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CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DENÚNCIA DO CONTRATO
Sumário
I. A denúncia do contrato de arrendamento, justificada por necessidade de habitação própria do senhorio, tem de se efetuar por escrito; a necessidade de forma escrita está implícita na norma constante do n.º 1 do artigo 1103.º (comunicação da qual conste de forma expressa, sob pena de ineficácia, o fundamento da denúncia) e expressa no artigo 9.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, na redação introduzida pela Lei 31/2012 (salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção). II. O facto de a lei permitir o exercício de um qualquer direito, incluindo um direito potestativo, por uma forma não judicial, não significa que o interessado não possa recorrer a tribunal para exercer esse mesmo direito. A lei prevê, inclusivamente, uma consequência para as situações em que o autor propõe uma ação para exercer um mero direito potestativo, que não tenha origem em qualquer facto ilícito praticado pelo réu: se o réu não contestar a dita ação, o autor pagará as custas do processo (artigo 535.º, nºs 1 e 2, al. a), do CPC).
Texto Integral
Acordam os abaixo identificados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
“AA”, solteira, maior, NIF …, residente na Avenida … Algés, intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra
“BB”, residente na Rua … Póvoa de Santo Adrião, formulando os seguintes pedidos:
a) Condenação do réu a reconhecer que a autora é legítima proprietária do imóvel do qual o réu é arrendatário e onde reside;
b) Condenação do réu a pagar à autora, e não a qualquer outra pessoa, os valores devidos pela ocupação do locado, a qualquer título;
c) Declaração de que o contrato de arrendamento cessou por denúncia, em dia 13ABR2022, condenando-se o réu a entregar o imóvel à autora, livre de pessoas e bens, bem como no pagamento do montante correspondente à renda, por cada mês de ocupação do locado, até sua efetiva entrega;
Ou, subsidiariamente relativamente aos pedidos efetuados na alínea c) do petitório, para a eventualidade de ser considerada ineficaz a denúncia do contrato de arrendamento efetuada pela Autora em 12OUT2021:
d) Declaração de que, pela citação para a presente ação, o réu deve considerar-se notificado nos termos e para os efeitos do artigo 1103.º do Código Civil, da intenção da autora de denunciar o contrato de arrendamento ao abrigo da al. a) do artigo 1101.º do Código Civil, porquanto necessita do locado para acorrer às suas necessidades de habitação, e, consequentemente, para, no prazo de 6 meses contados da citação para a presente ação, abandonar o locado, declarando-se que o contrato de arrendamento cessou, por denúncia, na data em que se perfizerem 6 meses da citação, condenando-se o réu a entregar o imóvel à autora, livre de pessoas e bens, assim como no pagamento do montante correspondente à renda, por cada mês de ocupação do locado após aquela data, até sua efetiva entrega, nos termos do artigo 1045.º, n.º 1 do Código Civil;
Ou, subsidiariamente relativamente aos pedidos efetuados na alínea c) e d) do petitório, para a eventualidade da sua improcedência:
e) Declaração de que, pela citação para a presente ação, o réu deve considerar-se notificado nos termos e para os efeitos do artigo 1103.º do Código Civil, para a intenção da autora de denunciar o contrato de arrendamento ao abrigo da al. c) do artigo 1101.º do Código Civil, e, consequentemente, para, no prazo de 5 anos contados da citação para a presente ação, abandonar o locado, declarando-se que o contrato de arrendamento cessou, por denúncia, na data em que se perfizerem 5 anos da citação, condenando-se o réu a entregar o imóvel à autora, livre de pessoas e bens, assim como no pagamento do montante correspondente à renda, por cada mês de ocupação do locado após aquela data, até sua efetiva entrega;
E, em qualquer dos casos,
f) Declarando-se, ainda, que o valor correspondente à indemnização a pagar nos termos do n.º 1 do artigo 1102.º do Código Civil, que se encontra autonomamente depositada à ordem dos presentes autos, deverá ser entregue ao réu, no caso de procedência dos pedidos efetuados em c) ou d) quanto ao reconhecimento da cessação do contrato de arrendamento, por denúncia, ou à autora, no caso de improcedência daqueles pedidos ou da superveniência de qualquer dívida por parte do réu à autora, a título de rendas ou indemnização pela mora na entrega do locado.
