadores de serviços, fornecedores?
A carência económica e financeira da autora é necessariamente superveniente, não apenas ao contrato dos autos, que remonta a 2004, mas a 2013, como a autora alega. Com efeito, não é crível que, se a autora tivesse uma situação económica difícil pudesse ganhar em 2004 uma empreitada no valor de € 1.640.000,00 acrescidos de IVA. Mais, a autora executou os trabalhos, o que não é sequer discutido, e foi-lhe pago o preço dos inicialmente acordados, tendo ficado por pagar a quase totalidade dos muitos trabalhos a mais que alega ter realizado, e que a ré, aliás, também não discute. Também em 2014 foi adjudicada à autora uma avultada subempreitada, em que era empreiteiro geral um consórcio composto pela Conduril, S.A. e pela Graviner, S.A., e dona da obra a REN – Rede Elétrica Nacional, S.A., e que deu origem à ação referida no facto 1. Apenas depois disso começou o clavário da autora, que conduziu à ação acabada de mencionar e ao PER a que recorreu em 2015 e que, apesar do plano de recuperação homologado, não lhe permitiu uma recuperação efetiva.
As dificuldades financeiras da autora e, por via delas, a prática impossibilidade de fazer valer o direito de que se arroga nesta ação, se não puder fazê-lo nos tribunais comuns, são dados incontornáveis.
Relembramos a conclusão do ponto III.1.2: Perante o que consta do despacho recorrido, a primeira das questões invocadas no recurso é uma falsa questão, pois não está em discussão, nestes autos e nesta fase do processo, a possibilidade de recurso aos tribunais comuns, à revelia da convenção de arbitragem, pela parte que, após aquela convenção, se tornou economicamente carenciada, a ponto de não poder suportar os custos inerentes à constituição e funcionamento do tribunal arbitral. Com efeito, o tribunal a quo admitiu que assim é e suportou a sua decisão nesse pressuposto; a recorrente tem a mesma posição; nenhuma das partes passivas requereu a ampliação do âmbito do recurso; logo, a questão não é objeto deste.
Ainda que assim não fosse, na sequência do que expusemos em III.1.1., concluiríamos que a insuficiência económica superveniente da autora para custear as despesas com a constituição e o funcionamento do tribunal arbitral, sem culpa sua, torna inoponível à mesma autora a exceção de preterição de tribunal arbitral; conclusão diversa teria de assentar em norma ou interpretação de norma contrária ao disposto no artigo 20.º, n.º 1, da CRP.
III.3. Da preclusão do direito de recurso aos tribunais comuns
Finalmente há que apreciar se, como entendeu o tribunal a quo, o direito de a autora invocar na presente ação a sua insuficiência económica está precludido por ter intentado anteriormente ação relativa à mesma relação material controvertida (falta de pagamento devido num contrato de subempreitada), mas na qual não alegou a sua falta de recursos para suportar o tribunal arbitral.
A anterior ação foi instaurada em 06-01-2018, no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Cível, onde correu termos sob o n.º .../18.1T8VRL. Foi intentada contra a ora ré “BB” e a ora interveniente “CC”, ambas rés naquele processo; enquanto que a presente ação é proposta apenas contra “BB”. O pedido e a causa de pedir respeitavam ao mesmo contrato de subempreitada em causa nos presentes autos, mas não eram exatamente iguais, na medida em que naquela ação fazia parte da causa de pedir uma transmissão de dívida da aqui ré para a aqui interveniente, situação que não faz parte da causa de pedir do caso sub judice.
Naquele ação, a “CC” foi absolvida do pedido. A ré “BB”, por seu turno, foi absolvida da instância por incompetência absoluta do tribunal judicial, decorrente de preterição de tribunal arbitral.
A questão que agora se coloca, e que o tribunal a quo resolveu com base numa putativa preclusão, é a de saber se a questão relativa à incompetência do tribunal judicial ficou definitivamente resolvida.
Não está em causa que a relação material controvertida trazida a juízo possa ser apreciada e decidida; a anterior ação não a decidiu, quanto à ora ré, pelo que nenhum caso julgado se formou a respeito da mesma.
Os pressupostos processuais, incluindo o da competência material do tribunal, são sempre pressupostos da apreciação da concreta situação controvertida que se traz a juízo. Por isso, o que se decidiu no processo .../18.1T8VRL a respeito da competência do tribunal não tem valor nos presentes autos.
O AUJ de 27/11/1991 foi chamado à colação, mas não dá resposta à questão ora em apreço. O referido acórdão ditou a seguinte norma: «O despacho a conhecer de determinada questão relativa à competência em razão da matéria do tribunal, não sendo objecto de recurso, constitui caso julgado em relação à questão concreta de competência que nela tenha sido decidida». Antes discutia-se se o tribunal superior, em recurso interposto por fundamento diverso, podia corrigir a decisão da competência que havia sido decidida positivamente, sem que as partes tivessem recorrido dessa decisão. O AUJ veio firmar que não: na falta de recurso sobre a decisão relativa à competência material do tribunal, o tribunal superior não pode alterá-la; ou seja, a decisão sobre a competência transita em julgado no processo. Trânsito em julgado formal, uma vez que se trata de despacho que recai unicamente sobre a relação processual (artigo 620.º do CPC).
