I. É muito conveniente que a justiça seja pronta; mas é muito mais conveniente que ela seja justa.
II. Por isso é de exigir prudência no saneador.
III. O juiz só poderá conhecer de mérito no saneador quando o processo contenha todos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa.
IV. Não revela aquela prudência, justificando que o STJ ordene a baixa do processo á Relação, o saneador-sentença proferido numa acção de anulação de uma deliberação social, sem se apurar matéria controvertida que permita dar a conhecer qual a vontade real dos sócios quando aprovaram determinado clausulado no pacto social e qual o conteúdo e o alcance do direito especial à gerência de um sócio minoritário em confronto com o direito dos sócios nomearem gerentes.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
“Decretar-se a nulidade de todas as deliberações tomadas a coberto do ponto 3 da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da ré no passado dia 26 de abril de 2022, por ofensiva dos bons costumes e violação de conteúdo de norma inderrogável;
Subsidiariamente,
Decretar-se a anulabilidade de todas as deliberações tomadas a coberto do ponto 3 da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da ré datada de 26.04.2022;
Em ambos os casos, decretar-se o cancelamento do registo de nomeação como gerente de BB, promovido pela Ap. 6 de 06.05.2022”.
Alega que é sócio da ré, desde a data do registo da sua constituição (28.05.2009), juntamente com outros cinco sócios, sendo cada um titular de uma quota com o valor nominal de €50.000,00, obrigando-se tal sociedade com a intervenção conjunta de dois gerentes.
Desde a constituição da Ré, sempre esteve investido nas funções de gerente de direito e de facto, como gerente executivo, toda a gestão de si dependendo, sendo que o segundo gerente (CC) sempre foi apenas gerente de direito, não executivo.
Em assembleia geral, realizada no dia 16.11.2016, os sócios, por unanimidade, deliberaram atribuir-lhe um direito especial à gerência.
Sucede que, no dia 26.04.2022, realizou-se uma assembleia geral da sociedade, com inclusão na ordem de trabalhos, como ponto 3, «discutir e deliberar sobre a recondução ou não dos atuais corpos gerentes e nomeação de novos gerentes, bem como dos revisores oficiais de contas», e aí foi deliberado, com o voto contra do autor e com o voto a favor dos restantes sócios, a nomeação de um novo gerente, a saber, BB.
Ora essa convocatória e a própria deliberação social estão afectadas dos valores negativos de nulidade e anulabilidade, tal como indica.
A ré contestou pedindo a improcedência da acção e a condenação do autor como litigante de má-fé.
Foi proferido saneador-sentença com o seguinte teor: «Pelo exposto julgo a presente ação totalmente improcedente e, em consequência, absolvo a ré Cosvalinox - Indústria Metalúrgica e Equipamentos, Lda. de todos os pedidos formulados pelo autor AA, condenando este último no pagamento integral das custas da ação.
Mais decido não condenar o autor como litigante de má fé e em consequência indeferir a indemnização requerida pela ré».
Inconformado, interpôs o autor competente recurso, o qual foi julgado totalmente improcedente,
De novo inconformado, interpôs o autor recurso de revista excepcional, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
«1) Odoutoacórdãosob censura do qual vem interpostoo presente recurso, está ferido de ilegalidade e portanto não poderá manter-se na nossa ordem jurídica, impondo-se a sua revogação.
2) O tribunal a quo não se pronunciou sobre as conclusões 5); 11); 20); 23); 27); 28); 30), 33); 66); 69); 78); 79); 80); 81 e 83) do recurso de apelação;
3) Como tal, as instâncias inferiores, nomeadamente, a 2.ª instância, não se pronunciou quanto à necessidade de produzir prova para averiguar qual a vontade real das partes quando introduziram no contrato social o novo teor das cláusulas 2.ª, n.º 2; 5.ª; 7.ª, n.º 2; 8.ª, n.º 3; 10.ª, 11.ª, 13.ª e 14.ª do pacto social;
4) De acordo com o espírito dos sócios que presidiu às alterações ao pacto social realizadas na assembleia geral datada de 16/11/2016;
5) Preferindo uma interpretação literal e objetivista do contrato social, olvidando que se está no âmbito das relações internas entre sócios e que é possível produzir todos os meios de prova para descobrir qual a vontade real dos sócios quando introduziram e alteraram o teor de tais cláusulas no contrato;
6) Esquecendo que a interpretação objetiva do contrato social, apenas por referênciaaoteorda clausula8.ªdosestatutos,impedequeotribunalperceba qual o sentido, alcance e conteúdo do direito especial à gerência que os sócios quiseram atribuir ao Revisante e o sentido, alcance e conteúdo da regra da unanimidade na aprovação das deliberações sociais que os sócios pretenderam introduzir na assembleia geral de 16/11/2016;
7) O Tribunal a quo não examinou o teor de tais cláusulas, na versão originária e na versão alterada do pacto social introduzida em 16/11/2016;
8) Dos factos referidos na conclusão 5) do recurso de apelação, o Tribunal a quo, apenas considerou com relevância os factos 7), 8) e 9), entendendo, “(…), tendo-se consignado na decisão recorrida, como fundamento da sua não apreciação, ou seja, por se não compreenderem no objeto do presente processo, e sem nos merecer qualquer reparo, que, (…) a acontecer o que o autor alega, isso não contenderá com a validade da nomeação. O que poderá é vir a constituir fundamento de destituição de alguns dos gerentes (incluindo a agora nomeada) por violação dos seus deveres, extravasando já o objecto desta ação (artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais e artigo 105.º do Código das Sociedades Comerciais).”;
9) Contudo, havia de se produzir prova sobre estes factos, entre outros, na medida em que:
- Considerando o prazo de 30 dias que o Revisante tinha para impugnar a assembleia geral de 26/04/2022, não havia ainda tempo para que os receios se tivessem consolidado;
- A produção de prova de tais factos serviria para demonstrar que o que estava em causa era o interesse geral da sociedade;
- Se o gerente AA jamais confessou e quis exercer sozinho a gerência;
10) Daí que, com fundamento nos factos dados como provados, o tribunal jamais pode usar como argumento que: “O que se verifica é que o autor/apelante confunde ou pretende confundir direito especial à gerência que detém, com a atuação de gerente único, absoluto e todo poderoso da sociedade ré, isso sim situação contrária ao que prescrevem os estatutos e a lei, cfr. art.º 261.º do CSC.”;
11) O que o Revisante fez nos seus articulados foi alegar e exemplificar os factos que integram o conteúdo do seu direito especial à gerência e que é gerente de facto, não apenas de direito, e quer continuar a ser um dos dois gerentes que obrigam a Revisada!!!
12) Ou seja, nem o Revisante sozinho pretende fazer o que quer que seja, nem pretende que os demais sócios, nomeando outros dois gerentes, o coloquem à margem da gestão da sociedade e possam fazer o que muito bem entenderem;
13) Pelo exposto, impunha-se produzir prova e fazer a interpretação de todas as cláusulas do pacto social que versam sobre o assunto, de acordo com um declaratário normal, art.ºs 236.º e 238.º do CC;
14) Sendo certo que, outro argumento usado pelo tribunal a quo para desconsiderar aquela violação, qual seja, “(…) Portanto, uma coisa é a forma de obrigação da sociedade, outra são os gerentes de que a mesma poderá dispor e, esses, sem número máximo definido, terão de resultar de eleição em Assembleia Geral da sociedade”, em conjunto com a fundamentação da sentença de 1.ª instância para alicerçar o seu entendimento, onde se menciona: “Em 28/05/2009 foram nomeados como gerentes da sociedade, AA e DD.
- Por deliberação de 21de junho de 2016, CC foi nomeado gerente da sociedade ré.
- DD renunciou à gerência em 16.05.2019.
Donde, entre 21.6.2016 e 16.05.2019, a sociedade não teve dois gerentes, mas sim três gerentes».
Portanto, nem os usos e costumes societários, tão invocados pelo autor/apelante nos autos lhe asseguram o mínimo de credibilidade ou de razão no que agora vem defender.”, se revela manifestamente contraditória, ambígua e ininteligível – art.º 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, porquanto o facto cuja prova o Revisante pretendia produzir, qual seja, “5) Quem era e qual o papel do sócio e gerente DD, antes e depois de 21/06/2016 até 16/05/2019” não foi considerado importante para efeitos de se produzir prova sobre ele, mas foi usado em seu desfavor, negando-se-lhe a pretensão de tutela jurisdicional peticionada;
15) Acresce ainda que, quanto à regra da unanimidade na aprovação das deliberações sociais, omite raciocínios, quando refere:
“Finalmente invoca ainda o autor/apelante que a nomeação de uma terceira gerente é uma deliberação nula e abusiva, contrária aos usos e costumes societários, mormente a regra da unanimidade na aprovação das deliberações com o voto favorável de todos os sócios.
