AUTORIDADE DO CASO JULGADO
PRESSUPOSTOS
ATRAVESSADOURO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
LEGITIMIDADE ATIVA
DIREITO DE PROPRIEDADE
BEM IMÓVEL
TRÂNSITO EM JULGADO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
RECURSO PER SALTUM
Sumário


I – A autoridade do caso julgado destina-se a assegurar a vinculação dos órgãos jurisdicionais, bem como dos particulares, aos efeitos de uma decisão judicial anterior, transitada em julgado, não permitindo a reapreciação de questão já anteriormente decidida de forma definitiva e que desse modo não deverá ser contrariada, sob a pena de colisão e incompatibilidade lógica entre julgados.
II - Exige-se para a verificação da autoridade de caso julgado a demonstração de um nexo de prejudicialidade entre as duas decisões judiciais em causa, o que sucede quando os fundamentos essenciais e decisivos da primeira constituem necessariamente pressupostos lógicos e incontornáveis da segunda.
III - Ao não ter provado a integração do espaço físico denominado carreio/vereda no âmbito do imóvel de que é proprietária – o que ficou decidido em anterior acção judicial com trânsito em julgado -, a A. não se encontra em condições de, através da interposição de nova acção judicial, interferir com o seu uso e destino, não podendo invocar, a esse propósito, a extinção de uma alegada servidão – quer pelo não uso, quer pela desnecessidade –, devido à circunstância de não ser a titular do imóvel que pela mesma seria afectado.
IV – Também a ausência de prova quanto à propriedade do respectivo leito retira legitimidade processual activa à A. para pedir em juízo a abolição de um denominado atravessadouro sito no mesmo local, na medida em que se trata de um espaço físico que – conforme resulta do anteriormente decidido com força de caso julgado – nada tem a ver com o imóvel de que é titular.
V - Todos os outros pedidos deduzidos nos autos são acessórios e instrumentais do principal e dependiam imprescindivelmente da prova – enquanto seu pressuposto essencial – de que o dito carreiro/vereda se integrava nos limites do prédio de que a A. é titular.
VI - O reconhecimento do direito de propriedade da A. – negado na antecedente acção judicial, transitada em julgado – constituía deste modo um pressuposto lógico e essencial de que dependia, como conditio sine qua non, o conhecimento dos pedidos deduzidos nos presentes autos, o que significa que se verifica in casu a excepção da autoridade de caso julgado que impede o conhecimento do seu mérito.

Texto Integral


Revista (per saltum) nº 2868/23.3T8VRL.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção-Cível):

I - RELATÓRIO.

Instaurou AA acção declarativa na forma de processo comum contra BB e cônjuge, CC.

Essencialmente alegou:

A A. instaurou um processo judicial contra a ora R. mulher e outro que correu os seus termos no Juízo Local Cível de ... – Juiz ..., com o processo nº 2480/20.9..., no qual foi proferida sentença já transitada em julgado.

Na ação identificada no artigo anterior, a A. suscitou a questão da existência de uma servidão, em benefício da R. mulher, caminho/carreiro, que onerava o seu prédio, abaixo identificado no artigo 8º e, no essencial, peticionou que tal servidão fosse extinta.

Os pedidos formulados pela ora A., no processo identificado, no que respeita à R., e ao caminho/carreiro em causa, foram os seguintes:

a) Deverá ser reconhecido que as escadas e carreiro descritos nos artigos 7º, 8º, 9º e 11º a que corresponde uma faixa de terreno de 21 metros de cumprimento e 90 centímetros de largura, confrontando a norte com o prédio de que o 1º R. é possuidor integram a propriedade da A. identificada no artigo 1º da p.i. por transmissão dos seus pais e avós.

b) Subsidiariamente, deverá ser reconhecido que as escadas e carreiro a que corresponde uma faixa de terreno de 21 metros de cumprimento e 90 centímetros de largura, confrontando a norte com o prédio de que o 1º R. é possuidor, descritos nos artigos 7º, 8º, 9º e 11º integram a propriedade da A. identificada no artigo 1º da p.i. cuja aquisição se verificou por usucapião, pois a posse da A. e dos anteriores possuidores, que foram os seus pais, durou mais de 30 anos.

PEDIDO ALTERNATIVO:

c) Sendo entendido que o carreiro descrito nos artigos 7º, 8º, 9º e 11º constitui uma servidão sobre o prédio da A. deverá a mesma ser declarada extinta pelo não uso durante mais de 30 anos.

SUBSIDIÁRIAMENTE:

d) E também caso o carreiro descrito nos artigos 7º, 8º, 9º e 11º seja considerado uma servidão de passagem sobre o prédio da A. requer também a sua extinção por ser desnecessária aos prédios dos R.R.

Na sentença proferida no supra identificado processo, confirmada por Acórdão da Relação de Guimarães, e transitada em julgado, a acção foi julgada totalmente improcedente, sendo a ora R. mulher absolvida dos pedidos.

Por conseguinte, todos os pedidos da autora, dirigidos contra a ora Ré mulher, reproduzidos no artigo 3º desta p. i., vieram a ser julgados improcedentes.

Sucede que os pressupostos de facto que constituíram a causa de pedir na mencionada ação judicial encontram-se alterados, de forma essencial, quanto ao caminho/carreiro, que fora objeto de apreciação, enquanto servidão de passagem, no supra identificado processo judicial, designadamente, entre outros fundamentos, que abaixo se narram, pelo seguinte:

a) A natureza jurídica do prédio propriedade dos R.R. alterou-se pois onde existiam dois prédios urbanos e um prédio rústico passou a existir um só prédio urbano, encontrando-se já edificada uma moderna moradia;

b) No projeto de arquitetura e na operação urbanística realizada pela Camara Municipal de ..., os R.R., através do seu arquiteto, excluíram a existência, consequentemente, a utilização do caminho/carreiro em causa;

c) O atual prédio dos R.R., para todos efeitos, designadamente do Plano ... Municipal da Camara Municipal de ..., e de acordo com a sua urbanização, é omisso quanto à existência do caminho/carreiro em causa.

d) Após negociação e acordo com o Município de ... os ora R.R. passaram a dispor de acesso do seu prédio à via pública, pelo lado norte, para o Largo .... (doc. 3 - certidão do Município de ...)

e) As confrontações do lado norte do prédio dos R.R. já se encontram alteradas no registo predial de ..., para caminho público – largo do cemitério municipal, pois no processo que correu os seus temos no Juízo Local Cível de ... – Juiz ..., com o processo nº 2480/20.9..., no ponto 6 dos factos provados, fora considerado que tal confrontação norte, no registo predial, se verificava com um baldio.

f) O caminho/carreiro em causa não se encontra qualificado como sendo um caminho público.

Desde logo, no processo que correu os seus termos no Juízo Local Cível de ... – Juiz ..., com o nº 2480/20.9..., por não ter sido peticionado, por qualquer das partes, também não foi caracterizada a natureza jurídica do carreiro/caminho, bem com as consequências jurídicas resultantes dessa caracterização.

Causa de pedir na presente ação:

A Autora é dona e legítima proprietária do prédio urbano composto de casa de rés do chão, 1º e 2º andares e quintal, sito na Rua ..., freguesia de ... e concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo ...04 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº...49, conforme certidão do registo predial com o código de acesso PP-...01-...87- ...05-...49.

A A. adquiriu o referido imóvel, por partilha por herança, por óbito de seus pais, DD e EE, a qual foi realizada por escritura publica, em 17 de junho de 2013.

O mencionado prédio urbano havia anteriormente sido adquirido pelo avô da A., FF, através de escritura publica, outorgada em 7 de janeiro de 1947, com todas as suas pertenças, servidões, acessões, logradouros, livre de todo e qualquer ónus, encargo ou responsabilidade.

O avô da A., FF, deixou depois o mencionado prédio urbano, como legado, à sua filha, EE, mãe da A.

O prédio urbano da Autora, acima mencionado, atualmente com o artigo matricial U-...04 da freguesia de ... teve a sua origem no artigo U-...25 da mesma freguesia e este artigo, teve origem no artigo U-...50, que é anterior a 1951.

Por escritura pública realizada em 22 de dezembro de 2008 os R.R. adquiriram a GG, HH, II, JJ, KK e LL os seguintes prédios:

Um – Prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar e horta, freguesia de ..., descrito na Conservatória do registo Predial de ... sob o número ...05 / ... inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...59.

Dois – Prédio Urbano, composto de casa de rés-de- chão e primeiro andar, freguesia de ..., descrito na Conservatória do registo Predial de ... sob o número ...06 / ... inscrito na respectiva matriz sob o artigo 358.

Três – Prédio rústico, a cultura arvense de sequeiro e oliveiras, freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...07 / ... inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...44.

Na escritura mencionada no artigo anterior os outorgantes rectificaram a área do prédio identificado sob o número três, no sentido de que a área total é de quinhentos e vinte e nove metros quadrados e não a área de duzentos e setenta metros quadrados, invocando o erro de medição, constante do registo predial, constatado pelo “levantamento topográfico, constante de planta topográfica, devidamente assinada por todos os confinantes, que foi arquivada.”.

Tendo ainda consignado, na mesma escritura, o seguinte: “Que actualmente o referido prédio confronta de norte com ..., de nascente com MM, de sul com NN, de sul com OO e de poente com caminho público.”.

Dos três prédios adquiridos pelos R.R., através da mencionada escritura pública de compra e venda, realizada em 22 de dezembro de 2008, só o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número ...07 / ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...44º, confronta a sul com os herdeiros de PP, ou seja, com o prédio que fora propriedade dos pais da autora e que agora é a sua propriedade identificada no artigo 8º desta p.i..

Os três prédios acima mencionados, com os artigos matriciais ...59º urbano, ...58º urbano e ...44º rustico, da freguesia de ..., foram anexados e inscritos pelos R.R. em 2021 no Serviço de Finanças de ... e originaram o artigo matricial ...20 da freguesia de ....

Por outro lado, o atual artigo matricial 2820º encontra-se descrito no Serviço de Finanças pelos R.R. como “Tereno para Construção”. (doc.12)

Na Conservatória do Registo Predial de ..., os anteriores números de descrição ...05, ...06 e ...07, anexados, correspondem agora ao número de descrição ...04, da freguesia de ..., conforme certidão permanente com o código de acesso PP-...01-...95-...05-...07.

A partir da Rua ..., do lado nascente do prédio da Autora, identificado no artigo 8º desta p.i., situam-se umas escadas em alvenaria, com 11 degraus as quais, no seu final, do lado esquerdo de quem sobe as mesmas, dão acesso ao primeiro andar do seu prédio, onde se situa a zona habitacional e a entrada para a sala.

Na verdade, a parte habitacional do prédio da Autora, desde a sua construção, que é anterior a 1951, sempre se situou, até ao presente, no primeiro andar, enquanto o rés de chão sempre foi destinado a lojas.

Do mesmo modo, para além do acesso à sala no primeiro andar, pela escadaria acima referida no artigo 20º, também o acesso à cozinha, situada no primeiro andar, sempre foi efetuado através de outra escadaria que partia da Rua ..., no lado poente do prédio da autora.

Ou seja, o acesso ao primeiro andar da casa, propriedade da Autora, sempre foi realizado por duas escadarias paralelas, situadas nas duas empenas da mesma, e partindo da Rua ....

Efetivamente, desde a construção, anterior a 1951, do prédio da A., identificado no artigo 8º desta p.i., nunca existiu comunicação interior entre o rés do chão e o primeiro andar desse prédio.

Acresce que o rés do chão do prédio da Autora, identificado no artigo 8º desta p. i., nunca foi habitado e sempre foi destinado a lojas de arrumos, nele chegando a funcionar um estabelecimento comercial de mercearia.

Ao cimo das escadas, referidas no artigo 20º desta p.i., do lado esquerdo, existe uma cancela metálica que comunica com um pequeno varandim e, a cerca de um metro da mesma, situa-se a porta da sala da casa da Autora que, como acima se mencionou, se localiza no 1º andar.

Subindo mais sete degraus, a partir da cancela metálica, referida no artigo anterior, tem início um caminho/ carreiro com cerca de 1,5 metros de largura.

Do lado esquerdo do citado caminho/carreiro, logo depois dos degraus mencionados no artigo anterior, encontra-se uma porta em ferro, na empena da casa da A., que dá acesso a um curral, que foi utilizado pelos pais da Autora, há mais de 50 anos, e que também integra a falada propriedade da A.

Percorrendo o caminho/carreiro, acima mencionado, poucos metros depois da porta do curral, encontra-se o obstáculo de umas pedras e de um pequeno barranco que podem ser trepados e que permitia atalhar o acesso ao que já foi uma leira de terra que, no passado, pelo menos há mais de 20 anos, era aproveitada para cultura agrícola.

Assim, para se poder aceder à leira de terra mencionada no artigo anterior, era necessário, devido ao desnível, trepar o amontoado de pedras e o pequeno barranco, como se fosse um muro.

