CASO JULGADO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
EXCEÇÃO DILATÓRIA
QUESTÃO NOVA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
OBJETO DO RECURSO
DECLARAÇÃO DE VOTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
Sumário


I. A revista, como recurso ordinário, não pode incidir sobre questões novas, que não tenham sido colocadas ao tribunal recorrido e por este resolvidas, pois o recurso destina-se à reponderação da decisão sobre matéria oportunamente suscitada, em face dos elementos apreciados pelo tribunal recorrido e de acordo com o âmbito de cognição delimitado pelo conteúdo do acto recorrido (arts. 635º, 2, 3 e 5, 671º, 1, 608º, 2, 637º, 2, 1.ª parte, do CPC), sem que tal conteúdo seja integrado por declarações de voto que se opõem à fundamentação e dispositivo decisório do acórdão definitivo e proferido nos termos do art. 663º, 1, do CPC.
II. Não pode o STJ pronunciar-se sobre a alegação, suscitada pela primeira vez na revista, de requalificação da excepção de caso julgado, invocada em defesa e apreciada como tal pelas instâncias, como excepção dilatória inominada de preclusão extraprocessual, que constitui uma figura diferenciada (mesmo que eventualmente com vasos comunicantes) do “caso julgado” enquanto excepção conducente à impossibilidade de conhecimento do mérito (v. essencialmente os arts. 581º, 619º a 621º, e 625º, CPC), com requisitos constitutivos próprios para atingir o resultado pretendido.

Texto Integral


Processo n.º 19861/22.6T8LSB.L1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, 7.ª Secção


Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. AA intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra «COFIDIS (Sucursal da S.A. Francesa Cofidis)», pedindo, no âmbito da resolução por incumprimento de contrato de crédito, ao abrigo do art. 476º, 1, do CCiv. (“enriquecimento sem causa”), que a R. seja “condenada a restituir à A. todas as quantias que já recebeu e as que venha ainda a receber à custa do património da A. e que excedam os montantes que legal e contratualmente dela tinha direito a haver em consequência da resolução do contrato de crédito, ou seja 12.663,86€ e respectivos juros de mora à taxa legal e juros compulsórios contados desde a apresentação do requerimento de injunção” (taxa legal de 4% e taxa de juros compulsórios de 5%, na medida de 50%).

A Ré apresentou Contestação, pugnando pela procedência da excepção de caso julgado, com absolvição da instância, em face da não dedução de oposição no processo de injunção, no processo de execução sumária, na penhora da pensão da Autora, assim como considerada a falta de reclamação relativamente à nota discriminativa apresentada pela Agente de Execução e ao acto de adjudicação das quantias penhoradas, e, subsidiariamente, pela procedência da excepção peremptória da não verificação da situação de cumprimento de obrigação inexistente, pela absolvição do pedido e pela condenação da Autora em litigância de má fé.

A Autora apresentou Resposta, pronunciou-se no sentido da improcedência da excepção de caso julgado e do pedido relativo à litigância de má fé. Pediu ainda a condenação da Ré, como litigante de má fé.

2. Realizou-se audiência prévia, no decurso da qual o Juiz... do Juizo Local Cível de ... proferiu:

(i) decisão que julgou improcedente a excepção dilatória de caso julgado;

(ii) saneador-sentença, julgando procedente a acção e condenando a Ré “a restituir à A. todas as quantias que já recebeu e as que venha ainda a receber à custa do património da A. e que excedam os montantes que legal e contratualmente dela tinha direito a haver em consequência da resolução do contrato de crédito, ou seja 12.663,86€ e respectivos juros de mora à taxa de 8% e juros compulsórios contados desde a apresentação do requerimento de injunção”.

