PROCEDIMENTOS CAUTELARES
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REQUISITOS
FALTA DE OPOSIÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ARROLAMENTO
RESTITUIÇÃO DE POSSE
PROVA INDICIÁRIA
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
Sumário


Não existe oposição entre acórdãos, quando estão em confronto uma acção de reivindicação, por um lado, e procedimentos cautelares, de arrolamento e restituição de posse, por outro, quando a força de prova num e noutro tipo de acções é substancialmente diferente, e quando as questões de facto e de direito foram analisadas de modo não coincidente.

Texto Integral


Processo n.º 10110/23.0T8LRS.E1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


***


AA reclamou para a conferência da decisão singular do relator que não admitiu o recurso de revista por si interposto.

Alega que «o essencial da revista está relacionada com a nova fixação, dos factos materiais provados da causa, feita pelo Tribunal a quo de 2.ª instância no acórdão recorrido.

DE FACTO,

O acórdão recorrido ao dar os factos elencados sob os n.ºs 4) a 13) como “Indiciariamente Provados”, fez uma correcta aplicação dos meios probatórios.

PORÉM,

Ao manter o facto da al. “B” no elenco dos “Indiciariamente Não Provados”, incorreu, seja nos seus fundamentos, seja na decisão, em manifesta e inequívoca contradição, e, nesta parte, olvida as presunções de direito que decorrem da própria lei, da doutrina e da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça.

Padece por isso o acórdão recorrido de nulidade absoluta nos termos do art.º 615.º, n.º 1 al. c) do Cód. de Processo Civil, que desde já se argui.

Embora o Tribunal a quo esteja sujeito e vinculado ao princípio da Livre apreciação da prova, e seja livre de formar a sua convicção, mediante as provas produzidas em juízo, ao fazê-lo, não pode olvidar a aplicação dos princípios gerais de direito, os princípios constitucionais e as presunções que resultam da Lei, pelo que, desde logo, se impõe a admissão da revista nos termos da al. a) do n.º 1, n.º 2 e n.º 3 do art.º 674.º do Cód. de Processo Civil.

Neste sentido, a “posse” do Requerente/Recorrente – para a aquisição da propriedade dos imóveis em causa por, usucapião –, além de estar devidamente demonstrada, reverte de presunção legal, na exacta medida em que o exercício do “corpus” (factos elencados sob os n.ºs 4) a 13) como “Indiciariamente Provados) faz presumir a existência do “animus” (facto que foi erradamente elencado sob a al. “B” dos factos (“Indiciariamente Não Provados”).

É que, a “posse” presume-se naquele que exerce o poder de facto (“corpus”). Isto é: a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, fazem presumir a intenção daquele que pratica os actos de exercer o direito como se fosse o seu proprietário (“animus”), o que, por ser uma prova “diabólica”, ocorre por presunção legal.

Assim, o acórdão recorrido na opção de direito que tomou sobre a verificação dos pressupostos para decretamento de ambas as providências cautelares, designadamente a demonstração e a verificação, in casu, do elemento/requisito “posse” pelo Requerente/Recorrente violou o disposto nos arts.º 1251.º, 1252.º, 1263.º, 1268.º, 1287.º e 1316.º e ss. do Cód.Civil, seja na interpretação, seja na aplicação que faz dessas normas jurídicas e violou a presunção que é inerente e resulta da própria Lei e jurisprudência, em total oposição e desconsideração ao entendimento doutrinal e jurisprudencial (a título exemplificativo vejam-se os seguintes arestos: acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. n.º 1816/06.0TBFUN.L1-1, datado de 19/05/2009; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 08A2357, datado de 16/10/2008; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 05B1078, datado de 05/05/2005; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 5080/17.7T8CBR.C2.S1, datado de 21/10/2020; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 439/18.5T8FAF.G1.S1, datado de 13/10/2020; entre outros tantos, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Pelos fundamentos expostos, a presente revista encontra-se assim devida e legalmente fundamentada e justificada».

O reclamante não tem razão.