Ou seja, no final do caminho/carreiro, o acesso à leira de terra referida, devido ao desnível em que esta se se encontra, impõe a necessidade de trepar, configurando o que se pode designar como um acesso de cabras.

Assim, o leito do caminho/carreiro tem o seu termo no mencionado amontoado de pedras que, depois de ultrapassado, permite o acesso à designada leira que se encontra num plano superior.

Desde o início das escadas que acedem à Rua ..., passando pelos acessos do lado esquerdo ao 1º andar da propriedade da autora, até ao amontoado de pedras, no termo do carreiro, mencionados no artigo anterior, medeia uma distância de cerca de 16,40 metros.

Em todo o leito do caminho/carreiro não cabem duas pessoas, lado a lado, pois a sua largura é de cerca de 1,5 metros, e o mesmo só pode ser percorrido a pé.

No final do acima citado carreiro/ caminho, junto ao pequeno barranco e amontoado de pedras, mencionado no artigo 30º desta p. i., os R.R. colocaram um pequeno portão e o número 119.

A designada leira do antigo prédio rústico, a que se acedia pelo caminho/carreiro, acima referido, integrava o prédio rústico inscrito no Serviço de Finanças de ... sob o artigo matricial ...44º, da freguesia de ..., que os R.R. adquiriram por compra realizada em 22 de Agosto de 2008.

Todavia, conforme abaixo se demonstrará, já não existe atualmente qualquer prédio rústico ou leira de terra com fins agrícolas, no termo do caminho/carreiro acima falado, assim como já não existem, por terem sido demolidas, as ruínas dos prédios urbanos inscritos no Serviço de Finanças de ... com os artigos matriciais ...59º e ...58º, da freguesia de ....

Na verdade, no termo do caminho/carreiro em causa, confrontando com o prédio da Autora, situa-se o prédio dos R.R. o qual, após a anexação dos três prédios inscritos no Serviço Finanças de ... sob os artigos matriciais ...59º, ...58º urbanos e artigo matricial ...44º rústico, da freguesia de ..., originaram um terreno para construção com o artigo matricial ...20º e, depois das correspondentes operações urbanísticas, passou a ser um único prédio urbano já edificado.

Tal como define a segunda parte do nº 2 do artigo 204º do Código Civil, a área de 700 m2, que corresponde presentemente ao mencionado artigo matricial 2820º, originou agora um só prédio urbano, com uma área total de 720 m2, porquanto passou a ser constituído por um edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe servem de logradouro, tal como consta do projeto de arquitetura aprovado pela Camara Municipal de Mondim de Basto e da inscrição na matriz.

Assim, a leira de terra mencionada nos artigos 30º a 33º desta p.i., que foi outrora integrante do prédio rustico com o artigo ...44º da matriz da freguesia de ..., confrontando com o prédio da A., é agora uma parte do logradouro de moderna moradia unifamiliar propriedade dos R.R. a que corresponde o artigo matricial ...20º.

Concretamente, deixou de existir a realidade jurídica de dois prédios urbanos e um rústico, pois, em resultado de licenciamento da Camara Municipal de ... (processo de obras particulares L-EDI nº 9/2020), passou a existir um único prédio urbano autónomo, em resultado de operação urbanística, ou seja, no actual artigo matricial ...20º foi já edificada uma habitação unifamiliar, e um logradouro inseridos numa área total de 720 m2.

Os dois prédios urbanos, acima identificados no artigo 38º desta p.i., que se encontravam em ruínas, foram demolidos pelos R.R., de acordo com o projeto de arquitetura, sendo construída de raiz a moradia unifamiliar e logradouro em causa, moradia esta já edificada, em conformidade com a foto que se junta.

Na realidade, o arquiteto contratado pelos R.R., QQ, em fevereiro de 2020, apresentou na Camara Municipal de ... o Projeto de Arquitetura, (Construção de Moradia Unifamiliar e Muro de Vedação) com o seguinte objeto, conforme Memória Descritiva e Justificativa: “demolição de edificações existentes seguido de construção de moradia unifamiliar e de muro de vedação que o Sr. BB e a D.ª CC pretendem edificar no prédio registado na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...04/20081229 e inscrito na matriz urbana nº ...58 e nº ...59º e na matriz rústica nº ...44º da freguesia de ....

A moradia unifamiliar em causa “insere-se no Plano ... Municipal de ..., encontrando-se localizado, de acordo com a planta de ordenamento, em Espaços Centrais, sem condicionantes.”

O projeto concretiza que se trata da “construção de uma moradia unifamiliar de cave e rés de chão, do tipo T2.

A cave é composta por caixa de escadas, hall de distribuição, casa de bano e dois quartos.

O rés-do-chão é composto por hall de entrada, caixa de escadas, casa de banho, sala de estar. Cozinha, despensa, lavandaria e garagem.”

Por outro lado, no mencionado Projeto de Arquitetura, o Senhor Arquiteto QQ, fez constar o seguinte:

Na elaboração do presente projeto, verificou-se que o prédio em causa encontra-se numa situação de “ilha”, uma vez que que apesar de na Certidão do registo Predial confrontar com caminho público e de pelo PDM de ... se encontrar em Espaços Centrais, não tem acesso direto pela via habilitante.

Tendo em conta que, para a aprovação do projecto de arqutectura, é condição obrigatória que o prédio tenha confrontação/acesso direto da via pública habilitante, o requerente solicitou uma audiência prévia na Camara Municipal de ..., na qual estiveram presentes o próprio, o Técnico autor do projeto de arquitetura, o Presidente da Junta de Freguesia, o Sr Vereador do Pelouro e Técnico Responsável do Urbanismo, de forma a se encontrar uma solução para garantir o acesso ao prédio. A falta de acesso directo da via pública habilitante ao prédio foi criado após as obras municipais junto ao cemitério, uma vez que foi edificada uma plataforma mais elevada, eliminando deste modo o antigo acesso a este e a outros prédios.

Nesta audiência prévia ficou acordado por parte do Sr. Vereador do Pelouro e do Técnico responsável do Urbanismo que a Camara Municipal de ... irá executar as obras de urbanização necessárias para criar um acesso público ao prédio em questão, de forma a viabilizar o projecto de arquitetura da moradia unifamiliar e muro de vedação, que os requerentes pretendem licenciar.

Deste modo apresenta-se uma planta de implantação, onde se propõe a localização do acesso público a elaborar pela Camara Municipal de ....

A Camara Municipal de ..., através do seu Vice ..., RR, deferiu o mencionado projeto, depois de informação técnica dos serviços técnicos do Município, e proposta do Chefe de Divisão SS.

E, como na parte norte da propriedade dos R.R., para viabilizar o projecto, implicava a existência de uma via de acesso em solo público, o Município de ... deferiu tal acesso para o Largo ...; ....

Com a data de 9 de julho de 2020 os R.R. e com base em levantamento topográfico e declaração da Junta de Freguesia de ..., os R.R. residindo na Rua ..., ... requereram na Conservatória do Registo Predial de ... a alteração de confrontação do prédio ...04 da freguesia e concelho de ....

Os R.R. subscreveram a mencionada requisição na qual declararam o seguinte:

“DEVIDO A ABERTURA DO CAMINHO PÚBLICO O PRÉDIO TEM AS SEGUINTES CONFRONTAÇÕES:

NORTE: CAMINHO PÚBLICO -LARGO ...

SUL: TT E HERDEIROS DE PP

NASCENTE: UU

POENTE: LARGO ...”.

Por seu lado na declaração da Junta de Freguesia de ..., o seu presidente consignou que o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...44º confronta a norte a poente com caminho público, Largo ....

O levantamento topográfico apresentado pelos R.R., da responsabilidade do Atelier VV, com as confrontações confirmadas pelo Presidente da Junta de Freguesia, não contempla qualquer acesso à via publica para a Rua ..., na confrontação a sul.

Através da empresa de construção I..., Lda., substituída, a partir de março de 2023, pela empresa N..., S.A., os R.R. já ergueram a edificação da moradia unifamiliar nos termos acima indicados.

A moradia unifamiliar, tem agora acesso habilitante à via pública, na parte norte, ou seja, para o Largo ..., ..., em conformidade com o projeto de arquitetura e com a informação da Divisão de Planeamento e Ordenamento do Território do Município de ..., e acordo do Município.

Na proposta apresentada à Camara Municipal de ... pelo arquiteto dos R.R., QQ, o Projeto de Arquitetura, para além da moradia, também contempla a construção de um “Muro de Vedação”.

No que diz respeito à confrontação sul, com o prédio da autora (WW e Herdeiros de PP), no projeto de arquitetura proposto na Camara Municipal de ..., pelo acima identificado arquiteto, foi proposta a regularização do muro nº 3, ao longo de toda a confrontação, sem qualquer acesso ao caminho/ carreiro acima mencionado.

A Camara Municipal de ..., através do seu Vice ..., RR, após realização de estudo arquitetónico pelo gabinete de arquitetura camarário, aprovou o referido projecto com “o muro de suporte” a confrontar em toda a sua extensão com a propriedade da Autora, a ser regularizado.

Ou seja, a moradia unifamiliar e logradouro, na parte confinante com o prédio da autora, exclui qualquer caminho, designadamente, o carreiro mencionado, por indicação dos próprios R.R..

Por conseguinte, do lado que confronta a sul com a propriedade da A., identificada no artigo 8º desta p.i., os R.R. e o seu arquiteto, QQ, decidiram excluir a possibilidade de acesso à Rua ... pelo carreiro/ caminho mencionado nos artigos 28º, 30ª a 36º e 39º desta p.i., pois o mesmo nem sequer consta do projecto de arqutectura.

Por seu lado, a Camara Municipal de ..., através do seu Vice ..., RR, aprovou o projeto de arquitectura com as especificidades da informação do seu gabinete de arquitetura, que também estudou e elaborou um projecto no qual é omisso o carreiro/caminho, como percurso dos R.R. de atalho entre a sua propriedade e a Rua ....

Assim, quer o arquiteto dos R.R., no projeto de arquitetura que os mesmos lhe encomendaram, quer o gabinete de arquitetura da Camara Municipal de ..., excluíram a existência do caminho/ carreiro mencionado, como atalho a partir da propriedade dos R.R. para a Rua ....

Na atual realidade jurídica, configurada pelo prédio urbano dos R.R., acima descrito, não existe qualquer caminho/ carreiro para sul, em direção à Rua ..., nomeadamente, considerando: o projeto de arquitetura apresentado pelos R.R. na Camara Municipal de ...; o estudo arquitetónico desta Câmara e o Plano ... Municipal.

O que se compreende, pois também não existe qualquer tipo de utilidade para os R.R. no acesso à via pública (Rua ...) por um atalho, que é um caminho de cabras, pois a sua moradia e a garagem passaram a dispor de acesso à via pública, do lado norte, para o Largo ..., em ....

Caminho público e atravessadouro

Apesar de a R. mulher não ter formulado, em reconvenção, qualquer pedido no processo nº 2480/20.9... do Juízo Local Cível de ... – Juiz ..., no qual foi proferida sentença, já transitada em julgado, a mesma perfilha o entendimento de que o caminho/ carreiro em causa é um caminho público, conforme alegou nos artigos 24º,25º ,27º, 31º,33º, 34º da sua contestação naqueles autos.

As escadas e caminho/carreiro que vão da Rua ..., até ao prédio dos R.R. não constituem um caminho público, pois não se encontra legalmente classificado, a qualquer título, designadamente, pelo Município de ... e pela Junta de Freguesia de ..., como estando integrado no domínio público.

Por outro lado, independentemente de uma hipotética classificação, não existe qualquer interesse colectivo ou utilidade pública para a população de ... na utilização do caminho/ carreiro em causa, pois só existe uma utilidade individual para os R.R. que, desse modo, podem aceder à Rua ... por um atalho pois o acesso principal e mais cómodo à via pública realiza-se para o Largo ....

Nem o mesmo caminho/ carreiro tem existência legal, para utilidade pública, no Plano Diretor Municipal de ..., pois só a moradia unifamiliar dos R.R. se localiza em “Solo Urbano”, “Urbanizado” na categoria de “Espaços Centrais”.

O caminho/carreiro acima citado só era usado pelas pessoas que desejassem aceder ao prédio dos R.R. não tendo utilidade pública para a população local.

O alegado no artigo anterior, também corresponde ao que foi dado como provado no ponto 24 dos factos provados na sentença no processo nº 2480/20.9... do Juízo Local Cível de ... – Juiz ..., apesar de essa prova não relevar nestes autos.

Em qualquer caso, só por absurdo é que a propriedade dos R.R., que agora tem natureza urbana, possa ser ela própria atravessada pela população de ... no logradouro que faz agora parte da moradia unifamiliar dos R.R. e devassada, como caminho público, para acesso ao Largo ..., até porque a mesma é murada, conforme consta do projeto aprovado pela Camara Municipal de ....

