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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CREDIBILIDADE
ARRENDAMENTO COMERCIAL
PRÉDIO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
Sumário
Sumário (da responsabilidade do relator): I. Não existe fundamento para alterar uma decisão de facto assente no depoimento de testemunhas que foi considerado credível pelo tribunal, sem que o recorrente indique nenhum meio de prova de sinal contrário e sem que existam razões para afastar tal juízo de credibilidade; II. O arrendatário comercial de uma parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal não tem direito legal de preferência na venda da totalidade do bem; III. A atribuição consensual pelos promitentes vendedor e comprador de um direito de preferência a tal arrendatário comercial, caso tenha autonomia enquanto ato jurídico, pode constituir um contrato a favor de terceiro ou um simples acordo atípico de concessão de vantagem a esse terceiro, válido, eficaz e oponível entre as partes; IV. A simples admissão da necessidade de conferir preferência a um terceiro como forma de salvaguardar a segurança do negócio perspetivado, se não tiver autonomia jurídica, deve ser enquadrada como mera etapa negocial no processo destinado à conclusão do negócio transmissivo da propriedade; V. Em qualquer de tais enquadramentos jurídicos, a dação consensual de preferência a um terceiro que a venha a exercer afasta a culpa exclusiva do promitente vendedor, dando lugar a um simples dever de restituição do valor entregue a título de sinal.
Texto Integral
Decisão
I. Síntese da ação I.I. Elementos objetivos:
- Tribunal recorrido: - Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 18;
- Decisão recorrida: Sentença final; - Tipologia da apelação: 1 (uma), da decisão de facto e de direito. I.II. Elementos subjetivos - Autora --; - Ré - -- (no lugar de herdeira habilitada do primitivo réu e --) I.III. Síntese da ação
Instaurou a autora ação pedindo condenação do réu (primitivo) a pagar-lhe a quantia de 500.000,00 (quinhentos mil euros), acrescida de juros de mora legais para obrigações civis desde 2/8/2021 e até integral pagamento;
Sustentou tal pretensão dizendo, em síntese:
- O réu é único proprietário de prédio urbano sito na Rua da …, em Lisboa, que descreve e que não se encontra constituído em propriedade horizontal;
- No dia 18/3/2021, autora e ré celebraram um contrato-promessa de compra e venda de tal imóvel por meio do qual o réu prometeu vendê-lo e a autora prometeu comprá-lo, pelo preço de € 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil euros);
- Nessa data a autora entregou ao autor a quantia € 500.000,00 (quinhentos mil euros), a título de sinal;
- Por comunicação de 7/5/2021, o réu informou a autora que uma sociedade arrendatária de uma loja no prédio tinha exercido o direito de preferência na compra do prédio em questão, pelo que, iria proceder à devolução do sinal pago;
- A ré restituiu, efetivamente, o sinal recebido, em singelo;
- Essa sociedade terceira celebrou, efetivamente, contrato-promessa de aquisição;
- Ao afirmar expressamente a sua intenção de incumprir o contrato-promessa, a ré assumiu voluntariamente estar a incumprir o contrato, ficando obrigada ao pagamento do sinal em dobro;
- Tal pagamento foi-lhe solicitado, por carta de 22/7/21;
- Na sequência, a autora instaurou procedimento cautelar de arresto, assente neste invocado crédito, providência que veio a ser decretada, com a apreensão do imóvel objeto dos autos
--
Contestou o réu, concluindo pela total improcedência da ação.
Defendeu-se, em síntese, dizendo:
- O prédio objeto dos autos foi por si colocado à venda junto de uma sociedade de mediação imobiliária, que indica;
- Nesse contexto, a autora apresentou-se interessada na aquisição do imóvel e foram encetadas conversações entre as partes;
- Nesse contexto, as pessoas que intervieram em representação da ré foram expressamente informadas da existência do arrendamento e chegaram a acordo quanto à necessidade de ser dada preferência na compra à arrendatária;
- A eventualidade de ser exercida preferência por terceiros veio a ficar expressamente consagrada no contrato-promessa, com também expressa previsão que, nesse caso, haveria lugar à restituição do sinal pago, em singelo;
- Na sequência, uma vez exercida a preferência pelo arrendatário, tal foi imediatamente comunicado à autora, que o reconheceu e aceitou;
- Mais tarde, no dia 19 de maio de 2021, a autora enviou à ré uma comunicação invocando o teor de acórdão do Tribunal Constitucional que declarou a inconstitucionalidade com força de obrigatoriedade geral do n.º 8 do artigo1091º do Código Civil (previsão relativa a preferência do arrendatário), dizendo que ficava a aguardar a marcação da escritura publica;
- Em resposta, o réu informou que o acórdão é inaplicável, tratando-se de decisão relativa a arrendamento habitacional sendo o arrendamento em causa de natureza comercial, e que, em todo o caso, essa invocação seria um manifesto abuso de direito, na medida em que havia aceitado expressamente o exercício da preferência;
- Mais alegou que a autora omitiu a sua expressa aceitação da preferência, pleiteando de má-fé;
- O arrendatário tinha direito de preferência e este incidia sobre a totalidade do prédio, apesar de o arrendamento se referir apenas a uma parte, dado que o prédio não estava dividido em frações;
- Se assim não se entender, sempre a autora teria atuado de má-fé, ao aceitar expressamente o exercício de preferência pelo arrendatário.
- A autora apresentou requerimento de resposta à invocada litigância de má-fé;
- Posteriormente, a tanto sendo convidada, pronunciou-se também autonomamente sobre o invocado abuso de direito, manifestando-se pela sua não verificação;
- Foi dispensada audiência prévia e proferido despacho de saneamento, de identificação do litígio e dos temas da prova;
- Foi designada data para audiência final, na sequência da qual foi proferida a sentença recorrida;
--- I.IV. Dispositivo da sentença (transcrição, sem atualização de grafia):
Pelo exposto, julga-se a presente acção improcedente e em consequência decide-se:
a) Absolver o Réu do pedido;
b) Condenar a Autora como litigante de má fé em multa que se fixa em cinco UC’s, e em indemnização ao Réu confinada ao pagamento dos honorários dos seus advogados nos seus justos limites, a fixar ouvidas as partes em 10 dias, com dedução da parte incluída nas custas.
--- II. Objeto do recurso (delimitado pelas conclusões da recorrente-autora): II.I. Conclusões apresentadas pela recorrente nas suas alegações (alegações transc--s nas suas partes essenciais, assinalando a negrito as questões suscitadas e os meios de prova indicados):
1. O facto dado como provado com o número 9 da sentença recorrida deveria ter sido dado como não provado.
2. Os factos não dados como provados: “foi o mandatário do Réu que insistiu no envio de uma carta à inquilina para exercício do direito de preferência” e “A Autora nunca concordou com o envio de uma carta à inquilina para exercício do direito de preferência” deveriam ter sido dados como provados;
3. Nunca a Autora manifestou que era melhor, à cautela, conceder o direito de preferência à sociedade DJR, nem a A. entendeu que seria mais adequado, mais cauteloso, conceder previamente esse direito ao inquilino (ao invés de se confrontarem com uma ação de preferência a posteriori);
4. A autora nunca concordou, nem incentivou, o envio de qualquer comunicação à sociedade DJR para o exercício do direito de preferência - nenhuma testemunha afirmou tal facto ou conseguiu concretizar o conteúdo de tal comunicação;
5. Mesmo que se entendesse que teria sido falado o envio de uma carta à sociedade DJR, nenhuma testemunha disse que a mesma seria para o efeito de exercício do direito de preferência, podendo esta carta ser enviada apenas para perguntar à sociedade DJR se pretendia exercer tal direito, mas sem lhe concedendo essa faculdade, ou para qualquer outro efeito.
6. Estamos perante um erro de julgamento do tribunal recorrido na apreciação da prova produzida em audiência;
7. Além disso, a cláusula sexta, n.º 1, do contrato promessa de compra e venda celebrado entre a A. e o R. refere-se a todas as entidades que nos “termos legais” fossem ou pudessem ser detentoras do direito de preferência.
8. Ou seja, falava-se, no referido contrato promessa, sobre o direito de preferência, mas apenas a quem o tivesse ou pudesse ter, nos termos da lei. Ou seja, o R. obrigou-se a apurar quem tivesse ou pudesse, nos termos da lei, preencher os pressupostos para exercer o direito de preferência.
9. Ora, na presente situação a sociedade DJR não tinha qualquer direito de preferência, uma vez que era apenas arrendatária de uma sala do imóvel e este não se encontrava constituído em propriedade horizontal.
10. A cláusula sexta n.º 1, 2 e 3, do contrato-promessa celebrado não é aplicável à preferência concedida à sociedade DJR., uma vez que esta não existia.
11. Além disso, ao contrário do que afirma o tribunal a quo, também se colocava a questão da preferência da Câmara Municipal, como afirmou a testemunha -, como também se poderia colocar a questão a outros eventuais direitos de preferência que não fossem do conhecimento das partes.
12. É que, ao contrário do que faz o tribunal a quo, não se pode concluir que não existissem outros direitos de preferência que não fossem do conhecimento das partes, e dos agentes imobiliários que intermediaram as negociações, quando foi assinado o contrato promessa de compra e venda.
13. Pelo que, mas uma vez se verifica um erro de julgamento, por parte do tribunal a quo, na apreciação da prova produzida e na retirada das respetivas conclusões.
14. O que interessa é que o réu, ou alguém com poderes para tal enviou uma carta à sociedade DJR, de sua livre vontade, concedendo-lhe direito de preferência na compra do imóvel dos autos, quando esta preferência não existia, incumprindo definitivamente, assim, o contrato celebrado, facto ao R. imputável;
15. Com efeito, o que a lei exige é que o incumprimento do contrato promessa seja imputável à parte que incumpriu, o que é o caso, como acima demonstrado, porquanto ninguém obrigou o R. a conceder preferência à sociedade DJR.
16. Além disso, diga-se que o R. nunca comprovou ter a preferência sequer sido exercida dentro do prazo conferido para o efeito, cabendo a si esse ónus.
