I - A reclamação para a conferência, não pode ter a virtualidade de reverter uma decisão de mérito apreciada em acórdão proferido, onde o poder jurisdicional se encontra esgotado, mas o que a conferência pode aquilatar é se o acórdão, padece dos vícios de nulidade que lhe são assacados.
II - A sentença padece de obscuridade quando algum dos seus passos enferma de ambiguidade, equivocidade ou de falta de inteligibilidade.
III - Ambiguidade quando alguma das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais de um sentido, quer na fundamentação, quer na decisão; de equivocidade quando o seu sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal. Mas só ocorre esta causa de nulidade constante da al. c) do nº. 1 do art. 615º do CPC., se tais vícios tornarem a decisão ininteligível ou incompreensível.
Acordam em Conferência na 6ª. Secção do STJ.
Relatório:
Os autores, AA e BB intentaram ação declarativa, com processo comum, contra a ré, Amazing Falcon Construções, Lda.
Na 1ª. instância foi proferida sentença, com o seguinte teor:
«Por tudo quanto exposto fica, decide-se:
a) julgar a ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência, condenar a ré:
i) a pagar aos autores o valor de € 76.410,70, a título de multas contratuais que lhe foram aplicadas nas circunstâncias supra-referidas, acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal supletiva;
(ii) a reconhecer a licitude quanto à resolução do contrato de empreitada conforme declarada pelos autores, com as legais consequências;
(iii) a devolver a obra aos autores;
(iv) a pagar aos autores a quantia de 1.000,00 euros por cada dia de atraso no cumprimento do dever de proceder à devolução da obra aos autores, a contar do trânsito em julgado da decisão;
(v) a pagar aos autores € 16.500,00, a título de indemnização por danos emergentes de natureza patrimonial, sofridos pelos autores com o pagamento de rendas com a habitação em substituição do imóvel objeto do contrato de empreitada em causa na presente ação, desde 16.05.2019 até hoje, e rendas vincendas, à razão mensal que se verificar em cada momento, a liquidar até à entrega do imóvel aos autores;
(vi) a pagar aos autores € 4.171,53, a título de indemnização por danos emergentes de natureza patrimonial, sofridos pelos autores com o pagamento das prestações devidas pelo empréstimo contraído ao Banco Montepio, sem a contrapartida da utilização do prédio como sua habitação própria e permanente, até hoje, e prestações mensais vincendas, a liquidar até à entrega do imóvel aos autores;
(vii) a pagar aos autores a diferença entre o preço que se venha a apurar para a adjudicação dos trabalhos para a conclusão da empreitada e o valor dos trabalhos não executados e não pagos em razão do incumprimento da ré, que nesta data se prevê corresponder ao valor de € 106.663,09 (com IVA), sem prejuízo de eventuais alterações supervenientes, em razão do tempo de incumprimento do dever de devolver a obra aos autores, e no mais se absolvendo a ré.
b) julgar a reconvenção parcialmente procedente, por provada, e em consequência condenar os autores a pagar à ré as quantias de 6.148,50 euros e 4.076,79 euros, referentes às faturas identificadas nos autos, devidas e não pagas, acrescidas de juros de mora vencidos no montante 401,32 euros e vincendos até efetivo e integral pagamento, no mais se absolvendo os autores».
Interposto recurso de apelação, no Tribunal da Relação de Lisboa foi proferido acórdão, com o seguinte teor na sua parte decisória:
«Em face do exposto, acorda-se em julgar parcialmente nula a sentença proferida pelo tribunal a quo, pelo que respeita ao decidido na subalínea v) da al. a) do dispositivo.
Na parcial procedência da apelação, em substituição ao tribunal recorrido na parte da sentença julgada nula, acorda-se em alterar a al. a) do dispositivo da decisão recorrida, decidindo-se:
a) julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:
i) condenar a ré a restituir aos autores o prédio identificado no ponto 2 – fundamentação de facto –, com a obra executada pela demandada nele implantada, no estado de execução existente em 17 de março de 2019, isenta de defeitos (na parte executada), sem prejuízo do decidido na subalínea ii) seguinte;
ii) julgar justificada a retenção pela ré do prédio identificado no ponto 2 – fundamentação de facto –, até ao momento do pagamento pelos demandantes do preço referido na al. b) do dispositivo da sentença;
iii) condenar a ré no pagamento aos autores, a título de indemnização, do valor das rendas efetivamente pagas pelo arrendamento do imóvel onde habitam, até ao limite mensal de € 1500,00 (mil e quinhentos euros), desde a data do pagamento do preço referido na al. b) do dispositivo da sentença recorrida, até à entrega do prédio determinada na subalínea i) da alínea a) deste dispositivo;
iv) condenar a ré no pagamento aos autores, a título de indemnização, da quantia de € 3 000,00 (três mil euros), por rendas pagas entre 16 de setembro e 15 de novembro de 2019;
v) absolver a ré do restante pedido pelos autores;
No mais, não compreendido na al. a) do dispositivo da decisão recorrida, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se a sentença apelada».
Inconformados, os recorrentes interpuseram recurso de revista para este STJ.
Por acórdão datado de 29-10-2024 foi decidido o seguinte:
«Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a revista, mantendo-se o acórdão proferido».
Vieram os recorrentes deduzir reclamação contra o acórdão, ao abrigo do disposto no art. 615º, nº 1, alínea c) e nº. 4, ex vi dos arts. 666º e 685º, todos do CPC.
A recorrida, no seu contraditório pronunciou-se pela rejeição da reclamação apresentada ou, caso assim não se entenda, pela sua improcedência, por carecer de absoluto fundamento.