Por conseguinte, não se pode falar em interesse colectivo ou em utilidade pública do caminho/carreiro quando só pessoas individualmente interessadas em aceder à propriedade dos R.R. o utilizavam e utilizam.

Não se podendo assim concluir que existisse uma utilização pública do caminho/ carreiro pela população de ....

Tal como consta do projeto de arquitetura e do deferimento pelo Município de ..., o prédio dos R.R. é murado no seu limite sul, pelo que, inexiste saída para o caminho/carreiro.

Tendo em consideração a moradia unifamiliar, já edificada, e o logradouro, bem como o acordo do Município de ... no acesso habilitante a norte à mesma, o caminho/ carreiro em causa deixou de ter qualquer utilidade para os R.R..

A referida inutilidade do caminho resulta, comprovadamente, das alterações verificadas no prédio dos R.R. que agora dispõe de acesso habilitante ao Largo ... a pé e com veículo, com melhores condições e comodidade.

Desde logo, o prédio dos R.R. já não se encontra encravado, já não necessitando do acesso pelo caminho/ carreiro para a via pública, ou seja, para a Rua ....

O caminho/ carreiro na atualidade é um mero atalho ou vereda, para uso exclusivo dos R.R. para acesso à Rua ....

Pois a propriedade dos R.R., que é uma moradia unifamiliar de arquitetura moderna, conforme acima se alegou, tem agora acesso directo para o Largo ....

O acesso de pessoas à propriedade dos R.R. é feito diretamente a partir do Largo ..., em vez de terem de percorrer cerca de 16,40 metros desde o termo do logradouro da sua propriedade, até chegarem à Rua ....

Assim, não sendo o caminho/ carreiro, objecto dos presentes autos, qualificado como uma servidão, nem como um caminho público, o mesmo só poderá ser qualificado como um atravessadouro, sem prejuízo do acesso pelas escadas acima referidas à propriedade da A.

Não sendo o caminho/ carreiro um caminho público, contrariamente ao defendido pelos R.R., também não pode manter-se como atalho ou atravessadouro, encontrando-se abolido por força do disposto no artigo 1383º do C.C., pois também não se dirige a uma coisa determinada com particular utilidade pública, com são, por exemplo, as fontes ou pontes.

O direito da Autora em pedir o reconhecimento judicial da extinção do atravessadouro/ atalho encontra-se assim consagrado na jurisprudência e na doutrina.

DIRETO À RESERVA DA INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA

Desde logo a manutenção da utilização do caminho/carreiro pelos R.R. para além de inútil para eles, tem como único e exclusivo objectivo privar a A. de sossego e privacidade, sobretudo devido à conflitualidade existente entre as partes.

Os R.R. têm conhecimento que ao percorrerem o caminho/carreiro, devido à estreiteza da sua largura, cerca de 1,5 metros, implica que tenham de passar a cerca de um metro da porta da sala e encostados ao varandim, acima descritos, situados no primeiro andar da propriedade da A.

Ora sendo o caminho/carreiro mencionado um mero atalho para os R.R., que faz a ligação entre a Rua ... (caminho público) e o prédio de que são proprietários, nem sequer o mesmo “tem em vista o encurtamento de distancias, para maior comodidade” dos R.R.

Pois os R.R. alcançam a via publica directamente para o Largo ... não necessitando de percorrer qualquer distancia, desde a sua propriedade para a via pública, no Largo ....

Assim, também pelo respeito pelo direito à reserva da intimidade da vida privada da A., direito este que assume a natureza de direito de personalidade, carece de razão para existir o atalho em causa a favor dos R.R. (v. art.º. 80º do Cód. Civil e art.º. 26º, nº 1 da Constituição da República).

A A. conclui pedindo:

a) Deverá ser reconhecido que em termos matriciais os três prédios propriedade dos R.R., inscritos no Serviço de Finanças de ..., com os artigos matriciais ...59º, ...58º urbanos e ...44º rústico, da freguesia de ..., foram anexados e aos mesmos corresponde agora o artigo matricial ...20º descrito como “Terreno para Construção”.

b) Deverá ser reconhecido que na Conservatória do Registo Predial de ..., os anteriores números de descrição ...05, ...06 e ...07 da freguesia de ... foram anexados, correspondendo agora ao número de descrição ...04, da freguesia de ..., conforme certidão permanente com o código de acesso PP-...01-...95-...05-...07.

c) Deverá ser reconhecido que os prédios mencionados na alínea a) e b) constituem agora um único prédio urbano, com uma área total de 720 m2, que resultou de projeto da arquitetura e operação urbanística aprovados pela Camara Municipal de ....

d) Deverá ser reconhecido que prédio urbano propriedade dos R.R., mencionado nas alíneas anteriores, é constituído por um edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe servem de logradouro, tendo os R.R. demolido os prédios urbanos que se encontravam em ruínas e a que correspondiam os artigos matriciais ...59º e ...58º da freguesia de ....

e) Deverá ser declarado que na confrontação norte a propriedade dos R.R. tem agora acesso à via pública, para o Largo ..., em ..., em resultado de aprovação e deferimento do Município de ..., confrontação que já se encontra atualizada na matriz no Serviço de Finanças e no Registo Predial.

f) Deverá ser reconhecido que do lado que confronta a sul/poente, com a propriedade da A., identificada no artigo 8º desta p.i., no projeto de arquitetura que os R.R. apresentaram no Município de ..., encontra-se excluído qualquer acesso à sua propriedade pelo carreiro/ caminho mencionado nos artigos 28º, 30ª, 32º a 36º e 39º desta p.i. que se acedia a partir da Rua ..., sendo que este acesso também não se encontra reconhecido no projeto de arquitetura aprovado pelo Município de ....

g) Deverá ser reconhecido que a Camara Municipal de ..., através do seu Vice ..., RR, e após realização de estudo arquitetónico pelo gabinete de arquitetura camarário, aprovou o referido projecto com “o muro de suporte” a confrontar em toda a sua extensão com a propriedade da Autora, a ser regularizado, sem qualquer saída pelo caminho/carreiro mencionado nos artigos 28º, 30ª, 32º a 36º e 39º desta p.i. para a Rua....

h) Deverá ser reconhecido que o caminho/ carreiro mencionado nos artigos 28º, 30ª, 32º a 36º e 39º desta p.i. não tem a natureza de um caminho público, pois só pode ser usado pelas pessoas que desejem aceder ao prédio dos R.R., não tendo utilidade pública para a população local, nem tendo atualmente utilidade para os R.R. que já possuem um acesso mais cómodo para o Largo ..., em ....

i) Deverá ser declarado que o caminho/ carreiro, mencionado nos artigos 28º, 30ª, 32º a 36º e 39º desta p.i., constitui presentemente para os R.R. um mero atalho ou atravessadouro, porquanto o prédio dos R.R., acima identificado, já não se encontra encravado.

j) Deverá ser reconhecido que além de ser inútil o atalho em causa, a sua utilização põe em causa a privacidade da A., designadamente junto à entrada da sua propriedade situada no 1º andar que acede ao varandim e à sala citados no artigo 20º e 27º desta p.i.

k) Deverá ser declarado que assiste à Autora, na qualidade de interessada, o direito de pedir o reconhecimento judicial da extinção do atravessadouro mencionado na alínea i) deste pedido, conforme é entendido pelo Acórdão do STJ citado no artigo 85º desta p.i.

Consequentemente:

Deverá ser declarado como extinto e, consequentemente, abolido o atalho/atravessadouro, mencionado nos artigos 28º, 30ª, 32º a 36º e 39º desta p.i., que constitui o caminho/carreiro, entre a Rua ..., em ... e a propriedade dos R.R., descrita na Conservatória do Registo Predial de ..., com o número ...04, da freguesia de ... e inscrita no Serviço de Finanças de ..., sob o artigo matricial...20, da freguesia de ..., sem prejuízo do acesso ao 1º andar da propriedade da A., identificada no artigo 8º desta p.i., pela escada mencionada nos artigos 20º e 27º desta p.i., e ao acesso à propriedade da Autora pela porta mencionada no artigo 29º desta p.i.

Vieram os RR, apresentar contestação.

Essencialmente alegaram:

Da Ilegitimidade Processual Ativa:

A Autora é casada, conforme a própria alega da sua petição inicial.

Os autos têm por objeto o prédio identificado pela Autora no artigo 8º da petição inicial.

Nos termos do disposto no artigo 34º do CPC, a presente ação, que tem por objeto um bem imóvel que apenas poderá ser alienado ou onerado por ambos os cônjuges, também deveria ter sido proposta pelo cônjuge da Autora.

Face a ausência daquele, ocorre exceção dilatória de preterição de litisconsórcio necessário ativo, o que determina a absolvição dos Réus da instância, o que se requer seja declarado.

Da Exceção de Caso Julgado / Autoridade do Caso Julgado:

A Autora, não contente com o desfecho do processo 2480/20.9..., que correu termos no Juiz ... do Juízo Local Cível de ..., baralhou os factos e pretende novamente discutir a extinção do direito dos Réus utilizarem o caminho de acesso ao prédio de que são proprietários.

O objeto do presente processo já foi discutido e decidido naquele processo.

Em sede de Contestação, naqueles autos, os Réus, a título de exceção perentória inominada, alegaram a dominialidade do caminho.

Tendo ficado provados, com trânsito em julgado, entre outros, os seguintes factos:

“O acesso ao prédio referido em 5) é realizado, desde tempos imemoriais, pelas escadas referidas no ponto 13) e pelo carreiro referido no ponto 16)…”

“O acesso referido em 23) era usado livremente por qualquer pessoa que desejasse aceder ao prédio referido em 5).”

Não houve declaração judicial da natureza pública do caminho por tal não ter sido pedido, mas invocado a título excecional.

É esta factualidade que a Autora pretende novamente discutir.

No pedido que a Autora formula na petição inicial, pretende que seja declarado extinto e, consequentemente, abolido o atalho/atravessadouro, mencionado nos artigos 28º, 30º, 32º a 36º e 39º da p.i..

Esse atalho/atravessadouro descrito nos referidos artigos é o caminho constituído pelas escadas e carreiro declarados nos pontos 13 e 16 da sentença transitada em julgado nos referidos autos 2480/20.9...

Nessa mesma decisão, concretamente no ponto 27 - factos não provados, foi considerado facto não provado:

“Que o carreiro referido em 16) tivesse sido utilizado há mais de 30 anos como atalho, por mera tolerância, para acesso a uma leira,”

A Autora, fazendo tábua rasa de toda a matéria de facto considerada provada e transitada em julgado naqueles autos, pretende ver tudo novamente discutido.

O que não se admite.

Ocorre uma situação de exceção de caso julgado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 580º do CPC, o que determina a absolvição dos Réus da presente instância.

Ainda que se entenda não se verificar a exceção de caso julgado, estamos perante uma situação de autoridade do caso julgado, não podendo a matéria de facto considerada provada e transitada em julgado ser novamente apreciada e julgada.

O que invariavelmente leva à improcedência do pedido formulado, o que deverá ser conhecido no âmbito de despacho saneador.

Por Impugnação:

Os Réus impugnam concreta e especificadamente, por falsos, os factos constantes dos artigos 6º, 7º, 16º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 28º, 30º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 39º, 40º, 53º, 57º, 58º, 59º, 60º, 61º, 62º, 63º, 64º, 66º, 67º, 68º, 69º, 70º, 71º, 72º, 73º, 74º, 75º, 76º, 77º, 78º, 79º, 80º, 81º, 84º, 85º, 85º, 86º, 87º, 88º, 89º, 90º, 91º, 92º, 93º, 94º, 95º, 96º, 97º, 98º, 99º e 100º da petição inicial.

Os Réus desconhecem e não são obrigados a conhecer os factos alegados pela Autora nos artigos 9º, 10º, 11º e 12º da Petição Inicial, pelo que vão os mesmos impugnados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 574º do Código de Processo Civil.

A Autora incompatibilizou-se com os Réus.

Como se incompatibilizou com os pais da Ré mulher.

Fixou como objetivo pessoal impedir os Réus e os seus pais de utilizarem o caminho descrito na sentença constante dos autos 2480/20.9...

Após ter chegado ao Supremo Tribunal de Justiça naqueles autos, não satisfeita, arquitetou mais um processo.

Onde, basicamente pretende discutir a factualidade discutida naquele outro processo.

A Autora vai ao ponto de perder toda a pouca credibilidade que ainda lhe restava.

Naqueles autos contou uma versão da história, nestes conta uma outra história incompatível com a realidade da primeira.

A Autora limita-se a atirar o barro à parede e esperar que em algum momento “cole”.

Naqueles autos, com autoridade de caso julgado, ficaram provados, entre outros, os seguintes factos:

“O acesso ao prédio referido em 5) é realizado, desde tempos imemoriais, pelas escadas referidas no ponto 13) e pelo carreiro referido no ponto 16)…”

“O acesso referido em 23) era usado livremente por qualquer pessoa que deseja-se aceder ao prédio referido em 5).”