Com efeito, confunde a questão da admissibilidade do recurso com a questão de procedência, sendo que foi sobre a primeira e não sobre a segunda, a que o reclamante agora se refere, que o tribunal se pronunciou, nos seguintes termos:

«A questão que analiso nesta fase liminar consiste em saber se o recurso é admissível.

Preceitua o artigo 370.º, 2 CPC que das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determina a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível.

Um dos casos em que o recurso é sempre admissível é o do artigo 629.º, 2.

Sendo de afastar, por motivos óbvios, o preceituado nas alíneas a) a c) daquele número 2 resta saber se ao caso é aplicável o disposto na alínea d).

A resposta é afirmativa: a norma do artº 629º nº 2 al. d) CPC rege para hipóteses em que se incluem as providências cautelares – ac. STJ de 11/2/2020, CJ/STJ, T I:68.

Vejamos então se existe oposição relevante entre o acórdão recorrido da Relação de Évora e o acórdão fundamento do Supremo Tribunal de Justiça.

No acórdão fundamento foram estas as afirmações de facto dadas como provadas e não provadas pelas instâncias:

1. Factos provados

a. Está descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ..., o prédio urbano, sito na Rua ..., n.º … (ou rua ...) da freguesia ..., do Concelho ..., constituído por uma casa de cave, R/c, 1.º andar e logradouro, com a superfície coberta de 187,00m2 e descoberta de 576,50m2, a confrontar de Norte caminho municipal, Sul FF, Nascente domínio público e Poente CC, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º …;

b. Este prédio está inscrito a favor dos aqui autores, pela Ap. 26 de 1999-06-08;

c. O referido prédio resultou da desanexação de uma parcela de terreno do prédio descrito na Conservatória sob o n.º ..., parcela essa descrita como parcela de terreno com 763,50 m2, a confrontar de Norte caminho municipal, Sul com FF, Nascente domínio público e FF;

d. No dia 13 de maio de 1999, foi outorgada no cartório Notarial ..., a fl. 60 a 60v do livro Quatrocentos e Setenta A, escritura de doação, através da qual a primeira Ré CC declarou doar a referida parcela de terreno ao autor marido;

e. Os autores, por si e pelos ante possuidores foram administrando livremente o referido prédio, nomeadamente, construindo a habitação, pedindo a respetiva licença de construção e habitabilidade, construindo muros, fazendo obras de manutenção e reparação, construindo passeios e jardim, cortando e limpando ou mandando limpar o quintal, erva e demais vegetação.

f. Plantando arbusto e flores no jardim.

g. No quintal, plantando árvores de fruto, couves, alfaces e demais produtos hortícolas.

h. E, onde os anteriores possuidores haviam plantado horta, semeado erva e jardim.

i. E, foram-no utilizando de acordo com a sua autónoma e livre vontade, afetando-o como muito bem entenderam.

j. Dele foram retirando todos os frutos e demais utilidades.

k. E, sempre pagaram as contribuições sobre o prédio incidentes.

l. O que tudo tem feito de forma contínua, sem interrupção e sem oposição de ninguém.

m. O que sempre fizeram de forma pública, pacifica e de boa-fé, por ignorarem lesar direitos de terceiros, à vista e com conhecimento de toda a gente, designadamente da ré, sem violência ou oposição de quem quer que fosse.

n. Está descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ... e inscrito na matriz sob o artigo n.º …, o prédio composto por casa de rés-do-chão e logradouro, com a superfície coberta de 122,00m2 e logradouro de 2.396.5m2;

o. Este prédio encontra-se inscrito a favor dos segundos Réus, através da Ap....36 de 2015-08-25, sendo a causa da aquisição uma doação efetuada pela primeira Ré CC;

p. Está ainda averbado pela Ap. ...37 de 2015-08-25 uma reserva de usufruto a favor da primeira Ré;

q. Os prédios supra identificadas confrontam entre si do lado nascente/poente;