Para sustentar os seus pedidos, alegou que: i. é proprietária fração autónoma designada pela letra G, correspondente ao 2.º andar direito, para habitação, do prédio urbano sito na Rua …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o n.º …, concelho e freguesia de Odivelas, e inscrito na matriz sob o artigo n.º …, da mesma freguesia e concelho; ii. o imóvel foi-lhe doado pelo seu pai em 18/05/2020; iii. o réu, primo da autora, habita o imóvel desde 2011, pagando uma renda de 300,00 € mensais ao pai da autora; iv. a autora ficou desempregada em abril de 2021 e teve um filho em março de 2022; v. não é proprietária de nenhum outro imóvel que possa satisfazer as suas necessidades de habitação; vi. denunciou o contrato, com fundamento na necessidade da fração para sua habitação, no dia 12OUT2021 através de carta registada com aviso de receção.
O réu contestou, alegando, de relevante, que a autora tem outros imóveis de sua propriedade, incluindo no mesmo concelho.
Termina pugnando pela procedência da exceção perentória e improcedência da ação, com a sua consequente absolvição dos pedidos. Pede, ainda, a condenação da autora como litigante de má fé.
A autora respondeu, alegando que o réu não aduziu qualquer facto que possa sustentar uma litigância de má fé por parte da autora; e, que o facto de a autora possuir outro imóvel no mesmo concelho não invalida a denúncia, uma vez que, para tanto, esse outro imóvel teria de estar apto a satisfazer as necessidade de habitação da autora e do seu agregado familiar.
Mais a lega a má fé processual do réu e termina pedindo a condenação do mesmo como litigante de má fé, e a absolvição da autora de idêntico pedido que o réu contra si formulou.
Em seguida, foi realizada audiência prévia, após a qual, foi proferido saneador-sentença que julgou a ação improcedente e absolveu o réu dos pedidos. A autora não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1. A Recorrente é a proprietária do locado, fazendo-o prova através dos documentos, que não foram impugnados, foram considerados como provados e por isso a ela devem ser pagos os montantes a título de renda no valor de € 300,00 (trezentos euros) mensais, enquanto legítima proprietária;
2. A Recorrente cumpre os requisitos da alínea a) do número 1 do artigo 1102.º do Código Civil, uma vez que, é titular do locado pelo período de dois anos no momento da citação da ação;
3. A Recorrente cumpre também com o requisito do pagamento da indemnização de um ano de renda, uma vez que o artigo não impõe nenhuma exigência temporal para cumprimento da indemnização aí prevista podendo pagar no momento da entrega do locado;
4. Pelo que deverá ser declarada a nulidade da sentença por violação da alínea c) do número 1 do artigo 615.º do CPCivil na parte em improcede com os pedidos a) e b) da PI, uma vez que pela natureza dos factos dados como provados e da construção da própria sentença chega a um resultado diferente;
5. E deve ainda ser revogada a sentença nessa parte, por não se ter aplicado e interpretado corretamente a alínea a) do número 1 do artigo 1102.º do Código Civil e se declare procedente o peticionado em c) ou d), ou seja, declarar que o contrato de arrendamento cessou, por denúncia legal condenando-se o Recorrido a entregar à Recorrente, livre de pessoas e bens, o locado, assim como no pagamento do montante correspondente à renda no valor de € 300,00 (trezentos euros) por cada mês de ocupação desde a cessação do contrato do locado até entrega.