Nestes dois factos assenta a característica pública do caminho em causa nesta acção.

Desde tempos imemoriais que o acesso ao prédio dos Réus é realizado pelo caminho em causa nos autos, sendo que até à abertura de uma via de acesso ao Largo ... realizada em meados de 2021/2022, era aquele caminho a única via de acesso à via pública.

O acesso da Rua ... ao prédio dos Réus, desde tempos imemoriais, que é realizado pelo caminho em causa nos autos, sendo utilizado por qualquer pessoa que ali pretenda aceder.

O mesmo sucede relativamente ao prédio dos pais da Ré mulher, que também tem acesso pelo caminho em causa.

Pelo referido caminho sempre passaram e passam pessoas a pé.

Sendo de acesso livre a qualquer pessoa que queira deslocar-se a um dos três prédios beneficiários do caminho.

Ao longo dos anos, desde tempos imemoriais, as pessoas trilham o caminho e deslocam-se em direção aos prédios da Autora, dos Réus ou dos pais da Ré mulher.

Nunca a passagem foi impedida, como não é atualmente.

A passagem pelo caminho nunca foi interrompida.

Os Réus e o seu filho deslocam-se diariamente pelo caminho, sendo que pelo mesmo percorrem cerca de 30 metros para se deslocar do seu prédio ao prédio dos pais da Ré mulher e vice-versa.

Não fosse o caminho, os Réus teriam de percorrer cerca de 1,5 km para se deslocar entre os prédios dos Réus e o prédio dos pais da Ré mulher.

Os Réus acedem a pé ao centro da Vila de ... pelo caminho em causa nos autos, percorrendo para tanto cerca de 250 metros.

O filho dos Réus desloca-se pelo referido caminho entre o prédio dos Réus, o prédio dos seus avós e o centro da Vila de ..., nomeadamente para o centro escolar de ..., onde frequenta o ensino secundário.

As visitas, forças policiais, bombeiros, carteiro e todas as pessoas e entidades que pretendam aceder aos três prédios (Autora, Réus e pais da Ré) podem fazê-lo, como sempre fizeram, por meio do caminho em causa nos autos.

Face o exposto, é por demais evidente que o caminho em causa nos autos respeita os três requisitos fundamentais para a qualificação de caminho público, isto é, uso direto e imediato do público, imemorialidade do uso e afetação à utilidade pública.

Notoriamente existe utilidade pública, com amplitude coletiva, na utilização do caminho em causa nos autos, o que determinará, necessariamente a improcedência do pedido formulado pela Autora.

Os Réus impugnam o teor dos documentos n.º 3 em qualquer declaração que seja contrária com a factualidade alegada em sede de contestação, bem como por os mesmos não fazerem prova para os factos que são propostos.

Termos em que devem ser julgadas procedentes, por provadas, as exceções alegadas e, consequentemente os Réus absolvidos dos pedidos, bem como, se assim se não entender, improceder, por não provada, a presente acção.

Foi proferido, em sede de saneador-sentença a seguinte decisão:

“A questão que se poderia colocar nos presentes autos é a existência de autoridade de caso julgado, quer por reporte ao decisório da decisão proferida no proc. n.º 2480/20.9..., quer por referência aos fundamentos jurídicos da decisão.

De facto, conforme supra já afloramos a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreva, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, ainda que não integralmente idêntico, de modo a obstar a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa (…) embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.

Ora na sentença proferida no proc. n.º 2480/20.9... pode ler-se que “na medida em que resulta dos factos provados que escadas referidas em 13) e o carreiro referido em 16) são a única via de acesso entre o prédio referido em 5) e a via pública (ponto 25)), a ré sempre beneficiaria da possibilidade de constituição de uma servidão legal de passagem pelo dito carreiro, a qual expressamente invoca na sua contestação enquanto matéria exceptiva, pelo que até por aqui o pedido formulado pela autora teria que improceder (artigo 1550º do Código Civil).

Com efeito, as servidões prediais (artigos 1543º-1575º do Código Civil) encontram-se definidas pela lei como o encargo imposto num prédio (dito serviente) em proveito exclusivo de outro prédio (dito dominante), pertencente a dono diferente (artigo 1543º do Código Civil). De acordo com Menezes Leitão, a servidão consiste na atribuição ao titular de um prédio, dito dominante das utilidades de outro prédio, dito serviente. O mesmo autor prossegue atribuindo às servidões prediais quatro características distintivas e constitutivas: (a) ligação necessária a um prédio, (b) atipicidade do conteúdo, (c) inseparabilidade e (d) indivisibilidade.

No que diz respeito à primeira característica, a atribuição da servidão faz-se sempre em função da titularidade do prédio dominante, não sendo admitidas as servidões pessoais, nas quais a atribuição das utilidades do prédio se faz independentemente da titularidade de um direito real sobre o mesmo. Todavia, o titular da servidão não tem que ser necessariamente o proprietário do prédio, podendo as servidões ser constituídas igualmente em benefício do usufrutuário (artigo 1575º do Código Civil) ou do superficiário (artigo 1529º do Código Civil); todavia, exige-se sempre a ligação ao prédio dominante.

No que diz respeito à segunda característica, o objecto da servidão pode ser variado, podendo consistir em quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo não aumentando o seu valor (artigo 1544º do Código Civil). Afigura-se necessário que o encargo imposto ao titular do prédio serviente proporcione uma utilidade ao titular da servidão, sendo essencial que essa utilidade possa ser gozada através do prédio dominante, por intermédio dele. Todavia, o conteúdo mais habitual das servidões é o correspondente às necessidades de trânsito, água, luz, vistas, apoio e suporte do prédio, entre outras - entre as quais a servidão de passagem, a qual permite o trânsito pelo prédio serviente.

No que diz respeito à terceira característica, a servidão é inseparável do prédio em que incide, activa ou passivamente, constituindo um corolário da regra de que as utilidades do prédio serviente deverão ser gozadas através do prédio dominante (artigo 1545º do Código Civil).

Por último, as servidões são indivisíveis, nos termos estipulados no art. 1546º do Código Civil.

As servidões dividem-se em dois grandes grupos: (a) as servidões legais (constituídas coactivamente, sem consentimento do proprietário do prédio serviente) e (b) as servidões voluntárias (constituídas com o consentimento do proprietário do prédio serviente) - art. 1547º do Código Civil. Na falta de constituição voluntária, as servidões legais poderão ser constituídas por sentença judicial (art. 1547º, n.º 2 do Código Civil).

A servidão legal de passagem (art. 1550º-1556º do Código Civil) constitui uma modalidade de servidão legal que poderá ser constituída em benefício de prédio encravado (arts. 1550º e ss do Código Civil) ou para o aproveitamento de águas (art. 1556º do Código Civil).

Centrando-nos na primeira modalidade, é concedida aos proprietários de prédios sem comunicação com a via pública ou condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio ou possuam comunicação insuficiente através de terreno próprio ou alheio a possibilidade de constituição de uma servidão legal de passagem através dos terrenos vizinhos.

De acordo com Pires de Lima/Antunes Varela, esta norma tem por elemento constitutivo o conceito de «encrave», definido como a falta de comunicação com a via pública, i.e: a existência de um ou mais prédios de permeio entre o prédio encravado e a via pública. Todavia, a própria lei admite que este encrave possa ser absoluto (uma absoluta falta de comunicação com a via pública) ou relativo (nos quais a ligação com a via pública apenas se realiza com excessivo incómodo ou dispêndio ou seja manifestamente insuficiente).

Essa passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram o menor prejuízo e pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados (art. 1553º do Código Civil).

Visto resultar dos factos provados que escadas referidas em 13) e o carreiro referido em 16) são a única via de acesso entre o prédio referido em 5) e a via pública (ponto 25)), a ré pode invocar a constituição de uma servidão legal de passagem, nos termos dos supra citados preceitos, pelo que a autora não dispõe de título suficiente para impedir o seu acesso ao dito carreiro e exigir a remoção do portão”.

Do teor deste segmento da sentença proferida no proc. n.º 2480/20.9... poderíamos ser levados a pensar que o tribunal já havia aflorado nos fundamentos da sentença o carácter de servidão do caminho em crise, e que, portanto, tal questão não podia ser novamente discutida.

Pensamos que não é assim.

Isto por duas ordens de razões.

A explanação jurídica atravessada pelo Tribunal na sentença já transitada em julgado baseia-se no instituto da servidão legal de passagem, a qual depende do encrave do prédio dominante.

Ora segundo alega a Autora tal encrave deixou de existir por força da aprovação de projecto pela Câmara Municipal de ..., que consequente acesso à via pública através do Largo ..., a norte e poente do prédio.

Por outro lado, pese embora o tribunal tenha aflorado a possibilidade de a Ré requerer a constituição de uma servidão legal de passagem, não se afigura resultar da sentença qual seria o prédio serviente de tal servidão, pois que se considerou improcedente a pretensão da Autora de se considerar que tal faixa de terreno era parte integrante do seu prédio já supra identificado.

Assim sendo, entendemos que não se pode considerar que no ponto b) da fundamentação de direito o Tribunal tenha classificado a faixa de terreno em crise como sendo uma servidão.

Destarte, se é verdade que o nosso sistema jurídico não pode comportar e admitir, sem limites, a discussão eterna de questões jurídicas, como se as sentenças transitadas em julgado não conferissem aos seus beneficiários direitos efectivos, ficando eternamente submetidas à litigiosidade processual promovida pela parte que ficou vencida, também não é menos verdade que uma mesma questão fáctica pode gerar vários litígios entre as partes, desde que em todos eles não haja identidade de causa de pedir ou pedido, e desde que as questões jurídicas suscitadas não tenham sido já decididas anteriormente ainda que de forma instrumental.

Desta sorte, a Autora não se mostra impedida de contra os mesmos Réus intentar pretensão que visa qualificar juridicamente tal faixa de terreno como sendo um atravessadouro, pois que tal matéria não foi discutida e decidida naquela outra acção.

Dito isto, verifica-se a excepção de caso julgado quanto à matéria do reconhecimento da faixa de terreno onde se situa o caminho ser propriedade da Autora. Esta matéria já foi discutida na pretérita acção, entre as mesmas partes, tendo o Tribunal dado como não provado que a faixa de terreno em crise onde se situa o caminho era parte integrante do prédio da Autora, isto é, do prédio urbano composto de casa de rés do chão, 1º e 2º andares e quintal, sito na Rua ..., freguesia de ... e concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo ...04 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...49 e, nessa sequência, tendo dado improcedência à pretensão da Autora (de lhe ver reconhecida a propriedade da faixa de terreno que constitui o caminho).

Transitada em julgado tal decisão, a Autora está impedida de voltar a discutir a questão da propriedade do caminho.

Como já se aludiu a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreva, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, ainda que não integralmente idêntico, de modo a obstar a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa (…) embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.

Da decisão proferida no proc. do proc. n.º 2480/20.9... consta o seguinte ”a) sobre a integração da escada e carreiro no prédio da autora;

Com os seus dois primeiros pedidos, a autora pretende que os réus sejam condenados a reconhecer que as escadas e carreiro referidos nos pontos artigos 7º, 8º, 9º e 11º da douta p.i (a que correspondem os pontos 13) e 16) da contestação) integram a propriedade da autora originariamente ou subsidiariamente por usucapião.

Em primeiro lugar, resulta dos factos provados que entre os prédios da autora (ponto 1) e do réu (ponto 9) existe uma escada que dá acesso a um carreiro, pelo qual se pode aceder ao terreno da ré (pontos 13) e 16)); mais resulta dos factos provados que os prédios 1) e 9) confrontam entre si e que a dita escada dá acesso a dois portões à casa da autora (pontos 12) e 14)).

Ora daqui não se pode concluir que as ditas escadas e carreiro se encontrem, de facto, integradas no prédio da autora mas somente que as mesmas permitem acesso aos prédios da autora e dos réus, não sendo possível concluir sobre a titularidade do direito de propriedade sobre as mesmas.

Quando muito, poderíamos aqui aplicar, nem que fosse por analogia, as regras previstas no artigo 1371º, n.º 1 e n.º 2 do Código Civil e considerar que a escadaria seria comum entre os dois prédios (o 3749º e o 1251º), em virtude de se encontrar indissoluvelmente unida a ambos; todavia, o Tribunal encontra-se vinculado ao pedido, pelo que não pode apreciar essa questão.

Em segundo lugar, no que diz respeito ao pedido subsidiário, o Tribunal considera que não se encontram aqui reunidos os pressupostos para a aquisição do direito de propriedade sobre as mesmas por usucapião.

Com efeito, a apreciação do pedido depende de um recordar das normas relativas à posse e aquisição da propriedade por via de usucapião.

Nos termos de uma leitura combinada entre os artigos 1251º e 1253º do Código Civil, designa-se como «posse» a situação jurídica em que alguém actua por força correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.