3. Inconformados, a Autora e a Ré interpuseram recursos de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a ser proferido acórdão, no qual se indeferiu a arguição de nulidade imputadas à decisão de 1.ª instância, assente em contradição entre os fundamentos e a decisão, e se deferiu a arguição de nulidade assente em omissão de pronúncia relativamente ao pedido de condenação da Autora em litigância de má fé, julgou improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto (aditamento de facto pretendido pela Ré), decidiu-se o aditamento dos factos 14. a 28. (art. 662º, 1, CPC), julgou improcente a impugnação da decisão sobre a excepção/autoridade de caso julgado, julgou parcialmente procedentes as apelações no sentido de condenar “a R. a restituir à A. os valores que, no âmbito da acção executiva identificada no ponto 10 dos factos provados e com base no título executivo também ali mencionado, tiver recebido e/ou vier a receber por efeito da penhora de bens da A., valores esses correspondentes à diferença entre os juros moratórios calculados, à taxa de 24,72%, sobre a quantia de € 12.663,86 e contados desde 1/2/2013, e os juros moratórios devidos, à taxa legal, sobre aquela quantia de € 12.663,86, contados desde 14/6/2013, e, por fim, julgou absolver as partes dos pedidos de condenação como litigantes de má fé.

O acórdão apresenta declaração de voto de Vencido de um dos Desembargadores Adjuntos, respeitante à decisão de improcedência da excepção de caso julgado.

4. Sem se resignar, a Ré interpôs recurso de revista para o STJ, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões:

“1. Entende o Tribunal da Relação no acórdão proferido que “(…) atenta a não preclusão [pela falta de dedução de oposição à execução / à penhora] dos fundamentos invocados na presente acção pela A. (inaplicabilidade da taxa de juro pretendida pela R. e consequente existência de pagamentos indevidos), e face à inexistência de qualquer decisão judicial de mérito, transitada em julgado, que tenha incidido sobre tais fundamentos, tem de improceder a excepção de caso julgado / autoridade de caso julgado invocadas pela R. recorrente. (…)”.

2. Existe, porém, uma declaração de voto de vencido no acórdão proferido.

3. Entende a Recorrente que, tal como é defendido no dito voto de vencido, “(…) a partir do momento em que o devedor é citado para os termos da execução para, em prazo, deduzir oposição, seja nos termos do Art. 728.º, n.º 1, do CPC (no caso do processo ordinário), seja nos termos do Art. 856.º, n.º 1, do CPC (no caso do processo sumário), funciona o princípio da preclusão (…)” (nesse sentido, veja-se o sumário do Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15-12-2020, processo n.º 20509/19.1T8LSB.L1-7).

4. Estava, por isso, a A., ora Recorrida, impedida de deduzir acção declarativa com os fundamentos invocados na presente acção, uma vez que, conforme referido no voto de vencido em questão, “(…) Não tendo o devedor deduzido oportunamente, no prazo estabelecido pela lei, embargos de executado, deixando que fossem penhorados bens e que a execução fosse declarada extinta (…)” não podia interpor acção declarativa com o objectivo de reaver os valores penhorados, sendo que “(…) O princípio da preclusão deve ser entendido como exceção dilatória inominada que deve determinar a absolvição do réu da instância. (…).

5. A Recorrida tinha o ónus de deduzir embargos, no prazo estabelecido pela lei, o que não fez, tendo a execução sido declarada extinta.

6. Não podia, por isso, a Recorrida, por via do efeito extraprocessual da preclusão, deduzir, como deduziu, uma acção declarativa que contraria a execução e os seus fins.

7. Se assim não fosse, e conforme referido no supra mencionado voto de vencido, os artigos 728.º, n.º 1, e 856.º, n.º 1, ambos do CPC, “(...) perderiam todo e qualquer sentido prático, pondo-se em causa a segurança jurídica e permitindo-se a prática de atos inúteis no contexto do processo de execução.(…)”.

8. Em síntese, entende a Recorrente que, contrariamente ao entendimento do Tribunal da Relação, e salvo o devido respeito, a preclusão do direito a deduzir embargos de executado operou no processo executivo em questão, por via do decurso do prazo correspondente (no caso em análise, tratando-se de uma execução sumária, está em causa o artigo 856.º, n.º 1, do CPC), sem que tenha sido deduzida tal peça processual (o que extingue o direito a praticar o acto – artigo 139.º, n.º 3, do CPC), sendo que daí decorre a inadmissibilidade (intraprocessual e extraprocessual) da prática do acto precludido, pelo que, não tendo a Executada, ora Recorrida, exercido em sede própria o direito em questão, está-lhe vedado, por via do efeito extraprocessual da preclusão, exercê-lo nesta acção.