Como já deixámos consignado é nosso entendimento que a nomeação de uma terceira gerente está absolutamente conforme ao que preceituam os estatutos da sociedade ré, e de forma alguma belisca qualquer direito do autor/apelante, mormente o direito especial à gerência de que beneficia.”, omite que a sociedade tem gerentes em número suficiente nomeados para se obrigar, quer nas suas relações internas, quer nas suas relações externa.
16) E, ainda que, a Revisada tivesse uma gerência singular, ou disjunta, mas possui uma gerência plural, conjunta, a cláusula 8.ª, n.º 1, sempre teria de estatuir que “A administração e representação da sociedade são exercidas por gerentes eleitos em assembleia geral.”
17.Abstraindoque,emtermospráticos,emqualquertipodesociedade,seja por quotas ou outra, sendo possível, em assembleia geral, aos sócios nomear tantos gerentes quantos quiserem, em abstrato, por exemplo, cem (100) gerentes, e, obrigando-se a sociedade apenas com a assinatura, conjunta, de dois gerentes, quaisquer dois gerentes desses 100 pode obrigar a sociedade, pelo que, havendo desacordo dos restantes, e até da maioria dos sócios, quanto aos atos de gestão ou administração, interna ou externa, a praticar, tal determina a ingovernabilidade da sociedade;
18) A sociedade não pode ficar refém da possibilidade de poder destituir tais gerentes, ainda que sem direito especial à gerência, - art.º 257.º, n.º 2 do CSC ou de eventual ação de responsabilidade destes para com os credores sociais, sócios ou terceiros – art.ºs 64.º; 78.ºe 79.º do CSC, para que o seu escopo social possa ser prosseguido com normalidade;
19) A tal o obriga a própria essência ou razão de ser da existência da figura do gerente, independente da figura do sócio;
20) E, ainda porque todos os atos de gestão quotidiana e corrente da sociedade não necessitam da aprovação da assembleia geral para poderem ser praticados pelos gerentes – 246.º, “a contrario senso” do CSC;
21) Ora, o douto tribunal “a quo” não se debruça sobre todas as questões colocadas acerca da decisão sobre a matéria de facto, e obrigado estava, mesmo ex officio ao abrigo do art.º 662.º do CPC;
22) Pelo exposto, o Tribunal da Relação ao não se pronunciar ou ao pronunciar-se dubiamente, de acordo com os Acórdãos do Tribunal Supremo de Justiça de 04.02.2014, Processo n.º 187/04 e de 20.03.2014, Processo n.º 42/04, atento o plasmado no art.º 615.º, n.º 1, c) e d) e 674.º, n.º 1, alínea c) ambos do CPC, acarreta que o douto acórdão seja nulo;
23) Efetivamente, o Tribunal a quo nem sequer se pronunciou sobre a questão de os sócios ao aprovarem a deliberação em crise, contra a conjunção do vertido na cláusula 8.ª, n.º 4, o que constitui uma derrogação do disposto no art.º 257.º, n.º 3 do CSC!!!..;
24) O poder de direção do juiz do processo supõe que o mesmo adote comportamentos que adotem a eficiência da resposta, honrando sempre os princípios tocantes ao Direito, de acordo com o previsto no artigo 4.º CPC e também, de acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado 08.10.2020, Processo n.º 2196/20.5T8VNF-B.G1;
25) Nos presentes autos, não estamos a respeitar este Princípio da Igualdade das Partes e, consequentemente, também não está a ser oferecido um processo equitativo às partes, na medida em que o tribunal não permitiu ao Revisanteaproduçãodeprovasobretodososfactosquealegou,tendo o tribunal decidido tais factos, de acordo com a sua convicção e aqueles que considerou necessários para adotar apenas uma das várias soluções de direito controvertidas, o que não é aceitável, atento o disposto do Artigo 20.º da CRP.
26) Pelo exposto, o Acórdão da Relação sub juditio deve ser declarado nulo por obscuridade e omissão de pronúnciaao abrigo doart.º 615.º, n.º 1,alíneas c) e d) e 674.º, n.º 1, alínea c) ambos do CPC, devendo o processo baixar à 1.ª instância, a fim de se apurarem todos os factos suscetíveis de fundamentar todas as questões de direito em discussão nos autos, nomeadamente, a descoberta da vontade subjetiva dos sócios, nas relações entre eles, quanto ao clausulado respetivo no pacto social, introduzido por força das alterações aprovadas por unanimidade da Assembleia geral de 16/11/2016, no que concerne ao conteúdo do direito especial à gerência e à regra da unanimidade na aprovação das deliberações sociais-artigo 682.º.3 CPC.
27) Sem prescindir e da constatação dos pressupostos da Revista Excecional, o aqui Revisante pretende ver apreciadas as duas questões jurídicas, a saber:
I)Como se está a tratar de relações internas entre os sócios, é possível produzir, em sede de audiência de discussão e julgamento, todo o tipo de prova: declarações de parte, depoimento de parte, documental, testemunhal e outras para se saber qual a vontade real dos declarantes quando introduziram o clausulado no pacto social na assembleia geral datada de 16/11/2016 – art.º 236.º e 238.º do CC, máxime, o conteúdo do seu direito especial à gerência e ainda a regra da unanimidade na aprovação de todas as deliberações sociais;
II) Qual o conteúdo e o alcance do direito especial à gerência de um sócio minoritário em confronto com o direito dos sócios nomearem gerentes – art.ºs 24.; 246.º, n.º 2, alínea a); 256.º; 257.º; n.º 3; 259.º; 260.º; 261.º todos do CSC;
28) Quanto à relevância jurídica das questões em causa e sua necessidade à melhor aplicação do direito, ambas as decisões das instâncias não se pronunciaram sobre a questão de saber se é admissível produzir prova, todo o tipo de prova, em sede de instrução da causa e de audiência de discussão e julgamento para averiguar a vontade real das partes quanto ao teor das cláusulas do pacto social que importava interpretar, à luz do art.º 236.º e 238.º do CC para decidir as questões de direito sob juízo;
29) Existem diferentes posições doutrinárias e jurisprudências acerca da matéria;
30) Está em causa, com fundamento na vontade real dos sócios, expressa nas cláusulas do contrato social saber, tendo o grupo constituído pelos sócios maioritários, decidido nomear um terceiro gerente, sem o voto favorável, do sócio minoritário, gerente efetivo, com direito especial à gerência, da forma como o tribunal balizou a questão, ou seja, não estando o conteúdo do direito especial definido no contrato social, este direito especial não é restringido, contra a vontade do seu titular, por prevalecer acima dele o direito
31) Contudo, e o que incorpora relevância jurídica e à necessidade de melhor aplicação do direito é o facto deste direito pertencer a um sócio e não a um terceiro, que no todo que constitui a cifra do capital social é minoritário, direito especial esse que numa gerência, plural e conjunta, não disjunta, é a única forma de poder ter voz para constituir o todo que é o interesse e a vontade da sociedade;
32) Acresce que, a decisão desta questão ultrapassa a dimensão pessoal dos sócios, coloca-se sobre a perspetiva da análise do sistema jurídico, qual seja o direito das sociedades comerciais, no confronto entre os institutos dos direitos especiais e o direito dos sócios;
33) Relativamente à primeira exceção à regra da irrecorribilidade em situações de dupla conforme, prevista na referida alínea, a) pode ler-se em anotação ao art.º 672.º do CPC, anotado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. P. Sousa (Almedina Vol. I, 2018), «Para esta primeira exceção são elegíveis situações em que a questão jurídica suscitada apresente um carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação aos interesses das partes envolvidas. Na verdade, a intervenção do Supremo apenas se justifica em face de uma questão cujo relevo jurídico seja indiscutível, embora a lei não distinga entre questões que emergem do direito substantivo ou do direito adjetivo. Não bastará, pois, o mero interesse subjetivo da parte.;