Doutrinalmente e jurisprudencialmente são apontadas duas características à posse: o «corpus» (correspondente a actos materiais que expressem o exercício de um poder de facto sobre uma coisa, os quais denunciem que entre uma pessoa e uma coisa existe uma relação de facto, relação que, quando revestir certos caracteres, será a própria relação possessória) bem como o «animus» (correspondente à intenção de agir como titular desse direito) – cfr o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/05/2013, prc. n.º 355/06.3TBARC.P1.S2.

Uma vez que o «animus» constitui um simples elemento subjectivo, de difícil prova, os Tribunais superiores têm admitido que se presuma esse elemento intencional, volitivo, retirando essa presunção do artigo 1252º, n.º 2 do Código Civil; presume-se que, quem exercer o poder de facto, tem o animus de ser o titular do direito (cfr o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/02/2014, proc. n.º 1350/11.6TBGRD.C1).

Os que não forem considerados possuidores (em virtude de terem o «corpus» mas não o «animus» serão considerados detentores ou possuidores precários – art. 1253º do Cód Civil).

Nos termos do artigo 1252º, n.º 1 do Código Civil, a posse pode ser exercida tanto pessoalmente como por intermédio de terceiro; trata-se, no dizer de Pires de Lima/Antunes Varela, da figura da «representação» na posse, do exercício de um direito por intermédio de um representante.

Por seu turno, nos termos do artigo 1255º do Código Civil, por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa.

A usucapião consiste numa forma de aquisição originária da propriedade que depende da vontade do adquirente, de uma posse com determinadas características e pelos prazos legais. Assim, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos legais de gozo durante os prazos legais faculta ao possuidor – salvo disposição legal em contrário – a aquisição do direito a cujo exercício a sua actuação corresponde, com efeitos que retroagem ao início da posse (artigo 1287º e 1288º do Código Civil).

Nos termos do artigo 1290º, os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si o direito possuído por via de usucapião, salvo achando-se invertido o título da posse (artigo 1290º do Código Civil). A usucapião depende de uma posse pública e pacífica sendo a posse violenta ou oculta insusceptível de conduzir à usucapião, sendo que os prazos para a usucapião apenas se contam a partir do momento em que cesse a violência ou a posse se torne pública (artigo 1297º e 1300º, n.º 1 do Código Civil).

No que diz respeito a prazos, a lei varia conforme se trate de coisa móvel ou imóvel (artigo 1293º-1301º do Código Civil); focando a nossa atenção no caso concreto da coisa imóvel, a lei oscila conforme haja justo título de aquisição e registo (artigo 1294º, 1295º, 1296º, todos do Código Civil).

A usucapião apenas é eficaz se for invocada, sendo por isso voluntária (artigo 303º, aplicável por força do artigo 1292º do Código Civil).

A esse respeito, note-se que os Tribunais Superiores têm entendido que não é necessária uma invocação expressa da usucapião, podendo ser implícita (cfr os Doutos Acórdãos do STJ de 03/02/1999, proc n.º 98B1043; 17/04/2018, proc n.º 3452/15.0T8VIS-D.C1.S1).

Isto posto:

Não resultam dos factos provados quaisquer actos de posse exclusivos, com animus de proprietário, por parte da autora sobre a escada e o carreiro; bem pelo contrário, resulta dos factos provados que o acesso ao prédio referido no ponto 5) é realizado, desde tempos imemoriais, pelas escadas referidas no ponto 13) e pelo carreiro referido no ponto 16), não tendo outro acesso e que o referido acesso mencionado em 23) era usado livremente por qualquer pessoa que desejasse aceder ao prédio referido em 5).

Ora qualquer uma destas situações não é compatível com o animus de proprietário exigido pela usucapião (artigo 1287º do Código Civil).

Termos em que os primeiros pedidos formulados pela autora devem ser julgados totalmente improcedentes”.

Ora, este segmento da anterior decisão proferida em processo entre as mesmas partes e o respectivo decisório não pode voltar a ser apreciado por este Tribunal, por força da excepção de caso julgado, na vertente da autoridade de caso julgado.

Assim sendo, a Autora não pode voltar a arrogar-se proprietária do caminho que agora vem, na presente demanda, qualificar como atravessadouro, nem o Tribunal pode apreciar, ainda que implicitamente, se a Autora é ou não proprietária do caminho (composto por escadas e um carreiro).

E é aqui que regressamos há falta de legitimidade da Autora para a presente demanda.

O pedido de abolição de um atravessadouro não constitui uma acção popular, como defende a Autora.

As acções que visam declarar um determinado caminho como caminho público é que são acções populares que podem ser instauradas por qualquer pessoa que nisso tenha interesse.

A acção que visa abolir um atravessadouro é uma acção que visa a defesa da propriedade, pois que o atravessadouro passa em prédio alheio, sendo que, o proprietário desse prédio alheio pretende que as pessoas que usam o atravessadouro, e que passam no que é seu, deixem de o fazer, o que constitui uma acção de defesa da propriedade.

Isto pressupõe ser-se proprietário de um prédio onde passa o atravessadouro. Até porque o pedido de abolição do atravessadouro pressupõe, ainda que implicitamente, o pedido de reconhecimento da propriedade do leito do caminho a favor do prédio do autor.

Neste tocante, veja-se o que lê no sumário de Acórdão do Tribunal da Relação do Porto: “para conhecer da existência de um atravessadouro, o tribunal tem que apreciar se o respectivo leito pertence ao prédio com ele pretensamente onerado. Por ser assim é que os autores podem deixar de formular em cúmulo aparente, o pedido de reconhecimento de que o prédio é da sua propriedade: basta-lhes deduzir o pedido de abolição do atravessadouro que, segundo eles faz parte integrante do prédio. É que o tribunal, para conhecer deste último pedido, tinha sempre, não obstante a falta do referido pedido de reconhecimento, de apreciar a questão da propriedade do terreno onde se situa o leito do atravessadouro.

O direito de propriedade é exclusivo – «jus excluendi omnes allios» - porque o proprietário pode exigir que os terceiros se abstenham de invadir a sua esfera jurídica, quer usando ou fruindo a coisa, quer praticando actos que afectam o seu exercício” (vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.03.1991, relatado pelo Ex.mo Sr. Juiz Desembargador Dr. Bessa Pacheco, no proc. 0409990).

Com efeito, a anterior decisão proferida no proc. n.º 2480/20.9... considerou que o caminho não pertencia ao prédio da Autora e que a mesma não havia adquirido tal faixa de terreno por usucapião, pelo que, de nenhum título de propriedade goza sobre tal caminho.

Ora, não sendo a Autora proprietária do prédio onde passa o caminho que agora alega ser um atravessadouro (e não sendo proprietária do caminho) carece de legitimidade para requerer o reconhecimento de que tal caminho é um atravessadouro e pedir a abolição do mesmo.

É que havendo excepção de caso julgado quanto ao reconhecimento de que a Autora é proprietária do leito do atravessadouro, o Tribunal não pode voltar a apreciar a questão. Isto significa que, se não pode apreciar a propriedade do leito do caminho também não pode apreciar a abolição do atravessadouro.

O atravessadouro, mesmo que se prove existir, ou seja, mesmo que o Tribunal conclua pela classificação de que o dito caminho constitui um atravessadouro, tal atravessadouro não onera prédio que seja propriedade da Autora.

Aliás diga-se que, a Autora nem sequer alega em que prédio passa o atravessadouro, o que constitui uma impossibilidade prática de prosseguimento da acção. E não alega, porque na acção pretérita alegou que tal caminho pertencia ao seu prédio ou a si por usucapião, o que não se provou, pelo que, pouco sentido faria vir agora alegar que tal atravessadouro/caminho passa em prédio de outrem.

E se passa em prédio de outrem que não o seu, apenas esse outrem, ou seja, apenas esse proprietário do prédio onerado com o atravessadouro tem legitimidade para judicialmente pedir a abolição do mesmo, nos termos e para os efeitos dos artigos 1383º e 1384º do Código Civil.

Para melhor se compreender o âmbito da questão agora suscitada analisemos mais aprofundadamente o instituto jurídico dos atravessadouros.

A este respeito, importa ter presente que se distingue entre os caminhos públicos e os atravessadouros, regulados nos artigos 1383º e 1384º do Código Civil.

Segundo Rui Pinto e Cláudia Trindade, “os atravessadouros ou serventias públicas são passagens por prédio alheio a favor de qualquer pessoa, com uma função de atalho destinado a encurtar distâncias, sem serem caminho público ou servidão predial. Ao contrário das servidões prediais, os atravessadouros não estavam estabelecidos a favor de prédio determinado; ou seja, a sua titularidade não se apurava pela titularidade de prédio alheio, não sendo propter rem.

Por apenas obedecerem a interesses particulares ou de pouco relevância, os atravessadouros foram abolidos, dando-se prevalência ao direito de propriedade ou ao direito real de gozo onerado. Todavia, a lei manteve como regra – rectius, converteu em servidões prediais -, os atravessadouros que constituam encargos a favor de prédio determinado. Essas servidões distinguem-se, pois, essencialmente pelo modo da sua constituição – conversão legal” (Ana Prata, Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª Edição Almedina, pag. 199).

Os atravessadouros têm alguma conexão com a situação das servidões legais de passagem, sem, todavia, integrarem os pressupostos desta figura. Com efeito, afirma Menezes Leitão que os “atravessadouros são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fito essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus leitos parte integrante desses prédios. Distinguem-se dos caminhos públicos porque estes se destinam a estabelecer ligações de maior importância entre povoações e os seus leitos fazerem parte integrante do domínio público.

Os atravessadouros constituem uma espécie de servidões irregulares dado que não se estabelecem em benefício de prédios determinados, mas em benefício de qualquer pessoa. Diz o autor, em apreciação ao regime legal do artigo 1383º do Código Civil que os atravessadouros em proveito directo de certos prédios constituem verdadeiras servidões e, nessa medida, foram mantidas pelo legislador (não se mostrando abolidos)” – Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direitos Reais, 10.º Edição, Almedina, pag. 416).

Nos termos do Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/03/2008 (08A542), os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fim essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus leitos parte integrante dos prédios atravessados. Já os caminhos públicos destinam-se a estabelecer ligações de maior interesse, em geral entre povoações, e os respectivos leitos fazem parte do domínio público; conclui que um caminho, no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se ocorrer afectação naqueles termos; mas se visar apenas o encurtamento, não significativo, de distâncias, deverá classificar-se como atravessadouro, se o leito pertencer ao prédio atravessado. Adianta que os atravessadouros não foram excluídos pelo artigo 1383º do Código Civil; com efeito, em 1966, veio a prevalecer a solução contrária, na medida em que os atravessadouros têm relevantes «reflexos no domínio privado, e são já tão antigas as leis que os aboliram»; além de que «conviria sempre pôr em relevo a distinção entre a servidão de direito privado e servidão administrativa», o que se fez na parte final do artigo 1383º do Código Civil. São, assim, atalhos ou serventias públicas que se fazem através de terrenos particulares com o fim essencial de encurtar o percurso entre locais determinados, sendo o leito parte integrante dos prédios atravessados. Sempre que o público faça trajectos ou distâncias através de um prédio particular, em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias, deve entender-se que se trata de um atravessadouro, sujeito à cominação do artigo 1383º do Código Civil, salvo se se provar que a faixa de terreno por onde se faz essa passagem entrou no domínio público por algum dos títulos por que pode ser adquirida dominialidade.

In casu, se os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, apenas os proprietários desses prédios onerados com o atravessadouro têm legitimidade para pretenderem abolir o mesmo, impedindo dessa forma, que as pessoas que aí passam deixem de passar.

Por estas razões entendemos que se verifica a excepção inominada de autoridade de caso julgado.

Mas também se verifica a ilegitimidade activa da Autora, não pelos fundamentos apontados pelos Réus, mas por não ser proprietária do leito do caminho que alega ser um atravessadouro e cuja abolição pretende ver declarada (sendo que o Tribunal não está impedido de dar procedência à excepção invocada com fundamentos diversos porque o Tribunal não está vinculado às alegações de direito das partes – artigo 5º, n.º 3, do CPC).

Importa ainda abordar a questão dos restantes pedidos formulados pela Autora e porque é que os autos não podem prosseguir para o seu conhecimento.

Conforme confessa a Autora no articulado de resposta às excepções (ref.ª 3614823), os autos têm por objecto a abolição do atravessadouro, isto significa que o pedido principal é aquele que se atém à abolição do dito atravessadouro (ou seja, os pedidos inscritos nos pontos i), j) e k). Todos os demais pedidos são instrumentais do pedido principal que é o da declaração de que o caminho em discussão deve ser qualificado como um atravessadouro e deve ser abolido. Mesmo o pedido inscrito na alínea h) é instrumental do pedido inscrito na alínea i), pois a Autora apenas pretende que o tribunal declare que o caminho não é um caminho público, com vista a declarar que o mesmo constituiu um atravessadouro, porque de outra forma, o pedido inscrito da alínea h) desgarrado do pedido inscrito da alínea i), não teria por efeito impedir a passagem dos Réus, como a autora confessadamente pretende. De facto, a única maneira de os Réus serem impedidos de passar no caminho era considerar o mesmo um atravessadouro, o qual deveria ser abolido devido ao facto de os Réus disporem de outro caminho para aceder ao seu prédio.

