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FIEL DEPOSITÁRIO
DESCAMINHO
Sumário
I - A simples não entrega dos bens penhorados ao encarregado da venda não integra o crime de descaminho previsto e punido no artigo 335 do Código Penal. II - Tal crime exige uma acção directa sobre a coisa, isto é, uma actuação que a destrua, inutilize ou impeça a sua entrega em definitivo.
Texto Integral
Acordam, em audiência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de....., após julgamento em processo comum e perante tribunal singular, foi o arguido Victor..... condenado pela prática de um crime de descaminho, p. e p. pelos artigos 355º, 26º e 14º,1 do Cód. Penal, na pena de 11 (onze) meses de prisão, suspensa pelo período de 2 (dois) anos, ao abrigo do disposto no art.º 50º, 1 e 5 do Cód. Penal; foi ainda condenado no pagamento das custas e outros encargos do processo.
Desta decisão interpôs recurso o arguido, formulando as seguintes conclusões:
1) Os factos provados na douta sentença recorrida não permitem concluir que o arguido cometeu o crime de descaminho pelo qual vinha acusado;
2) De igual forma, os factos dados como assentes não podem, por insuficientes, fundamentar a aplicação ao arguido da pena de prisão na qual foi condenado;
3) Do teor da decisão condenatória recorrida ressalta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
4) Por último, e como acima se enunciou, é nosso entendimento que o Tribunal a quo devia ter-se pronunciado (o que não fez) sobre o alegado pelo arguido na contestação que ofereceu, quanto à situação dos bens penhorados, pois com interesse decisivo quer para o sentido da decisão, quer para a medida concreta da pena;
5) Deixando o tribunal recorrido de se pronunciar sobre esta questão que devia ter apreciado, atenta a sua indicada relevância, a sentença proferida é nula, nos termos do art.º 379º, 1 al. c) do C.P.P.
Conclui pedindo que o recurso seja julgado procedente, revogada a sentença recorrida e o arguido absolvido do crime por que vinha acusado e foi sentenciado.
O M.ºP.º respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
O Ex.mo Procurador Geral Adjunto, neste tribunal, acompanhou a resposta do M.ºP.º, de que o recurso não merece provimento, nada mais acrescentando.
Colhidos os vistos legais, procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância do formalismo legal.
2. Fundamentação 2.1 Matéria de Facto
A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
a) no dia 9 de Junho de 1999, pelas 10.00 horas, no H..... na Rotunda....., em....., foi lavrado um auto de penhora no âmbito da Carta Precatória n.º ../99, proveniente da -ª Secção do -º Juízo Cível de..... e extraída dos Autos de Execução Ordinária n.º ../99;
b) Foram penhoradas 12 verbas, sendo:
1 frigorífico, no valor de 80.000$00;
2 frigoríficos, no valor de 215.200$00;
12 frigoríficos no valor de 557.000$00;
5 frigoríficos no valor de 579.000$00;
13 fogões, no valor de 727.000$00;
8 televisores no valor de 932.000$00;
15 máquinas de lavar roupa, no valor de 500.000$00;
4 frigoríficos no valor de 394.000$00;
28 aspiradores no valor de 436.000$00;
8 máquinas de lavar roupa no valor de 536.000$00;
2 frigoríficos no valor de 255.000$00;
1 frigorífico no valor de 100.000$00, bens estes descritos naquele auto de penhora;
c) O arguido foi constituído fiel depositário daqueles bens, com a obrigação de os guardar e com o dever de os apresentar quando lhe fosse exigido, sob pena de incorrer em sanção legal;
d) No dia 12 de Dezembro de 2000, o encarregado da venda Joaquim..... constatou que os bens não se encontravam naquele local e à guarda do arguido;
e) O arguido agiu com vontade livre e consciente, de modo a subtrair ao poder público os bens referidos, que lhe haviam sido entregues na qualidade de fiel depositário, dando-lhe descaminho, bem sabendo que a sua conduta não era permitida por lei;
f) O arguido encontra-se desempregado e vive em casa de familiares;
g) Não possui quaisquer bens próprios;
h) Tem o 5º ano de escolaridade e não tem antecedentes criminais.