r. Após a conclusão das obras do prédio descrito na Conservatória sob o art. ...53, a primeira ré mandou edificar um muro divisório para separar os dois prédios e delimitar o terreno objeto do destaque do terreno que ficava para o logradouro do prédio mãe;

s. Da reconvenção

t. Desde antes da edificação do supra referido muro que a 1ª Ré e depois os 2ºs Réus usam o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o art. ... para aí habitarem, cuidando também do respetivo terreno conforme entendem, recebendo visitas e familiares, fazendo obras de conservação e suportando os encargos que lhes são inerentes. Na sequência da decisão da impugnação da matéria de facto esta alínea passa a ter a seguinte redação: t. “A 1ª Ré habitou, cuidando também do respetivo terreno e usou conforme entendeu, recebendo visitas e familiares, fazendo obras de conservação e suportando os encargos que lhes são inerentes, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... na sua primitiva configuração e na que resultou da desanexação referida em c), primeiro sozinha e depois acompanhada dos demais Réus; igualmente utilizou como bem quis, a partir da construção do muro referido em r), a faixa de terreno com área de 114,60 m2, que segue ao longo desse muro, referida em z).”

u. O que fazem à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, convencidos de estarem a exercer um direito próprio e de que não prejudicam ninguém. Na sequência da decisão da impugnação da matéria de facto esta alínea passa a ter a seguinte redação: U. O que fizeram à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém quanto a toda a área de terreno que utilizaram; convencidos de estar a exercer um direito próprio e de que não prejudicavam ninguém relativamente ao prédio referido em n), mas já não quanto à faixa de terreno com área de 114,60 m2, que segue ao longo desse muro, referida em z.

v. De forma ininterrupta e há mais de 20 anos - Na sequência da decisão da impugnação da matéria de facto esta alínea passa a ter a seguinte redação: V. De forma ininterrupta e há mais de 20 anos quanto ao prédio sob o nº ... nas configurações que teve ao longo do tempo; e desde a construção do muro referido em r), quanto à faixa de terreno do prédio, com área de 114,60 m2, referida em z).

X. A habitação foi construída numa parcela de terreno destinada a construção com a área total de 763.50m2, que deu lugar ao prédio urbano descrito no nº. ...53 da Conservatória. (alínea aditada na sequência da procedência da impugnação da matéria de facto não provada)

Z. O muro, referido em r), que a poente do prédio referido em a) o separa do referido em n), não foi construído na linha divisória dos supra identificados prédios, mas dentro do terreno pertencente ao prédio referido em a), seguindo em toda a sua extensão a cerca de 6,40m para dentro do limite daquele prédio. (alínea aditada na sequência da procedência da impugnação da matéria de facto não provada)

2. Factos não provados

a. Que o prédio urbano descrito no art. ...53 da Conservatória tenha sido construído pelos autores numa parcela de terreno destinada a construção com a área total de 763.50m2; (esta alínea passou para a matéria de facto provada, com a redação dada à supra aditada alínea X).

b. Que os Autores tenham exercido os atos descritos em e. a m. dos factos provados sobre a parcela descrita no art. 43º, da petição inicial;

c. Que por erro de medição, o muro não foi feito na linha divisória dos supra identificados prédios, mas dentro do terreno pertencente à parcela de terreno objeto de construção e que faz parte integrante do prédio dos autores. (esta alínea passou para a matéria de facto provada, conjuntamente com o constante da alínea d), com a redação dada à supra aditada alínea z).

d. Tendo o muro sido construído no alinhamento a cerca de 7.80 metros para dentro do limite do lote de terreno. (esta alínea passou para a matéria de facto provada, conjuntamente com o constante da alínea c), com a redacção dada à supra aditada alínea z).

Foi a partir desta base factual que o STJ analisou a questão de direito, a saber, se a 1.ª ré exerceu posse pública, pacífica, de boa fé e titulada sobre a parcela em litígio, verificando-se os pressupostos de aquisição originária por usucapião.

O segundo grau considerou que os réus não adquiriram a faixa disputada por usucapião, com o que o supremo concordou.