17. Pelo que, também o argumento utilizado pelo tribunal de que o contrato promessa já previa que não seria devida qualquer indemnização à autora não pode vingar;
18. As reuniões realizadas não eram relevantes para a alegação do direito da autora;
19. Além disso é absolutamente irrelevante o facto de a autora ter conhecimento, ou não, do envio de uma carta relacionada dado que quem concede a preferência é o vendedor e não o comprador.
20. Além disso, conforme acima já se demonstrou, não deveria ter ficado provado, nem o tribunal poderia concluir, no sentido de que “antes da assinatura do contrato as partes debateram a concessão do direito de preferência à arrendatária e que atendendo a que não se ia fazer cessar o arrendamento do rés do chão, a própria advogada da Autora manifestou que era melhor, à cautela, conceder-lhe o direito de preferência, o que foi transmitido ao gerente da Autora pelo seu intérprete, tendo todos acordado que o Réu enviaria uma carta a tal arrendatária concedendo-lhe prazo para exercício do direito de preferência.”
21. Pelo que, não se verifica nenhum dos fundamentos nos quais o tribunal recorrido se baseou para condenar a autora como litigante de má-fé;
22. Deve ser concedida a isenção do pagamento do remanescente da taxa de justiça ou, subsidiariamente, a respetiva fixação de forma proporcional.
---
Contra-alegou a ré habilitada, em substituição do primitivo réu, pugnando pela manutenção da sentença proferida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
--- II.II. Questões a apreciar:
a) Ao nível do recurso de facto, a questão essencial a apreciar, ainda que a recorrente a desdobre na impugnação de diferentes pontos da decisão, reporta-se a saber se a autora sabia e assentiu (ou não) em conceder e comunicar preferência ao terceiro que viria a exercê-la;
b) A nível da apreciação de direito, o recurso terá que responder ao que resultar da decisão de facto e, porque assim suscitado, avaliar da simples existência de direito de preferência de arrendatário, no caso, retirando as consequências decisórias que decorram desse juízo autónomo;
c) A nível da litigância de má-fé, avaliar da subsistência da condenação da autora a esse título e, a final, caso subsista o decaimento, avaliar do pedido de dispensa de pagamento de taxa de justiça remanescente.
--- II.III. Fundamentação de facto da sentença recorrida (transcrição integral, com atualização de grafia):
1. À data da p.i. encontrava-se registada a favor do Réu a aquisição do prédio urbano sito na Rua da …, números --, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número -- da freguesia do Socorro e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo número -- da freguesia de Santa Maria Maior (art.º 1º da p.i.).
2. O referido prédio não se encontra constituído em propriedade horizontal (art. 2º da º p.i.).
3. Em data não concretamente apurada, anterior a Março de 2021, o Réu decidiu colocar à venda o referido imóvel socorrendo dos serviços de mediação de uma sociedade com o nome comercial “--” (art. 2º da contestação).
4. No âmbito dessa relação comercial, a -- apresentou ao réu uma proposta de aquisição do imóvel devoluto de pessoas e bens, em nome da Autora, no valor de 2.500.000,00 (art. 3º da contestação).
5. A Autora foi informada de que o prédio estava arrendado no rés-do-chão, primeiro e segundo andar (art. 4º da contestação em parte).
6. Autora e Ré decidiram fazer uma reunião para tentar chegar a um acordo sobre as questões que faltam para chegarem a um acordo final e global, a qual ocorreu em dia de Março de 2021 não concretamente apurado anterior ao dia 18, no estabelecimento da -- (art. 6º da contestação).
7. Na referida reunião estiveram presentes o Sr. --, gerente da Autora, o Sr. --, que se apresentou como intérprete do Sr. -- uma vez que este não domina a língua Portuguesa, a Dra. --, como advogada da Autora, a Sra. --, o Sr. -, a Sra. -, e o Dr. --, enquanto advogado da Ré (art. 7º da contestação).
8. Nessa reunião os colaboradores da -- informaram o gerente da Autora, através do seu intérprete e a sua advogada, que, com exceção da arrendatária do rés-do-chão, existiam acordos com indemnizações com os outros arrendatários tendo em vista a sua saída (art. 8º da contestação).
9. Atendendo a que não se ia fazer cessar o arrendamento do rés do chão em que era arrendatária a sociedade --, a advogada da Autora manifestou que era melhor, à cautela, conceder-lhe o direito de preferência, o que foi transmitido ao gerente da Autora pelo seu intérprete, tendo todos acordado que o Réu enviaria uma carta a tal arrendatária concedendo-lhe prazo para exercício do direito de preferência (arts. 9º, 11º e 13º da contestação).
10. A Autora tomou conhecimento de que a casa da Porteira e o terceiro e quarto andares se encontravam ocupados de forma considerada ilícita e que iria ser judicialmente promovida a sua desocupação (arts. 8º e 17º da contestação).
11. Ainda antes da assinatura do contrato promessa, ocorreu uma outra reunião em que estiveram presentes, o legal representante da Autora, a sua tradutora --, também conhecida por --, a Dra. --, o Réu e o seu advogado, Dr. --, e voltou a falar-se no direito de preferência e na carta que seria enviada ao inquilino para o efeito, tendo o advogado do Réu referido que o inquilino não tinha condições para adquirir o prédio (arts. 19º a 21º da contestação e 12º em parte do articulado da Autora de resposta à litigância de má fé de 27/10/2021).
12. No dia 18/03/2021, a Autoras e o Réu celebraram um contrato-promessa de compra e venda do referido imóvel, junto em cópia à p.i. como doc. 2 e que se dá por reproduzido, nos termos do qual a A. prometeu comprar e o R. prometeu vender o imóvel pelo preço de €2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil euros) (art. 3º da p.i.).
13. Na Cláusula Sexta do contrato pode ler-se: “1.O PROMITENTE VENDEDOR obriga-se a, previamente à celebração do contrato prometido, (i) realizar todos os atos, procedimentos e notificações que sejam necessários a todas as entidades que, nos termos legais, sejam ou possam ser detentoras do direito de preferência na aquisição do IMÓVEL, bem como (ii) obter documentos comprovativos do não exercício, da renúncia ou da inexistência dos referidos direitos de preferências.”. 2. No caso de exercício do direito de preferência, o PROMITENTE VENDEDOR obriga-se a informar de imediato desse facto a PROMITENTE COMPRADORA, e, no prazo máximo de 10 (dias) dias úteis, a contar do exercício efectivo desse direito a devolver à PROMITENTE COMPRADORA, em singelo e para a conta bancária desta junto do Novo Banco (…) os montantes pagos por esta a título de Preço, previstos na Cláusula 2 acima. 3. Verificando-se o disposto nos parágrafos anteriores, o presente Contrato considerar-se-á resolvido e, após restituição dos mencionados montantes, as Partes não terão direito a receber, uma da outra, qualquer outro pagamento, compensação ou indemnização.” (arts. 22º e 23º da contestação).
14. A Autora entregou ao Réu, na referida data, a quantia de €500.000,00 (quinhentos mil euros), a título de sinal (art. 4º da p.i.).
15. O Réu, após a celebração do contrato promessa compra e venda, e em data não concretamente apurada anterior a 22 de Abril de 2021, remeteu à arrendatária -- carta a informar os termos do negócio e atribuiu prazo não concretamente apurado para exercício do direito de preferência (art. 25º da contestação).
16. O Réu, através do seu advogado, informou a Autora de que havia enviado a carta à inquilina para exercício do direito de preferência (art. 26º da contestação em parte).
17. Por carta datada de 22 de Abril de 2021, junta à contestação como doc. 2 e que se dá por reproduzida, a --, referindo-se a uma carta de 05 de Abril de 2021 em que lhe foi comunicada a intenção de venda do imóvel, informou o Réu, na pessoa do seu advogado, que exercia o direito de preferência na qualidade de arrendatária (art. 27º da contestação).
18. No dia 03 de Maio de 2021, às 12:09, mediante email junto como doc. 3 à contestação, e com conhecimento ao Sr. --, a Sra. -- dirigiu à Dra. -- a seguinte pergunta - “Qualquer maneira, se o senhor inquilino acertar mesmo direito preferência com senhor--, este registo também fica sem efeito, não é?” (art. 31º da contestação).
19. Ao que a Dra. -- responde nesse dia às 12:28: “Sim. Se a preferência for exercida o nosso registo cai.” (art. 32º da contestação).
20. No dia 5 de Maio de 2021, às 12:49, foi remetido um email da Sra. -- à Dra. -- onde se pode ler além de mais: “(….) venho a pedido do Sr. -- para lhe pedir o seguinte: 1. Ele quer que o Dr. -- nos envie hoje sem falta a carta enviada ao inquilino indiano sobre direito de preferência e a resposta pelo mesmo em como quer exercer esse direito. 2. De acordo com o que foi informado pelo Dr. --, se a carta foi enviada no dia 4 de abril, faz hoje um mês. Nós não vamos esperar até sexta feira para saber resposta. queremos uma resposta concreta hoje. Se passar hoje, temos direito de pedir o dobro de sinal, o contrato assinado entre este inquilino e o senhor-- não tem nada a ver connosco. (…) (arts. 33º e 36º da contestação).
21. No dia 06 de Maio de 2021 o Réu e a sociedade --celebraram um contrato promessa compra e venda relativamente ao prédio pelo preço de €2.500.00,00, junto em cópia à contestação com o doc. 4, a fls. 108 verso e segs., e que se dá por reproduzido (art. 37º da contestação).
22. Por carta datada de 07/05/2021, junta à p.i. como doc. 3 e que se á por reproduzida, o Réu, através de mandatário, informou a Autora de que a sociedade --, na qualidade de arrendatária do referido prédio, tinha exercido o direito de preferência em relação à totalidade do prédio em questão, pelo que, iria proceder à devolução em singelo do montante pago a título de sinal, no valor de €500.000,00, o que veio a acontecer (art. 5º da p.i. e 38º da contestação).
23. Na mesma comunicação foi remetido, em anexo, o contrato promessa de compra e venda celebrado entre o R. e a sociedade --, no dia 06-05-2021, referente àquele imóvel (art. 6º da p.i.).
24. De acordo com a cláusula quarta, número 1, deste contrato promessa de compra e venda, o contrato prometido seria celebrado no prazo de 60 dias após a celebração do contrato promessa (art. 7º da p.i.).