Nestes termos, e nos demais de Direito, que serão doutamente supridos por V. Exas., deverá o presente recurso ser julgado procedente e provado e, por via disso, declarada parcialmente nula a sentença recorrida, e deve ser emitida decisão revogando e alterando a sentença “a quo”, decidindo-se pela procedência dos pedidos formulados pela Recorrente.» Não foram oferecidas contra-alegações.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito. Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) A sentença enferma de nulidade relativamente aos pedidos formulados em a) e b), que devem ser julgados procedentes?
b) No mais, a sentença não fez uma boa aplicação do direito, devendo ser revogada e julgado procedente o pedido c) ou, caso assim não se entenda, o subsidiário da alínea d)? II. Fundamentação de facto
O tribunal de 1.ª instância considerou na sua decisão os seguintes factos:
a) A autora é proprietária da fração autónoma para habitação, designada pela letra G, sita no 2.º andar direito do prédio urbano sito na Rua …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o nº …, concelho e freguesia de Odivelas, e inscrito na matriz sob o artigo n.º …, da mesma freguesia e concelho.
b) A autora recebeu a referida fração através de doação feita pelo seu pai “CC”, em 18 de maio de 2020.
c) Após a outorga da escritura pública e, tendo a autora intenção de passar a habitar o imóvel, foi confrontada com a circunstância de o mesmo se encontrar já a ser habitado pelo réu. [Não provado, como explicado em seguida]
d) O réu paga o valor de € 300,00 por mês ao pai da autora.
e) Ficou desempregada em abril de 2021.
f) O seu filho nasceu em março de 2022.
g) Não é proprietária de nenhum outro imóvel que possa satisfazer as suas necessidades de habitação. [Não provado, como explicado em seguida]
h) A autora procedeu à denúncia do contrato de arrendamento, com fundamento na necessidade da fração para sua habitação, no dia 12 de outubro de 2021, através de carta registada com aviso de receção.
i) O réu não lhe entregou o locado.
*
O tribunal a quo, ao considerar na apreciação e decisão da causa os factos acima listados não os deu todos como provados.
Apenas considerou provados, por documentos e por acordo os das alíneas a), b), d), e), f), h) e i). Efetivamente assim é, parte desses factos estão provados pelos documentos autênticos aptos para a sua prova e sobre os demais as partes estão de acordos.
Disse o tribunal a quo a respeito do conjuntos dos factos, incluindo, portanto, os das alíneas c) e g): «É a seguinte, matéria de facto alegada pela Autora que, mesmo em abstrato, pode relevar para a presente decisão». Os factos das alíneas c) e g) não se mostram provados, nem por acordo, nem por documento apto e suficiente para tanto. O tribunal apenas os considerou porque, mesmo que eles viessem a provar-se, em seu entender, a ação improcederia.
Como veremos, o nosso entendimento é outro.
O réu, apelado, não respondeu ao recurso, mas não há um ónus de o fazer. Os factos que na sua contestação impugnou, continuam em discussão.
Como tal, não podemos considerar provados os factos das alíneas c) e g).
Adiantamos que, não estando provado o facto da g) (impugnado pelo réu), se o pedido da alínea c) – declaração de que o contrato cessou por denúncia, em dia 13/04/2022 – for julgado improcedente, a falta de prova do facto g) não permitirá a procedência do subsidiário pedido da alínea d) – declaração de que, pela citação para a presente ação, o réu se considera notificado da denúncia do contrato por necessitar do locado para sua habitação, e, consequentemente, para, no prazo de 6 meses devolver o imóvel.
Nessas circunstâncias, o processo terá de seguir para julgamento.