No entanto, face aos factos provados, alterados pelo acórdão recorrido, os 2ºs réus não exerciam actos de posse sobre aquela faixa, mas eram meros detentores.

O acórdão do supremo argumenta: «A al. U dos factos provados, após alteração, é do seguinte teor: “U. O que fizeram à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém quanto a toda a área de terreno que utilizaram; convencidos de estar a exercer um direito próprio e de que não prejudicavam ninguém relativamente ao prédio referido em n), mas já não quanto à faixa de terreno com área de 114,60 m2, que segue ao longo desse muro, referida em z” (negrito nosso).

Falta o elemento subjetivo, o animus, a intenção do exercício de atos, naquela faixa, como um direito próprio, sem causar prejuízos a outrem.

Refere-se no acórdão recorrido, «Quanto à alínea u) tendo em conta que a posse de facto faz presumir o animus, mas que a falta de título faz presumir a má-fé, há que excluir da menção da boa-fé a parcela aqui em questão” e daí a alteração à alínea U, sem que, depois, retirasse todas as conclusões devidas.

A expressão “mas já não quanto à faixa de terreno” não tem o sentido restrito de “já não se ter provado” mas antes, por incluído nos “factos provados”, de se ter provado que “os réus já não estavam convencidos de exercer um direito próprio e de que não prejudicavam ninguém relativamente à faixa de terreno com área de 114,60 m2, que segue ao longo desse muro, referida em z.”, o que poderá ser determinante na prova, pelos autores, da falta de animus dos réus e no comprometimento da posse e afirmação da mera detenção, insuficiente à aquisição do direito de propriedade por usucapião.

E, este entendimento não é contrariado pelo constante da parte final da al. T: “… igualmente utilizou como bem quis, a partir da construção do muro referido em r), a faixa de terreno com área de 114,60 m2, que segue ao longo desse muro, referida em z).” “Utilizou como bem quis” enquadra-se nos atos de objetivos de posse “corpus” e não na intenção, “animus” de possuir como dono, proprietário».

Prosseguindo em considerações sobre a posse boa para usucapir, acrescenta o supremo: «A posse do direito de propriedade, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação.

E, a posse adquire-se, art. 1263 do Cód. Civil, pela prática reiterada, com publicidade, de atos materiais correspondentes ao exercício do direito, ou pela tradição da coisa. Refere o Ac. da relação do Porto de 2-10-1979, in Col. Jurisp. Tomo 4, pág. 1273 "a posse adquire-se pelo facto e pela intenção e define-se por dois elementos essenciais: o «corpus» na aquisição originária e a «traditio» na aquisição derivada- que se traduz na materialidade do facto; e o «animus», que se traduz na intenção de exercer o direito de propriedade".

A posse decompõe-se, assim, em dois elementos, o «corpus» e o «animus».

O «corpus» traduz-se no poder de facto- arts. 1252, 1253 do Cód. Civil- sobre a coisa, a influência que se exerce sobre a coisa. Pode não ser uma influência direta, pois como refere o Prof. Oliveira Ascensão in "Direitos Reais" pág. 243 "a fruição não exige contacto material efetivo, mas quando muito, a possibilidade desse contacto"; refere ainda este Professor que há "corpus" enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito, de tal modo que este possa renovar a atuação material sobre ela, querendo.

No mesmo sentido, vasta jurisprudência, nomeadamente os Ac. do STJ de 21-10-2010, no proc. nº 120/2000.S1, de 06-04-2017, no proc. nº 1578/11.9TBVNG.P1.S1e AUJ de 14-05-1996, no Proc. nº 085204.

A doutrina e a jurisprudência definem o corpus como o exercício atual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus possidendi se carateriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos atos realizados.