Desta sorte, nem mesmo o pedido inscrito na alínea h) reveste de autonomia em função do objecto do litígio delineado pela Autora, razão pela qual não podem os autos prosseguir para o seu conhecimento.

Ora, existindo ilegitimidade da Autora para os pedidos principais, os pedidos instrumentais não valem por si mesmos, não dando lugar ao prosseguimento dos autos.

Aliás, in casu nem poderia ser de outra forma, pois que, se os demais pedidos fossem autónomos também a autora para eles não teria interesse em agir. Com efeito, não existe interesse que seja judicialmente atendível, quando alguém, proprietário de um prédio confinante, pretende alterar registral ou/e matricialmente um prédio de um vizinho (nomeadamente discutindo anexações de prédios de vizinhos, reconhecimento de operações urbanísticas aprovadas pela Câmara Municipal em prédio vizinho, apurar a caracterização registral de prédio vizinho, e pretender a alteração de confrontações de prédio vizinho).

Destarte, julgo verificada a excepção de autoridade do caso julgado e a excepção de ilegitimidade activa da Autora.

Estamos, assim, perante duas excepções, uma excepção dilatória de ilegitimidade activa da Autora, AA, e uma excepção inominada de autoridade de caso julgado, o que determina a absolvição dos Réus da instância, nos termos dos artigos 595º n.º 1, 30º, 576º, 577º al. e) e al. i) 578º, todos do CPC.

Em face do exposto, julgam-se procedentes as excepções de caso julgado e de ilegitimidade activa da Autora, e em consequência, absolve-se os Réus da instância”.

Vieram a A. interpor recurso de revista per saltum, nos termos do artigo 678º do Código de Processo Civil, apresentando as seguintes conclusões:

RECURSO “PER SALTUM”:

1 - O recurso “per saltum” possibilita aos recorrentes, que impugnam a decisão da 1.ª Instância, de pedir, no acervo conclusivo da sua alegação, que o recurso suba imediatamente ao Supremo Tribunal de Justiça, sem que tenha de transitar por apelação.

2- As condições de admissão do recurso são elencadas nas quatro alíneas do n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil e, para além das regras próprias da revista quanto à alçada e à sucumbência (alíneas a) e b), contém normas específicas desse tipo de recurso – suscitarem-se apenas questões de direito e não se impugnarem decisões interlocutórias (alíneas c) e d)).

3- Ora presente recurso “per saltum” preenche os requisitos cumulativos previstos no artigo 678º nº 1 alíneas a), b), c) e d) do CPC para que suba directamente ao Supremo Tribunal de Justiça, porquanto:

a) O valor da causa é de €39.209,45 e o valor da alçada da Relação é de €30.000,00, em conformidade com o disposto no artigo 44º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto na sua actual redacção.

b) A sucumbência da A. é total, pois os R.R. foram absolvidos da instancia.

c) As questões suscitadas no recurso são meramente de Direito pois também a douta sentença decidiu somente pela procedência das excepções de caso julgado material e de ilegitimidade activa da Autora.

d) A decisão da 1ª instancia põe termo à causa e não são impugnadas pela A. quaisquer decisões interlocutórias.

4 – Deverá assim ser admitido o presente recurso que deverá subir directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, o que se requer.

QUANTO À SENTENÇA (sublinhando as normas violadas):

5 – Nestes autos a Autora veio alegar que os pressupostos de Facto e de Direito, que constituíram a causa de pedir no processo nº 2480/20.9..., se encontram alterados, de forma essencial, quanto ao caminho/carreiro, que fora anteriormente objeto de apreciação, resumidamente, pelo seguinte:

- Foi alterada a natureza jurídica e física dos três prédios, propriedade dos R.R., relativamente ao que havia sido apreciado no processo nº2480/20.9..., pois, onde existiam dois prédios urbanos e um prédio rústico, passou agora a existir, de Facto e de Direito, um só prédio urbano, tal como é definido no artigo 204º nº 2 do Código Civil;

- O projeto de arquitetura do arquiteto contratado pelos R.R., a operação urbanística, realizada pela Camara Municipal de ..., bem como o Plano ... Municipal da Camara Municipal de ..., não contemplam a existência de qualquer caminho/carreiro para a Rua ..., para acesso ao prédio urbano mencionado na alínea anterior;

- Os ora R.R. passaram a dispor de acesso do seu prédio à via pública, pelo lado norte, para o Largo ..., sendo outra a realidade fáctica e jurídica que foi apreciada no processo nº 2480/20.9...

- A confrontação registral do lado norte do prédio dos R.R. já se encontra alterada na Conservatória do Registo Predial de ..., para caminho público – largo ..., em relação à que existiu e foi considerada no processo nº 2480/20.9..., no ponto 6 dos factos provados.

- As escadas e caminho/carreiro em causa não são um caminho público.

- No processo com o nº 2480/20.9... não foi caracterizada a natureza jurídica das escadas e carreiro/caminho em causa.

- As escadas e caminho/carreiro em causa, para além de permitirem o acesso à propriedade da A., tornaram-se o equivalente a um mero atalho para a propriedade dos R.R.

6 - No ponto 25 da matéria de facto da sentença proferida no processo nº 2480/20.9... foi dado como provado que as escadas e o carreiro/caminho em causa eram a única via de acesso entre o prédio da R. e a via pública, designada, como Rua ..., sendo tal requisito relevante para o conhecimento do mérito da causa, requisito este que deixou de se verificar.

7 – Quer substancialmente, quer adjectivamente, em conformidade com o disposto no artigo 30º do C.P.C., a A. sempre seria parte legitima na relação controvertida, desde que o Tribunal “a quo” tivesse atendido a todas as causas concretas de pedir alegadas e pedidos, que desconsiderou, e que não se cingem à matéria da propriedade do leito do carreiro/caminho.

8 – A omissão de pronuncia, mencionada no ponto anterior, encontra-se prevista no artigo 615º nº 1 alínea d) do CPC. e conduz à nulidade da sentença, a qual se vem arguir.

9 - Também o Tribunal “a quo” não aplicou corretamente o disposto nos artigos 576º, 577º alínea i) e 578º, todos do CPC, ao caso “sub- judice”, pois não existe autoridade de caso julgado face à matéria das concretas causas de pedir alegadas na p.i..

10 – Acresce que assiste à A. o direito de ser reconhecida a natureza jurídica das escadas e do caminho/carreiro, mesmo não sendo proprietária do seu leito, pois há mais de 50 anos que o acesso ao primeiro andar da sua propriedade, onde se situa a sala, é feito pelas mesmas escadas e carreiro/caminho em questão.

11 – O direito de acesso da Autora à sua propriedade constitui uma emanação do direito de propriedade, previsto no artigo 1305º do C.C. pois, enquanto proprietária goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, disposição e fruição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas, sendo que, sobre tal matéria alegada, na relevância que assume, para a extinção do atalho ou acesso à propriedade dos R.R., o Tribunal “a quo” não se pronunciou, incorrendo na nulidade prevista no artigo 615º nº 1 alínea d) do CPC, a qual se vem arguir.

12 – Na verdade, o interesse e legitimidade da A., quanto à pretensão formulada nestes autos, correlaciona-se também com o seu direito de acesso à sua propriedade em confronto com o direito de acesso dos R.R. à propriedade deles, sendo tal acesso comum, mas que se tornou desnecessário quanto a estes últimos para o pleno exercício do seu direito de propriedade, tal como é definido no artigo 1305º do C.C., disposição legal que não foi aplicada pelo Tribunal “a quo” à matéria de facto alegada, o que também constitui a nulidade de pronuncia prevista no artigo 615º nº 1 alínea d) do CPC. a qual se vem arguir.

13 – Por outro lado, conforme foi alegado pela A., o acesso pelo carreiro/caminho, agora desnecessário para os R.R., colide com o direito da A. ao sossego e privacidade da A. e seu agregado familiar, pois o mesmo acesso tem cerca de 1,5 metros de largura e, quem aceda à propriedade dos R.R. fica obrigado a passar a cerca de um metro da porta da sala e encostado ao varandim do primeiro andar da propriedade da A.

14 - Também pelo respeito pelo direito à reserva da intimidade da vida privada da A., direito este que assume a natureza de direito de personalidade, carece de razão para existir o atalho ou acesso em causa a favor dos R.R. (v. artigo 80º do Cód. Civil e artigo 26º, nº 1 da Constituição da República), sendo que o tribunal “a quo” não se pronunciou sobre a matéria alegada relativa a este direito, incorrendo na nulidade prevista no artigo 615º nº 1 alínea d) do CPC., a qual se vem arguir.

15 - Do anterior processo nº 2480/20.9... pode concluir-se que o leito do carreiro/caminho, que dá acesso ao prédio dos R.R., também não é propriedade destes os quais até defenderam que se tratava de um caminho público, conforme alegado nos artigos 24º,25º,27º, 31º,33º, 34º da sua contestação.

16 – Também por aplicação do disposto no artigo 1305º do Código Civil, os R.R. deixaram de ter a necessidade imposta pelo seu direito de propriedade do acesso ao seu prédio, pelo carreiro/caminho o qual, depois da urbanização verificada, se encontra a violar as disposições legais sobre edificações urbanas do Município de ..., constituindo assim uma limitação àquele direito e a omissão de pronuncia sobre esta matéria constitui a nulidade da sentença prevista no artigo 615º nº 1 alínea d) do CPC, a qual se vem arguir.

17 – Estritamente, no caso sub judice, o carreiro/caminho constitui, de facto, um atalho para os R.R. acederem a partir do logradouro da sua propriedade à Rua ..., em ..., pois a propriedade dos mesmos encontra-se agora constituída em conformidade com o artigo 204º nº 2 do Código Civil.

18 - A abolição dos atravessadouros, por mais antigos que sejam, verifica-se por força do disposto no artigo 1383º do Código Civil, desde que os mesmos não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões.

19 - A circunstância de se considerarem abolidos, por força da lei, os atravessadouros, por mais antigos que sejam, não é impeditiva de que se continuem a estabelecer de facto novos atravessadouros, cuja consequência será sempre a de se considerarem abolidos, conforme refere o Senhor Professor Oliveira Ascenção na obra citada nestas alegações.

20– A qualificação de um qualquer determinado caminho como atravessadouro tem como consequência legal a sua abolição nos termos do disposto no artigo 1383º do C.C. sem necessidade de ser requerida a sua extinção, desde que de facto seja reconhecida tal natureza, realidade jurídica que o Tribunal “a quo” não apreciou não aplicando correctamente o Direito nesta matéria,

21 - Deverão assim ser julgadas procedentes as arguidas nulidades da douta sentença e, em qualquer caso, deverá a mesma ser revogada, também por indevida aplicação do Direito, sendo a A. considerada parte legitima nos autos e sendo considerado também que não existe autoridade de caso julgado, seguindo os autos os seus termos até à decisão final.

Contra-alegou a Ré pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.

II – FACTOS PROVADOS.

Os indicados no RELATÓRIO supra.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

A autoridade do caso julgado. Pedido de abolição do espaço físico (carreiro/vereda) qualificado pela A. como atravessadouro. Decisão transitada em julgado em acção anterior na qual não se reconheceu a propriedade da ora A. sobre o espaço onde se situa o dito carreiro/vereda.

Passemos à sua análise:

A exceção da autoridade do caso julgado destina-se a assegurar a vinculação dos órgãos jurisdicionais, bem como dos particulares, aos efeitos de uma decisão judicial anterior, transitada em julgado, não permitindo a reapreciação de questão já anteriormente decidida de forma definitiva e que desse modo não deverá ser contrariada, sob a pena de colisão e incompatibilidade lógica entre julgados.

(Como refere Rui Pinto in “Excepção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, publicado in Revista Julgar Online, Novembro de 2018, a páginas 33 a 36:

“A autoridade do caso julgado destina-se a evitar a prolação de decisões posteriores que sejam juridicamente incompatíveis com a primeira.

Este escopo assenta em duas ordens de razão.

A primeira razão é a de que a decisão judicial transitada em julgado que seja de procedência constitui um título jurídico (ou fonte) de efeitos jurídicos recognitivos ou constitutivos finais nas esferas das partes (…).

(…) A segunda razão para a existência da autoridade do caso julgado é estritamente processual e não passa de uma consequência da primeira.

Lembremos que o efeito negativo e o efeito positivo da excepção do caso julgado e autoridade do caso julgado são duas faces da especial qualidade da decisão transitada em julgado, nos termos do artigo 628º: a “força obrigatória” da decisão judicial dentro do processo (artigo 620º) e fora dele, quando julgue de mérito (artigo 619º)”).