9. Ficou, assim, evidente que a decisão em crise fez uma desadequada aplicação do Direito, designadamente das citadas disposições legais (artigo 856.º, n.º 1, do CPC, e artigo 139.º, n.º 3, do CPC), que violou, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que determine a absolvição da Ré da instância.”

A Autora apresentou contra-alegações, pugnando pela rejeição da revista.

5. Subidos os autos, foi proferido despacho, ao abrigo dos poderes atribuídos pelo art. 655º do CPC, para exercício do contraditório sobre o não conhecimento do objecto do recurso em face da “questão nova” suscitada pela Recorrente; ambas as partes responderam, em termos opostos.




Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, enfrentando desde logo a questão prévia da admissibilidade do recurso de revista, atento o objecto da revista normal configurada e interposta como tal pela Recorrente.

II) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS

Questão prévia da admissibilidade da revista

1. Verificam-se os requisitos gerais de admissibilidade da revista, seja pelo art. 629º, 1 (valor da causa fixado em € 38.000, por despacho proferido em 14/10/2024, transitado em julgado em 5/11/2024; valor da sucumbência a cargo da Recorrente superior a metade do valor da alçada da Relação, tendo em conta a diferença de juros moratórios invocada pelo Apelante, aqui Recorrente, e fixada pelo acórdão recorrido), seja pelo art. 631º, 1, do CPC.

Porém.

2. O objecto do recurso de revista versa, a propósito da questão da excepção de caso julgado, sobre questão não reapreciada pelo acórdão recorrido, a saber, a qualificação de tal excepção como sendo preclusão extraprocessual decorrente do processo executivo, descrito em referência aos factos provados 8º a 12.º, enquanto excepção dilatória inominada; em síntese:

“a preclusão do direito a deduzir embargos de executado operou no processo executivo em questão, por via do decurso do prazo correspondente (no caso em análise, tratando-se de uma execução sumária, está em causa o artigo 856.º, n.º 1, do CPC), sem que tenha sido deduzida tal peça processual (o que extingue o direito a praticar o acto – artigo 139.º, n.º 3, do CPC), sendo que daí decorre a inadmissibilidade (intraprocessual e extraprocessual) da prática do acto precludido, pelo que, não tendo a Executada, ora Recorrida, exercido em sede própria o direito em questão [ónus de deduzir embargos], está-lhe vedado, por via do efeito extraprocessual da preclusão, exercê-lo nesta acção”.

3. Trata-se de questão de direito nova enquanto assente na qualificação da excepção dilatória deduzida na contestação pela Ré, nos termos dos arts. 573º e 577º, i), do CPC, como excepção inominada de preclusão, em detrimento de excepção baseada na ofensa de caso julgado, como tal invocada e como tal decidida e reapreciada pelas duas instâncias.

4. Na verdade, a Ré defendeu-se na Contestação por excepção (ponto II), itens 4. a 12., com a alegação de caso julgado constituído por decisões judiciais – na sua perspectiva – proferidas no procedimento de injunção e na acção executiva subsequente (com a aposição de fórmula executória no requerimento de injunção), sem que tivesse havido Oposição à Injunção e Oposição à Execução ou à Penhora por parte da aqui Autora e Recorrida, nem qualquer reclamação relativamente à nota discriminativa da Sra. Agente de Execução e respectivo acto de adjudicação – enquanto tal pugnando pela excepção dilatória nominadamente prevista no art. 577º, i), 580º, 2, e 581º do CPC.

5. Em 1.ª instância, decidiu-se:

“Foi invocado pela Ré Cofidis a excepção dilatória de caso julgado, pelo que cumpre apreciar se há caso julgado.

Tanto a litispendência como o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa.