Embora o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, do Supremo Tribunal de Justiça – processo nº 85204 - de 14.05.96, publicado no DR II série, de 24.06.96 tenha uniformizado a jurisprudência no sentido de que “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”, na sua fundamentação este AUJ também refere que “O ato de aquisição da posse que releva para a usucapião terá assim de conter dois elementos definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insuscetível de conduzir à dominialidade” e, “São havidos como detentores ou possuidores precários os indicados no art. 1253, ou seja, todos aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com animus de exercer o direito real correspondente”.

Sendo fáceis de constatar os atos objetivos da posse, ou seja, o corpus, o animus (intenção de agir do titular) é mais difícil de apreender e por isso a lei faz presumir que quem exercer os atos materiais da posse também os exercerá (em princípio) com intenção.

O Ac. da Rel. de Co. de 25-02-2014, no proc. nº 1350/11.6TBGRD.C1, refere que “O legislador – sempre sensato no âmbito dos direitos reais - por entender que a prova do elemento intelectual da posse é, por vezes, difícil, estabeleceu, no nº 2 do art.º 1252 do C. Civil, uma presunção no sentido de que se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do nº 2 do art.º 1257 do mesmo diploma”.

Ou seja, para facilitar ao possuidor a prova do “animus”, a lei estabelece no art. 1252, nº 2 do Cód. Civil, uma presunção: em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto. Isto é, a existência do “corpus” faz presumir a existência do “animus”.

Face ao constante da al. U dos factos provados, a “posse” dos réus não pode senão recortar-se como uma posse precária, insuscetível de poder conduzir à aquisição de um direito real por usucapião (cfr. arts. 1253, a) e b) e 1290 do Cód. Civil).

Como refere o Ac. da Rel. de Lisboa, de 04-06-2009, no Proc. nº 1837/08.8TVLSB.L1-6 , “São havidos como detentores ou possuidores precários: os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular e os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem” e, os meros detentores não exercem sobre a coisa (objeto dos seus atos), os poderes de facto com animus de exercer o direito real de propriedade.

O referido al. U da matéria de facto provada é claro ao referir: “O que fizeram à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém quanto a toda a área de terreno que utilizaram; convencidos de estar a exercer um direito próprio e de que não prejudicavam ninguém relativamente ao prédio referido em n), mas já não quanto à faixa de terreno com área de 114,60 m2, que segue ao longo desse muro, referida em z.” (sublinhado nosso).

Não tendo os réus intenção de usar a faixa de terreno como sua não existe qualquer dúvida que permita concluir que os mesmos beneficiam da presunção legal a seu favor. Relativamente àquela faixa, os recorrentes não exerciam atos de posse, mas eram meros detentores, conforme definição do art. 1253 do CC.

A presunção estabelecida no nº 2 do art. 1252 do CC só funciona nos casos de dúvida, e não existe qualquer dúvida face ao provado na referida al. U, da qual resulta provado que o detentor não é possuidor.

Como se lhe refere o Ac. deste STJ de 20-03-2014, no proc. nº 3325/07.0TJVNF.P1S2 “A presunção estabelecida no art. 1252, n.º 2, do CC só atua em caso de dúvida, e não quando se trate de uma situação definida, que exclua a titularidade do direito”. (…). Improcedendo a questão da aquisição originária por usucapião verifica-se que estes réus não são, não podem ser, proprietários daquela faixa de terreno. (…) Consequentemente, há-de ser julgado improcedente o recurso de revista interposto pelos 2ºs réus».

No acórdão recorrido os enunciados de dados de facto provados e não provados foram, por sua vez, os seguintes:

1) Requerente e Requerida são, respectivamente, pai e filha, esta nascida em 05 de Outubro de 1977.

2) Por escritura pública de 27-12-2004 a Requerida declarou comprar o prédio rústico sito em ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n.º...70e inscrito na matriz sob o art. 6, secção B; e o prédio urbano sito em ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n.º ...71 e inscrito na matriz sob o art. ...26; mostrando-se registada a aquisição de ambos os prédios a favor da Requerida, respectivamente, pelas aps. 2/...30.

3) O conjunto dos prédios constitui o denominado ....

4) O Requerente procedeu à demarcação, delimitação, limpeza e vedação da propriedade, para além de tratar das oliveiras.