25. No dia 19 de Maio de 2021, a Autora remeteu ao advogado do Réu, Dr. --, uma carta, junta em cópia à contestação como doc. nº 5 e que se dá por reproduzida, na qual referiu que, atento o teor do acórdão do TC nº 299/2020 que havia declarado, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do nº 8 do artigo 1091º do Código Civil, “o direito de preferência invocado pelo inquilino do vosso Exmº Constituinte é totalmente improcedente”, ficando a aguardar a marcação da escritura publica, assim como informando que passava a ser representado por outro advogado (art. 39º da contestação).
26. A esta missiva, o Dr. -- respondeu nos termos do email de 20/05/2021, junto em cópia à contestação como doc. nº 6 e que se dá por reproduzido, referindo além de mais que a norma que foi declarada inconstitucional aplicava-se a arrendamentos habitacionais, o que não era o caso, e que o direito de preferência era somente relativo à fracção, ou divisão susceptivel de utilização autónoma, e não à totalidade do prédio, relembrando que foi obtida a anuência do Autor “em como seria de comunicar-se ao arrendatário para eventual exercício do direito de preferência” (arts. 40º e 41º da contestação).
27. Por carta datada de 22/07/2021 e recebida no dia 23-07-2021, junta em cópia como doc. 4 à p.i. e que se dá por reproduzida, a Autora concedeu ao Réu o prazo de 10 dias para proceder ao pagamento de €500.00,00 por forma a perfazer o dobro do que foi prestado (art. 13º da p.i,).
28. O Réu, através do seu advogado, respondeu a esta carta nos termos da carta datada de 02 de Agosto de 2021, junta à contestação como doc. nº 7 e que se dá por reproduzida (art. 48º da contestação). Matéria de facto não provada: Não se provou:
1. A factualidade alegada pela Autora nos arts. 14º (que a carta de 22/07/2021 não tenha obtido resposta) da p.i.; e nos arts. 12º 13º (na parte em que foi o mandatário do Réu que insistiu no envio de uma carta à inquilina para exercício do direito de preferência) do articulado de resposta à litigância de má fé de 27/10/2021, e nos arts. 7º e 8º (que a Autora nunca concordou com o envio de uma carta à inquilina para exercício do direito de preferência) do articulado de resposta à matéria de excepção de 17/11/2021;
2. A factualidade alegada pelo Réu nos arts. 4º (na parte em que a Autora tivesse sido informada da existência de uma antena da Vodafone no teto, com equipamento de apoio no logradouro), 26º (na parte e no sentido em que o Réu remeteu à Autora cópia da carta remetida à inquilina a conceder-lhe prazo para exercício do direito de preferência ou lhe tenha dado conhecimento do seu teor integral não obstante ter transmitido que a carta para exercício da preferência tinha sido enviada), 44º (que em reunião ocorrida em 30 de Junho de 2021, o Senhor -- afirmou que teria uma ação judicial pronta a exigir da Ré 3 milhões de euros devido a quebra de contrato e quando o ilustre Dr. -- o interpelou que o direito de preferência tinha sido discutido pessoalmente por ele e pelo Sr. --, o mesmo sem responder, levantou-se e foi embora), 177º (que o processo tem causado grande ansiedade no Réu), e 180º (que o Réu não tem conseguindo descansar, dormir, vivendo em constante ansiedade com o assunto) da contestação.
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Os restantes artigos não mencionados foram considerados repetitivos, conclusivos, vagos, sem relevância para a causa ou contendo matéria de direito.
-- III. Objeto do recurso: III.I. Recurso da decisão de facto: - Avaliação da admissibilidade da impugnação da matéria de facto apresentar:
A fim de avaliar tal admissibilidade, importa começar por considerar o enunciado legal da questão.
De acordo com o que dispõe o art.º 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil – CPC, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão proferida se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Essa alteração decorre de um pedido da parte, vinculado ao cumprimento dos requisitos restritivamente definidos pelo art.º 640.º do CPC - o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão (...) diversa (...) e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
A este propósito se tem referido a existência de um triplo ónus: Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento; Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas (Assim Acórdão desta Relação de Lisboa de 23/5/24, Susana Gonçalves, dgsi.pt).
A terceira destas exigências legais deve ser matizada pela doutrina estabelecida pelo acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2023 (Diário da República, I série, 14/11/2023) que, estabeleceu como critério decisório referencial a desnecessidade de indicação da decisão alternativa expressa nas conclusões – (jurisprudência uniformizada da seguinte forma: - nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações).
A invocação deve, por outro lado, ter um nível mínimo de precisão que permite considerar que ultrapassa o limiar de qualificação como verdadeira impugnação (como referido no acórdão desta Relação de 23/3/2017, -- Martins, ecli.pt -faltando indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração é pretendida e o sentido e termos dessa alteração, não haverá sequer impugnação da decisão da matéria de facto).
Estabelecido este quadro de referência, entende-se que foram suficientemente especificados os factos a alterar e os meios de prova em que o pedido de alteração assenta e, nessa medida, aprecia-se a impugnação suscitada.
-- - Apreciação da impugnação:
Ressaltando de forma sintética o pedido de reavaliação da decisão de facto, este assenta numa única pretensão – alteração do seu sentido quanto ao assentimento da autora (na pessoa do seu legal representante) na dação de preferência na venda do prédio a um terceiro.
Esta pretensão desdobra-se, em termos mais específicos, em três questões:
a) Dar como não provado o facto n.º 9 do elenco dos provados (atendendo a que não se ia fazer cessar o arrendamento do rés do chão em que era arrendatária a sociedade --, a advogada da Autora manifestou que era melhor, à cautela, conceder-lhe o direito de preferência, o que foi transmitido ao gerente da Autora pelo seu intérprete, tendo todos acordado que o Réu enviaria uma carta a tal arrendatária concedendo-lhe prazo para exercício do direito de preferência (arts. 9º, 11º e 13º da contestação);
b) Dar como provado, ao contrário do decidido, que foi o mandatário do Réu que insistiu no envio de uma carta à inquilina para exercício do direito de preferência;
c) Dar como provado que a Autora nunca concordou com o envio de uma carta à inquilina para exercício do direito de preferência.
Para o suportar invoca apenas trechos do depoimento das testemunhas - -, - - e - --.
Ressalta-se, a título prévio, que em nenhum momento das suas alegações, a recorrente indica alguma prova que sustente a sua versão factual e, nessa medida, a sua posição é sustentada apenas na desvalorização da prova produzida (e favoravelmente valorada pelo tribunal) que declarou em sentido diverso.
Não o indica quanto aos testemunhos que carreia como fundamentos impugnatórios e não o faz também relativamente a qualquer outra prova, v.g. documental (relativa a comunicações mantidas entre as partes ou com o terceiro preferente).
Nessa parte (prova documental), não o especificando como meio de prova de suporte à impugnação, a recorrente segue a mesma linha argumentativa de desvalorização do juízo decisório a quo, ainda que, neste caso, a apresente de outro modo, seja a nível puramente jurídico (e, portanto, não factual) – ainda que tenha sido dada preferência, não tinha esse direito, seja fazendo uma simples interpretação do teor do texto – a carta ter sido enviada apenas para "perguntar perguntar à sociedade DJR se pretendia exercer tal direito".
A sustentação da impugnação apresenta-se, neste contexto e logo numa primeira análise, assente em bases muito débeis.
Foi formulado um juízo judicial de avaliação de prova com base num acervo probatório que, em termos literais. se alinha com o sentido do decidido (esta literalidade será hoc sensu, aferindo-se ao teor de documentos e ao teor do declarado por testemunhas).
A recorrente, não infirmando esta convergência entre o declarado e o dado por provado e, pelo contrário, indicando como fundamento de impugnação essa mesma prova e não qualquer outra de sentido diverso, pretende que, em sede recursória, seja retirada conclusão oposta (ou, pelo menos, diversa).
Tal conclusão, nestes termos, apenas poderia assentar numa completa desvalorização do teor do declarado pelas testemunhas, assim retirando sustentação aos juízos e inferências decisórias do tribunal a quo e, na medida em que não é indicada qualquer prova de sentido contrário, estabelecer uma decisão factual diversa assente na distribuição do ónus da prova.
As considerações anteriores reforçam a avaliação inicial de fragilidade desta impugnação, na medida em que, se relativamente à pretensão de alteração de um facto provado para não provado, tal juízo, assente apenas no ónus da prova, poderá ter (em abstrato) alguma sustentação, já o inverso se afigura ainda mais longíquo, traduzindo uma pretensão de prova de um facto sem um meio de prova que o suporte (ainda que, nesta parte, também se poderá, in extremis, procurar algum aproveitamento da impugnação, fazendo uma verdadeira sanação do pedido feito).
É esse percurso que se fará de seguida e, portanto, voltando ao ponto de base, independentemente da apresentação ou do desdobramento feito pela parte, a reavaliação da decisão é faz-se relativamente a uma singular questão: – deu a autora, ou não, acordo para que fosse dada preferência na venda a terceiro?
O tribunal recorrido declarou que sim e é esta conclusão de facto que a recorrente pretende infirmar.