*
Entretanto, há um outro facto que é importante para a apreciação e decisão da causa e sobre o qual as partes estão de acordo, e que por isso passamos a consignar:
j) O réu habita o imóvel, pelo menos, desde 2011, com base num acordo celebrado com o pai da autora, então proprietário, não reduzido a escrito, e pagando uma contraprestação mensal de € 300,00 (artigos 7.º e 8.º da p.i., e 1.º e 9.º a 11.º da contestação). III. Apreciação do mérito do recurso
Na ação estão formulados os seguintes pedidos:
a) Condenação do réu a reconhecer que a autora é legítima proprietária do imóvel do qual o réu é arrendatário e onde reside;
b) Condenação do réu a pagar à autora, e não a qualquer outra pessoa, os valores devidos pela ocupação do locado, a qualquer título;
c) Declaração de que o contrato de arrendamento cessou por denúncia, em dia 13ABR2022, condenando-se o réu a entregar o imóvel à autora, livre de pessoas e bens, bem como no pagamento do montante correspondente à renda, por cada mês de ocupação do locado, até sua efetiva entrega;
Ou, subsidiariamente relativamente aos pedidos efetuados na alínea c) do petitório, para a eventualidade de ser considerada ineficaz a denúncia do contrato de arrendamento efetuada pela Autora em 12OUT2021:
d) Declaração de que, pela citação para a presente ação, o réu deve considerar-se notificado nos termos e para os efeitos do artigo 1103.º do Código Civil, da intenção da autora de denunciar o contrato de arrendamento ao abrigo da al. a) do artigo 1101.º do Código Civil, porquanto necessita do locado para acorrer às suas necessidades de habitação, e, consequentemente, para, no prazo de 6 meses contados da citação para a presente ação, abandonar o locado, declarando-se que o contrato de arrendamento cessou, por denúncia, na data em que se perfizerem 6 meses da citação, condenando-se o réu a entregar o imóvel à autora, livre de pessoas e bens, assim como no pagamento do montante correspondente à renda, por cada mês de ocupação do locado após aquela data, até sua efetiva entrega, nos termos do artigo 1045.º, n.º 1 do Código Civil;
Ou, subsidiariamente relativamente aos pedidos efetuados na alínea c) e d) do petitório, para a eventualidade da sua improcedência:
e) Declaração de que, pela citação para a presente ação, o réu deve considerar-se notificado nos termos e para os efeitos do artigo 1103.º do Código Civil, para a intenção da autora de denunciar o contrato de arrendamento ao abrigo da al. c) do artigo 1101.º do Código Civil, e, consequentemente, para, no prazo de 5 anos contados da citação para a presente ação, abandonar o locado, declarando-se que o contrato de arrendamento cessou, por denúncia, na data em que se perfizerem 5 anos da citação, condenando-se o réu a entregar o imóvel à autora, livre de pessoas e bens, assim como no pagamento do montante correspondente à renda, por cada mês de ocupação do locado após aquela data, até sua efetiva entrega;
E, em qualquer dos casos,
f) Declarando-se, ainda, que o valor correspondente à indemnização a pagar nos termos do n.º 1 do artigo 1102.º do Código Civil, que se encontra autonomamente depositada à ordem dos presentes autos, deverá ser entregue ao réu, no caso de procedência dos pedidos efetuados em c) ou d) quanto ao reconhecimento da cessação do contrato de arrendamento, por denúncia, ou à autora, no caso de improcedência daqueles pedidos ou da superveniência de qualquer dívida por parte do réu à autora, a título de rendas ou indemnização pela mora na entrega do locado.
* Pedidos constantes das alíneas a) e b)
Da factualidade assente resulta a existência de uma relação de arrendamento urbano entre a autora (senhoria) e o réu (arrendatário), com origem num contrato preexistente entre o anterior proprietário do imóvel, pai da autora, e o réu.
Com efeito, a autora adquiriu o direito de propriedade sobre o imóvel por doação feita pelo anterior proprietário, seu pai, em 18/05/2020 (artigos 940.º e 947.º do CC).
Enquanto dono do imóvel, o pai da autora tinha cedido o gozo do mesmo, temporariamente, ao ora réu, mediante uma contraprestação mensal de € 300, o que corresponde a um contrato de arrendamento (designação dada à locação quando incide sobre bem imóvel) – artigos 1022.º e 1023.º do CC.
O artigo 1057.º do CC, com a epígrafe «Transmissão da posição do locador», estabelece que o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato de locação sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo. É ao abrigo desta disposição legal que a autora se torna senhoria do réu, no momento em que adquire a propriedade do imóvel.
O pagamento da renda é a principal obrigação d arrendatário (artigo 1038.º, al. a), do CC). O réu, porém, continua a entregar os valores de renda ao pai da autora, em vez de o fazer à senhoria.
Os dois primeiros pedidos formulados pela autora – condenação do réu a reconhecer que a autora é legítima proprietária do imóvel e a pagar à autor os valores das rendas – são manifestamente procedentes.