34) Isto porque, não havendo uma jurisprudência consolidada encontramos um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 17/4/2008, Proc. n.º 08B864, Relator: Conelheiro Oliveira Rocha, in www.direitoemdia.pt, nos termos do qual: “1. Os direitos dos sócios, como tal, podem ser gerais e especiais. Os primeiros competem por igual a todos os sócios; os segundos conferem aos seus titulares uma vantagem especial, um privilégio, uma posição de supremacia frente aos demais associados. 2. A disciplina fundamental dos direitos especiais é objecto do art. 24º do CSC de que se destaca atribuído a todos os sócios da mesma sociedade, como, por outro lado, a simples designação de gerente no contrato de sociedade não significa a atribuição de um direito especial à gerência. 3. O problema da interpretação das cláusulas dos pactos sociais resume-se à descoberta do sentido objectivo da declaração negocial e, assim, não podem ter-se em conta a vontade real das partes, nem elementos estranhos ao contrato social, porque estão em jogo interesses de terceiros - daqueles que hajam contratado com a sociedade. 4. Porém, quanto às sociedades por quotas, se a interpretação objectiva é de exigir no tocante às cláusulas que visam a protecção dos credores sociais, já essa exigência se não impõe nas sociedades por quotas de índole personalista quanto às cláusulas sobre relações corporativas internas e às de natureza jurídica individual, vigorando,então,nestamatéria,osprincípiosgeraisdeinterpretaçãodos negócios jurídicos formais (art. 238º do C.Civil), com admissibilidade, portanto, do recurso a quaisquer elementos interpretativos contemporâneos do negócio, ou anteriores ou posteriores à sua constitui conclusão. 5. A interpretação das declarações ou cláusulas contratuais é matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias. 6. Constitui, contudo, matéria de direito, sindicável pelo Supremo, determinar se na interpretação das declarações foram observados os critérios legais impostos pelos citados arts. 236º e 238º, para efeito da definição do sentido que há-de vincular as partes, face aos factos concretamente averiguados pelas instâncias. 7. O retorno do processo ao tribunal recorrido para ampliação da decisão de facto, nos termos do nº 3 do art. 729º do CPC, só deve ter lugar quando o Supremo se encontre impossibilitado de julgar de direito por insuficiência de elementos de facto.”;
35) E ainda os Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datados de 02/06/2022, relator Desembargador Fernando Barroso Cabanelas e ainda o 42/13.5TCGMR.G1, Relator Desembargador Heitor Gonçalves, este citado na sentença de 1.ª instância, usado como fundamento para denegar a pretensão do Revisante, ambos disponíveis em www.dgsi.pt: supra transcritos no corpo das presentes alegações de revista;
36) A ideia subjacente a este regime dos direitos especiais é de proteção dos seus titulares, que podem nem ser sócios, ainda que no confronto com outros direitos dos sócios, nomeadamente, a possibilidade do titular deste direito só poder ser destituído, nos termos e com os fundamentos do disposto no art.º 257.º, n.º 3 do CSC, no caso concreto, já de si derrogado nos termos da cláusula 8.ª n.º 4 dos estatutos, onde se estabelece a única causa justa que pode levar à destituição do titular deste direito;
37) Quando estejam em causa interesses de particular relevância social., Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. P. Sousa (Almedina Vol. I, 2018), referem que «Na segunda exceção, por estarem em causa interesses de particular relevo social, serão de incluir ações cujo objeto respeite, designadamente, a interesses importantesdacomunidade, àestrutura familiar, aos direitos dos consumidores, ao ambiente, à ecologia, à qualidade de vida, à saúde ou ao património histórico e cultural, valores que naturalmente se sobrepõem também ao mero interesse subjetivo da parte da admissibilidade do terceiro grau de jurisdição».
38) No âmbito das relações societárias, dúvidas não podem restar que nos encontramos neste ponto com intuição de +evitar decisões contraditórias», sem prescindir do facto que sociedades com ou sem atribuição de direitos especiais se encontram em todos os tipos de sociedades, nomeadamente do tipo por quotas, que se encontram em atividade no nosso tecido empresarial;
39) Essas sociedades são constituídas por sócios minoritários e maioritários, no âmbito das sociedades comerciais por quotas, por este país, temos sócios ou até terceiros, em que os sócios por maioria ou em unanimidade atribuíram umdireitoespecialàgerênciaequesevêemcolocados à margem da gestão da sociedade, em prejuízo desta, pela simples nomeação de gerentes que possam obrigar a sociedade sem a sua intervenção – art.º 412.º do CPC;
40) Como tal, é absolutamente crucial esclarecer qual o conteúdo desse direito especial, in casu, do direito especial à gerência e o que deve prevalecer é o interesse da sociedade e o do titular desse direito ou se a cifra maioritária do capital social expressa através de vontade egoística dos sócios pode atirar às malvas esse direito especial;
41) Estão nestes casos em causa o direito fundamental à igualdade de direitos entre sócios – art.ºs 13.º e 18.º da CRP, e da democracia económica e social – art.ºs 61.º e 62º da CRP, uma vez que, o direito de propriedade privada abarca as participações sociais com a dimensão fundamental de liberdade, nele se incluindo, não só o direito de poder exercer todos os direitos societários, conferidos por lei ou convencionalmente estipulados, conferindo a dimensão de liberdade de uso, fruição e disposição, sem limites ou intromissão de terceiros, nem que sejam consócios;
42) E, como refere Pais de Vasconcelos, 2006, página 252, os poderes especiais podem ser atribuídos destinados, “(…), a ser exercidos como contra-poder, apenas por um ou por um número restrito de sócios minoritários, em circunstâncias tais que o seu exercício se torne imprescindível para alcançar o seu objetivo”;
43) Ora, no caso em apreço, nas instâncias inferiores, apesar de alegados esses motivos, o tribunal não quis produzir prova quanto à sua existência proferindo decisão de mérito, sem ter em conta essas circunstâncias ou interpretando-as de acordo apenas de acordo com a solução jurídica que admitiu plausível para a causa;
44) Ora, é incontestável que a restrição do direito especial à gerência, impedindo qualquer socio minoritário seu titular de praticar atos de gestão a favor da sociedade e como eventual contra-poder até, coloca em causa o objetivo prosseguido pelo legislador, quando o instituto foi criado em termos de lei geral e nos termos do convencionado no contrato social e lei do convencionado no contrato social.
45) E como refere o Juiz Conselheiro Cardona Ferreira, tal não impede que haja situações de maior ou menor relevância comunitária.
Caso contrário, este pressuposto /alínea ficaria esvaziado(a) de sentido; 46) No que concerne às alegações de Revista excecional propriamente ditas, resulta do sumário do acórdão sob censura; (…) II -Não resultando dos estatutos da sociedade quais os concretos poderes especiais atribuídos ao apelante na administração/gerência da sociedade ré, eles serão aqueles que resultam do preceituado no art.º 259.º do CSC, ou seja, todos “os atos que forem necessários ou convenientes para a realização do objeto social, com respeito pelas deliberações dos sócios” e respeitando o disposto no n.º1 do art.º 260.º do CSC, ou seja, “praticados em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere”. III - A nomeação de gerentes é um direito dos sócios, que não pode ser coartado pela vontade de um outro qualquer sócio, ainda que ao mesmo assista um direito especial à gerência.;
47) Quanto à necessidade e possibilidade de se produzir prova: declarações de parte, depoimento de parte, documental, testemunhal e outra para conhecer a vontade real dos sócios quanto aos concretos poderes atribuídos ao recorrente na administração gerência da sociedade considerando apenas os factos dados como provados pela primeira e pela segunda instância, num cenário que não se aceita, importa sindicar a decisão proferida pelas instâncias inferiores nas duas óticas sobreditas;
48) A interpretação objetivista e literal que fez do pacto social, não fazer sequer a leitura e a interpretação de todas as cláusulas do contrato social que importava para descortinar a vontade real das partes, quais sejam: as cláusulas 2.ª, n.º 2; 5.ª; 7.ª, n.º 2; 8.ª, n.ºs, 1, 2, 3, 4; 10.ª, 11.ª, 13.ª e 14.ª quando estabeleceram o direito especial à gerência e a regra da unanimidade na aprovação de todas as deliberações sociais, votadas por unanimidade da assembleia geral datada de 16/11/2016;
49) Pelo exposto, considerando o disposto no art.º 8.º, n.º 4 do pacto social da Recorrida, a supressão ou coartação de qualquer direito especial, validamente inscrito no contrato social e atribuído pela prática, pelos usos e costumes da Recorrida, só é possível mediante o consentimento do seu titular (art. 24º, nº 5 do CSC), dada a sua natureza intuitu personae, por serem conferidos ou atribuídos, em concreto, a sócios determinados, in casu, apenas ao Recorrente, atentas as especificidades da matéria factual alegada e com fundamento na qual foram constituídos;