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A sentença recorrida motiva-se, quanto a esta questão, desta forma: A matéria vertida nos pontos 3 a 9 (relativa à colocação à venda do imóvel através de imobiliária, às informações prestadas à Autora e à reunião havida em Março de 2021 e seus intervenientes) resulta dos depoimentos prestados por - -, consultora imobiliária na -- (declarou que o prédio estava a venda a pedido do Réu, e foram abordados pelo legal representada da Autora “o senhor chinês”, ocorreram várias conversas, o negócio era complexo, em Fevereiro ou Março de 2021 tiveram uma reunião em que estiveram presentes, a própria, o seu colega -, a --, também da --, o Dr. --, “um tradutor do senhor chinês”, o Sr. --, e a sua advogada; declarou que havia questões com direitos de preferência dos inquilinos do prédio, tendo a advogada do Sr. -- referido “convém pedir os direitos de preferência para não termos problemas depois”, nunca o Sr. -- ou a advogada manifestaram desacordo quanto aos direitos de preferência tanto que “o contrato-promessa fala nisso”, declarou que havia mais pessoas [referindo-se aos outros arrendatários] que já não tinham nada a pedir porque tinham assinado acordos de indemnização, referiu-se à existência de opiniões diferentes sobre a preferência mas que o advogado do Sr. -- disse que “pelo sim pelo não era melhor pedir o direito de preferência”, ninguém estava à espera que o “Sr. Indiano” [o arrendatário do rés-do-chão cuja sociedade acabou por exercer a preferência], o fizesse até porque já tinha abordado o Réu para adquirir o prédio por um valor mais baixo); e - -, angariador imobiliário na -- (declarou que o Réu queria vender um prédio em Lisboa que não estava devoluto, pois havia andares ocupados, depois de uma reunião muito preliminar, foi feita uma reunião onde se discutiram os “direitos de preferência” na qual estiveram presentes o próprio, O Sr. --, que era “intermediário ou tradutor” do Sr. - [nome por que também era conhecido o legal representante da Autora segundo várias testemunhas], o Sr. - e advogado, o próprio, a -, o Dr. -- e a --, em que se falou em dar preferência ao arrendatário que não acreditava sair; disse ainda que antes desta reunião transmitiu ao Sr. -- que “a lei manda fazer os direitos de preferência” e que se alguém exercer a preferência, o dinheiro do sinal era devolvido, disse ainda que os contratos de arrendamento “foram dados” ao legal representante da Autora, declarou que na reunião os advogados discutiram os direitos de preferência, e o Sr. -- não mostrou desagrado ou desacordo em conceder o direito de preferência, e que os advogados das partes concordaram com o envio do direito de preferência). Destes depoimentos resultou absolutamente claro que os arrendamentos existentes no prédio foram dados a conhecer à Autora, e que esta se fez acompanhar e representar pela sua advogada que entendeu preferível conceder o direito de preferência ao arrendatário do rés-do-chão com quem, diversamente dos demais arrendatários, não havia qualquer acordo para a sua saída (ainda que subjectivamente pudesse entender não lhe assistia tal direito legalmente). Não resultou assim qualquer dúvida de que a Autora concordou com a notificação para exercício da preferência, o que efectivamente veio a ficar reflectido no contrato-promessa conforme resulta da sua cláusula sexta. Aliás, compreende-se que esta tenha sido a opção considerando que a existência ou não de preferência do arrendatário de parte não autonomizada do prédio relativamente à aquisição da totalidade do prédio não era absolutamente clara na lei. Estes depoimentos são coerentes com a própria troca de email’s junta à contestação como doc. nº 3, em que a Sra. Irina (que na realidade se chama --, conforme a própria declarou em audiência) questiona a advogada, Dra. -- sobre as consequências da preferência no registo (referindo-se obviamente ao registo provisório de aquisição e que consta na certidão permanente do imóvel junta à p.i.) e esta responde que assim seria. Embora de forma mais confusa, a testemunha - --, comerciante, tendo prestado serviços de tradução ao legal representante da Autora em 2020 e 202, acabou por em grande parte confirmar o teor daqueles testemunhos pois também deu conta da reunião aludida em que esteve presente, e declarou que o advogado do Réu disse que tinha que enviar uma carta ao indiano que era arrendatário do prédio embora achasse que este não tinha condições para comprar, reconheceu que o Sr. -- nunca disse que não aceitava o envio de tal carta ao arrendatário. O ponto 10 (o conhecimento da Autora da ocupação de outros andares de forma considerada ilícita, isto é, sem contrato de arrendamento reconhecido, e o compromisso de ser promovida a sua desocupação) resulta desde logo do considerando “D” do contrato-promessa celebrado, e foi referido de passagem pela testemunha - - que disse que o Sr. -- sabia muitas coisas do prédio, inclusive transmitiu-lhe que a firma do senhor indiano “não teria muito dinheiro”. (...) Na parte supra desc--, as testemunhas, principalmente as testemunhas - - e - -, mais distanciadas das partes e para quem era indiferente a quem seria vendido o imóvel dado que continuavam a receber a sua comissão, como referiram, declarando até que preferiram que o imóvel fosse vendido à Autora por não terem uma boa impressão do “Sr. Indiano”, revelaram-se credíveis e genuínas. A matéria de facto não provada alegada pela Autora e pela Ré resultou, na sua maior parte, da falta de prova convincente nesse sentido, e noutra parte da contraprova feita. Assim, foi feita prova de que a carta de 22/07/2021 obteve resposta, foi também feita prova no sentido de que a mandatária da Autora disse que era melhor conceder o direito de preferência ao inquilino, não obstante também o Réu ter nisso concordado, e pese embora o advogado do Réu até tivesse manifestado que não acreditar que o inquilino viesse a exercer a preferência (o que é coerente com o facto de tal ter acabado por constituir uma surpresa para todos como referiram os agentes da imobiliária), daí não decorre que tenha sido ele a insistir pela notificação. Muito menos se provou que a Autora nunca concordou com o envio de uma carta à inquilina para exercício do direito de preferência, pois provou-se o contrário
Resumindo os juízos do tribunal a quo estes podem ser assim apresentados:
a) As testemunhas - - e - - depuseram de forma valorada favoravelmente, denotando isenção, credibilidade e coerência (entre os respetivos testemunhos e entre estes e os documentos apresentados);
b) A testemunha - -- também depôs de forma valorada favoravelmente e no mesmo sentido das anteriores, ainda que este testemunho fosse mais confuso;
c) A prova feita alinha-se com juízos de experiência e não foi feita nenhuma contraprova da mesma.
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Sendo este o juízo a quo, considerando a forma como a impugnação foi sustentada, alarga-se a sua reavaliação à totalidade dos depoimentos indicados e até a outra prova apresentada e produzida que lhes possa conferir contexto ou enquadramento.
Partindo deste ponto de perspetiva, entende-se adequado começar por enquadrar a prova nos elementos objetivamente inquestionáveis (e inquestionados) – os documentos juntos aos autos.
A sua simples análise apriorística, à luz da experiência comum, não confere grande sustentação à tese de facto da recorrente.
Não tanto pelo teor do documento n.º 2 da petição inicial (cópia do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes e, mais especificamente, da sua cláusula 6), norma que estabelece uma necessidade genérica de dar preferência a quem a tenha.
Na medida em que tal cláusula não específica o(s) preferente(s) poderá tratar-se de uma simples referência pró-forma, não permitindo um juízo definitivo desta questão (a avaliação de o ser ou não ser já dependerá da consideração de outros elementos de prova e, neste momento, olha-se para a documentação a se).
O que releva, a este propósito, é a sequência de comunicações esc--s mantidas entre as partes.
Assim, sobretudo o documento n.º 4 da contestação (cópia de carta registada, datada de 12 de maio dirigida pelo advogado do falecido réu, em seu nome, a -- (legal representante da autora), com conhecimento à Dr.ª --, que alude a um e-mailenviado anteriormente e junta cópia da carta enviada pelo preferente (comunicando o exercício desse direito).
Diga-se que a autora não impugna este documento, o seu teor, recebimento ou conhecimento e não introduz qualquer contexto, designadamente no que se refere a invocadas comunicações anteriores (note-se que consta da cláusula 10.ª do contrato-promessa que todas as comunicações entre as partes devem ser feitas por escrito, sendo as que se destinem ao promitente-vendedor dirigidas ao Dr. -- e as dirigidas ao promitente-comprador dirigidas ao Sr. -- com conhecimento à Dra. -- – diga-se também, a latere, que esta expressa exigência contratual de recebimento pessoal de todas as comunicações, ainda que com conhecimento da advogada, retira consistência a qualquer argumentação que pudesse assentar no afastamento pessoal da autora do processo negocial).
Neste contexto, a resposta enviada a tal missiva (documento n.º 5 da contestação), resposta assinada por -- na qualidade de promitente-comprador, ao dizer, em termos simples, que não aceita a preferência devido ao acórdão TC 299/2020 induz, em termos de experiência, a conclusão que qualquer outra argumentação que suportasse a recusa não existia nesse momento ou, dizendo de outro modo, caso inexistisse prévio acordo quanto ao envio de missiva, a reposta naturalmente traduziria essa situação, particularmente num contrato de valor especialmente elevado e com um (assumido) longo processo negocial.
A omissão de referência a qualquer surpresa na comunicação, ou a qualquer violação do que fora acordado induz claramente a conclusão (extraída apenas dos documentos, repete-se, i.e., sem considerar qualquer testemunho), que a questão tinha sido já abordada entre as partes e que foi estabelecido um acordo sobre a questão, traduzindo a resposta um novo argumento para forçar a conclusão do contrato (o referido acórdão do Tribunal Constitucional com força obrigatória global).
Esta conclusão sai claramente reforçada do teor das comunicações de correio eletrónico que fazem documento n.º 3 da contestação.
Quer isto dizer que, ainda que a prova documental não seja absolutamente conclusiva, permite estabelecer, de forma muito clara, que o tema da preferência tinha sido tratado entre as partes e que, antes da missiva de resposta que faz documento n.º 5, não foi objeto de qualquer divergência prévia anterior.
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De que forma a preferência foi tratada e, principalmente, se esse tratamento traduziu algum acordo é algo, todavia, que a mera análise dos documentos não permite concluir e, portanto, a resposta teve que ser dada pela prova testemunhal.
Chega-se, assim, à avaliação desta prova, sustento único da impugnação apresentada.
Desconsiderando, por agora, a supra referida fragilidade (traduzida na não indicação de um único elemento de prova que, pelo menos no seu sentido literal, aponte no sentido pretendido afirmar pela recorrente) e continuando a apontar apenas o quadro factual pacificamente aceite entre as partes, ter-se-á:
a) Um processo negocial prolongado no tempo;
b) Um processo negocial em que o representante da autora, de nome --, participou pessoalmente, designadamente assistindo às reuniões que ocorreram, sendo que não tinha entendimento da língua portuguesa;
c) Um processo negocial em que esse representante da autora se fez sempre acompanhar de uma advogada portuguesa, de nome -- e de uma pessoa cujos serviços contratou para traduzir o que se ia passando, - --;
d) Um contrato-promessa onde consta que todas as comunicações ao promitente-comprador devem ser dirigidas a este representante legal, por exigência própria (com conhecimento à sua advogada portuguesa).
Repetindo uma ideia há pouco referida de passagem, este contexto não é, manifestamente, o de um legal representante distante e desconhecedor dos trâmites negociais.