O tribunal a quo, embora tenha consignado factos que conduzem à sua procedência e se tenha referido a eles na fundamentação de direito, acabou por julgar a ação totalmente improcedente. Há nesta matéria, como a apelante bem repara, oposição entre fundamentos e decisão. Porém, esta oposição não conduz por si só, e no caso não conduziu à nulidade da sentença, na medida em que ela é inteligível. A invocada al. c) do artigo 615.º do CPC apenas estatui a nulidade da sentença quando a decisão é ininteligível, seja por os fundamentos estarem em oposição com a decisão, seja por ocorrer alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
No caso, estão apenas em questão dois dos vários pedidos formulados e o cerne da causa, o que motiva primacialmente a autora à propositura da ação, é a recuperação do locado pedida em c), d) e e) (primeiro a título principal e os demais a título subsidiário). Globalmente considerada, a sentença apreciou mal, mas não é nula. O resultado será idêntico. Mesmo que declarássemos a sentença parcialmente nula (pois seria disso que se trata, nula apenas no que respeita aos dois primeiros pedidos), substituir-nos-íamos ao tribunal de 1.ª instância e conheceríamos também nesta parte, como prescrito no artigo 665.º do CPC.
Porquanto começámos por expor, os dois primeiros pedidos formulados pela autora – condenação do réu a reconhecer que a autora é legítima proprietária do imóvel e a pagar à autor os valores das rendas – são procedentes.
Impõe-se revogar a sentença nessa parte e julgar procedentes os pedidos formulados sob as alíneas a) e b), condenando o réu: a) a reconhecer que a autora é legítima proprietária do imóvel do qual o réu é arrendatário e onde reside; e, b) a pagar à autora, e não a qualquer outra pessoa, os valores devidos pela ocupação do locado, a qualquer título. Pedido da al. c)
O contrato de arrendamento foi acordado oralmente, o mais tardar, em 2011. Ao tempo do acordo (fosse em 2011, como a autora alega, fosse em 2008, como o réu defende), tinha-se por celebrado por tempo indeterminado («No silêncio das partes, o contrato tem-se como celebrado por duração indeterminada» – n.º 3 do artigo 1094.º do CC, na redação introduzida pela Lei 6/2006, NRAU). Se tivesse sido celebrado na vigência da redação dada ao mesmo número e artigo pela Lei 31/2012, considerar-se-ia celebrado com prazo certo, pelo período de dois anos; e se tivesse sido celebrado na vigência das alterações introduzidas no mesmo número e artigo pela Lei 43/2017, considerar-se-ia celebrado por prazo certo, pelo período de cinco anos.
Tendo sido celebrado após a entrada em vigor da Lei 6/2006, e antes do início de vigência da Lei 31/2012, sem estipulação de prazo, considera-se celebrado com duração indeterminada (artigo 1094.º, n.º 3, na redação da Lei 6/2006), assim permanecendo até hoje, por força do disposto no artigo 59.º, n.º 3, do NRAU e dos conteúdos das redações ulteriores da norma.
Nos termos do disposto no artigo 59.º, n.º 3, do NRAU que se manteve inalterado até ao presente, «as normas supletivas constantes do NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da sua celebração, caso em que é essa a norma aplicável». Esta norma manteve-se inalterada em todas as reformas (2014, 2017, 2019), pelo que se aplica também a contratos celebrados na vigência do NRAU e que sobrevivem às suas várias alterações (é este também o entendimento manifestado por Jorge Pinto Furtado, Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 4.ª ed., Almedina, 2022, p. 75: «os contratados ulteriormente à Lei n.º 6/2006, até ao início de vigência da Lei n.º 31/2012, de duração limitada, mas com omissão do seu prazo, passaram, desde esse período em diante, a considerar-se realizados com duração indeterminada (versão do art. 1094-3, de 2006), assim permanecendo até hoje, visto a oposição desta norma ao que se foi consignando, como vimos, nas sucessivas reformas, e atento o disposto no art. 59-3 NRAU»).