50) Como refere COUTINHO DE ABREU, ABREU, ob. cit., p. 212, o direito especial à gerência é o direito de determinado sócio “ser gerente por toda a sua vida, ou enquanto for sócio, ou enquanto durar a sociedade, ou que só poderá ser destituído da gerência havendo justa causa” para essa destituição, a qual no nosso caso concreto estava estatuída como situação única em que poderia acontecer no art.º 8.º, n.º 4 dos Estatutos;
51) E isto porque, desde a constituição da Recorrida, o bloco constituído pelos demais 5 sócios eram acionistas de uma empresa concorrente diretamente com o mesmo objeto social da Recorrida, onde o Recorrente não era acionista, a H..., S.A., facto em relação ao qual o tribunal não permitiu a produção de prova;
52) Ou seja, todos estes exemplos de cláusulas estatutárias conferem ao sócio identificado, aqui Recorrente, um direito especial à gerência que não poderá ser retirado da sua titularidade sem o seu consentimento, exceto no caso concreto, a única situação concreta que podia levar à destituição com justa causa, prevista no art.º 8.º, n.º 4 dos Estatutos, se existir uma deliberação social que “requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa” (art. 257º, nº 3, in fine, do CSC);
53) Ademais, o aqui Recorrente, sócio com direito especial à gerência é o único gerente que pode ser remunerado, e é, dado que na sociedade vigora a regra da unanimidade na aprovação das deliberações sociais, nos termos do cotejo das cláusulas 5.ª, 7.ª, n.º 2; 8.ª, n.º 3; 10.ª e 11.ª do pacto social;
54) O que constitui em termos práticos, por um lado, a forma que os sócios encontraram de valorizar o direito especial à gerência e a gerência de facto do Recorrente, e, por outro, a impossibilidade de nomear novos gerentes, dado que, estes jamais podiam ser remunerados, sem o voto concordante de todos os sócios;
55) A pari, a limitação da destituição com justa causa do gerente com direito especial, limitada a quatro anos consecutivos de resultados negativos, constitui uma derrogação à lei das sociedades por quotas, nomeadamente, a norma específica do art.º art. 257º, nº 3 do CSC, onde se consagra em termos gerais a possibilidade de destituição do gerente, com direito especial, por qualquer motivo que constituía justa causa;
56) Assim, da análise destas duas normas do CSC, resulta que não pode existir limitação nem supressão do direito especial à gerência de que é titular determinado sócio, sem que este dê o seu consentimento, salvo se existir justa causa para essa destituição ou limitação e no caso concreto destes autos, na situaçãoúnicaprevistanoart.º8.º,n.º4 dosEstatutos;
Nesteâmbito,devemos distinguir as cláusulas que respeitem a relações sociais internas (relações entre sócios e entre estes e a sociedade) das cláusulas sociais que regulem relações com terceiros, credores ou futuros sócios;
57) Na interpretação das primeiras, deverá proceder-se à aplicação dos arts. 236º e 238º do CC, enquanto que nainterpretação das segundas, apenas se poderá ter em conta o sentido que a pessoa terceira face à sociedade pode deduzir do comportamento do sócio com quem esteja a contratar;
58) Esta diferença prende-se com o objetivo das próprias cláusulas que disciplinem asrelaçõescomterceirossãocláusulasquevisam proteger os interesses desses (credores da sociedade e eventuais futuros sócios), portanto, não seria de aceitar que se pudesse recorrer a elementos extrínsecos ao pacto, vidé neste sentido o Ac. STJ, de 17 de abril de 2008, Processo nº 08B864 (Relator: Oliveira Rocha), disponível em www.dgsi.pt , de 17/04/2008, supra transcrito;
59) E haverá melhor prova de que todas as deliberações de uma sociedade só possam ser aprovadas por voto unanime dos sócios, sobretudo quando alicerçadas na audição da prova que os sócios possam realizar a tal respeito, inclusive, documental, testemunhal e outra, no pacto social estar estipulado que para efeitos de prestações suplementares, admissão de novos sócios, alterações ao contrato social, aumento de capital, redução do capital, fusão com outras sociedades, cisão e dissolução da sociedade e remuneração de gerentes, só o possa ser por voto unanime dos sócios, sobretudo quando tais regras resultaram de uma alteração ao pacto social originário, os usos e costumes o demonstram e o bloco do sócio que mais dela beneficia possui um direito especial à gerência e é o único gerente executivo e de facto e o único sócio que na prática manda na empresa!!!;
60) Valendo a pena dizer que, o estipulado no art.º 14.º dos estatutos em nada contraria esta regra da unanimidade, aliás é uma forma de lhe dar sustentabilidade e equilíbrio contratual, uma vez que, diz respeito apenas ao direito dos gerentes à participação nos lucros e acha-se limitada pelo art.º 8.º, n.º 3 dos estatutos por força do qual se diz que a gerência será remunerada ou não por deliberação unânime dos sócios, sendo que o autor é o único gerente remunerado!!!
61) No que tange ao DIREITO DOS SÓCIOS A DESIGNAR GERENTES VERSUS O DIREITO ESPECIAL DO SÓCIO À GERÊNCIA, o órgão social de que aqui estamos a falar é o de administração e gestão da sociedade comercial que, nas sociedades por quotas se designa por gerência – capítulo VI do CSC, cuja epígrafe é “gerência e fiscalização”;
62) À gerência compete-lhe colocar em prática todos os atos que sejam necessários para a prossecução e realização do objeto social – art.º 259º do CSC –, os quais vinculam a sociedade para com terceiros, exceto se existir cláusula contratual ou decisão deliberativa que limite os poderes dos gerentes de algum modo (art. 260º, nº 1 do CSC);
63) Nos termos do preceituado no art.º 252º, nº 1 do CSC, “a sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes que podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade e devem ser pessoassingulares com capacidade jurídica plena”, ou seja, uma sociedade por quotas poderá
Ser administrada e representada por uma gerência por um (gerência singular) ou por vários gerentes (gerência plural, conjunta, ou disjunta) os quais podem ser escolhidos de entre os sócios dessa sociedade ou de entre pessoas terceiras face à sociedade (pessoas que não são sócias dessa mesma sociedade);
64) Por sua vez, o art.º 246.º, n.º 2, alínea a) do CSC estipula : Se o contrato de sociedade não dispuser diversamente, compete também aos sócios deliberar sobre: a) A designação de gerentes.
65) Pese embora o vertido no acórdão sob censura e transcrito no corpo desta alegações, em matéria de gerentes,considerando ao clausulado do pacto social, as instâncias inferiores, não apuraram: A versão originária destas cláusulas com a actual; Seexistiamnaversãooriginária;Ainterpretaçãodestas duas cláusulas em conjunto;
66) Como tal, independentemente de não existir número de gerentes definido, o tribunal não ponderou: Que gerentes só podem ser remunerados se existir aprovação de deliberação unânime de todos os sócios; Que só os gerentes remunerados têm direito à participação nos lucros, como prémio de gestão; Que o direito à participação nos lucros dos gerentes remunerados, como prémio de gestão, pode ser derrogado por maioria simples em assembleia geral; Que esta maioria simples para a derrogação decorre da lei das sociedades comerciais e não necessitava estar consagrada no contrato social – art.º 250.º, n.º 3 do CSC; que, nesta deliberação em concreto, sem prejuízo de todas as outras, a unanimidade exigida pelo contrato social para os sócios deliberarem remunerar os gerentes, impede a nomeação de novos gerentes, pois, estes podem não ser remunerados;
67) Portanto, no caso concreto, inexiste qualquer violação do direito do sócios de nomear gerentes em contraposição com o direito do sócio em poder exercer, de facto, um direito especial à gerência que lhe foi conferido pela unanimidade dos sócios no pacto social;
68) Já não entenderíamos assim, caso a sociedade não detivesse número suficiente de gerentes nomeados, no caso dois, para se obrigar, quer nas suas relações com terceiros, quer nas suas relações internas;
69) No caso concreto, a Recorrida tinha dois gerentes nomeados, não foi invocado qualquer impedimento temporário ou definitivo do gerente nomeado AA;
70) Como tal, ao contrário do entendido nas instâncias anteriores, não é o direito dos sócios de nomear gerentes que está a ser violado, mas sim o direito do sócio, como direito especial à gerência, poder obrigar a sociedade, porque, basta quaisquer dois do número infinito de gerentes nomeados para a poder obrigar, sem que ele não possa exercer o cargo para o qual foi nomeado, com direito especial.