Se a causa se repete durante a pendência da causa anterior há litispendência, se a causa se repete depois da primeira causa ter sido decidida por sentença que já não se admite recurso ordinário, estamos na presença do caso julgado (artigo n.º 580.º do Código de Processo Civil).

Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (artigo 581.º do Código de Processo Civil).

Tanto a excepção da litispendência como do caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigo 580.º, n.º2, do Código de Processo Civil).

Ora, na expressão caso julgado cabem, em rigor, a exceção de caso julgado e a autoridade de caso julgado, muitas vezes designadas, respetivamente, como a "vertente negativa" e a "vertente positiva" do caso julgado.

A exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela exceção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade de caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito.

Ora nos presentes autos ainda não houve nenhuma decisão judicial que pudesse excluir a segunda ação.

Pelo exposto julgo improcedente a exceção dilatória de caso julgado.”

6. Em 2.ª instância, sendo identificada como questão recursiva o “caso julgado”, decidiu-se:

“Pretende a R. que o tribunal não poderia ter conhecido do pedido, por se verificar a excepção de caso julgado ou, pelo menos de autoridade do caso julgado, uma vez que a A. não deduziu oposição ao requerimento de injunção, nem oposição à execução, nem oposição à penhora, e também não reclamou da liquidação efectuada pela Sr.ª Agente de Execução.

Vejamos.

Nos termos dos arts. 580º e 581º do Código de Processo Civil, o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário, visando-se evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Considera-se que se repete a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, havendo identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.

Por outro lado, como se refere, entre outros, no Ac. RL de 28/2/2019 (proc. 18897/11, disponível em http://www.dgsi.pt), mesmo não ocorrendo aquela tríplice identidade, configura-se a aplicação da figura da autoridade de caso julgado, que «tem a ver com a existência de relações entre acções, já não de identidade jurídica (própria da excepção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre acções, de tal ordem que julgada, em termos definitivos, uma certa questão em acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre essa questão ou objecto da primeira causa, se impõe necessariamente em todas as acções que venham a correr termos, ainda que incidindo sobre objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na acção posterior».

Em qualquer dos casos (excepção de caso julgado ou autoridade de caso julgado) é mister que exista uma decisão judicial prévia, transitada em julgado.

Ora, no caso dos autos, não se encontram preenchidos os pressupostos da excepção de caso julgado, ou sequer da autoridade do caso julgado, porque, desde logo, não existiu uma acção prévia em que tenha existido uma decisão judicial de mérito acerca da questão que aqui se aprecia [saber quais as quantias que eram devidas pela A. à R., em face do contrato entre ambas celebrado, e, em consequência, se foram efectuados pagamentos em excesso] ou acerca de uma questão com ela conexa.

Com efeito, no caso do procedimento de injunção, o requerimento ali apresentado pela aqui R. não foi submetido a qualquer apreciação judicial, antes tendo sido aposta, pelo Sr. Secretário Judicial do B.N.I., a fórmula executória, atenta a falta de dedução de oposição. Tal acto do Sr. Secretário é meramente administrativo, tendo como única consequência a formação de um título executivo extrajudicial, mas não constituindo qualquer decisão de mérito proferida por um órgão jurisdicional, sendo certo que a falta de oposição não tem qualquer consequência preclusiva relativamente aos fundamentos da oposição. É que, sendo a injunção um título executivo formalizado por um acto de um secretário de justiça, num processo pré-judicial implementado por um credor contra o respectivo devedor, na sequência da omissão de oposição por parte do último, apesar de notificado com essa cominação, estamos perante um título executivo extrajudicial especial ou atípico. Assim sendo, a falta de oposição do requerido, embora releve do ponto de vista da aposição da fórmula executória no requerimento de injunção, não implica a existência de um acto jurisdicional de composição do litígio, pelo que a fórmula executória é insusceptível de assumir efeito de caso julgado ou preclusivo para o requerido (cfr. Salvador da Costa, A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 4ª ed., págs. 150, 213, 214, 251, 252).