5) A pedido do Requerente o vendedor procedeu à rectificação da área de implantação do prédio urbano, por forma a permitir a reconstrução de um novo edifício habitacional com a área coberta de 350 m².

6) O Requerente mandou proceder à vedação dos prédios, colocando estacaria e arames, construiu e colocou os portões de acesso e guarda.

7) O Requerente contratou a execução de obras de escavação bem como serviços de pedreiro, trolha, electricista, pichelaria, serralharia, carpintaria, ocorridas no prédio urbano entre os anos de 2005 e 2012.

8) O Requerente mandou proceder às escavações para implantação de alicerces e mandou proceder a construção das paredes, placas de pisos e cobertura, bem como pagou materiais e mão-de-obra a pedreiros.

9) O Requerente mandou proceder à execução e instalação de redes de electricidade, água, e saneamento, bem como às artes de serralharia, carpintaria e trolha.

10) O Requerente deu ordens e mandou proceder à execução de trabalhos de limpeza, tratamentos das oliveiras e apanha da azeitona nos 3,2 hectares de olival e mandou proceder à execução de trabalhos de construção, conservação e manutenção da moradia.

11) O Requerente escolheu e mandou colocar materiais cerâmicos, louças, armários, móveis e equipamentos eléctricos no prédio urbano.

12) O Requerente mandou colocar materiais de carpintaria, pisos, escadas, portas, janelas e tectos na moradia;

13) O Requerente exerceu e praticou todos os actos supra elencados, publicamente, porque à vista de todos, sem oposição de quem quer que fosse.

14) Há cerca de três anos, a Requerida mudou a fechadura do prédio urbano acima identificado, impossibilitando o acesso do Requerente ao mesmo.

15) A venda dos prédios acima identificados encontra-se anunciada no site da R... Portugal por € 1.400.000,00.

Indiciariamente não provado:

A) Ao longo de todos os anos nunca a Requerida praticou, directa ou indirectamente qualquer acto de administração, conservação ou tratamento e cuidado do prédio urbano que integra o “...”.

B) O Requerente agiu sempre na convicção de que os prédios em causa eram e são sua propriedade.

Em matéria de direito a Relação de Évora expõe:

Quanto ao arrolamento: «A situação de posse envolve: “(i) um elemento material – “corpus” – que se identifica com os actos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa; (ii) um elemento psicológico – “animus – que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.”

O “corpus” sem “animus possidendi” não confere a posse, conduz à mera detenção ou posse precária; assim, v.g. o prof. Manuel Rodrigues: “o que eleva a detenção a posse é a intenção de exercer um determinado poder no próprio interesse – é o animus sibi habendi. Sem ele, a relação material é pura detenção que não pode invocar-se para justificar qualquer efeito possessório”

Na espécie, o Requerente demonstra o “corpus” da posse relativamente ao ... [pontos 4 a 13 dos factos indiciariamente provados], mas não demonstra o animus possidendi [ponto B) dos factos indiciariamente não provados].

Os actos materiais exercidos pelo Requerente sobre o ..., segundo se prova, são de pura detenção e, assim, insuficientes para justificar o efeito possessório - a aquisição da propriedade dos imóveis por usucapião - suposto pelo arrolamento.

Assim, dependendo o direito relativo aos imóveis a arrolar de ação a propor pelo Requerente e não se demonstrando, ainda que indiciariamente, os factos de que depende a provável procedência dessa acção, o arrolamento não merece ser decretado.

A decisão recorrida impõe confirmação quanto a esta questão».

Quanto à restituição da posse: «No caso, o Requerente pediu que lhe seja “restituída a posse do urbano e bens móveis”.

O requerimento inicial é totalmente omisso quanto a actos de posse do Requerente relativamente a bens móveis, aliás, não identificados ou discriminados, por isto que dos factos julgados indiciariamente provados não resulta a posse do Requente sobre bens móveis alegadamente existentes no ....