Como já afirmado, a autora adquiriu o imóvel por doação, em 18/05/2020, tornando-se nessa altura proprietária do mesmo imóvel e senhoria do réu, posição contratual que lhe foi transmitida com o mesmo imóvel.
Pretendeu a autora denunciar o contrato de arrendamento para sua habitação própria, ao abrigo do disposto no artigo 1102.º, n.º 1, do CC, por carta enviada ao réu em 12/10/2021, e solicitando a sua entrega em 12/01/2022.
O réu não procedeu à entrega do locado nesta data, nem até ao momento.
Nos termos do disposto no artigo 1101.º do CC, o contrato de arrendamento urbano de duração indeterminada pode ser denunciado pelo senhorio nos casos seguintes:
a) Necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1.º grau;
b) Para demolição ou realização de certas obras;
c) Mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação. Conforme estabelecido no n.º 1 do artigo 1102.º do CC, o direito de denúncia para habitação do senhorio depende do pagamento do montante equivalente a um ano de renda e da verificação dos seguintes requisitos:
a) Ser o senhorio proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de dois anos ou, independentemente deste prazo, se o tiver adquirido por sucessão;
b) Não ter o senhorio, há mais de um ano, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País casa própria que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em 1.º grau.
Por seu turno, o artigo 1103.º do CC determina que a denúncia pelo senhorio com fundamento na necessidade de habitação pelo próprio é feita mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a seis meses sobre a data pretendida para a desocupação e da qual conste de forma expressa, sob pena de ineficácia, o fundamento da denúncia.
A carta de denúncia enviada pela autora em 12/10/2021, pretendendo operar a cessação em 13/04/2022, não cumpre com a exigência legal de a autora ser proprietária há mais de dois anos. A autora adquiriu em 18/05/2020, não era proprietária há mais de dois anos, nem na data da denúncia, nem na data da pretendida cessação. Tanto é quanto basta para que o pedido formulado na alínea c) não possa proceder. Pedido formulado sob a al. d)
Vejamos, então, o pedido formulado na al. d), a título subsidiário para a eventual improcedência do constante da al. c).
Sob a al. d), a autora pede que se considere que, com a citação para a presente ação, o réu se tenha por notificado nos termos e para os efeitos constantes do artigo 1103.º do CC, da intenção da autora de denunciar o contrato de arrendamento ao abrigo da al. a) do artigo 1101.º do CC, porquanto necessita do locado para acorrer às suas necessidades de habitação, e, consequentemente, para, no prazo de 6 meses contados da citação para a presente ação, abandonar o locado, que cessará, por denúncia, na data em que se perfizerem 6 meses da citação, condenando-se o réu a entregar o imóvel à autora, livre de pessoas e bens, assim como no pagamento do montante correspondente à renda, por cada mês de ocupação do locado após aquela data, até sua efetiva entrega, nos termos do artigo 1045.º, n.º 1 do Código Civil.
Apreciando.
À data da propositura da ação, a autora era proprietária do imóvel locado havia mais de dois anos, pelo que já não existia o óbice que impediu a denúncia por carta de 12/10/2021.
Vimos acima que:
i. o contrato de arrendamento urbano de duração indeterminada pode ser denunciado pelo senhorio quando dele necessite para sua habitação (artigo 1101.º, al. a), do CC);
ii. o direito de denúncia para habitação própria do senhorio depende dos seguintes requisitos:
- pagamento do montante equivalente a um ano de renda (artigo 1102.º, n.º 1, do CC); - qualidade de proprietária há mais de dois anos, salvo se tiver adquirido o bem por sucessão (artigo 1102.º, n.º 1, al. a) do CC);
- não ter há mais de um ano, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País, casa própria que satisfaça as necessidades de habitação própria (artigo 1102.º, n.º 1, al. b) do CC).
iii. a denúncia pelo senhorio com fundamento na necessidade de habitação pelo próprio é feita mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a seis meses sobre a data pretendida para a desocupação e da qual conste de forma expressa, sob pena de ineficácia, o fundamento da denúncia (artigo 1103.º, n.º 1, do CC).