Referem, a este propósito, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, Almedina, Fevereiro de 2019, 4ª edição, a páginas 599 a 600:

“(…) a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há de ser proferida, ou o fundamento da primeira decisão, excepcionalmente abrangido pelo caso julgado, é também questão prejudicial na segunda acção”

Exige-se, portanto, para a verificação da autoridade de caso julgado a demonstração de um nexo de prejudicialidade entre as duas decisões judiciais em causa, o que sucede quando os fundamentos essenciais e decisivos da primeira constituem necessariamente pressupostos lógicos e incontornáveis da segunda.

Conforme salientam João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa in “Manual de Processo Civil”, Volume I, AAFDL Editora, 2022, a página 641:

“O efeito positivo (do caso julgado) vincula o tribunal da acção posterior a aceitar a questão prejudicial decidida numa acção anterior e opera através da autoridade de caso julgado. Se se propuser a questão como fundamento (e não como objecto) do pedido, o juiz tem de decidir a questão nos termos do caso julgado estabelecido”.

(Sobre a figura da autoridade do caso julgado vide, entre outros:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Outubro de 2024 (relator Jorge Leal), proferido no processo nº 2542/23.0T8LRA.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“ O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa.

A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado. A função negativa é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas.

A autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a exceção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica (…).

(…) A autoridade do caso julgado abrange as questões que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado)”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2024 (relatora Paula Leal de Carvalho), proferido no processo nº 189/22.8TSVLC P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se refere:

“De forma sintética, quanto ao caso julgado e autoridade do caso julgado, como é sabido, visam, essencialmente, “obstar à contradição prática” entre duas decisões – “decisões contraditórias concretamente incompatíveis” –, ou seja, que o tribunal decida de modo diverso sobre o direito ou questão concreta já definida por decisão anterior, evitando colocar o tribunal na situação de se contradizer, com a consequente impossibilidade de cumprimento de duas decisões contraditórias (ou de reafirmar o que já havia sido decidido), princípio esse que, como é assinalado pela doutrina e jurisprudência, se desenvolve numa dupla vertente: uma vertente negativa (exceção do caso julgado) e uma vertente positiva (autoridade do caso julgado).

(…) O caso julgado e a sua autoridade, atenta a teoria da substanciação, deve ser aferida em função não apenas da concreta pretensão formulada, mas em função também da causa de pedir, que a delimita.

(…) Como vem sendo entendido, deve recorrer-se à parte motivadora da sentença quando tal se mostre necessário para reconstruir e fixar o real conteúdo da decisão, isto é, para interpretar e determinar o verdadeiro sentido e o exato conteúdo da sentença em causa”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Março de 2024 (relator Leonel Serôdio), proferido no processo nº 409/15.5T8AMT.P3.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se salienta que:

“A autoridade do caso julgado manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada, quando o objeto da decisão proferida em ação anterior se inscreva, como pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico pretendido em ação posterior, entre as mesmas partes”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2024 (relator Henrique Antunes), proferido no processo nº 12524/18.9T8LSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se refere:

“A autoridade do caso julgado prescinde da identidade dos elementos objectivos da instância, que é substituída pela relação de prejudicialidade entre objectos processuais, que, porém, só se verifica quando a apreciação de um objecto – o prejudicial – constitui o pressuposto do julgamento de um outro – o dependente.

Não se verifica a ofensa do caso julgado nem da sua autoridade se entre a decisão transitada e a decisão subsequente não ocorre a identidade dos elementos objectivos e subjectivos da instância nem uma relação de prejudicialidade entre os objectos de uma e de outra acção, respectivamente”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Maio de 2024 (relatora Isabel Salgado), proferido no processo nº 497/19.5BEPNF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“A autoridade de caso julgado, formado por decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obsta a que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 581º do Código de Processo Civil.

Não se prescindindo embora da identidade subjetiva, admite-se que possa não confluir a denominada “tríplice identidade”, desde que se manifeste uma relação de prejudicialidade entre as mesmas”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 2024 (relator Nuno Pinto de Oliveira), proferido no processo nº 1736/20.5T8VCD-A.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se enfatiza:

“O que fundamenta a especial protecção da força e autoridade de uma decisão transitada, para além do prestígio dos tribunais, é a certeza e segurança na definição dos direitos sobre os quais incide.

O relevo deste valor explica os mecanismos que a lei processual prevê para a sua defesa.

A vinculação a uma decisão transitada em julgado exige que os titulares de relações juridicamente afectáveis tenham tido a oportunidade de nela influir: é este o fundamento do princípio do contraditório, princípio fundamental do processo, e que justifica a oponibilidade relativa do caso julgado.

O princípio do contraditório exige que a oponibilidade da força e autoridade do caso julgado pressuponha a identidade de sujeitos”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Junho de 2024 (relatora Fátima Gomes), proferido no processo nº 820/21.2T8TVD-A.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, que refere:

“Não se verifica violação da autoridade de caso julgado quando entre duas acções, o Tribunal que decidirá em segundo lugar, não se veja confrontado com a possibilidade de reproduzir ou contrariar a decisão judicial primeiramente proferida”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Dezembro de 2023 (relator Leonel Serôdio), proferido no processo nº 2415/20.9T8OER-C.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se refere:

“A autoridade do caso julgado, implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, manifestando-se o caso julgado material no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Setembro de 2024 (relator Fernando Baptista), proferido no processo nº 3042/21.9T8PRT.S2, publicado in www.dgsi.pt, onde ficou escrito que:

“A figura da autoridade do caso julgado apenas prescinde da identidade objectiva (identidade atinente aos pedidos e causas de pedir entre as duas causas), não abdicando, todavia, para fazer operar o seu efeito de vinculação do tribunal posterior à decisão proferida pelo tribunal anterior, da identidade subjectiva entre as duas causas”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 2024 (relator Ricardo Costa), proferido no processo nº 5765/03.5TVLSB-A.L2.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“O efeito positivo da “autoridade de caso julgado” privilegia o sentido de uma primeira decisão judicial transitada em face de decisões sobre objectos processuais conexos (prejudiciais ou em concurso) entre si; nas decisões sobre o mérito da causa o efeito positivo é material, configurando-se processualmente como uma excepção peremptória impeditiva, subsumível no conceito previsto no art. 576º, 3, beneficiando do regime do art. 579º, do CPC (efeito vinculativo à não repetição e à não contradição da decisão anterior em processo subsequente com diverso objecto: art. 580º, 2, CPC).

É aceite que o efeito positivo desse caso julgado material abrange a decisão judicial anteriormente proferida e transitada, assim como os pressupostos que a antecedem e motivam, de forma que a impositividade vinculada se alargue ao silogismo considerado no conjunto dos fundamentos com a própria decisão que é o resultado da mobilização de tais fundamentos; ainda por aplicação do art. 621º, 1.ª parte («nos precisos limites e termos em que julga»), do CPC se chega ao conceito de antecedente lógico indispensável à parte dispositiva da decisão.

A verificação desse conjunto silogístico tem de ser cuidadosa, sob pena de darmos como decidido e vinculativo algo que transcende essa conexão objectiva entre pressuposto e objecto da decisão (nomeadamente quando pretendemos autonomizar factos da decisão de que são pressuposto). Teremos até que acertar essa extensão aos fundamentos e pressupostos com laivos de excepcionalidade, em particular no que concerne aos fundamentos de facto (admitindo-se mesmo a exclusão da decisão de facto da prejudicialidade que o caso julgado mobiliza, sendo constitutiva apenas de caso julgado formal)”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2023 (relator Pedro Lima Gonçalves), proferido no processo nº 142/15.8T8CBC-C.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se salientou que:

“Relativamente à autoridade do caso julgado exige-se, igualmente, que o caso decidido anteriormente seja prejudicial relativamente ao caso que vai ser julgado e bem assim que se mostre ínsito, ainda que parcialmente, no objeto do processo que vai ser decidido”.

Analisando agora o caso concreto.

A sentença recorrida sublinhou que:

“(…) se os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, apenas os proprietários desses prédios onerados com o atravessadouro têm legitimidade para pretenderem abolir o mesmo, impedindo dessa forma, que as pessoas que aí passam deixem de passar”.

Salientou, por outro lado, o mesmo aresto que:

“(…) a anterior decisão proferida no proc. n.º 2480/20.9T8VRL considerou que o caminho não pertencia ao prédio da Autora e que a mesma não havia adquirido tal faixa de terreno por usucapião, pelo que, de nenhum título de propriedade goza sobre tal caminho.

Ora, não sendo a Autora proprietária do prédio onde passa o caminho que agora alega ser um atravessadouro (e não sendo proprietária do caminho) carece de legitimidade para requerer o reconhecimento de que tal caminho é um atravessadouro e pedir a abolição do mesmo.

É que havendo excepção de caso julgado quanto ao reconhecimento de que a Autora é proprietária do leito do atravessadouro, o Tribunal não pode voltar a apreciar a questão. Isto significa que, se não pode apreciar a propriedade do leito do caminho também não pode apreciar a abolição do atravessadouro.

O atravessadouro, mesmo que se prove existir, ou seja, mesmo que o Tribunal conclua pela classificação de que o dito caminho constitui um atravessadouro, tal atravessadouro não onera prédio que seja propriedade da Autora.

Aliás diga-se que, a Autora nem sequer alega em que prédio passa o atravessadouro, o que constitui uma impossibilidade prática de prosseguimento da acção. E não alega, porque na acção pretérita alegou que tal caminho pertencia ao seu prédio ou a si por usucapião, o que não se provou, pelo que, pouco sentido faria vir agora alegar que tal atravessadouro/caminho passa em prédio de outrem.

E se passa em prédio de outrem que não o seu, apenas esse outrem, ou seja, apenas esse proprietário do prédio onerado com o atravessadouro tem legitimidade para judicialmente pedir a abolição do mesmo, nos termos e para os efeitos dos artigos 1383º e 1384º do Código Civil”.

Contrariando esse entendimento, defende basicamente a ora recorrente que:

Os pressupostos de facto e de direito, que constituíram a causa de pedir no processo nº 2480/20.9T8VRL encontram-se alterados, de forma essencial, quanto ao caminho/carreiro, que fora anteriormente objeto de apreciação.

No processo com o nº 2480/20.9T8VRL não foi caracterizada a natureza jurídica das escadas e carreiro/caminho em causa.

As escadas e caminho/carreiro em causa, para além de permitirem o acesso à propriedade da A., tornaram-se o equivalente a um mero atalho para a propriedade dos R.R.

Assiste à A. o direito de ser reconhecida a natureza jurídica das escadas e do caminho/carreiro, mesmo não sendo proprietária do seu leito, pois há mais de 50 anos que o acesso ao primeiro andar da sua propriedade, onde se situa a sala, é feito pelas mesmas escadas e carreiro/caminho em questão.

O direito de acesso da Autora à sua propriedade constitui uma emanação do direito de propriedade, previsto no artigo 1305º do C.C. pois, enquanto proprietária goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, disposição e fruição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas, sendo que, sobre tal matéria alegada, na relevância que assume, para a extinção do atalho ou acesso à propriedade dos R.R., o Tribunal “a quo” não se pronunciou, incorrendo na nulidade prevista no artigo 615º nº 1 alínea d) do CPC, a qual se vem arguir.

Na verdade, o interesse e legitimidade da A., quanto à pretensão formulada nestes autos, correlaciona-se também com o seu direito de acesso à sua propriedade em confronto com o direito de acesso dos R.R. à propriedade deles, sendo tal acesso comum, mas que se tornou desnecessário quanto a estes últimos para o pleno exercício do seu direito de propriedade, tal como é definido no artigo 1305º do C.C., disposição legal que não foi aplicada pelo Tribunal “a quo” à matéria de facto alegada, o que também constitui a nulidade de pronuncia prevista no artigo 615º nº 1 alínea d) do CPC. a qual se vem arguir.

O acesso pelo carreiro/caminho, agora desnecessário para os R.R., colide com o direito da A. ao sossego e privacidade da A. e seu agregado familiar, pois o mesmo acesso tem cerca de 1,5 metros de largura e, quem aceda à propriedade dos R.R. fica obrigado a passar a cerca de um metro da porta da sala e encostado ao varandim do primeiro andar da propriedade da A.

Também pelo respeito pelo direito à reserva da intimidade da vida privada da A., direito este que assume a natureza de direito de personalidade, carece de razão para existir o atalho ou acesso em causa a favor dos R.R. (v. artigo 80º do Cód. Civil e artigo 26º, nº 1 da Constituição da República), sendo que o tribunal “a quo” não se pronunciou sobre a matéria alegada relativa a este direito.

Do anterior processo nº 2480/20.9T8VRL pode concluir-se que o leito do carreiro/caminho, que dá acesso ao prédio dos R.R., também não é propriedade destes.

