A revista atípica e restritiva contemplada pelo art. 14º, 1, do CIRE afasta a admissibilidade da revista excepcional e não permite o conhecimento do objecto do recurso que se configura como fundada na al. a) do art. 672º, 1, do CPC, alheia a oposição de julgados, que, assim sendo, não permite, por ausência de ser invocada contradição jurisprudencial relevante, que seja aproveitada a pretensão recursiva, por intermédio de convolação oficiosa (arts. 6º, 2, 193º, 3, 547º, CPC), para a consequente integração no regime do art. 14º, 1, do CIRE (cálculo e fixação da remuneração variável do administrador de insolvência, tendo em conta o art. 23º, 10, em conjugação com os respectivos n.os 4, b), 6 e 7, do EAJ).
Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, 1.ª Secção
Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I) RELATÓRIO
1. No âmbito do processo em que foi decretada a insolvência da «C..., Lda.» por sentença proferida em 30/5/2011, transitada em julgado, foi nomeado AA como administrador da insolvência (AI), que juntou aos autos o Relatório a que faz referência o art. 155º do CIRE.
2. Foram reclamados e reconhecidos créditos no valor global de € 16.173.109,59, sendo não reconhecidos créditos no valor global de € 14.562,52, nos termos da lista junta pelo AI no apenso de reclamação, verificação e graduação de créditos (art. 129º do CIRE).
Foram proferidas sentenças de reconhecimento parcial dos credores com créditos não impugnados (13/2/2019) e de apreciação das impugnações, verificação e graduação de créditos reconhecidos (8/11/2022, com rectificação em 21/11/2022).
3. Foram prestadas contas da administração da massa insolvente (5/1/2023), julgadas validamente prestadas por sentença (25/5/2023), transitada em julgado, de onde resulta que o valor de receitas importou em € 2.140.434,59 e as despesas em € 266.135,42.
4. O Juiz ... do Juízo de Comércio de ... proferiu despacho nos autos principais do processo de insolvência (23/4/2024) a fixar em € 100.00, 00, acrescidos de IVA, a remuneração variável devida ao AI, com a seguinte argumentação e teor:
“Foi apurado o valor total das receitas de € 2 171 237,83 (base tributável, prestação de contas e devolução/ATA de € 30 803,24).
Deste valor, deduzem-se as dívidas da massa insolvente que, no caso concreto, somam € 289 605,50, divididos da seguinte forma:
- Custas do processo de insolvência – € 25 749,50 (cfr. alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º do CIRE);
- Despesas da massa insolvente – € 263 856,00 (despesas sem a remuneração fixa e sem as custas do processo de insolvência).
O resultado da liquidação é de € 1 881 632,33.
A remuneração (base), achada nos termos do disposto na alínea b) do n.º 4 do citado artigo 23.º, é de € 94 081,62.
Para se calcular a majoração prevista no n.º 7 do mesmo artigo 23.º, há que considerar o valor efetivamente disponível para pagamento a credores que, no caso vertente, é de € 1 763 451,94 (correspondente ao valor da receita da liquidação, deduzidas as despesas acima elencadas, o valor da remuneração fixa, incluindo impostos, e o valor da remuneração variável, incluindo impostos, antes da majoração).
Foram reconhecidos créditos no valor global de € 16 176 842,99 (com VUC).
O grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos é de 10,90%.
O valor da majoração, calculado nos termos do disposto no referido n.º 7, é, assim, de € 9 610,81 (€ 1 763 451,94 x 5% x 10,90%).
A remuneração variável ascenderia, assim, a um valor total € 103 692,43 (sem IVA).
Como se mostra excedido o limite máximo previsto no artigo 23.º, n.º 10, do EAJ, fixamos em € 100 000,00 (cem mil euros), acrescidos do imposto IVA, a remuneração variável (RV) devida ao senhor Administrador da Insolvência.”
5. Inconformado, o AI interpôs recurso de apelação (20/5/2024; ref.ª CITIUS ...32, proc. principal) para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho proferido, visando a sua revogação e a fixação de tal remuneração variável em € 243.292,08, acrescida de IVA, totalizando € 299.250,14.
“1º - No caso, e como questão jurídica central, cumpre apreciar da conformação legal dos termos do cálculo da remuneração variável realizado pelo tribunal recorrido por referência ao limite máximo de €100.000,00 previsto pelo art. 23º, n.º 10 do EAJ, mais concretamente, se este incide apenas sobre o resultado da operação prevista pelo art. 23º, n.º 4, al. b), como pretende o recorrente, ou sobre o montante total da remuneração determinada nos termos previstos pelos nº 4, al. b) e 7 do art 23º do EAJ, como foi entendido pelo tribunal recorrido.
2º - Caso não resulte prejudicado pela solução da questão precedente, cumpre aferir da correção do valor do resultado da liquidação considerado pelo tribunal recorrido por referência aos montantes das receitas e das despesas que para o efeito considerou e, nos termos do art. 665º, nº 2 do CPC, em substituição do tribunal recorrido, cumpre determinar e fixar o montante total da remuneração variável – incluindo a parcela da majoração prevista pelo art. 23º, nº 7 do EAJ –, com todas as condicionantes legalmente previstas, que inclui a ponderação da redução da remuneração prevista pelo nº 8 do art. 23º do EAJ, limitada nesta instância pelo princípio da proibição da reformatio in pejus ao valor de €100.000,00 fixado pelo tribunal recorrido.” –,
julgou improcedente o recurso interposto, no que concerne à interpretação e aplicação do art. 23º, 10, do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ), aprovado pela Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro, mantendo-se, por isso, a decisão recorrida na fixação da remuneração variável do AI no montante de € 100.000,00.