71) E neste sentido, existem direitos especiais admitidos como possíveis pela doutrina portuguesa, Vd. CORDEIRO, António Menezes, Manual de Direito das Sociedades – volume I – Das Sociedades Em Geral, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2011, p. 618 e 619; ABREU, Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, vol. II – Das Sociedades, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2011, p. 211 e 212; CUNHA, Paulo Miguel Olavo de Pitta e, Direito das Sociedades Comerciais, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 315 a 320 , como sejam para o caso que aqui importa;
72) Também PAULO OLAVO CUNHA defende que “a generalização dos direitos especiais a todos os sócios torná-los-ia, assim, regime-regra dos direitos dos sócios, convertendo-os, por isso, necessariamente em direitos gerais, poisosinteressestuteladosporestesseriamcomunsa todos”, CUNHA, Paulo Miguel Olavo de Pitta e, Os Direitos Especiais Nas Sociedades Anónimas: As Ações Privilegiadas, Almedina, Coimbra, 1993, p. 25, distinguindo estes direitos dos direitos gerais relativamente inderrogáveis – aqueles direitos que “tutelando interesses comuns à coletividade dos sócios merecem, pela sua importância, uma tutela especial – aquela que resulta da sua inderrogabilidade sem o consentimento de uma maioria que sendo qualificada não é paralisante da realização da atividade e do interesse social”;
73) Os direitos especiais conferem uma posição de vantagem aos sócios que deles são titulares em relação aos demais sócios que não possuem esses direitos e, em princípio, serão direitos inderrogáveis, pelo art.º 24.º do CSC, sem prejuízo de o contrato social poder determinar de forma diversa;
74) Sendo o direito especial, um direito inderrogável sem o consentimento do(s) seu(s) titular(es), este(s) não podem ver a sua posição e o seu direito afetado pela tomada de uma qualquer deliberação maioritária. Nesse sentido, o direito especial visa proteger o interesse, a posição e o direito do(s) seu(s) titular(es) na sociedade;
75) No entanto, sempre que haja uma votação unânime por parte de todos os sócios, como é o caso dos autos, deve-se respeitar o princípio da igualdade de tratamento dos sócios (arts. 22º, nº 1, 190º, nº 1, 213º, nº 4, 321º, 344º, nº 2, 346º, nº 3, 384º, nº 1 todos do CSC), o qual constitui um princípio extremamente importante e até estruturante da organização e dinâmica das sociedades comerciais;
76) Além disso, também a Constituição da República Portuguesa contém um preceito que se dedica exclusivamente ao princípio da igualdade de tratamento (art. 13º) – princípio basilar do sistema jurídico português que impõeotratamentoigualdesituaçõesmaterialmenteidênticas,eotratamento diferente de situações materialmente distintas;
77) Daí que se conclua como no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 02/06/2022, relator Desembargador Fernando Barroso Cabanelas, disponível em www.dgsi.pt: “1. Os direitos especiais dos sócios referidos no artº 24º, nº5, do Código das Sociedades Comerciais, caracterizam-se por: a) traduzirem prerrogativas ou privilégios que não equivalem ao regime geral; b) resultarem, necessariamente, dos estatutos (24º, nº1); c) não poderem ser coartados ou limitados sem o consentimento do próprio, salvo especial permissão legal ou estatutária. 2. Não obsta à caracterização como direito especial a circunstância de todos os quatro sócios de uma sociedade por quotas serem nomeados gerentes. 3. A preterição de consentimento do sócio afetado por supressão ou alteração de disposição estatutária atributiva de direito especial e consequente extração de efeitos como se tal direito especial não existisse, tem como consequência a ineficácia da deliberação ou deliberações respetivas.”.
78) Assim, no caso concreto, a deliberação de 26/04/2022, sem prejuízo das irregularidades formais da convocatória e da assembleia, em termos substanciais, sendo uma deliberação que nomeia um terceiro gerente, quando a sociedade apenas pode ter dois e só se obriga com a assinatura de dois gerentes, limita, coarta e derroga o direito especial à gerência, consagrado estatutariamente, em 2016, em assembleia geral unânime, decorrente da prática, dos usos e costumes, da vontade e daquilo que os sócios sempre quiseram desde a constituição da Ré no ano de 2009, pelo que, é nula abusiva e de forma a beneficiar o interesse do bloco de sócios maioritários em prejuízo do bloco do sócio minoritário, mas na prática igualitário, atento o seu direito especial à gerência e a regra da unanimidade na aprovação das deliberações com o voto favorável de todos os sócios, aqui do Autor e como tal são nulas – art.º 56.º, n.º 1, d) do CSC ou anuláveis – art.º 58.º, n.º 1, a), b) e c) do CSC, sendo certo que, este entendimento não é abalado e contrariado pelo direito dos sócios nomearem gerentes, entre outras, porque a Recorrida tem nomeados gerentes em número suficiente para se obrigar externa e internamente.
79) O acórdão a quo ofendeu, assim, entre outros, o disposto nos artigos 3.º; 4.º, 5.º, n.ºs 1 e 2; 6.º; 547.º; 595.º; 596.º; 607.º; 615.º, n.º 1, alíneas c) e d); todos do Código Processo Civil e art.º 9.º, n.º 3; 236.º, 238.º, 342.º do Código Civil; art.ºs 22.º, 24.º; 55.º, 56.º, n.º 1, alínea d); 58.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), 190.º, n.º 1, 213.º, n.º4, 257.º, 259.º, 260.º, 261.º, 265.º; 248.º n.º 1, n.º 2, a); 289.º; 321º, 344º, nº 2; 346º, nº 3; 377.º, n.º 8; 384º, nº 1 do CSC; o pacto social na sua globalidade, nomeadamente, as cláusulas 5.º; 7.º, n.º 2; 8.º, n.º 3; 10.º e 11.º e art.ºs 2.º; 13.º; 18.º; 20.º; 29.º, 61.º e 62.º da CRP..
Termos em que se requer a revogação do doutoacórdãosobcensurademodoaqueseja feita inteira e sã justiça!!!»
A ré contra-alegou pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.
1. Das nulidades do acórdão.
2. Da ampliação da matéria de facto.
1. A sociedade Cosvalinox-Indústria Metalúrgica e Equipamentos, Ld.ª foi constituída, em 28.05.2009, com o capital social de €10.500,00, composto por seis quotas com o valor nominal de €1.750,00 cada uma, pertencendo cada uma dessas quotas a:
- AA;
- DD;
- EE;
- FF;
- CC; e
- GG.
2. No ato da constituição ficou registado o seguinte: “Forma de obrigar: Com a intervenção conjunta de dois gerentes.
Estrutura da gerência: Será exercida por gerentes eleitos em assembleia geral”.
3.Em 28.05.2009, foram nomeados como gerentes da sociedade, AA e DD.
4. Em 19.02.2010 foi inscrito no registo comercial o aumento de capital e alterações ao contrato de sociedade, em resultado do que a sociedade ré passou a ter um capital social de €300.000,00, composto por seis quotas, no valor nominal de €50.000,00, pertencendo cada uma dessas quotas a:
- AA;
- DD;
- EE;
- FF;
- CC; e
- GG.
5. Por deliberação de 21 de junho de 2016, CC foi nomeado gerente da sociedade ré.
6.No dia 16.11.2016 realizou-se uma Assembleia Geral de sócios da sociedade ré, tendo sido lavrada ata da mesma, nos termos constantes do documento n.º 2 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido, ali se fazendo constar, entre o mais, o seguinte: “Ponto único: Deliberar quanto à alteração do pacto social.
Depois de ponderada a situação foi aceite por unanimidade alterar o pacto social que passa a ter a seguinte redação:
(…)
Artigo 8º
Gerência
1. A administração e representação da sociedade são exercidas por gerentes eleitos em assembleia geral.
2. A sociedade obriga-se com a intervenção conjunta de dois gerentes.
3. A assembleia geral deliberará se a gerência é remunerada, por deliberação unanime dos sócios.
4. O sócio AA exerce com direito especial à gerência a qualidade de gerente social no âmbito do C..., mas poderá ser livremente destituído por deliberação da assembleia geral se verificada a ocorrência de prejuízos acumulados em quatro exercícios consecutivos.
(…)
Alterações do contrato
Admissão de novo sócio
Participação nos lucros
7.Pela inscrição 53/20170127, procedeu-se ao registo de alterações aos artigos 4.º n.º 1, 3.º n.º 3, 7.º n.ºs 3 e 4 e 8.º do pacto social e ao aditamento dos artigos 10.º, 11.º, 12.º, 13.º e 14.º, tendo-se ali consignado que o gerente AA tem direito especial à gerência.