Por ausência de demonstração da posse, a restituição provisória de posse improcede quanto aos bens móveis.

Idêntico raciocínio é válido quanto ao à restituição de posse do prédio urbano; o Requerente não demonstra a posse dos imóveis pelas razões antes consideradas no ponto 2.2. aqui dadas por reproduzidas e, assim, não demonstra a posse do prédio urbano. Acresce dizer que os factos alegados no requerimento inicial não caracterizam o esbulho, isto é, não foram alegados, nem se provam, actos materiais concretos que o Requerente se mostre impedido de exercer na moradia por efeito da provada mudança de fechaduras - o Requerente não alegou habitar a moradia, autorizar terceiros a fazê-lo ou usar ou fruir a moradia por qualquer forma.

Assim, e ainda que se houvesse de considerar caracterizada a violência, por efeito da mudança de fechaduras - “há cerca de três anos, a Requerida mudou a fechadura do prédio urbano acima identificado, impossibilitando o acesso do Requerente ao mesmo” [ponto 14 dos factos indiciariamente provados] – o Requerente não demonstra a posse da moradia, nem concretos actos materiais de privação dessa (indemonstrada) posse, razões pelas quais a providência de restituição de posse da moradia não reúne os pressupostos necessários para ser decretada.

Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida».

Comparando ambos os acórdãos concluímos que inexiste a indispensável oposição jurisprudencial.

Como se lê no acórdão deste STJ, 6.ª secção, de 09.07.2024, Proc. 392/23.3T8MFR.A.L1.S1 «para existência da indispensável oposição jurisprudencial para efeitos de admissibilidade da revista, além do mais e preliminarmente, as decisões entendem-se como divergentes se se baseiam em situações fáctico-materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, acrescendo que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso».

A referida identidade substancial não se verifica neste caso. Vejamos porquê.

Num lado, estamos perante uma acção de reivindicação no outro diante de procedimentos cautelares, de arrolamento e restituição de posse.

A força de prova num e noutro tipo de acções é substancialmente diferente: num caso uma prova plena, noutro uma prova por verosimilhança ou sumária.

A questão de direito foi abordada de modo não coincidente.

No acórdão fundamento esteve sobretudo em causa a aplicação da presunção estabelecida no nº 2 do art. 1252 do CC, que só funciona nos casos de dúvida.

No caso do acórdão recorrido, não existiu qualquer dúvida, face, à referida al. U, que o detentor não era possuidor.

No acórdão recorrido, não se tratou de chegar, ou não, à prova do animus através de uma lógica presuntiva, mas de constatar, pura e simplesmente, a ausência de prova do animus, logo a inexistência do elemento subjectivo da posse.

O recorrente interpôs, a titulo subsidiário, recurso de revista excepcional.

Ora é entendimento unânime, quer da doutrina quer da jurisprudência, que os acórdãos proferidos pela Relação em autos de procedimento cautelar, só podem ser objecto de recurso de revista “normal” nos casos excepcionais previstos no citado art. 629º, nº 2, não sendo admissível, quanto aos mesmos, recurso de revista, a título excepcional (por todos, ac. STJ de 29.10.2020, Proc. 464/19.9T8VRL.G1-A.S1).

Pelo exposto, não são admitidos os recursos».

Como se viu, nas palavras do recorrente, o essencial da revista está relacionada com a nova fixação dos factos materiais provados da causa, feita pelo Tribunal a quo de 2.ª instância no acórdão recorrido», ou seja, uma questão a apreciar, alegadamente ao abrigo do artigo 674.º, caso houvesse oposição relevante entre o acórdão recorrido da Relação de Évora e o acórdão fundamento do Supremo Tribunal de Justiça, o que, como vimos, não acontece.


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Pelo exposto, acordamos em indeferir a reclamação.

Como o reclamante beneficia no apoio judiciário, inexiste fundamento para que seja condenado no pagamento de custas.


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17.12.2024

Luís Correia de Mendonça (Relator)

Maria Olinda Garcia

Luís Espírito Santo