A comunicação a que se reporta a norma por último citada tem de se efetuar por escrito. A forma escrita resulta implícita da própria norma do n.º 1 do artigo 1103.º (comunicação da qual conste de forma expressa, sob pena de ineficácia, o fundamento da denúncia) e expressa no artigo 9.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, na redação da Lei 31/2012: «Salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção».
A necessidade de forma escrita, por declaração assinada e remetida por carta registada com aviso de receção é clara na lei e não tem oferecido dúvidas (v.g., João Espírito Santo, «A cessação do contrato de arrendamento por denúncia justificada», ROA, ano 73, IV (out.-dez. 2013), pp. 1240-1263 (1256-1257e doutrina aí citada na nota 35). Questão que se coloca, que se colocou no caso e a que o tribunal a quo respondeu negativamente, com a consequente improcedência dos pedidos subsidiariamente formulados, é se essa comunicação pode ser efetuada por via de ação judicial.
A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação – assim o expressa o n.º 2 do artigo 2.º do CPC.
O facto de a lei permitir o exercício de um qualquer direito, incluindo um direito potestativo, por uma qualquer forma não judicial, não significa que o interessado não possa recorrer a tribunal para exercer esse mesmo direito. Aliás, a lei até prevê uma consequência para as situações em que o autor propõe uma ação para exercer um mero direito potestativo, que não tenha origem em qualquer facto ilícito praticado pelo réu: se o réu não contestar a dita ação, o autor pagará as custas do processo (artigo 535.º, nºs 1 e 2, al. a), do CPC).
Quando o NRAU introduziu a possibilidade de resolução extrajudicial do contrato de arrendamento, com fundamento na falta de pagamento de rendas, a questão da possibilidade de recurso a juízo para exercer o referido direito potestativo colocou-se com alguma frequência nos tribunais. A jurisprudência foi praticamente unânime no sentido positivo. V.g., Acórdãos: TRL de 29-11-2018, proc. 19373/17.0T8SNT.L1-8, de 11-02-2010, proc. 3630/08.9TMSNT.L1-6, de 15-12-2009, proc. 8909/08.7TMSNT.L1-1, de 17-04-2008, proc. 2308/08-2, de 18-06-2009, proc. 438/08.05YYLSB.L1-8, de 31-03-2009, proc. 2150/08.6TBBRR.L1-7, de 13-03-2008, proc. 1154/2008-6, de 11-03-2008, proc. 543/2008-1, de 25-02-2008, proc. 469/2008-7, e de 23-10-2007, proc. 6397/2007-7; TRC de 02-11-2010, proc. 715/08.5TBACN.C1, e de 22-06-2010, proc. 1280/09.1TBTMR.C1; TRP de 02-03-2010, proc. 552/08.7TBPRG.P1, de 19-02-2009, proc. 459/08.8TJVNF, de 26-02-2008, proc. 0820751, e de 31-01-2008, proc. 0736573; TRG de 10-07-2008, proc. 1432/08-2, e de 29-11-2008, proc. 2205/07-1; TRE de 25-11-2021, proc. 1605/20.9T8SLV.E1; e, STJ de 06-05-2010, proc. 438/08.5YXLSB.LS.S1.
Além das razões que começámos por enunciar, outros argumentos expendidos nos citados arestos (referentes à resolução por falta de pagamento de rendas) também são válidos para o caso análogo que ora nos ocupa, da denúncia motivada por necessidade para habitação própria do senhorio.
Assente que a autora pode fazer valer o direito de denúncia para habitação própria por via desta ação, vejamos se reúne os requisitos a tanto necessários.
O requisito estabelecido na al. a) do n.º 1 do artigo 1102.º do CC está indubitavelmente preenchido na medida em que a autora é proprietária há mais de dois anos.
O requisito da al. b) do mesmo número, artigo e diploma – não ter há mais de um ano, na área do concelho de Lisboa e seus limítrofes, casa própria que satisfaça as necessidades de habitação própria (artigo 1102.º, n.º 1, al. b) do CC) não está provado.
Consequentemente, processo deve seguir os ulteriores termos.
