Correndo o incidente de exoneração do passivo restante nos autos do processo de insolvência, o acórdão que confirma decisão da primeira instância sobre tal matéria não é suscetível de revista excecional, nos termos do artigo 672º, n.º 1 do CPC, por a tal lhe ser aplicável o regime específico previsto no artigo 14º do CIRE.
Reclamação do artigo 643º do CPC
Acordam em Conferência na 6ª. Secção do STJ.
1-Relatório:
Banco Comercial Português, S.A. instaurou ação especial de insolvência contra AA, pedindo que este fosse declarado insolvente.
O requerido não deduziu oposição, mas requereu que lhe fosse concedido o benefício da exoneração do passivo restante.
Por sentença de 27/12/2022, transitada em julgado, declarou-se a insolvência do requerido.
Na 1ª. instância foi proferido despacho em que se indeferiu liminarmente o pedido da exoneração do passivo restante formulado pelo devedor.
Inconformado com o decidido quanto ao indeferimento liminar do incidente da exoneração que deduziu, o devedor, AA, interpôs recurso daquele despacho.
No Tribunal da Relação de Guimarães foi proferido acórdão, com o seguinte teor na sua parte decisória:
«Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação parcialmente procedente e, em consequência:
I- Alteram a facticidade julgada provada no despacho recorrido nos termos supra identificados;
II- Revogam o despacho recorrido no segmento em que nele se julgou encontrar-se preenchido o fundamento de indeferimento liminar do incidente da exoneração do passivo restante formulado pelo recorrente, AA, do art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 1, al. g) do CIRE;
III- Convolam a facticidade julgada provada no despacho recorrido para um enquadramento jurídico distinto (art. 5º, n.º 3 do CPC), após observância prévia do contraditório quanto ao recorrente e restantes interessados, e julgam encontrar-se preenchido o fundamento de indeferimento liminar do incidente da exoneração do passivo restante formulado pelo recorrente, AA, do art. 238º, n.º 1, al. e), ex vi, art. 186º, n.º 1, al. d) do CIRE e, em consequência, confirmam a parte dispositiva do despacho recorrido de indeferimento liminar daquele incidente da exoneração».
O Insolvente, ora recorrente, não se conformando com o acórdão proferido interpôs recurso de revista e revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça.
No Tribunal da Relação de Guimarães foi proferido despacho de não admissão do recurso de revista e de revista excecional interposto, por não ser legalmente admissível.
Veio então o recorrente reclamar para este Supremo Tribunal de Justiça.
Por acórdão proferido em conferência em 29-10-2024 foi julgada improcedente a reclamação, mantendo-se a não admissão da revista.
2- Cumpre apreciar:
Veio agora o recorrente arguir nulidades do acórdão proferido, ao abrigo do disposto no art. 615º do CPC., argumentando que não se torna compreensível que se tenha dito que é irrelevante que se aprecie a questão do valor do incidente da exoneração do passivo restante, atenta a aplicabilidade do art. 14º do CIRE, bem como, não sendo admissível a revista normal, no âmbito do art. 14º do CIRE, também não será admissível a revista excecional.
O reclamante/recorrente discorda do despacho que não lhe admitiu o recurso de revista interposto para este STJ., perante a presente Reclamação, no âmbito do art. 643º do CPC.
Para tanto, entende que o incidente de exoneração do passivo restante é um incidente autónomo, sendo o seu valor pela utilidade económica específica do pedido de € 857.185,07, logo admissível.
Ora, o que está em causa nos autos prende-se com o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.
O pedido de exoneração, nos termos do nº. 1 do art. 236º do CIRE, é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, sendo processado nos autos do processo de insolvência.
Como dispõe o nº. 1 do art. 14º do CIRE, no processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.
A regra prevista no art. 14º, nº 1, do CIRE, restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processados e aos embargos à sentença de declaração de insolvência, conforme dispõe o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, nº. 13/2023, in DR, I série de 21 de novembro de 2023.
De acordo com aquele artigo, em regra no processo de insolvência existe apenas um grau de recurso, que se esgota com o recurso de apelação para os tribunais da Relação, constituindo esta a última instância. Neste âmbito processual a exceção à dita regra e consequente admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) depende exclusivamente da existência de oposição de julgados entre o decidido no acórdão recorrido e o decidido por outro de qualquer uma das Relações ou do STJ no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão jurídica - o designado recurso de revista excecional, previsto pelo art. 672º, nº 1, al. c) do CPC. (cfr. Ac. do STJ. de 17-10-2023, in www.dgsi.pt.).
Na situação vertente, não é suscitada qualquer oposição de acórdãos que se reporte à existência de contradição atinente ao objeto em apreço, ou seja, o indeferimento da exoneração do passivo.
Contrariamente ao expendido pelo reclamante, o incidente de exoneração do passivo restante não é autónomo do processo de insolvência, sendo tramitado nos próprios autos da insolvência.
E também, contrariamente ao preconizado pelo recorrente, a apreciação da justeza ou não, do indeferimento do pedido de exoneração, não iria conhecer da natureza fortuita ou culposa da insolvência, no mesmo recurso.
Desta feita, não é o valor do incidente da exoneração que dita a admissibilidade do recurso, mas o regime do art. 14º do CIRE, sendo este um regime especial.
O artigo 14º, 1, do CIRE estabelece uma regra de não admissibilidade de recurso para o STJ, em terceiro grau de jurisdição, em litígios respeitantes a decisões, finais ou interlocutórias, relativas ao processo de insolvência, desde que tramitadas endogenamente ou por incidente (cfr. Acs. do STJ. de 10-12-2019, 19-3-24, in http://www.dgsi.pt.).
Assim, falhando a demonstração dos pressupostos de recorribilidade exigidos pelo art. 14º do CIRE, tem de se concluir que não será admissível revista, quer normal quer como excecional, no âmbito do artigo 672º, nº.1 do CPC., sendo já aquele regime excecional.
Perante o explanado, não padece o acórdão de qualquer nulidade que o invalide, não assistindo razão ao reclamante.
Sumário:
- Correndo o incidente de exoneração do passivo restante nos autos do processo de insolvência, o acórdão que confirma decisão da primeira instância sobre tal matéria não é suscetível de revista excecional, nos termos do artigo 672º, n.º 1 do CPC, por a tal lhe ser aplicável o regime específico previsto no artigo 14º do CIRE.
3- Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em Conferência indeferir as nulidades invocadas.
Custas a cargo do reclamante, fixando-se a taxa de justiça em duas Ucs, sem prejuízo de apoio judiciário de que beneficie.
Lisboa, 17-12-2024
Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)
Ricardo Costa
Luís Espírito Santo