Pelo contrário é o de um investidor ativamente participativo no processo negocial que encontrou e estabeleceu formas muitos concretas e eficazes de ultrapassar a sua limitação linguística e de, em todos os momentos, poder acompanhar tudo o que de relevante se fosse passando na condução dos seus interesses.
Chegando a este ponto, é altura de olhar diretamente o teor da prova testemunhal produzida.
Antes de o fazer, uma última referência à prova testemunhal não produzida e, particularmente, ao não testemunho da advogada --, arrolada nos autos, e que, em sede de audiência final, manifestou que a matéria em causa está coberta por sigilo profissional, não objeto de qualquer pedido de levantamento.
Esta testemunha, houvesse ou não matéria que permitisse uma invocação legítima de recusa a depor, a verdade é que não o fez e, portanto, aquela que seria a pessoa que melhor poderia informar a posição jurídica do legal representante da autora sobre a preferência não consta do elenco dos meios de prova efetivamente produzidos nos autos.
Sobram as testemunhas - -, - - e - --.
Não deixa de ser relevante a circunstância de a recorrente pretender sustentar a sua impugnação sobretudo nas duas primeiras, agentes de entidade de mediação imobiliária (agência --), fazendo umas meras referências muito breves à testemunha mais próxima do legal representante da autora e que o acompanhou, como tradutor e amigo, em todo o processo negocial e nas reuniões mais importantes.
Esta pessoa (- --)foi a primeira a depor e, analisado o seu depoimento, não se consegue sequer concordar com a referência feita na fundamentação da decisão recorrida a um depoimento algo confuso.
O seu testemunho, integralmente analisado, foi absolutamente claro, feito num português fluente, com pronúncia que denota uma diferente língua materna (chinesa), com pontuais erros de sintaxe na construção de frases e também (muito) pontuais pedidos de repetição de pergunta por não ter compreendido o seu teor (por ter sido dito muito rapidamente).
Foi claro ao estabelecer uma clara proximidade com o legal representante da autora, identificando-se como amigo e pessoa que si contratada para alguns serviços de tradução, sem qualquer relação com o réu ou com as outras testemunhas.
O seu depoimento afigura-se espontâneo e sincero e, a ter algum desvio de isenção, seria a favor do "-" (alcunha dada a --, legal representante da autora).
Teve algumas dificuldades de memória a situar temporalmente o negócio, por ser há anos, mas conseguiu enquadrá-lo na altura da Covid.
A propósito da reunião principal em que teria sido discutida a preferência o seu testemunho foi claro.
Disse que esteve em tal encontro reunião a acompanhar o --, como uma advogada, e um advogado do outro lado, que se chamava -- e os senhores da -- (um senhor italiano, - e uma senhora que andava sempre com ele)
Perguntado expressamente sobre o que foi dito nessa reunião a propósito da preferência, confirma que -- perguntou pelo direito de preferência nessa reunião (11`20´´), precisando depois (11,36) que o advogado do-- estava a dizer que tem que enviar uma carta para "as pessoas que estão a viver ali dentro e a Câmara" e acho que o advogado do Sr.-- estava a dizer que tem que mandar uma carta ao sr. Indiano, mas o nome dele não sei. Ele era arrendatário do prédio, mas qual o andar já não sei (12).
Especificou ainda mais (12,30), dizendo que a preferência seria uma carta a perguntar se tem interesse de compra do prédio e que o advogado repetiu várias vezes. Ele pediu mesmo para repetir para -.
Também fica claro que isso foi dito como algo que não poria em causa o negócio - o Sr. Indiano não tem condições para comprar. Fica descansado. É a lei que obriga.
Ou seja, é cristalino deste depoimento que a informação de preferência foi abordada diretamente na reunião e o legal representante da autora sabia da mesma nesse momento, ainda que, de acordo com esta testemunha, não tenha declarado nada a propósito - o -- não disse muita coisa. Ele ficou a falar com a advogada. Não me lembro que ele disse alguma coisa. Os srs. da -- não disseram muito coisa. Disseram que é uma coisa que tem que fazer (leia-se a preferência).
Esta testemunha declarou ainda, de forma que torna clara a aceitação do legal representante da autora na comunicação da preferência ao aludir a factos que permitem perceber que a sua participação do processo negocial não se encerrou com a tradução da reunião, tendo-lhe sido solicitado mais tarde que diligenciasse por saber como estava o negócio - depois da reunião teve que perguntar se já tinha exercido preferência, porque passou muito tempo (21,55) e que esse contacto foi feito porque Sr. -- perguntou-me como ficou o processo e eu disse OK, eu vou perguntar (22,05). Mais esclareceu (22.50) que Sr. -- só me disse pergunta a eles como ficou o processo(...)o processo de enviar carta. O Sr. -- demorou muito tempo a enviar a carta.
Em sede de instâncias realizadas em audiência final foram depois feitas diversas perguntas repetidas, ou estruturadas de modo diverso (o que permitirá compreender a alusão feita na motivação a alguma confusão), mas o sentido do depoimento manteve-se.
Quer isto dizer que a pessoa mais próxima (pessoal e linguisticamente) do legal representante da autora aponta, de forma direta e inequívoca, para um conhecimento da necessidade de dar preferência especificamente ao "sr. indiano" e a uma aceitação dessa realidade pelo legal representante da autora (também clara, ainda que não expressada na reunião, mas decorrente do seu comportamento no decurso desta e, inequivocamente, nos contactos posteriores).
Sendo esta testemunha a que tinha a posição mais próxima do recorrente e, portanto a que poderia melhor sustentar a sua tese (a despeito, repete-se uma vez mais, de a recorrente não ter indicado nenhuma prova de sentido contrário), impõe-se agora avaliar as declarações dos agentes --, testemunhas com as quais a recorrente pretende estabelecer a conclusão contrária à fixada na decisão.
Deve começar-se por dizer, como bem salientado na decisão recorrida, que ambas estas testemunhas (- - e - -) mostraram estar numa posição de efetiva isenção, no que ao seu interesse principal no negócio diz respeito, ou seja, ao recebimento de comissão.
Diz expressamente - - que eu não tinha qualquer interesse económico a vender a um lado ou ao outro (26.34), tendo anteriormente contextualizado que foi a maior transação da minha agência (4).
Reforçou - - que o próprio vendedor, Sr.--, não tinhanenhum interesse em fazer negócio com o Sr. - (...)absolutamente não (10:30).
O que declararam nesta parte, e na globalidade do depoimento, foi feito de forma clara e convicta, tendo ambos um português fluente, com alguma acentuação própria da língua materna (italiana) e com recurso a palavras desta língua no discurso (ou erros de português por apropriação de uma palavra italiana próxima).
Além deste desinteresse pessoal no desfecho económico, o que se retira das seus depoimentos foi precisamente uma propensão destas testemunhas de favorecerem a posição da autora, que decorreria, desde logo, de simples juízos de experiência comum (foi o legal representante da autora que se apresentou na agência como potencial comprador).
Atente-se que, em nenhum momento dos autos, sequer a autora alude a uma qualquer tentativa de inflacionamento do preço de venda (estratégia que, por mera hipótese de raciocínio, poderia envolver a posição de arrendatário preferente) e, portanto, o que se infere (e, neste ponto os autos bem documentam) é que a posição do preferente constituiria um verdadeiro entrave a um desenvolvimento ágil e célere do negócio e, nessa medida, algo de contrário aos interesses de qualquer mediador imobiliário.
Além deste juízo geral, ambas as testemunhas declararam expressamente, aduzindo argumentos concretos, ter preferido que o negócio se tivesse feito com a autora.
Assim, a testemunha - - disse (7,55) eu não queria dar os direitos de preferência ao inquilino, sr. Indiano, tentou-nos fazer ficar mal em conversas com o sr.--. Fez acusações contra nós e, mais adiante (20,15) o Sr. indiano fez comentários sobre a nossa profissionalidade (sic) e eu não gostei nada disso.
Disse também (8.35) Falei com advogado da agência e com Dr. --. Esperava que não houvesse direitos de preferência, que (38.10) na minha experiência de 7 anos ninguém exerce os direitos de preferência. A minha comissão está sempre salvaguardada. Não me preocupo muito com isso (direitos de preferência), contextualizando (26.34) eu não tinha qualquer interesse económico a vender a um lado ou ao outro (...) mas preferia vender ao sr. -- (27). Não era uma questão profissional, era uma questão minha, emocional.
Deste depoimento decorre diretamente o oposto do pretendido afirmar pela recorrente e até alguma antipatia para com o preferente, que esta testemunha colocou a nível emocional, mas a testemunha - - colocou, no mesmo sentido, num nível bem mais concreto dizendo (10:30) que o sr.-- não tinha nenhum interesse em fazer negócio com o Sr. -. Absolutamente não. - disse que saía e depois disse que não. (...) Tentou fazer contrato fora de nós (da --) (...) ofereceu ao sr.-- 1 milhão e 600.000 mil euros
À frente (11.36) disse o Sr.-- é uma pessoa seríssima (com isso também asseverando que nunca esteve disponível para qualquer negócio "paralelo").
Ainda no seu depoimento (48) a propósito dos contactos posteriores realizados pela testemunha - -- disse que ele diz que quer comprar por 2 milhões, de onde se infere que o preferente, após ser confrontado com a preferência, teria manifestado intenção inicial de comprar, mas por preço inferior (com isso pretendendo também informar a autora do ponto da situação do negócio, numa perspetiva que já não seria completamente tranquilizadora para o sucesso do mesmo – o "sr. indiano" afinal sempre teria alguma capacidade económica, ao contrário do que pensavam – mas, ao mesmo tempo, ainda dava alguma margem de possibilidade à sua conclusão – o "sr. indiano" não tinha oferecido o mesmo valor).
De global, o que resulta claro e absolutamente inequívoco, é a ausência de qualquer interesse destas testemunhas em favorecer a posição do preferente e, pelo contrário, o que se infere é o oposto.
Assim, ao contrário do alegado pela recorrente, não se vislumbra qualquer sombra capaz de afetar a credibilidade destas testemunhas e do que declararam em juízo.
Diga-se, por outro lado, que fica claro da prova gravada que foi a recorrente, no seu interrogatório, que, pela repetição de perguntas, pelo seu teor e orientação que tentou sugerir respostas (que, ainda assim, não obteve) e a intervenção do Tribunal a quo no decurso da audiência não foi, como diz a recorrente, sugestiva.