8. DD renunciou à gerência em 16.05.2019.
9. Por carta datada de 06.04.2022, foi remetido ao autor um aviso pelo gerente CC, convocando-o para uma Assembleia Geral Extraordinária da sociedade ré, a realizar em 26.04.2022, nos termos que resultam do documento n.º 3, junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo-se ali consignado, entre o mais, o seguinte:
“Ordem de trabalhos
1. Discutir e deliberar sobre o relatório de gestão e as contas relativas ao ano de 2021;
2. Discutir e deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados apresentada pela Gerência;
3. Discutir e deliberar sobre a re-condução ou não dos atuais membros órgãos estatutários e nomeação de novos gerentes, bem como dos revisores oficiais de contas.;
4. Outros assuntos de interesse da sociedade.”.
10. No dia 26.04.2022 realizou-se uma Assembleia Geral de sócios da sociedade ré, tendo sido lavrada ata da mesma, nos termos constantes do documento n.º 4, junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido, ali se fazendo constar o seguinte:
“Ao vigésimo sexto do mês de abril do ano de dois mil e vinte e dois, pelas nove horas e trinta minutos, reuniu em Assembleia Geral, na sede social da sociedade "Cosvalinox - Indústria Metalúrgica e Equipamentos, Ld.ª", sita na rua ..., freguesia de ..., concelho de ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ..., com o número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva ...86, com o capital social de € 300.000,00 (trezentos mil euros), encontrando-se presentes os seus sócios, AA, titular de uma quota de €50.000,00 (cinquenta mil euros), HH, casado, por si e na qualidade de cabeça de casal e em representação de II, JJ e KK, com instrumento de representação que junto se anexa, titulares de uma quota de 50.000,00 (cinquenta mil euros), BB, solteira, em representação de EE, titular de uma quota de 50.000,00 (cinquenta mil euros) com instrumento de representação que junto se anexa, FF, titular de uma quota de 50.000,00 (cinquenta mil euros), CC, titular de uma quota de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), GG titular de uma quota de €50.000,00 (cinquenta mil euros). Estiveram ainda presentes o Sr. LL, em representação da sociedade M..., Lda. e o Diretor Geral, Sr. MM, NIF...70.
Estando representada a totalidade do capital social, foi deliberado por unanimidade que a Assembleia se constituísse nos termos do artigo 54.º do Código das Sociedades Comerciais, com a seguinte ordem de trabalhos;
Ponto Um - Discutir e deliberar sobre o relatório de gestão e as contas relativas ao ano de 2021;
Ponto Dois - Discutir e deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados apresentada pela Gerência;
Ponto Três - Discutir e deliberar sobre a recondução ou não dos atuais corpos gerentes e nomeação de novos gerentes, bem como dos revisores oficiais de contas;
Ponto Quatro - Outros assuntos de interesse da sociedade.
Aberta a sessão, presidiu à Assembleia Geral o sócio e gerente AA. De seguida o sócio e gerente CC manifestou sobre o relatório de gestão e contas do exercício de 2021 o seguinte:
i) Considerando que na última reunião de sócios, ocorrida a 5 de abril de 2022, que só tomou conhecimento da existência de relações comerciais de fornecimentos à Cosvalinox, de grande monta (cerca de 700.000,00) no exercício de 2021, por parte de uma empresa cuja totalidade das participações sociais são tituladas pelo sócio e gerente AA e ainda pelo Diretor ...da Cosvalinox, MM;
ii) Considerando que desconhece em concreto os negócios e tipo de relações existentes entre a Cosvalinox e essa sociedade;
iii) Considerando que há necessidade de realizar grandes investimentos na fábrica, devendo estes ser ponderados antes da distribuição de resultados aos sócios e,
iv) Considerando ainda que não concorda com a proposta de distribuição de resultados; Sobre a análise das contas do exercício de 2021, visto não ter havido informação atempada, detalhada e suficiente para que os sócios pudessem deliberar de modo esclarecido sobre os pontos 1 e 2 da ordem de trabalhos, com exceção do sócio AA, todos os restantes sócios abstêm-se de votar os mencionados pontos 1 e 2, ficando estas deliberações relegadas para uma data posterior.
O sócio AA declarou que foram entregues ao Dr. AA todos os elementos contabilísticos necessários, verdadeiros e autênticos para que fizesse a sua análise crítica sobre as contas de 2021 e poder, ou não, aprová-las.
O sócio CC referiu ainda que depois do dia 6 de abril entrou em contacto com o Sr. ... Oficial de Contas, Dr. NN, questionando sobre as faturas que se relacionavam com as compras de equipamentos de enologia correntes, sendo que o mesmo lhe transmitiu que estava fora das suas competências fornecer tais faturas. O mesmo sócio AA disse ainda que durante a análise que procurou efetuar presencialmente na Cosvalinox, não lhe foram dados os elementos pedidos e necessários, daí não assinar as contas.
Assim, ficou decidido realizar uma nova Assembleia Geral no dia 27 de maio de 2022, para então deliberar sobre os Pontos 1 e 2 desta ordem de Trabalhos.
O sócio AA mencionou ainda a anulação da reunião marcada por si para as 18h30, visto que os pontos da ordem de trabalhos são idênticos, não se justificando a sua realização.
Por referência ao terceiro ponto de trabalhos, O Dr. AA propôs a nomeação para o cargo de gerente da Dra. BB, no sentido em que a sociedade passe a funcionar com três gerentes, sugerindo ainda que na próxima Assembleia, a realizar dentro de um mês, se avalie se esta nova gerente e o gerente AA serão remunerados ou não.
Sobre este ponto o sócio AA disse ser contra a nomeação de um terceiro gerente, por considerar que tal prejudica o seu direito especial à gerência, que a sociedade só obriga a dois gerentes e que sendo sócio isolado no confronto com os outros sócios fica prejudicado, considerando ainda que a convocatória não está bem clara quanto ao ponto três.
Pelo sócio AA foi referido que até ao presente momento nunca colocou em causa a confiança total, sendo que a atitude que aqui irá tomar é em prol da Cosvalinox, unicamente para defender a sociedade Cosvalinox.
Sobre o Ponto 3 da Ordem de trabalhos, com exceção do sócio AA, todos os demais sócios votaram a favor.
Assim, para além do Sr. AA e o Dr. CC, já gerentes, que se mantêm no cargo, foi ainda nomeada gerente a Dra. BB, solteira, natural da freguesia de ..., concelho de..., residente na Rua ..., titular do cartão de cidadão n.º ...X6, válido até 04/09/2029, número de identificação fiscal ...41.
A Drª BB, recém-nomeada, declarou expressamente para a ata aceitar o cargo de gerente para o qual acaba de ser nomeada, assinando também a presente ata em sinal de aceitação.
A nova gerente acabada de nomear solicita todos os elementos e informação para doravante poder desempenhar cabalmente o respetivo cargo, e ter acesso a toda a documentação existente e outros elementos que possa solicitar de modo a possibilitar a rápida integração deste novo Membro Estatutário.
Neste sentido, por indicação dos demais sócios, fica o Sr. AA incumbido de prestar tais informações, para que, de imediato, possa a nova gerente entrar em plenas funções.
Por último, por unanimidade, foi reconduzida a equipa de Revisão de Contas, por um período de dois anos.”.
***
1.1 Da ininteligibilidade do acórdão
O recorrente arguiu a nulidade do acórdão por entender que é contraditório, contém ambiguidades e obscuridades que o tornam ininteligível.
Vejamos se tem razão.
Diz o recorrente: «14) Sendo certo que, outro argumento usado pelo tribunal a quo para desconsiderar aquela violação, qual seja, “(…) Portanto, uma coisa é a forma de obrigação da sociedade, outra são os gerentes de que a mesma poderá dispor e, esses, sem número máximo definido, terão de resultar de eleição em Assembleia Geral da sociedade”, em conjunto com a fundamentação da sentença de 1.ª instância para alicerçar o seu entendimento, onde se menciona: “Em 28/05/2009 foram nomeados como gerentes da sociedade, AA e DD.
- Por deliberação de 21de junho de 2016, CC foi nomeado gerente da sociedade ré.
- DD renunciou à gerência em 16.05.2019.
Donde, entre 21.6.2016 e 16.05.2019, a sociedade não teve dois gerentes, mas sim três gerentes».
Portanto, nem os usos e costumes societários, tão invocados pelo autor/apelante nos autos lhe asseguram o mínimo de credibilidade ou de razão no que agora vem defender.”, se revela manifestamente contraditória, ambígua e ininteligível – art.º 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, porquanto o facto cuja prova o Revisante pretendia produzir, qual seja, “5) Quem era e qual o papel do sócio e gerente DD, antes e depois de 21/06/2016 até 16/05/2019” não foi considerado importante para efeitos de se produzir prova sobre ele, mas foi usado em seu desfavor, negando-se-lhe a pretensão de tutela jurisdicional peticionada».
Preceitua o artigo 615.º, 1 alínea c) do código de processo civil (serão deste código os artigos ulteriormente citados sem diferente menção):
É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Os vícios do artigo 615.º são vícios de actividade do juiz, também designados com a expressão latina error in procedendo.