A decisão recorrida considerou não provados os seguintes factos:
a) que o empregado do arguido, Alfredo, tivesse transportado os bens penhorados para local diverso do indicado pelo arguido;
b) que o arguido não soubesse onde estavam guardados os bens penhorados.
2.2. Matéria de direito
O recorrente imputa à sentença erro de julgamento quanto à verificação dos elementos do crime previsto no artigo 355º do C. Penal (insuficiência da matéria de facto provada para a decisão condenatória) ou, quando assim se não entenda, omissão de pronúncia sobre factos da contestação relevantes, quer para a verificação da ilicitude, quer para a determinação da medida da pena.
Seguiremos esta ordem na apreciação dos vícios imputados à sentença. Se os factos dados como provados não integrarem o crime de descaminho (art. 355º do C. Penal) por que foi condenado o recorrente, fica prejudicada a apreciação da alegada “omissão de pronúncia” sobre factos relevantes.
a) insuficiência da matéria de facto para a condenação do arguido
Sobre este ponto, diz o recorrente que, na decisão recorrida, não foram dados como provados, nem como não provados, os seguintes factos indispensáveis para a sua condenação, designadamente:
- que tivesse sido notificado para apresentar os bens penhorados;
- que se tivesse recusado a entregá-los;
- que tivesse sido advertido de que a não apresentação dos bens fosse cominada com o crime de descaminho;
- nada se disse sobre o facto do arguido ter informado o tribunal que ordenou a penhora e a venda, sobre a situação dos bens penhorados, designadamente que tais bens ainda existiam.
Em seu entender, tais factos eram relevantes, pois, só através do recorte preciso da sua actuação concreta, se poderia recortar o tipo de ilicíto-penal preenchido: crime de desobediência, crime de abuso de confiança, ou crime de descaminho. Deste modo e sem essa prova, não deveria ter sido condenado.
A sentença recorrida entendeu que o crime de descaminho se verificava com a mera não entrega dos bens penhorados ao encarregado da venda. Considerou, para tanto, que preenche o conceito de “subtracção ao poder público” qualquer acção do depositário que não seja a entrega do bem, quando o mesmo lhe for solicitado.
Se este entendimento estiver correcto, os factos provados são bastantes para a verificação deste elemento do tipo do crime de descaminho (art. 355º do C. Penal), uma vez que se provou que o depositário os não entregou ao encarregado da venda.
Todavia, o entendimento da doutrina e da jurisprudência não permite tal construção jurídica.
A doutrina nacional, segundo o texto citado na própria sentença, é no sentido contrário. “o delito em análise - cita a sentença o Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 419 - configura um crime de lesão do bem jurídico (de dano, neste sentido classificatório) consumando-se tão só quando o agente frustra, total ou parcialmente, a finalidade da custódia, através de uma acção directa sobre a coisa: inutilizando-a ou descaminhando-a”. Daqui decorre que este elemento do tipo (subtracção ao poder público) implica a frustração da finalidade da custódia, isto é, impede (total ou parcialmente) definitivamente a realização dessa finalidade, que é a de entregar os bens. Mais, para além da frustração definitiva da finalidade da custódia, é ainda necessário que essa frustração ocorra através de “uma acção directa sobre a coisa”, isto é, uma actuação que a destrua, inutilize, ou impeça a sua entrega.
Na jurisprudência, tem-se entendido que a não entrega, pelo depositário, dos bens penhorados, pode preencher três tipos de ilícito, conforme a acção concretamente praticada pelo depositário: desobediência; abuso de confiança; descaminho. Como se diz no Acórdão desta Relação de 28-6-95, rec. 15335 (www.dgsi.pt/jtrp) “O depositário que, devidamente notificado, não faz a entrega dos bens penhorados, pode cometer, segundo as circunstâncias provadas, o crime de desobediência do art. 388º,1, de abuso de confiança do art. 300º,2,b ou de descaminho ou destruição de objectos confiados sob o poder público, ou de violação de apreensão legítima dos artigos 396 ou 397 do Código Penal”.