Pelo contrário, tratou-se de intervenções orientadas a garantir a veracidade e espontaneidade do testemunho, ultrapassando dúvidas que se iam gerando.
Estabelecido que se deve concluir, ao contrário do invocado, que estas testemunhas depuseram de forma credível, porque desinteressada, objetiva, coerente (entre si e com a demais prova) e convicta, cede pela base a argumentação da recorrida, confirmando-se a fragilidade que se via ab initio.
Esta conclusão, que não careceria sequer de outras considerações adjuvantes, merece ainda ser prosseguida dado que existem diversas passagens dos testemunhos que, não só a reforçam como permitem esclarecer alguns (últimos e eventuais) elementos de dúvida que pudessem subsistir.
Assim, ainda a propósito da preferência e do conhecimento das pessoas que participaram na reunião principal em nome da recorrente a recorrente, - - disse expressamente (8.55) que se lembra bem advogada do Sr. -- dizer na reunião para dar a preferência, para fazer as coisas bem feitas e não ter problemas depois e que (10,10) em nenhum momento o sr. --, a advogada ou intérprete manifestaram algum desacordo sobre a preferência.
Que nessa reunião um dos pontos dos trabalhos aquela reunião era se pedimos os direitos de preferência (17.25) e que um dos objetivos daquela reunião era perceber se havia lugar ou não aos direitos de preferência (22.36).
Por outro lado, é claro que essa preferência era do sr. indiano, porque todos os outros (inquilinos) tinham assinado cartas de acordo de indemnização (17.49).
Disse ainda algo que estabelece até mais que um simples conhecimento e assentimento do legal representante da autora à comunicação de preferência e antes uma verdadeira iniciativa (ou insistência) para que tal fosse feito, a partir da própria autora.
Assim, disse (16.24) o advogado do sr.-- estava na reunião e disse que se a advogada do sr. Chinês quer pedir a preferência pedia-se e não há nenhum problema (o que, diga-se, também é coerente com um juízo de experiência comum de o exercício de um direito de preferência não ser algo especialmente vantajoso para um vendedor, uma vez que não altera os seus proveitos no negócio e, tendencialmente, atrasa e complexifica o mesmo).
Aduziu, quanto ao teor da cláusula contratual de preferência (10.50) que a tradução dos contratos é linha por linha e conferiu alguma explicação do contexto do negócio ao dizer (18.10) que a proposta inicial do Sr. -- era comprar com todos os inquilinos desbloqueados. Como o sr. Indiano não desbloqueou, o Sr. -- disse – "então eu compro com o sr. Indiano e depois trato disso", sendo que o Sr. -- sabia perfeitamente que existia este sr. indiano (18.33) e reiterou que a advogada (do Sr. --) disse claramente que concordava (com a preferência) – 19.
Também credivelmente declarou a propósito do envio de carta de preferência (21.10) que não sei se foi enviada carta ao sr. indiano.
Quanto à dinâmica da reunião, de forma também compatível com juízos de experiência (desde logo com o desconhecimento da língua portuguesa do legal representante da autora e com o distanciamento físico em que decorreu a reunião, devido às limitações impostas pela situação pandémica) disse esta testemunha (40.40) não sei exatamente o que foi dito ao Sr. -- na reunião. Havia muitas pessoas. Muitos interlocutores. Houve uma altura em que eles (as pessoas de nacionalidade chinesa presentes na reunião e a advogada do Sr. --) pegaram no contrato, comunicaram baixinho entre eles e depois falaram para nós. Foi a advogada do sr. -- que comunicou. Acrescentando (41.18) que a advogada disse para dar os direitos de preferência porque não queria ter problemas.
Também a testemunha -- aduziu alguns elementos relevantes à avaliação do iter dos eventos em causa.
Assim, começou por contextualizar a situação do prédio quando o legal representante da autora se interessou pelo negócio, dizendo (5) que sabia que o prédio tinha alguns "problemas". Não estava devoluto e estavam a discutir indemnizações.
Na sequência dos contactos iniciais, aduz um elemento muito relevante ao dizer, credivelmente, que entregaram o contrato de arrendamento do sr. - com o sr.-- à advogada do Sr. --. E que era um contrato antigo (9.30).
Quer isto dizer que se pode concluir uma outra coisa, também perfeitamente alinhada com juízos de experiência – alguém que pretende fazer um investimento vultuoso na aquisição de um prédio realiza todas as diligências necessárias a perceber a verdadeira situação do mesmo, material e jurídica.
Se mais não fosse, esta declaração (que a recorrente não questiona) seria suficiente para pôr em causa toda a argumentação da recorrente.
Numa outra passagem relevante, declarou (14.20), também com uma espontaneidade que não suscita dúvidas que a, dada altura, o Sr. -- (intérprete e amigo do Sr. --) ligou (chamou) a dizer que tinha investigado o Sr. - e ele não tinha condições de pagar (algo que é também coerente com as declarações dessa outra testemunha (- --) que disse que era com o - que falava a saber do negócio e que não era só intérprete, mas amigo e fazia "serviços" ao legal representante da autora).
Expressamente acerca da reunião em causa disse (21.50), coerentemente com o que disse - - que o direito de preferência era um dos pontos da reunião e (22:24) o meu conhecimento e a minha perceção é que os advogados já sabiam e já tinham falado da preferência, sendo que estavam na reunião o Dr. -- -- e a Dra. -- (23.30).
Outro elemento importante que referiu foi relativo a um contacto que a testemunha - -- teria tido consigo, antes de tal reunião (não podendo senão depreender-se que o foi a pedido de --) dizendo que falou uns dias antes com -- a dizer o que era a preferência e como aquilo funcionava (24.45).
O tema da preferência foi discutido na reunião (25.21), mas esta tinha muitos pontos (30) - entrada, prazo, as pessoas que ocupavam, o pagamento, a escritura e que materialmente foi elaborada uma lista de pontos para a reunião, que não foi feita por si e provavelmente foram os advogados.
Outras declarações desta testemunha permitem compreender que o preferente, referido com o sr. -, ou o sr. indiano, tentou negociar diretamente com o réu (além da supra referida), mas que este era uma pessoa seríssima e nunca o aceitou.
O sr. indiano falou sempre diretamente com sr.-- (36.40). O advogado -- -- apresentou propostas de saída aos inquilinos, incluindo Sr. -. (...) Não sei que propostas, isso foi o advogado que tratou (37).
Que na reunião em causa, também coerentemente com a experiência comum e com o que disseram as outras testemunhas disse que foi advogada do sr. "-" (--) que disse que sim (a pôr a preferência) – 38.20.
--
Em conclusão do que antes foi dito, pode dizer-se que a fragilidade com que inicialmente se apresentava a impugnação foi amplamente confirmada, não merecendo censura o que foi decidido pelo tribunal a quo.
É o que se decide, improcedendo na íntegra a impugnação e mantendo-se a decisão de facto. --
--- III.II. Recurso de direito:
Mantida a decisão de facto, subsistem para apreciação as questões de direito que da alteração não dependessem.
A única questão que se pode entender como subsistente é a invocação de inexistência da preferência dada ao arrendatário e, em que medida, tal possa configurar um incumprimento definitivo do contrato-promessa.
Situando a questão, face à decisão relativa à impugnação e conforme estabelecido na sentença (que se manteve incólume, face ao já decidido), a autora teve oportuno conhecimento da declaração de existência de um preferente e aceitou que este fosse interpelado para exercer tal direito na compra.
A margem de avaliação que subsiste é, portanto, muito apertada juridicamente, delimitada a jusante pela invocação de abuso de direito (que a ré apresentou), abuso esse que seria traduzido, numa expressão imprecisa, na invocação de um direito que expressamente se declarara não pretender exercer anteriormente (questão que se apreciará apenas se necessário), e delimitado a montante por algo que poderia ser descrito como a irrelevância jurídica da declaração de aceitação do promitente-vendedor.
Quer isto dizer, traduzindo em termos simples, o argumento jurídico que pode subsistir em favor da posição recorrente será, a este nível, algo como: - Apesar de ter declarado aceitar na comunicação de preferência, uma vez que o direito de preferência não existia substantivamente no caso e na medida em que o promitente-vendedor o concedeu, fê-lo indevidamente, algo que apenas a si é imputável e reconduz-se a um incumprimento definitivo (e expressamente declarado) da promessa celebrada.
Tem esta linha de argumentação alguma sustentação?
Essa é a questão subsistente.