Tendemos a concordar com Jorge Pinto Furtado, Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 4.ª ed., Almedina, 2022, p. 691, quando, a propósito da alínea a) do artigo 1101.º do CC, afirma que se trata de «uma disposição que só tem interesse prático relativamente aos arrendamentos vinculísticos remanescentes. Fora desse quadro, o senhorio dispõe da oposição à renovação, nos arrendamentos com prazo certo e, nos de duração indeterminada, como o de que aqui se trata, da denúncia ad nutum da al. c), que é mais ágil e barata».
Não esqueçamos, que a denúncia para habitação obriga ao pagamento ao arrendatário de uma indemnização equivalente a um ano de renda (artigo 1102.º, n.º 1, do CC), a qual terá de ser paga metade após a confirmação da denúncia e o restante no ato da entrega do locado, sob pena de ineficácia da denúncia (artigo 1103.º, n.º 8, do CC).
Além disso, a denúncia para habitação obriga o senhorio a dar ao local a utilização invocada no prazo de três meses e por um período mínimo de dois anos (artigo 1103.º, n.º 5, do CC); salvo motivo não imputável ao senhorio, o incumprimento do disposto no n.º 5 obriga o senhorio a pagar ao arrendatário uma indemnização correspondente a 10 anos de renda (n.º 9 do mesmo artigo e diploma).
A opção da autora foi a de, não procedendo o pedido da alínea c), como não procedeu, fazer valer o pedido formulado na alínea d) – denúncia motivada para habitação própria –, nomeadamente em sede de apelação.
Se os factos necessários à prova do direito correspondente a este pedido não se provarem, terá o tribunal de apreciar o segundo pedido subsidiário, da alínea e): declarar-se que, pela citação para a presente ação, o réu deve considerar-se notificado nos termos e para os efeitos do artigo 1103.º do Código Civil, para a intenção da autora de denunciar o contrato de arrendamento ao abrigo da al. c) do artigo 1101.º do Código Civil, e, consequentemente, para, no prazo de 5 anos contados da citação para a presente ação, abandonar o locado, declarando-se que o contrato de arrendamento cessou, por denúncia, na data em que se perfizerem 5 anos da citação, condenando-se o réu a entregar o imóvel à autora, livre de pessoas e bens, assim como no pagamento do montante correspondente à renda, por cada mês de ocupação do locado após aquela data, até sua efetiva entrega. Neste caso, deve a autora ter em consideração que terá de confirmar a denúncia, sob pena de ineficácia, por comunicação com a antecedência máxima de 15 meses e mínima de um ano relativamente à data da sua efetivação (artigo 1104.º do CC).
Vale aqui o que acima já dissemos: o facto de a lei permitir o exercício de um qualquer direito, incluindo um direito potestativo, por uma qualquer forma não judicial, não significa que o interessado não possa recorrer a tribunal para exercer esse mesmo direito. Que o acabado de afirmar é válido também para os direitos potestativos torna-se evidente quando a lei prevê uma consequência para as situações em que o autor propõe uma ação para exercer um mero direito potestativo, que não tenha origem em qualquer facto ilícito praticado pelo réu: se o réu não contestar a dita ação, o autor pagará as custas do processo (artigo 535.º, nºs 1 e 2, al. a), do CPC).
IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência,
a) Condena-se o réu a reconhecer que a autora é legítima proprietária do imóvel de que o réu é arrendatário, sito na Rua … Póvoa de Santo Adrião;
b) Condena-se o réu a pagar à autora, e não a qualquer outra pessoa, os valores devidos pelo gozo do locado;
c) Julga-se improcedente o pedido formulado sob a alínea c) (cessação do contrato de arrendamento por denúncia, em dia 13/04/2022);
d) Determina-se o prosseguimento dos autos para, em consonância com a argumentação exposta, ser apreciado o pedido formulado em d), e, na sua improcedência, julgar-se procedente o pedido formulado em e).
Custas por autora e réu, na proporção de 10% para a primeira e de 90% para o segundo.
Lisboa, 19/12/2024
Higina Castelo
Arlindo Crua
João Paulo Vasconcelos Raposo