O entendimento segundo o qual não pode inferir-se da mera não entrega, o preenchimento do tipo do crime de descaminho, é, de resto, frequente: no acórdão desta Relação, de 20-11-2002, proc. 594/01, entendeu-se que a não entrega dos bens penhorados não integrava, sequer, o crime de desobediência; no acórdão da Relação de Lisboa, de 13-7-99, proc. 72565, considerou-se que a não entrega se limita a “afrontar a ordem legítima” e, por isso, a constituir um crime de desobediência; no Acórdão da Relação de Coimbra, de 27-1-99, proc. 927/98, perfilhou-se o mesmo entendimento.
Concordamos inteiramente com esta orientação.
A acção típica - susceptível de integrar o crime de descaminho ou destruição - deve “destruir, danificar, inutilizar ou subtrair ao poder público” uma coisa apreendida - cfr. art. 355º do C. Penal. Ainda que a subtracção, neste caso, não implique a intenção de apropriação - o bem jurídico protegido não é, aqui, o direito de propriedade – a mesma deve traduzir a frustração definitiva da sujeição ao poder público. Se o fiel depositário não apresenta os bens no momento em que lhe são pedidos, mas os entrega mais tarde, em perfeito estado, a sua conduta apenas afrontou a ordem legítima, sem frustrar o “poder público” sobre a coisa. Um outro entendimento levaria a que, enquanto os bens não fossem entregues, teríamos tantos crimes de descaminho quantas fossem as ordens não cumpridas da sua entrega, o que não parece compatível com um conceito de subtracção, por mais amplo que este seja.
Perante este recorte do conceito “subtracção ao poder público”, verificamos que não se provaram factos nele subsumíveis. Nem poderiam, de resto, provar-se, pois não constava da acusação a concreta acção directa sobre a coisa, através da qual a mesma foi subtraída ao poder público. A sentença deu apenas como provado que o encarregado da venda “constatou que os bens não se encontravam naquele local e à guarda do arguido”. Ora, tal constatação, além de não excluir a hipótese de estarem noutro local, nada esclarece sobre a situação do bens, designadamente se os mesmos existem, ou não, nem sobre a natureza da actividade do arguido, relativa à frustração definitiva da finalidade da custódia.
Finalmente, os factos dados como provados não permitem qualquer outra qualificação jurídico-penal: não permitem a qualificação como desobediência, porque não consta dos autos (matéria provada) que o depositário tenha sido advertido com essa cominação, nem a mesma resulta directamente da lei – cfr. art. 348º do C. Penal e Acórdão da Relação do Porto de 21-11-2002, rec. 594/01; também não permitem a qualificação como abuso de confiança, dado não se ter provado, qualquer facto demonstrativo da intenção de apropriação dos bens penhorados - cfr. art. 205º do C. Penal.
Deste modo, não nos encontramos em condições de poder qualificar diversamente os factos dados como provados na decisão recorrida – cfr. Acórdão para fixação de jurisprudência n.º 4/95, de 7.6.95, D.R. I série A, de 6.07.95 que admite tal possibilidade, sem prejuízo da “reformatio in pejus” – uma vez que, em boa verdade, dos factos provados não resulta a prática, pelo arguido, de qualquer crime.
Do expendido resulta que o arguido deve ser absolvido, ficando prejudicada a alegada “omissão de pronúncia”, quanto a factos relevantes alegados na contestação.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a sentença recorrida e absolver o arguido.
Sem custas.
Porto, 26 de Novembro de 2003
Élia Costa de Mendonça São Pedro
José Manuel Baião Papão
Manuel Joaquim Braz
Joaquim da Costa Mortágua