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Na sua apreciação, por ser especialmente clara a decisão a quo reproduzem-se os seus fundamentos pertinentes: Conforme resulta dos factos provados, antes da celebração do contrato-promessa entre as partes, cujo o incumprimento é invocado pela Autora para sustentar o seu pedido (no sentido de obter o valor correspondente ao dobro do sinal), as partes reuniram e debateram vários pontos do contrato, tendo o Réu sido representado pelo seu advogado tal como a Autora, apesar de também o gerente ter estado presente nas reuniões. Efetivamente, antes da assinatura do contrato-promessa, a Autora foi informada de que o prédio estava arrendado no rés do chão, primeiro e segundo andar. Numa das reuniões os colaboradores da -- que intermediavam a venda informaram o gerente da Autora, através do seu intérprete e a sua advogada, que, com exceção do rés-do-chão, existiam acordos com indemnizações com os outros arrendatários tendo em vista a sua saída. Ficou provado que, atendendo a que não se ia fazer cessar o arrendamento do rés do chão, a advogada da Autora manifestou que era melhor, à cautela, conceder-lhe o direito de preferência, o que foi transmitido ao gerente da Autora pelo seu intérprete, tendo todos acordado que seria enviada uma carta a tal arrendatário concedendo-lhe prazo para exercício do direito de preferência. Ainda antes da assinatura do contrato-promessa, ocorreu uma outra reunião com a presença do legal representante da Autora e sua intérprete, bem como a sua advogada, na qual se voltou a falar no direito de preferência e na carta que seria enviada ao inquilino para o efeito. O facto de então o advogado do Réu ter comentado que o inquilino não tinha condições para adquirir o prédio não passava de uma crença sua, de modo algum coloca em causa o acordo no sentido de ser conferido tal direito de preferência. Aliás, por isso mesmo o próprio contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes previa na sua Cláusula Sexta que o Réu se obrigava, previamente à celebração do contrato prometido, a realizar as notificações que fossem necessárias às entidades que fossem ou pudessem ser detentoras do direito de preferência (nº 1). Como é óbvio, não se colocando a questão da preferência relativamente a qualquer outro arrendatário face aos acordos alcançadas, só estava verdadeiramente em causa a notificação a dirigir ao arrendatário do rés-do-chão. Não cabe aqui qualquer discussão sobre se o inquilino em arrendamento não habitacional de parte não autonomizada de prédio não constituído em regime de propriedade horizontal gozava ou não de direito de preferência na alienação do prédio. Constitui entendimento unânime do Supremo Tribunal de Justiça que a lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretizou o ato de transmissão, por o direito legal de preferência configurar uma factualidade que integra o conteúdo do direito do arrendatário que apenas se transforma em direito potestativo quando o senhorio não lhe ofereceu a preferência. Embora a nosso ver o disposto no art. 1091º al. a) do Cód. Civil, na redação vigente à data dos factos (note-se que a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, operada pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de 18 de Setembro, refere-se ao arrendamento para habitação mas a sua argumentação é aplicável ao arrendamento não habitacional) deva ser interpretado no sentido de só atribuir ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio ou fração autónoma dele, quando o arrendamento incida sobre a totalidade deste prédio ou fração autónoma dele, não contemplando os casos em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal, o que releva, porque disso não estavam impedidas, é que as partes entenderam que era mais adequado, mais cauteloso, conceder previamente esse direito ao inquilino ao invés de se confrontarem com uma ação de preferência a posteriori. Não houve nomeadamente qualquer atuação mal intencionada do Réu no sentido de conferir um direito de preferência que sabia não existir ou qualquer intenção de beneficiar indevidamente o arrendatário. Pelo contrário, tudo indica que o Réu (e provavelmente a Autora) estaria subjetivamente convencido de que o arrendatário não iria exercer uma tal faculdade por não ter condições económicas para tanto. E também não resulta que o Réu até soubesse que o arrendatário iria exercer a preferência e tivesse convencido a Autora de que tal não sucederia. Sublinha-se que em todo o processo pré-negocial e negocial a Autora esteve assistida por advogada e intérprete. Mesmo não dominando a língua e a legislação portuguesa não se tratava de uma parte mais fraca ou desprotegida. A notificação que iria ser feita ao inquilino do rés-do-chão para exercício do direito de preferência era assim do inteiro conhecimento da Autora e mereceu e sua concordância, já para não dizer incentivo. Não se trata de algo com que a Autora tivesse sido surpreendida. Por conseguinte, a partir do momento em que a Autora aceitou que tal notificação ocorresse aceitou o risco inerente de a preferência vir a ser exercida, como veio. Ficou provado que a Autora efetuou a notificação ao arrendatário em data anterior a 22 de Abril de 2021 e este exerceu a preferência por carta datada de 22 de Abril de 2021, o que foi transmitido à Autora pouco tempo depois por carta datada de 07/05/2021. Nos termos do nº 2 da Cláusula Sexta do CPCV celebrado entre as partes, foi acordado que no caso do exercício do direito de preferência, o Réu obrigava-se a informar de imediato desse facto a Autora e a devolver-lhe em singelo no prazo máximo de 10 dias úteis, a contar do exercício efetivo desse direito os montantes pagos por esta a título de preço, ou seja, o valor do sinal de €500.00,00, o que foi feito. Ficou também expressamente previsto no nº 3 da mesma Cláusula que neste caso, o contrato-promessa considerar-se-ia resolvido, não tendo as partes direito a receber, uma da outra, qualquer outro pagamento, compensação ou indemnização, após restituição do valor sinal. Sendo este o clausulado do CPCV, a não entrega de qualquer outro montante pelo Réu à Autora, designadamente o dobro do sinal, não consubstancia sequer qualquer incumprimento do contrato-promessa, mas sim, uma atuação conforme ao aí acordado. O Réu informou a Autora da preferência exercida pelo arrendatário num curto espaço de tempo e devolveu prontamente o valor do sinal à Autora
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Resumindo o sentido dos fundamentos da decisão a quo, estes são:
a) Não existia, no caso, direito de preferência da arrendatária de uma parte do prédio objeto de promessa;
b) As partes decidiram consensualmente conferi-la;
c) Esse direito impede o invocado pela autora.
Vejamos.
Quanto à sustentação legal do direito de preferência de arrendatário comercial de espaço autónomo em prédio urbano não constituído em regime de propriedade horizontal, ou, em termos simples, do arrendatário de uma loja num prédio não dividido, a decisão recorrida alinha-se com a que parece ser a interpretação mais conforme à doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional de 16/7/2020 (acórdão n.º 299/2020, tribunalconstitucional.pt), que, declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro (por violação do n.º 1 do artigo 62.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, da Constituição).
Sintetizando os fundamentos da decisão, foi considerado que a norma em causa limitava desproporcionalmente o direito de propriedade privada do senhorio, pelo que seria violador do disposto no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição.
Não se afiguram, neste contexto, efetivamente razões que levem a considerar a existência de alguma diferença entre arrendamento para habitação e arrendamento comercial.
A asserção retirada pelo tribunal a quo parece, assim, a correta: - foi dada a oportunidade de exercício de preferência a quem não tinha, substantivamente, tal direito.
Avança a decisão recorrida a explicação, plausível, para que tal tenha sucedido – as partes na promessa criam que o arrendatário não teria possibilidade de a exercer.
Quer isto dizer que, nesse contexto, o próprio vendedor teria preferido concluir o negócio com a promitente-compradora, a aqui autora, e que a diligência realizada teria sido conduzida como cautela para não cometer alguma ilicitude.
É pressuposto desta conclusão a ignorância, de qualquer das partes, do teor da decisão do Tribunal Constitucional e, portanto, que a concessão de preferência não se impunha no caso.
Como qualificar a posição assumida pelas partes?
A primeira asserção que se torna evidente da circunstância, dada por provada, de ter havido um assentimento mútuo na dação de preferência, é que a não realização do contrato prometido não pode ser imputada exclusivamente ao promitente-vendedor.
A tese jurídica sustentada pela recorrente assenta na não realização do contrato prometido, que é um dado de facto, objetivamente estabelecido – o promitente vendedor obrigou-se a vender o imóvel e essa venda não se concretizou.
Na medida em que o obrigado pela promessa de venda é, como não poderia deixar de ser, o vendedor, a não realização do contrato prometido equivale, objetivamente, a uma não realização do negócio prometido e, consequentemente, fez impender sobre o obrigado o ónus de demonstrar que esse facto não decorre de culpa sua – cf. art.º 799.º n.º 1.
Assim qualificando a questão, parece relativamente linear concluir que, ante um assentimento do credor da promessa da necessidade de dar preferência na compra a um terceiro, que acabou por exercê-la, tal afasta a culpa que impendia sobre o promitente-vendedor face à não concretização do negócio definitivo.
Tal conclusão decorre, desde logo, do princípio geral de conclusão e execução dos negócios nos parâmetros da boa-fé - no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé – art.º 762.º n.º 2 do Código Civil (CC).
Nesta perspetiva, diga-se, o que seria violador da boa-fé seria esconder do promitente-comprador os contactos mantidos com o terceiro e até concluir o negócio sem nada dizer, caso o preferente viesse, por meio de ação autónoma, solicitar o exercício desse direito (viesse ou não tal a ser dado provimento a essa pretensão, a simples demanda judicial e os encargos inerentes poderiam fundar responsabilidade civil do promitente-vendedor).
A boa-fé na execução do contrato-promessa impunha que a questão da (eventual) preferência fosse apresentada ao promitente-comprador e, uma vez que ambos tivessem acordado na conveniência de o fazer, o ato correspondente deixará de ser imputável exclusivamente ao vendedor, passando a ser decorrente da vontade de ambos.
Esta circunstância poderá ser relevada como um simples afastamento da presunção de culpa, nesse caso afirmando que o regime especial de responsabilidade emergente do mecanismo do sinal não permite soluções intermédias de repartição de culpa e de responsabilidade e, portanto, o afastamento da presunção teria que operar globalmente. Ou, por outro lado, pode ser enquadrado como um incumprimento de um contrato-promessa imputável a ambos os promitentes, com igual e concorrente culpa, excluindo o reciprocamente os direitos indemnizatórios e dando lugar a um simples direito à devolução do sinal (neste sentido, acórdão STJ de 27/11/2018, Graça Amaral, dgsi,pt.).
Independentemente do enquadramento que se dê, uma vez que está assente nos autos que o accipiens restituiu voluntariamente o sinal entregue, não haverá lugar a qualquer outra compensação.
A um outro nível de apuramento de culpa, poderia argumentar-se que, sendo o vendedor o dador de preferência, é sobre este que impende um especial dever de conhecer as regras relativas à preferência e, nessa medida, o erro (quanto à existência de um dever legal de preferência) ser-lhe-ia especialmente imputável, devolvendo a culpa à sua esfera jurídica.
Entende-se que assim não é, num caso, como o presente, em que o direito de preferência não decorre diretamente do sentido literal e direto das normas relevantes.
A supra citada norma legal de preferência foi declarada inconstitucional por acórdão do Tribunal Constitucional (acórdão TC n.º 299/2020), mas apenas na medida que seja aplicada a arrendamentos para habitação.
Quer isto dizer que, mesmo que se acolha a doutrina desse aresto (até por maioria de razão), para os arrendamentos não habitacionais (a doutrina assenta numa restrição inadmissível da liberdade contratual e, portanto, não existirá razão substantiva para distinguir), a verdade é que a situação de preferência dos autos não está estabelecida com força geral.
Neste sentido, repescando o que foi dito acima, na medida em que existe uma margem de interpretação, e de dúvida, quanto ao sentido das regras relativas a preferência no caso, a boa-fé não apenas permitia, como até impunha, que o promitente-vendedor apresentasse tais dúvidas ao comprador e, portanto, ao haver uma convergência de ideias sobre a solução a dar, também o tal erro normativo (que, diga-se, não é inequívoco e absoluto) deixa de ser imputável apenas ao vendedor, passando a sê-lo a ambos.