Fundamentação:
Insurgem-se os reclamantes relativamente ao acórdão proferido, requerendo a sanação de ambiguidades e obscuridades, decidindo-se, a final, julgar o recurso de revista procedente e repondo a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª. Instância.
No entendimento dos reclamantes, as ambiguidades ou obscuridades apontadas, reportam-se às obrigações assumidas pela ré, ao seu incumprimento, bem como, ao abuso de direito e ao direito de retenção, conforme foram apreciados, ou seja, os reclamantes pretendem através da arguição de nulidades, uma alteração do acórdão proferido, repondo a sentença da 1ª. instância.
Ora, uma coisa é a arguição de nulidades e outra completamente diversa será pretender-se que através de uma eventual procedência de nulidades, se transmute um recurso improcedente num outro que acolha a pretensão preconizada pelos recorrentes.
Com efeito, nos termos do disposto no nº. 1 do art. 613º, ex vi do nº. 1 do art. 666º, ambos do CPC., proferida a sentença ou acórdão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Sendo lícito, nos termos do nº. 2 do art. 613º do CPC., retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.
Assim, a reclamação para a conferência, não poderia ter a virtualidade de reverter uma decisão de mérito devidamente apreciada em acórdão proferido, onde o poder jurisdicional se encontra esgotado, mas o que a conferência pode aquilatar é se o acórdão, padece dos vícios de nulidade que lhe são assacados.
Entendem os reclamantes que se está perante a nulidade plasmada na al. c) do nº. 1 do art. 615º do CPC.
Ora, nos termos de tal alínea, é nula a sentença, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Conforme refere, Cardona Ferreira, in Guia de Recursos em Processo Civil, 3ª. ed., pág. 36 «A hipótese da alínea c) reporta-se ao processo lógico de raciocínio e não a opção voluntária decisória, ou seja, nulidade não é o mesmo que erro de julgamento».
A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes – Abrantes Geraldes – Paulo Pimenta – Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º., pág. 738.
No dizer de Alberto dos Reis, in CPC. Anotado, ano de 1981, Reimpressão, vol. V «Tal nulidade só ocorre quando existe no raciocínio do julgador um vício lógico, isto é, quando os fundamentos por ele invocados conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto».
Para Antunes Varela e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª. ed., pág. 689…há um vício real no raciocínio do julgador e não um simples lapsus calami do autor da sentença; a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direção diferente.
Diz-se que a sentença padece de obscuridade quando algum dos seus passos enferma de ambiguidade, equivocidade ou de falta de inteligibilidade: de ambiguidade quando alguma das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais de um sentido, quer na fundamentação, quer na decisão; de equivocidade quando o seu sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal. Mas só ocorre esta causa de nulidade constante do 2º segmento do art. 615º/1/c, se tais vícios tornarem a “decisão ininteligível” ou “incompreensível” (cfr. Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, 2ª edição, pp. 436-437).
O vício da alínea c) do nº1 do art. 615º, só ocorre quando os fundamentos de facto e de direito invocados no acórdão recorrido conduzirem de acordo com um raciocínio lógico a resultado oposto ao que foi decidido, ou seja, quando a fundamentação apresentada justifica uma decisão precisamente oposta à tomada, como refere o Ac. do STJ. de 2/3/2011, in http://www.dgsi.pt.
Para efeitos da nulidade por ininteligibilidade da decisão, prevista no art. 615º/1/c/2ª parte, do CPCivil, ambígua será a decisão à qual seja razoavelmente possível atribuírem-se, pelo menos, dois sentidos díspares sem que seja possível identificar o prevalente; obscura será a decisão cujo sentido seja impossível de ser apreendido por um destinatário medianamente esclarecido, como se alude no Ac. STJ. de 8/2/2018, in http://www.dgsi.pt.
Ora, na situação vertente, o que se escreveu no acórdão é claro, lógico e devidamente explicado nas premissas com a inerente conclusão, não se denotando qualquer obscuridade ou ambiguidade, ali se espelhando as razões concretas em que se sustentou a inerente subsunção jurídica, com o correspondente substrato factual concreto.
Efetivamente, tratou-se no acórdão, de forma clara e inteligível, qual o regime aplicável às operações urbanísticas, a quem incumbia a obrigação de prorrogar a comunicação prévia, a validade de título quanto a novos trabalhos, a inexistência de qualquer contrato de mandato, bem como, o afastamento do abuso de direito e a legitimidade do direito de retenção por banda da ré.
Sucede que, o que os reclamantes fulcralmente pretendem colocar sob a denominação de nulidade do acórdão, se situa num parâmetro que não assume assento no domínio dos vícios de decisão, mas na sua discordância quanto à solução de direito por que o acórdão enveredou.
Assim sendo, não padece o acórdão da nulidade, pois, nele não ocorre qualquer ambiguidade ou obscuridade que o torne ininteligível.
Sumário:
- A reclamação para a conferência, não pode ter a virtualidade de reverter uma decisão de mérito apreciada em acórdão proferido, onde o poder jurisdicional se encontra esgotado, mas o que a conferência pode aquilatar é se o acórdão, padece dos vícios de nulidade que lhe são assacados.
- A sentença padece de obscuridade quando algum dos seus passos enferma de ambiguidade, equivocidade ou de falta de inteligibilidade.
- Ambiguidade quando alguma das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais de um sentido, quer na fundamentação, quer na decisão; de equivocidade quando o seu sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal. Mas só ocorre esta causa de nulidade constante da al. c) do nº. 1 do art. 615º do CPC., se tais vícios tornarem a decisão ininteligível ou incompreensível.
Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em Conferência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas a cargo dos reclamantes, fixando-se a taxa de justiças em duas Ucs.
Notifique.
Lisboa, 17-12-2024
Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)
Ricardo Costa
Luís Correia de Mendonça.