Transpondo para a situação dos autos, a decisão que julgou o tribunal incompetente no processo .../18.1T8VRL tem força de caso julgado naquele processo; mas não vale fora desse processo, nomeadamente nos presentes autos.
Ainda que a presente ação fosse exatamente igual à anterior no que respeita às partes, ao pedido e à causa de pedir, a autora, que apenas foi absolvida da instância, teria o direito de intentar a presente ação, corrigindo aqui a falta de alegação e prova de elementos que, na ação anterior, determinaram a decisão de incompetência do tribunal.
Do artigo de M. Teixeira de Sousa, «Preclusão e caso julgado», disponível em https://www.academia.edu/22453901/TEIXEIRA_DE_SOUSA, citado no despacho recorrido para sustentar a decisão objeto de recurso, não se retira apoio para a mesma decisão. Antes pelo contrário:
O autor parte na noção de preclusão dada por Chiovenda: “a perda, a extinção ou a consumação de uma faculdade processual”. Afina-a, em seguida, para «a exclusão (e a consequente inadmissibilidade) da prática de um acto processual depois do prazo peremptório fixado, pela lei ou pelo juiz, para a sua realização».
Esclarece que a preclusão tem uma «função ordenatória, dado que a preclusão garante que os actos só podem ser praticados no tempo fixado pela lei ou pelo juiz. Uma outra função da preclusão é a função de estabilização: uma vez inobservado o ónus de praticar o acto, estabiliza-se a situação processual decorrente da omissão do acto, não mais podendo esta situação ser alterada ou só podendo ser alterada com um fundamento específico».
A preclusão, continua, «é sempre correlativa de um ónus da parte: é porque a parte tem o ónus de praticar um acto num certo tempo que a omissão do acto é cominada com a preclusão da sua realização». Trata-se de «um fenómeno processual que é correlativo da situação subjectiva processual típica: esta situação é o ónus processual.
A preclusão só pode referir-se a um ónus que deve ser observado durante um prazo processual. É por isso que a não propositura da acção ou a não interposição do recurso extraordinário de revisão dentro do prazo legalmente definido (quanto a este recurso, cf. art. 697.º, n.º 2 a 5) não implica a preclusão dessa propositura ou interposição, mas antes a caducidade do direito a propor a acção ou a interpor o recurso.
(…) Quando referida à alegação de factos pelas partes, a preclusão é correlativa de um ónus de concentração ou de exaustividade: de molde a evitar a preclusão da alegação posterior do facto, a parte tem o ónus de alegar todos os factos relevantes no momento adequado. Por exemplo: no processo civil português, o réu tem o ónus de alegar na contestação que apresente toda a defesa que queira deduzir contra o pedido formulado pelo autor (cf. art. 573.º, n.º 1); logo, o réu tem o ónus de concentração da sua defesa no articulado de contestação, pelo que não pode alegar posteriormente nenhum meio de defesa que já pudesse ter alegado na contestação.
(…) Talvez se possa acrescentar que, no processo civil português, a imposição de um ónus de concentração constitui a excepção para o autor e a regra para o réu. Em princípio, o autor não fica impedido de propor uma outra acção se a primeira tiver terminado com uma absolvição da instância pela falta de um pressuposto processual (cf. art. 279.º, n.º 1) ou com uma decisão de improcedência».
Nota, ainda, o autor que, «no processo civil português (e também no alemão), a decisão relativa às excepções (peremptórias) suscitadas pelo réu não obtém força de caso julgado material (cf. art. 91.º, n.º 2), isto é, a decisão sobre essas excepções (como, por exemplo, a nulidade do negócio) não é vinculativa num processo posterior; sendo assim, é indiscutivelmente bastante estranho que uma decisão sobre uma excepção alegada e discutida no processo não possa adquirir valor de caso julgado e que uma “não decisão” sobre uma excepção não alegada e não discutida no processo fique coberta com esse mesmo valor».
Sobre as exceções dilatórias há norma expressa no sentido de o caso julgado ser sempre formal (citado artigo 620.º).
Concluímos, pois, que o despacho que julgou o tribunal judicial incompetente para a apreciação e decisão da primeira causa não implicou preclusão do direito da autora de nesta ação alegar outros factos conducentes à competência do tribunal IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação procedente, revogando o despacho recorrido, julgando o tribunal competente e determinando o prosseguimento dos autos.
Custas pelas apeladas, com dispensa do remanescente.
Lisboa, 19/12/2024
Higina Castelo
Pedro Martins
João Paulo Vasconcelos Raposo