Nesse sentido, em conclusão, se se olhar a est-- objetividade da não realização do contrato prometido pondo em perspetiva a obrigação que concretizar o negócio que impende sobre o promitente-vendedor, concluir-se-á que a venda a terceiro, neste contexto, não constitui um incumprimento culposo da promessa.
Perspetivando a matéria apurada desta forma, i.e., como est-- aferição de cumprimento ou incumprimento da obrigação de realizar o contrato definitivo, a conclusão a que se chega é que não existe falta culposa do promitente vendedor (considerando também o acima referido quanto a repartição de culpas).
Tal conclusão será suficiente para tirar sustentação à apelação.
O mesmo se dirá se se qualificar a situação como constitutiva de um acordo de vontades autónomo.
Na medida em que se possa encontrar uma proposta negocial, apresentada verbalmente pelo advogado do réu/recorrido, em nome deste, e verbalmente aceite pela autora/recorrente, por declaração também verbal da sua advogada, declarações negociais feitas em reunião em que estiveram presentes os próprios representados (e que, portanto, necessariamente assentiram no que aí foi dito, sendo que o respetivo teor teria sido traduzido, no momento, ao legal representante da recorrente), poder-se-á pensar num verdadeiro negócio jurídico autónomo.
Diz a propósito do surgimento do negócio Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, 5.ª ed., Almedina, 2021, p. 153) que ele pode ocorrer de imediato, através de um simples assentimento, semelhante aos que, permanentemente, ocorrem no dia-a-dia ou, pelo contrário, implicar atividades preparatórias muito complexas.
Na medida em que se encontre naquela negociação uma proposta e um assentimento poderíamos ter esse negócio autónomo.
Tal negócio traduziria, em simples, uma manifestação comum de vontade de dar preferência ao arrendatário, ante a dúvida sobre se tal preferência decorria diretamente da lei, como forma de salvaguardar a integridade do futuro contrato de qualquer vício que pudesse vir a enfermar.
Neste caso, dir-se-ia que as partes decidiram consensualmente conceder à terceira arrendatária a possibilidade de preferir no negócio.
Diga-se, em todo o caso e antes de avançar, que este entendimento não é unívoco, podendo interpretar-se as declarações das partes (pela boca dos respetivos advogados, na reunião mantida) apenas como etapas de um processo negocial destinado a concluir uma compra e venda, processo que teria como marco intermédio um contrato preparatório e como destino final o negócio transmissivo da propriedade.
A propósito deste processo negocial e dos critérios que o orientam diz o citado Professor (Tratado, cit., p. 160), que a perspetiva relevante é de prognose, virando-se para o futuro. Não se trata de determinar o que é, mas antes o que, com os elementos disponíveis, irá acontecer.
Acrescenta, a propósito das técnicas empregues nesse processo de contratação, que uma das máximas será a opção pelo caminho mais seguro (...) trilhando as vias já experimentadas, que permitam mais segurança na previsão (loc. Cit.).
Parece ser esta a forma mais adequada de enquadrar a vontade das partes, até consoante a informação que teriam (que se veio a verificar errada, aliás) de falta de capacidade económica do "sr. indiano" para preferir.
Nestes termos, a dação da preferência seria apenas uma etapa de um processo negocial, um verdadeiro pró-forma, que as partes no negócio previsto acederam realizar, podendo, nesse contexto, ser-lhe retirada autonomia como ato jurídico a se.
Caso se entenda, por outro lado, que a despeito de ser ou não uma etapa de processo negocial, na medida em que traduz um ato juridicamente autónomo ganhou a sua individualidade, ainda que dependente e instrumental, a solução jurídica da questão não se alterará.
Uma forma de enquadrar juridicamente tal negócio seria sob as vestes típicas do contrato a favor de terceiro - uma das partes assume perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de proteção legal, a obrigação de efetuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio (cf. art.º 443.º n.º 1 do CC).
Neste caso, qualificando-se de promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita (preceito citado) teríamos o preferente como terceiro beneficiário.
A prestação prometida seria, no caso, a dação de preferência e, neste enquadramento, o promitente-vendedor teria passado a ser um duplo promitente (também de uma dação de preferência) e o promitente-comprador seria também promissário dessa tal preferência, sendo que, nos termos do art.º 444.º n.º 1 o terceiro preferente teria, neste caso, adquirido direito a exercer preferência no negócio independentemente de aceitação.
Diz-se a propósito do contrato a favor de terceiro no acórdão do STJ de 3/11/2020 (Fernando Samões, dgsi.pt) que este tipo contratual exige que se apure uma intenção dos contratantes de atribuir um direito a terceiro, ou que dele resulte, pelo menos, uma atribuição patrimonial imediata para o beneficiário, de tal modo que ele adquira o direito à prestação prometida de forma autónoma, por via direta e imediata do contrato, podendo, por isso, exigi-la do promitente.
Aduz-se ainda nesse aresto que tal qualificação depende sempre da interpretação casuística das cláusulas estipuladas pelas partes a fim de averiguar se estas estipularam efeitos jurídicos positivos de terceiro.
Pode ter sido o que sucedeu, no caso.
Os promitentes (no contrato-promessa) teriam acordado (ainda motivados por erro comum, o que é uma circunstância acidental e irrelevante para o caso) conceder ao arrendatário preferência e, a partir do momento em que o fizeram (e tivessem comunicado ao terceiro beneficiário tal contrato), este passaria a ter a possibilidade de o exigir ao promitente (do contrato a favor de terceiro), prestação que teria exigido.
Para esta qualificação ser sustentada seria necessário, todavia, que o terceiro tivesse sido dado conhecimento deste negócio, o que, de facto, se desconhece (sabe-se apenas que a preferência veio, efetivamente, a ser exercida).
Desconhecendo-se tal comunicação, parece que esta figura obrigacional típica deverá ser afastada, pelo menos enquanto contrato perfeito.
Tal não significa, todavia, a que se afaste ad limine a verificação de um acordo de vontades autónomo, acima traduzido, que, saindo da atipicidade, não deixaria de se encontrar num âmbito de licitude inquestionável, seja por referência ao princípio de liberdade contratual (cf. art.º 405.º do CC), seja considerando a natureza est--mente patrimonial (e, portanto, disponível) dos direitos em discussão.
Neste caso, o negócio autónomo não deixaria de ser a benefício direto de terceiro (ainda que motivado pelo interesse dos próprios contraentes na segurança jurídica do seu negócio), traduzindo uma verdadeira condição posteriormente aditada pelos promitentes e que, materialmente, levaria a que a promessa de compra e venda deixasse de ser pura e simples e passasse a estar dependente do não exercício da preferência por terceiro.
É um enquadramento jurídico também possível para a situação em apreço.
O que releva, em sede conclusiva, seja qualificando a questão jurídica no estrito âmbito do incumprimento do contrato-promessa, seja considerando um autónomo acordo de preferência (cumprido e exercido por terceiro), o resultado será o mesmo – a falta de sustentação da posição da recorrente por não se poder afirmar um incumprimento culposo da promessa.
Assim sendo, porque decorre linearmente das considerações anteriores, que o recorrido-réu não incumpriu culposamente a sua promessa ao concretizar a venda do bem a terceiro, não tem sustentação jurídica a posição da recorrente, que não deve ser provida.
Por isso, a decisão também não merece censura, devendo manter-se. –
-- A litigância de má-fé e o pedido de dispensa de pagamento de remanescente:
Quanto à má-fé, sustentou-se a decisão recorrida, em primeiro lugar, na omissão de alegação, na petição inicial, de reuniões havidas entre as partes e em que se estabeleceu um assentimento expresso e consensual da dação em preferência.
A isto responde a recorrente dizendo que não o alegou nem tinha que alegar porque não era facto constitutivo do direito que pretendia exercer.
Esta argumentação tem fundamento até certo ponto porque, de facto, é algo estranho ao direito reclamado (dir-se-á até que, como acima decidido, será um facto impeditivo do mesmo) e, portanto, quem tem o ónus da respetiva alegação é o defendente.
Mas o ponto em que essa argumentação cai é, precisamente, aquele em que, uma vez deduzida a defesa com tal fundamento, a ré negue a existência do facto, afirme uma realidade contrária ao mesmo e, portanto, ponha em causa um ponto fundamental da situação jurídica em discussão, que lhe é pessoal.
A partir desse momento, uma alegação circunsc-- aos fundamentos essenciais tornou-se uma pretensão cuja falta de sustentação factual a parte necessariamente conhecia, posição que reafirmou sucessivamente em diversos momentos e, aliás, manteve neste recurso.
Mantém-se assim, também nesta parte, a conclusão retirada pelo tribunal a quo, segundo a qual, se não com dolo, pelo menos com negligência grosseira, é apodítico que a Autora deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar e omitiu factos relevantes para a decisão da causa, factos esses que foram aduzidos e provados pelo Réu.
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Passando à questão tributária, os juízos anteriores também são pertinentes, i.e., além de ficar vencida, a autora, tendo litigado de má-fé, aduziu atividade judicial desnecessária e complexificou a tramitação, em duas instâncias.
Porque a dispensa de pagamento de taxa remanescente implica uma avaliação global da atividade judicial e do comportamento da parte, as circunstâncias do caso não justificam o estabelecimento do solicitado benefício e, pelo contrário, devem atestar que o recurso ao sistema de justiça foi, no caso, abusivo.
O acesso à justiça, sendo universal, não assenta em pressupostos concretos ilimitados e, portanto, a utilização abusiva de alguém implica necessariamente uma limitação na garantia constitucional de acesso concedido a outrem, não na propositura da ação, mas na suscetibilidade de receber uma decisão definitiva em prazo razoável.
Essa circunstância, associada à est-- avaliação da tramitação e ao comportamento processual da recorrente, justifica que deva suportar o valor total das taxas da ação, o que se decide.
Por isto, sem necessidade de considerações adicionais, mantém-se a condenação a recorrente como litigante de má-fé e não se defere à requerida dispensa de pagamento de taxa remanescente. –
--- IV. Decisão:
Face ao exposto, nega-se a apelação e mantém-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, sem dispensa de taxa remanescente.
Notifique-se e registe-se. –
---Lisboa, 19-12-2024, João Paulo Vasconcelos Raposo António Moreira Laurinda Gemas