A oposição entre os fundamentos e a decisão constitui vício de lógica formal do silogismo judiciário: a conclusão não se articula com as premissas, antes as contraria.
Por outro lado, a obscuridade de uma decisão é um vício que torna a decisão ininteligível pois não se consegue interpretar o sentido da mesma.
A ambiguidade é algo diferente: agora a decisão tem mais do que um sentido, não sendo possível apurar qual o sentido que lhe quis dar o julgador.
No caso sujeito, o que o recorrente imputa à decisão não é um vício formal, antes um erro de interpretação do conteúdo de uma sua alegação, que o tribunal terá feito alegadamente em seu desfavor.
1.2. Da omissão de pronúncia
Por outro lado, o recorrente afirma que o acórdão é nulo por omissão de pronúncia
Diz o recorrente: «2) O tribunal a quo não se pronunciou sobre as conclusões 5); 11); 20); 23); 27); 28); 30), 33); 66); 69); 78); 79); 80); 81 e 83) do recurso de apelação;
3) Como tal, as instâncias inferiores, nomeadamente, a 2.ª instância, não se pronunciou quanto à necessidade de produzir prova para averiguar qual a vontade real das partes quando introduziram no contrato social o novo teor das cláusulas 2.ª, n.º 2; 5.ª; 7.ª, n.º 2; 8.ª, n.º 3; 10.ª, 11.ª, 13.ª e 14.ª do pacto social;
E acrescenta: 23) Efetivamente, o Tribunal a quo nem sequer se pronunciou sobre a questão de os sócios ao aprovarem a deliberação em crise, contra a conjunção do vertido na cláusula 8.ª, n.º 4, o que constitui uma derrogação do disposto no art.º 257.º, n.º 3 do CSC!!!.».
No número 26 das conclusões, adita ainda «26) Pelo exposto, o Acórdão da Relação sub juditio deve ser declarado nulo por obscuridade e omissão de pronúnciaao abrigo doart.º 615.º, n.º 1,alíneas c) e d) e 674.º, n.º 1, alínea c) ambos do CPC, devendo o processo baixar à 1.ª instância, a fim de se apurarem todos os factos suscetíveis de fundamentar todas as questões de direito em discussão nos autos, nomeadamente, a descoberta da vontade subjetiva dos sócios, nas relações entre eles, quanto ao clausulado do respetivo no pacto social, introduzido por força das alterações aprovadas por unanimidade da Assembleia geral de 16/11/2016, no que concerne ao conteúdo do direito especial à gerência e à regra da unanimidadenaaprovaçãodasdeliberaçõessociais–art.º682.º,n.º3doCPC».
Preceitua o artigo 615.º, 1 alínea d) que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
É sabido que este vício é resultado da necessária correspondência entre a acção e a sentença e que esta norma se articula com o artigo 608.º, 2.
Mais uma vez o que o recorrente invoca não traduz um vício de forma.
As questões a que os citados artigos se referem são questões de direito correspondentes aos pedidos, às causas de pedir e excepções, peremptórias ou dilatórias (cfr. Rui Pinto, «Os meios reclamatórios comuns da decisão civil» Julgar on line, Maio 2020:22).
O recorrente invoca um erro de julgamento de facto não um erro de actividade.
Ou seja, afirma que o tribunal julgou mal ao não considerar determinados factos que por ele tinham sido alegados com relevância para a boa decisão da causa.
Uma coisa é o erro de julgamento por a sentença não se ter socorrido de elementos de facto relevantes para a boa decisão, outra a nulidade por o tribunal não ter conhecido de questão de que devia tomar conhecimento.
Aliás, bem ou mal, o tribunal da Relação debruçou-se sobre a questão da antecipação do julgamento efectuado pelo primeiro grau, melhor dito sobre o argumento de que o primeiro grau não tinha analisado todas as questões sujeitas á sua apreciação.
Realmente, lê-se no acórdão recorrido: «Analisando o assim alegado pelo ora apelante e vendo o teor da decisão recorrida, mormente as questões aí definidas e a conhecer e que foram efetivamente conhecidas em 1.ª instância, como do teor da mesma decorre, considerando ainda os pedidos e as causas de pedir que estruturam o objeto do presente litígio, e o acontecido em sede de audiência prévia extratado na respetiva ata, temos de concluir que o Tribunal recorrido conheceu de todas as questões colocadas nos autos, mormente pelo autor/apelante e delas decidiu em conformidade com os factos que julgou provados decorrentes do teor dos documentos juntos aos autos e, com fundamento nas interpretação das normas estatutárias e do direito aplicável, apenas que em sentido contrário do defendido pelo ora apelante».
Deve, pois, concluir-se que o acórdão não enferma da nulidade prevista na 1.ª parte da alínea d) do artigo 615.º.
Pretende o recorrente o processo baixe à 1.ª instância, «a fim de se apurarem todos os factos susceptíveis de fundamentar todas as questões de direito em discussão nos autos, nomeadamente, a descoberta da vontade subjectiva dos sócios, nas relações entre eles, quanto ao clausulado respectivo no pacto social, introduzido por força das alterações aprovadas por unanimidade da Assembleia geral de 16/11/2016, no que concerne ao conteúdo do direito especial à gerência e à regra da unanimidade na aprovação das deliberações sociais».
Na petição inicial o autor alegou, designadamente que:
10.º Desde a data de constituição da sociedade até hoje, a empresa “COSVALINOX – INDÚSTRIA METALÚRGICA E EQUIPAMENTOS, LDA.,” sempre se obrigou com a assinatura de dois gerentes, mas o segundo gerente, nomeadamente o actual CC, sempre foi apenas de direito, não de facto, não executivo.
11.º Portanto, desde a sua constituição até à data de hoje, sempre foi o seu sócio e gerente, aqui Autor AA quem sempre geriu todas as atribuições relacionadas com as áreas administrativa, contabilística, fiscal, financeira, laboral, bancária e comercial, lidou com fornecedores e clientes, tudo sempre tendo decidido, como quis e entendeu.
22. [a deliberação de 22.4.2022] agrava a posição de subalternatividade e dependência em relação a uma outra sociedade da qual os demais 5 sócios são accionistas e com o mesmo objecto social, qual seja a sociedade H..., S.A.
26.º (…) se a nova gerente BB ou mesmo o actual não executivo CC tiverem acesso a cópias de todas as chaves de acesso a todas as instalações da empresa, códigos de alarmes, bem como dados de acesso a todo o sistema informático (users e passwords), tal colocará em perigo os segredos industriais, comerciais, económico-financeiros, laborais e bancários da empresa, colocando em sério risco a sua sobrevivência no mercado, sobretudo com a pujança que tem demonstrado ao longo dos anos, desde a data da sua constituição.
33. .º. (…) decorre que, os sócios maioritários, através dos dois gerentes que controlam irão dispor da sociedade a seu bel-prazer, eventualmente proceder à destruição económico-financeira do estabelecimento industrial e comercial que compõe a totalidade do património da Ré frustrando dessa forma os direitos do outro sócio ora Autor, esvaziando-lhe o seu direito especial à gerência, colocando o aqui Autor numa situação financeira débil.
34.º Efectivamente, os dois gerentes CC e BB que podem obrigar a Ré, com a sua assinatura conjunta, sem a intervenção do Requerente, estão ligados à empresa terceira, com o mesmo objecto social, a H..., S.A. (HVF).
35.º O gerente de direito, não de facto, nem executivo AA permanece em contactos permanentes e diários o novo diretor geral da HVF, conforme já constatado em encontros informais com o Autor, dizendo que está sempre a ser contactado pelo OO – novo Director Geral da HVF para saber como vão os negócios da Ré.
38.º Do exposto resulta que, pelos comportamentos que o gerente AA tem demonstrado tudo leva a crer que pretende ter acesso às pessoas e aos procedimentos internos da Ré, agora, passados todos estes anos desde a sua constituição, para ter acesso aos segredos e ao know how da Ré.