Por outro lado, quanto à falta de oposição à execução e de oposição à penhora, é também clara a inexistência de qualquer decisão judicial, transitada em julgado, que confira efeitos a essa falta e, muito menos, que fixe a quantia devida pela A. à R.. (…)

Deste modo, atenta a não preclusão [pela falta de dedução de oposição à execução / à penhora] dos fundamentos invocados na presente acção pela A. (inaplicabilidade da taxa de juro pretendida pela R. e consequente existência de pagamentos indevidos), e face à inexistência de qualquer decisão judicial de mérito, transitada em julgado, que tenha incidido sobre tais fundamentos, tem de improceder a excepção de caso julgado / autoridade de caso julgado invocadas pela R. recorrente.

E o mesmo se diga a propósito da falta de reclamação do acto da Sr.ª Agente de Execução mediante o qual esta efectuou o cálculo da quantia em falta. Também aqui não existe qualquer decisão judicial transitada em julgado que fixe o montante da dívida exequenda. Efectivamente, o agente de execução exerce um conjunto de funções (art. 719º do Código de Processo Civil) que não são materialmente judiciais, mas sim materialmente administrativas, não constituindo os seus actos o exercício do poder jurisdicional e, portanto, não faz sentido, relativamente a ele, falar-se «em caso julgado, uma vez que se trata de instituto apenas aplicável às decisões judiciais» [Cfr. Ac. RG de 7/6/2023, proc. 633/16, disponível em http://www.dgsi.pt.].

Claro que, atenta a falta de impugnação, o acto da Sr.ª Agente de Execução se tornou definitivo, no sentido de que se trata de um caso estabilizado ou resolvido. No entanto, tal acto não teve a virtualidade de definir as quantias em dívida por força da relação contratual de A. e R., nada tendo apreciado acerca disso, já que se limitou a efectuar simples cálculos aritméticos sem que se tenha pronunciado sobre a relação jurídica substancial e, por isso mesmo, tais cálculos apenas têm eficácia dentro do processo executivo.

Assim, improcedem todas as conclusões de recurso relativas à excepção / autoridade de caso julgado, devendo manter-se, nessa vertente, a decisão recorrida.”

7. A Recorrente, nesta revista, invoca exactamente a mesma excepção que obteve a mesma resposta por ambas as instâncias.

Sempre a Recorrente poderia bater-se pela sua leitura e aplicação ao presente processo da excepção de “ofensa de caso julgado”, à luz do art. 629º, 2, a), do CPC, obrigando em 3.º grau a uma pronúncia definitiva.

O que a Recorrente fez, em contrapartida, foi restringir o âmbito do recurso à excepção retirada do processo executivo (afastando desta feita a excepção baseada no procedimento de injunção) – processualmente legítimo à luz dos arts. 635º, 3 e 4, e 639º, 1, do CPC – e pugnar, nesse âmbito de impugnação, pela qualificação da excepção agora como preclusão extraprocessual decorrente da não observância do ónus de dedução de embargos de executado nesse processo executivo.

Desta feita, portanto, batendo-se, a propósito da mesma forma de defesa por excepção – e já excepção dilatória, ainda que nominada e submetida desde logo ao regime do art. 578º, 1.ª parte, do CPC –, pela invocação de uma excepção dilatória de natureza inominada, ainda integrada no âmbito de aplicação dos arts. 577º (exemplificativo) e 576º, 2 (impossibilidade de conhecimento do mérito do pedido feito nesta acção declarativa) do CPC, e, como tal, invocando, de sorte originária no processo, a actuação processual da preclusão.

Esta é, portanto e inequivocamente, uma questão nova, que resulta de questão anteriormente invocada, apreciada e reapreciada nas instâncias como excepção de caso julgado – enquanto tal, uma excepção dilatória apreciada como tal na instância recorrida (independentemente, atento o caso, que obvia à sua aplicação, do art. 578º do CPC) – e que se transmuta em matéria de qualificação da excepção e sua consequência, que não foi submetida ao contraditório no tempo oportuno e não foi apreciada e decidida pelo tribunal recorrido no seu perímetro de cognoscibilidade.