6. Novamente sem se resignar, o AI Requerente veio interpor recurso de revista excepcional para o STJ, tendo por base os arts. 671º, 3 (“dupla conformidade”), e 672º, 1, a), do CPC, invocando “questão nova cuja apreciação (…), pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para melhor aplicação do direito” (cfr. Conclusões 1.ª a 4.ª).
Não foram apresentadas contra-alegações por qualquer parte interveniente no processo.
7. Subidos os autos, foi proferido despacho, ao abrigo dos poderes atribuídos pelo art. 655º do CPC, para exercício do contraditório sobre o não conhecimento do objecto do recurso em face da disciplina da revista prevista no art. 14º, 1, do CIRE; o Recorrente apresentou resposta, pugnando pela apreciação dos pressupostos da revista excepcional pela Formação Especial do STJ a que alude o art. 672º, 3, do CPC.
II) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS
Questão prévia da admissibilidade da revista
1. A decisão de fixação da remuneração variável do AI, em especial na vertente ou parcela do seu montante máximo à luz do art. 23º, 10, do EAJ, em face da sua conjugação com os respectivos n.os 4, al. b), 6 e 7, proferida em 1.ª instância e reapreciada pela Relação, sendo tramitada endogenamente como incidente nos próprios autos de insolvência, rege-se pelo especial regime de recurso previsto no artigo 14º, 1, do CIRE, que configura uma revista atípica e restrita e, por isso, delimitador da susceptibilidade da revista para o STJ em termos exclusivos e excludentes – cfr. AUJ do STJ n.º 13/2023, de 17/10/2023, publicado in DR 1.ª Série, de 21/11/2023; ainda, sobre este objecto recursivo, nesta 6.ª Secção, o Ac. do STJ de 1/10/2024, processo n.º 14878/16, in www.dgsi.pt, que, no âmbito do art. 14º, 1, do CIRE, se debruçou sobre a “sequência articulada de disposições [n.º 4, alínea b), n.º 6 e n.º 7] que traçam o alcance normativo do que deve ser entendido por remuneração variável em caso de liquidação da massa insolvente” (do art. 23º do EAJ).
Exclusivos e esgotantes por afastar, em geral, o regime de revista normal ou regra, assente no art. 671º, 1 e 2, do CPC, assim como os regimes particulares de revista excepcional assente em “dupla conformidade decisória” art. 671º, 3, CPC) e de revista extraordinária baseada nas situações gerais previstas no art. 629º, 2, do CPC («é sempre admissível recurso») (por ex., v. o Ac. do STJ de 22/6/2021, processo n.º 950/20, in www.dgsi.pt).
Assim, a admissibilidade desta revista depende, em particular e apenas e só, de ser invocada e assente uma oposição de julgados sobre «a mesma questão fundamental de direito» com um (e um só) outro acórdão do STJ ou das Relações, com vista a inscrever tal conflito jurisprudencial como condição de acesso ao STJ («No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.»).
2. Verifica-se que, independentemente dos requisitos gerais previstos no art. 629º, 1, do CPC (valor da causa do processo de insolvência e sucumbência), a revista interposta se baseia exclusivamente no regime da revista excepcional, fundada na al. a) do art. 672º, 1, do CPC («em causa questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito»), sem invocação de qualquer oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito e indicação de acórdão fundamento, para o efeito de permitir ser feita a avaliação preliminar do conflito jurisprudencial a que alude o art. 14º, 1, do CIRE e, uma vez feita em sentido positivo, poder ser admitida e posteriormente conhecida a revista.
3. Tal circunstância processual – por limitada à al. a) do art. 672º, 1, e só esta (art. 637º, 2, 1.ª parte, 639º, 1 e 2, CPC) – não permite, ademais, que, não sendo invocada tal contradição jurisprudencial, pudesse ser aproveitada a pretensão recursiva, por intermédio de convolação oficiosa (arts. 6º, 2, 193º, 3, 547º, CPC), para a consequente integração no regime do art. 14º, 1, do CIRE, pois só este permite e permitiria o acesso ao 3.º grau e, para o permitir, não se prescinde da invocação e da confirmação de uma oposição de julgados relevante e instrumento para o conhecimento do recurso.
Em suma.
4. Em qualquer uma das facetas analisadas, e sem mais, falece o propósito de se poder conhecer da impugnação do acórdão proferido em 2.ª instância – como é, nestes casos, consensualmente julgado e decidido por esta 6.ª Secção, com competência especializada para o efeito (art. 128º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto: LOSJ); elucidativamente, v. o Ac. do STJ de 24/11/2020, processo n.º 4198/19, in www.dgsi.pt.
III) DECISÃO
Em conformidade, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso, atenta a sua manifesta inadmissibilidade.
Custas nesta instância pelo Recorrente.
STJ/Lisboa, 17/12/2024
Ricardo Costa (Relator)
Maria Teresa Albuquerque
Cristina Coelho
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, e 679º, CPC)