40.º (…) [a nova gerente] fez exigências que nenhum outro gerente não executivo apresentou até ao momento, incluindo o gerente de direito AA, demonstrando contudo falta de tempo para analisar conhecer a Ré: produção, recursos humanos e documentação contabilística e fiscal,
41.º Constata-se assim que, existindo 3 (três) gerentes que possam obrigar a Ré de direito, mesmo não sendo gerentes de facto e executivos, como é o caso do gerente AA e da nova gerente KK, estes poderão:
- Ao ter acesso total e remoto ao servidor, podem levar os segredos do negócio e aplicá-los ou tirar partido na HVF ou noutras do mesmo universo empresarial dos restantes sócios;
- Não tendo a Ré praticamente nenhum endividamento podem fazer empréstimos a outra (s) sociedade (s) que é uma prática comum e estratégica dos sócios comuns em outras sociedades onde participam;
- Acordar um aumento de renda que a Ré paga à HVF pelo arrendamento das instalações onde labora com fundamento em que ao fim de 3 anos de solicitações por parte da Ré, vão agora arranjar as máquinas, telhados, zona da mecânica e afins, aumentando os custos da Ré, sem qualquer fundamento, uma vez que aquelas reparações são da responsabilidade da senhoria HVF;
- Movimentar as contas a ordem de livre vontade;
- Contrair empréstimos através Ré junto da banca com taxas e condições muito mais favoráveis para depois emprestarem a outra (s) empresa(s) do seu universo societário comum;
- Para melhor controlo interno e imposição de poder, podem mexer no organigrama da empresa, abolindo funções a pessoas que são os pilares da Ré e até mesmo imporem processos disciplinares ou despedimentos, a colaboradores que não sigam as suas ordens, directrizes e orientações.
42.º A tudo isto, importa ainda precisar e não esquecer as seguintes mais-valias da Ré:
- É líder de mercado, no seu sector de actividade, à frente da HVF;
- É considerada há 7 (sete) anos seguidos PME LIDER;
- No ano transacto foi considerada com o estatuto máximo de PME EXCELÊNCIA, devido aos bons rácios económico-financeiros.
43.º Resulta do exposto que, com a nomeação de um terceiro gerente, podendo a Ré obrigar-se com a assinatura dos dois gerentes de direito, todo este trabalho de crescimento contínuo e sustentado será colocado em causa.
44.º (…) Na génese da sua criação sempre esteve subjacente a todos os sócios que o escopo da Ré sempre seria prosseguido de acordo com o saber e o conhecimento exclusivo que o Autor detinha do negócio, tanto que, lhe atribuíram, por unanimidade, o direito especial à gerência, ou por mais alguém que este indicasse;
Os dois gerentes CC e BB nada entendem, percebem e conhecem do negócio;
- Nunca se envolveram com a Ré;
- Não têm qualquer experiência de produção, de venda e de compra deste tipo negócio.
Estes factos não foram considerados pela Relação, assim como não foi o facto número 9, aliás admitido por acordo (salvo o segmento «tudo de si dependeu»).
Observe-se que alguns desses factos só admitem prova documental.
Como se sabe o saneador com valor de sentença, antecipando o conhecimento da lide, foi instituído no nosso ordenamento processual pelo Decreto n.º 18.552, de 3 de Julho de 1930, e ainda hoje se mantém.
Além de sentença de forma, o saneador passou, em certos casos, a ser também sentença de mérito.
Esta finalidade conservou-se até hoje, como se pode conferir no actual artigo 595.º, 1, alínea b), de acordo com o qual o despacho saneador pode destinar-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
Diante da versão deste artigo constante do código de processo civil de 1939, o STJ recomendava aos tribunais um uso prudente e cauteloso do poder que lhes era conferido pelo então artigo 514.º, o que mereceu total concordância de Alberto dos Reis: «Estamos inteiramente de acordo. Várias vezes temos emitido este conceito: É muito conveniente que a justiça seja pronta; mas é muito mais conveniente que ela seja justa»; «A lei quer que certas questões se arrumem e liquidem no despacho saneador; isto em obediência ao princípio da celeridade e da economia processual. Mas não sacrificou a este princípio uma outra exigência, mais alta e mais preciosa: a da justiça da decisão» (Código de Processo Civil, Anotado, Vol. III, Coimbra editora, Coimbra 1950:189).
Não se estranhe, pois, que, por razões de segurança processual, o professor de Coimbra tenha cunhado o lema: Prudência no Despacho Saneador.
Os tempos mudaram muito desde então, mas não o receio da opinio juris que o juiz, na ânsia de andar depressa julgue mal uma questão que ainda não está devidamente instruída e amadurecida (ibidem:190).
O juiz só poderá conhecer de mérito no saneador «quando o processo contenha todos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa» (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil, Anotado, 3.ª ed., Vol. 2.º, Almedina, Coimbra, 2017:659).
Não caberá a este Supremo Tribunal sindicar directamente o julgamento de facto feito pelas instâncias, mas sim sindicar se o resultado da selecção dos factos alegados, relevantes para a decisão, feita pelo primeiro grau, depois confirmada no segundo, é ou não suficiente para viabilizar a correcta decisão jurídica do litígio.
A Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto) é terminante: «fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito» (art.º 46.º).
Em consonância com este preceito, o artigo 674.º, 1, ao enunciar os fundamentos da revista, só alude à violação da lei, substantiva (al. a)) ou de processo (al. b)), e às nulidades previstas nos artigos 615.º e 666.º, não contemplando os erros de julgamento de facto.
Casos há, porém, em que o Supremo pode conhecer de facto. Na verdade, o Supremo cassa o acórdão da Relação e manda baixar o processo, quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (artigo 682.º, 3).
Nesta hipótese, o Supremo não pode deixar de avaliar os factos históricos que foram julgados nas instâncias, de modo a poder concluir se deve ou não cassar o acórdão recorrido.
Ora, no caso sujeito, parece-nos que há boas razões para ampliar a matéria de facto, de resto já explicitadas no acórdão da Formação.
Alega o recorrente que pretende ver apreciadas duas questões jurídicas, a saber: «I)Como se está a tratar de relações internas entre os sócios, é possível produzir, em sede de audiência de discussão e julgamento, todo o tipo de prova: declarações de parte, depoimento de parte, documental, testemunhal e outras para se saber qual a vontade real dos declarantes quando introduziram o clausulado no pacto social na assembleia geral datada de 16/11/2016 – art.º 236.º e 238.º do CC, máxime, o conteúdo do seu direito especial à gerência e ainda a regra da unanimidade na aprovação de todas as deliberações sociais; II) Qual o conteúdo e o alcance do direito especial à gerência de um sócio minoritário em confronto com o direito dos sócios nomearem gerentes – art.ºs 24.; 246.º, n.º 2, alínea a); 256.º; 257.º; n.º 3; 259.º; 260.º; 261.º todos do CSC», e que existem diferentes posições doutrinárias e jurisprudências acerca da matéria.
A Formação sublinha, em primeiro lugar, que «a apreciação das questões jurídicas acima referidas suscita a interpretação das normas estatutárias da ré sociedade, exigindo-se que, previamente, se tome posição sobre a possibilidade de se atender à vontade real dos declarantes nos termos preconizados pelo recorrente, uma vez que estão em causa as relações internas entre os sócios e não as relações com terceiros. Em segundo lugar, está em causa a conjugação dessas normas estatutárias da ré sociedade com a interpretação das normas legais que preveem o direito especial à gerência e a proteção que é concedida ao respetivo titular, em confronto com as normas legais que permitem, em geral, aos sócios nomearem gerentes da sociedade. Na verdade, como é alegado pelo recorrente, a magna questão que está em causa nos autos assenta em saber se a nomeação de um outro gerente, num total de três, exigindo o pacto social a assinatura de dois gerentes (podendo, assim, os restantes dois gerentes tomar decisões sem a anuência do aqui recorrente), não poderá esvaziar de conteúdo o direito especial à gerência do aqui recorrente antes de estar decidida a ação judicial que os sócios deliberaram instaurar para a sua destituição por justa causa ou mesmo antes de ser decidida a sua suspensão imediata de funções no âmbito dessa ação judicial.
Em suma, julgamos que as questões acima referidas convocam reflexão acerca do sentido dos estatutos da ré sociedade em conjugação com as referidas normas legais que regulam o direito especial à gerência e a proteção que é concedida ao respetivo titular, bem como as normas que permitem em geral aos sócios nomearem gerentes da sociedade, reflexão essa que complexifica as operações exegéticas requeridas para a sua análise. Dessa forma, cremos que o caso decidendo, considerando as normas jurídicas aplicáveis, reclama para o seu tratamento operações de exegese não lineares, dotadas de uma complexidade atípica e que demandam uma invulgar sofisticação de análise».
Estamos de acordo. Importa, na verdade, apurar factualidade mais ampla e consistente que permita atender à vontade real dos declarantes/sócios nos termos preconizados pelo recorrente e o histórico que conduziu à deliberação de 16.11.2016, na qual os sócios, por unanimidade, deliberaram atribuir aos recorrentes um direito especial à gerência e depois as circunstâncias que envolvem a deliberação do dia 26.04.2022.
Custas pela recorrida.
Luís Correia de Mendonça (Relator)
Luís Espírito Santo
Maria Olinda Garcia