Em rigor – e até terminalmente decisivo –, a Recorrente traz à lide uma figura diferenciada (mesmo que eventualmente com vasos comunicantes) do “caso julgado” enquanto excepção conducente à impossibilidade de conhecimento do mérito (v. essencialmente os arts. 581º, 619º a 621º, e 625º, CPC), com requisitos constitutivos próprios para atingir o resultado pretendido.

8. O objecto dos recursos não pode integrar questões novas, que não tenham sido colocadas ao tribunal recorrido e por este resolvidas, pois o recurso destina-se à reponderação da decisão sobre matéria oportunamente suscitada, em face dos elementos apreciados pelo tribunal recorrido e de acordo com o âmbito de cognição delimitado pelo conteúdo do acto recorrido1.

Como, por ex., foi sublinhado no Ac. do STJ de 19/1/20232, “os recursos visam a reanálise de decisões adoptadas à luz da situação trazida pelas partes – ou de conhecimento oficioso – no momento em que foram proferidas, de acordo com a livre disponibilidade da defesa e o princípio da concentração da defesa na contestação. Não sendo este o caso, não pode a questão ser objecto do recurso, não tendo o tribunal – nem podendo – dela conhecer”. Ou seja, “na fase de recurso, as partes e o tribunal superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objeto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. A demanda do tribunal superior está circunscrita a questões que já tenham sido submetidas ao tribunal de categoria inferior”, visando “obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre”, sob pena de, “por se tratar de questão nova, nunca submetida ao conhecimento do tribunal a quo, dela não se toma conhecimento” (agora o Ac. do STJ de 15/10/20243).

Em suma: as questões novas não podem ser apreciadas no recurso, “quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos”4.

9. No caso, tal âmbito reconduz-se à questão da excepção dilatória de “caso julgado” (págs. 19 a 25 do acórdão recorrido), em resposta às Conclusões 1. a 6. da Apelação, da aqui Recorrente, de acordo com o previsto, em geral, no art. 635º, 2, 3 e 5, e, em particular para a revista, no art. 671º, 1, do CPC, em conjugação com o princípio geral de cognição contemplado no art. 608º, 2, e o especialmente previsto no art. 637º, 2, 1.ª parte, sempre do CPC, sob pena de não conhecimento do objecto da revista incidente sobre o segmento do acórdão recorrido que assim dispôs: “improcedem todas as conclusões de recurso relativas à excepção / autoridade de caso julgado, devendo manter-se, nessa vertente, a decisão recorrida”.

Advirta-se, por fim, que o objecto cognitivo da revista é definido na fundamentação e no dispositivo decisório do acórdão proferido pela Relação (enquanto conteúdo do próprio acórdão5), não podendo para essa delimitação contar as declarações de voto que se opõe ao acórdão que se oferece em revista, pois não é dessas que se recorre nem estas podem abrir as portas por si só ao grau superior de jurisdição – v. arts. 663º, 1 («O acórdão definitivo é lavrado de harmonia com a orientação que tenha prevalecido (…).»), 679º, CPC.

É o suficiente para concluirmos pela inadmissibilidade da revista.

III) DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso.

Custas pela Recorrente.

STJ/Lisboa, 17/12/2024

Ricardo Costa (Relator)

Maria Olinda Garcia

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

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1. V., sempre convergentes no sistema recursório do CPC, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A eficácia da composição da acção”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 395-396, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMINDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 627º”, pág. 15, “Artigo 635º”, págs. 70-71, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 627.º a 877.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, ABRANTES GERALDES, “Artigo 635º”, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 119-120.↩︎

2. Processo n.º 682/18, in www.dgsi.pt.↩︎

3. Processo n.º 24011/19, in www.dgsi.pt.↩︎

4. ABRANTES GERALDES, “Artigo 635º”, Recursos… cit., pág. 120, sublinhado nosso.↩︎

5. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMINDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 671º”, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º cit., págs. 197-198.↩︎