Também por aplicação do disposto no artigo 1305º do Código Civil, os R.R. deixaram de ter a necessidade imposta pelo seu direito de propriedade do acesso ao seu prédio, pelo carreiro/caminho o qual, depois da urbanização verificada, se encontra a violar as disposições legais sobre edificações urbanas do Município de ..., constituindo assim uma limitação àquele direito e a omissão de pronuncia sobre esta matéria constitui a nulidade da sentença prevista no artigo 615º nº 1 alínea d) do CPC, a qual se vem arguir.

O carreiro/caminho constitui, de facto, um atalho para os R.R. acederem a partir do logradouro da sua propriedade à Rua ..., em ..., pois a propriedade dos mesmos encontra-se agora constituída em conformidade com o artigo 204º nº 2 do Código Civil.

A abolição dos atravessadouros, por mais antigos que sejam, verifica-se por força do disposto no artigo 1383º do Código Civil, desde que os mesmos não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões.

Apreciando:

Quanto às invocadas nulidades.

Diga-se, em primeiro lugar, que as pretensas nulidades da sentença que foram arguidas pela recorrente, integrantes, a seu ver, de omissão de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, apenas constituem argumentário avulso e diverso daquele que se teve por essencial e determinante na decisão recorrida, não constituindo a sua não abordagem – por não essencial - qualquer tipo de vício de natureza estritamente formal de que aquela peça processual porventura enfermasse.

O que a recorrente, no fundo, alega é que o juiz a quo deveria ter tomado em consideração outros e diversos fundamentos por si alegados -e para si relevantes e decisivos -, com vista à apreciação das pretensões que agora deduz.

Tal circunstância não integra obviamente qualquer das nulidades consignadas no artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil.

A referência ao “direito de acesso à sua (da A.) propriedade em confronto com o direito de acesso dos RR. à propriedade deles, sendo tal acesso comum, mas que se tornou desnecessário quanto a estes últimos (artigo 1305º do Código Civil)”, nada altera os termos em que a questão jurídica essencial deve ser colocada.

O que releva para este concreto efeito é que, não sendo a A. proprietária do espaço em conflito, não dispõe de legitimidade processual activa para obstaculizar o seu aproveitamento pelos RR., não sendo ilícita essa mesma utilização por parte destes últimos.

No mesmo sentido, a pretensa violação pelos RR. de disposições legais urbanas do Município de ... é questão a discutir – se necessário for – nas acções que por iniciativa da autarquia possam talvez vir a ter lugar, não fazendo sentido que o juiz a quo viesse a abordar tal descabida temática nos presentes autos.

Pelo que, nessa medida, se indefere, sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos, a dita arguição.

Quanto à verificação da excepção de autoridade de caso julgado.

A decisão recorrida considerou verificar-se a excepção de autoridade de caso julgado, impeditiva do prosseguimento da presente acção, com base na ausência de prova de que o leito do (dito) atravessadouro se integrasse na propriedade da ora A., enquanto prédio particular, pelo que, nestas circunstâncias, a mesma deixaria de ter legitimidade processual activa para peticionar a declaração da sua abolição, não podendo simultaneamente arrogar-se de proprietária do imóvel onde aquele se situa, dado que essa invocada titularidade contraria frontalmente o decidido em anterior acção judicial.

Afigura-se-nos que a sentença recorrida decidiu correctamente, não procedendo o presente recurso de revista per saltum.

Com efeito, a questão jurídica fundamental que foi discutida no primeiro processo judicial tinha a ver com o reconhecimento do direito de propriedade da A. sobre o espaço que integraria (agora) o leito do carreio/vereda identificado e que se situa a norte do seu imóvel, resultando daí a apontada ilicitude dos RR. na sua utilização contra a vontade da A.

Era esse, de facto, o pressuposto essencial e decisivo de todos os pedidos relacionados com a utilização pelos RR. do carreiro/vereda que a A. visava – e visa novamente – interditar.

O que significa que o objectivo primordial nesses autos (como nos presentes) era o de evitar a todo o custo a presença dos RR. naquele carreiro/vereda, com o fundamento de se encontrarem desse modo a invadir e devassar propriedade alheia, sem consentimento e contra a vontade da legítima proprietária (a ora A.).

A procedência dessa pretensão principal sustenta logicamente todas as outras apresentadas naqueles autos, bem como na presente acção judicial.

Ora, ao não ter logrado provar a integração desse espaço físico (leito onde se situa o dito carreiro/vereda) no âmbito dos limites do imóvel de que é proprietária – o que ficou definitivamente decidido na anterior acção, com trânsito em julgado -, não se encontra a A. em condições de pretender agora interferir, de novo, com o uso e destino daquela concreta ligação ou passagem, que nada tem a ver directamente com o seu prédio particular (deste modo não afectado).

(Conforme se afirmou na sentença proferida na acção judicial anterior:

“(…) não se pode concluir que as ditas escadas e carreiro se encontrem, de facto, integradas no prédio da autora mas somente que as mesmas permitem acesso aos prédios da autora e dos réus, não sendo possível concluir sobre a titularidade do direito de propriedade sobre as mesmas”.).

Note-se ainda, neste contexto, que o conceito de “atravessadouro” contém “implícita a ideia que se atalha ou atravessa um prédio particular, abandonando-se o caminho, para atingir mais facilmente o ponto de destino”, o que significa que “se houver atravessadouro ou servidão de trânsito, o chão é alheio, embora esteja onerado por este direito de passagem”.

(Vide, sobre este ponto, José Oliveira Ascensão in “Caminho Público, Atravessadouros e Servidão de Passagem”, publicado na revista “O Direito”, nº 123, 1991, Outubro/Dezembro, a páginas 538 a 544).

Sobre o tema, vide igualmente Luís Menezes Leitão in “Direitos Reais”, Almedina 2022, 10ª edição, a página 416, onde refere:

“Os atravessadouros são caminhos pelos quais o público faz passagem através de caminhos particulares, com o fim essencial de encurtar o percurso entre dois locais, sendo os seus leitos partes integrantes desses prédios. (…) Os atravessadouros constituem uma espécie de servidões irregulares, dado que não se estabelecem em benefício de prédios determinados, mas antes em benefício de qualquer pessoa. Precisamente por esse motivo, a lei tem vindo a procurar reprimir os atravessadouros”.

No mesmo sentido vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Fevereiro de 2012 (relator Lopes do Rego), proferido no processo nº 1007/03.1TBLSD.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“Note-se que esta última circunstância – não se ter provado que o leito do caminho em litígio pertence ao prédio dos RR. – impediria, desde logo, que se pudesse qualificar o mesmo como atravessadouro, ressalvado pelo preceituado no art. 1384º do CC, enquanto destinado a possibilitar o acesso do público a equipamento de uso colectivo (fontanário), qualificado como de manifesta utilidade pública : na verdade, é característica essencial da figura do atravessadouro que o mesmo se situe sobre solo privado, ao passo que o leito do caminho público faz parte do domínio público ou, ao menos, do património de uma entidade pública – a autarquia local em cuja esfera de interesses se inclua”.

Ora, a A., não sendo – como definitivamente não é - proprietária do imóvel afectado e desse modo onerado, não detém a título para invocar neste processo a (peticionada) extinção de uma hipotética servidão – quer pelo não uso, quer pela desnecessidade – não sendo (por não titular da propriedade respectiva) substantivamente prejudicada pela possibilidade de passagem em favor dos RR. que, desse modo, será de qualificar como perfeitamente lícita.

O mesmo sucede, por identidade de razões, com o apelidado atravessadouro, enquanto servidão irregular, que incidiria sobre o leito de um prédio particular.

A ausência de prova quanto à propriedade do seu leito retira-lhe, desde logo, legitimidade processual activa para pedir em juízo a declaração judicial da sua abolição (tal como acontece com qualquer outra pessoa que não veja o seu prédio particular ser desse modo atravessado e que, portanto, não é prejudicada com esse atravessamento).

Trata-se de um concreto espaço físico que – conforme resulta do anteriormente decidido com força de caso julgado – nada tem a ver com o imóvel, prédio particular, de que é titular.

Foi dado, aliás, considerado provado e não provado na acção judicial nº 2480/20.9T8VRL.G1.S1:

“Provado que:

14. Subindo a escada referida em 13), no final do 12º degrau, do lado esquerdo, existe uma pequena cancela (portão) e, na empena do prédio referido em 1), uma porta que dá acesso à sala da mesma casa.

15. Subindo mais cinco degraus, do lado esquerdo sita outra porta na empena da casa que dá acesso a um terreno.

16. Em continuidade com a escada referida em 13 existe um pequeno carreiro, com largura entre 90 e 140cm, no termo do qual existem umas pequenas pedras que podem ser trepadas e permitem atalhar o acesso a uma leira de terra.

21. Em data concretamente indeterminada, os réus colocaram ao cimo do pequeno carreiro e nas pedras amontoadas, antes do barranco, um portão e um recetáculo de correio com um número de polícia.

23.O acesso ao prédio referido no ponto 5) é realizado, desde tempos imemoriais, pelas escadas referidas no ponto 13) e pelo carreiro referido no ponto 16), não tendo outro acesso.

24. O acesso referido em 23) era usado livremente por qualquer pessoa que desejasse aceder ao prédio referido em 5).

25. As escadas referidas em 13) e o carreiro referido em 16) são a única via de acesso entre o prédio referido em 5) e a via pública.

Factos Não Provados:

27. Que o carreiro referido em 16) tivesse sido utilizado há mais de 30 anos como atalho, por mera tolerância, para acesso a uma leira.

29. Que a referida leira tenha deixado de ser cultivada há mais de 30 anos. 30. Que tenha deixado de ser feito o percurso do carreiro há mais de 30 anos.

31. Que as servidões referidas em 16) se situassem uma a norte e outra a sul do mencionado prédio.

32. Que a servidão a norte fosse o carreiro referido em 16).

33. Que os progenitores da autora fossem os únicos a utilizar a faixa estreita de terra que constitui o referido carreiro.

34. Que o 1º réu nunca tenha usado o carreiro referido em 16)”.

Tal factualidade - que explica a improcedência dos pedidos formulados na acção 2480/20.9T8VRL.G1.S1 – significa, objectiva e indiscutivelmente, que não foi demonstrado pela A. que o dito carreiro/vereda se situasse no seu prédio particular, afectando-o e onerando-o.

Conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 1993 (relator Martins da Costa), publicado in BMJ nº 431, Dezembro de 1993, a páginas 300 a 308:

“No conceito tradicional, os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fim essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus leitos partes integrantes desses prédios”.

No mesmo sentido, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Outubro de 2004 (relator Araújo de Barros), com a referência 04B2576, publicado in www.dgsi.pt:

“Só pode conceber-se a existência de um atravessadouro quando o caminho constitui um acesso a lugares de manifesta utilidade e atravessa prédio particular, sendo que o seu leito faz parte do prédio particular pelo qual passa”.

Estabelecendo a diferenciação entre caminho público e atravessadouro, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Março de 2008 (relator Sebastião Póvoas), com a referência 08A542, publicado in www.dgsi.pt. onde se salienta:

“Os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fim essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus leitos parte integrante dos prédios atravessados. Já os caminhos públicos destinam-se a estabelecer ligações de maior interesse, em geral entre povoações, e os respectivos leitos fazem parte do domínio público.

(…) Ou seja, um caminho, no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se ocorrer afectação naqueles termos; mas se visar apenas o encurtamento, não significativo, de distâncias, deverá classificar-se como atravessadouro, se o leito pertencer ao prédio atravessado”.

(Quanto à circunstância essencial de o atravessadouro se traduzir numa ligação que incide sobre um prédio particular, vide iguamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Junho de 2000 (relator Miranda Gusmão), com a referência 00B429, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Setembro de 2014 (relator Maria dos Prazeres Beleza), no processo nº 44/1999.E2.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Janeiro de 2014 (relator Moreira Alves), no processo nº 6662/09.6TBVFR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Maio de 2013 (relator Salazar Casanova), no processo nº 3425/03.6TBGDM.P2.S1, publicado in www.dgsi.pt).

Todos os outros pedidos deduzidos nos autos são apenas meramente acessórios e instrumentais do principal e dependiam imprescindivelmente da prova – enquanto seu pressuposto essencial – de que o carreiro/vereda se integrava nos limites do prédio particular de que a A. é exclusiva titular.

Dito de outra forma, o reconhecimento desse direito de propriedade expressamente negado, por falta de prova, na acção judicial nº 2480/20.9T8VRL.G1.S1 – que não pode mais ser (re)discutido face ao seu trânsito em julgado – constituía, no fundo, o pressuposto lógico e essencial de que dependia, como conditio sine qua non, a procedência dos pedidos deduzidos nos presentes autos, mormente o da declaração judicial de abolição do atravessadouro.

O que significa que – tal como foi decidido na sentença recorrida – verifica-se a excepção da autoridade de caso julgado que impede o conhecimento do mérito da presente acção.

Esta decisiva circunstância é absolutamente independente das alterações que os RR. introduziram na sua propriedade, modificando-a fisicamente, com o inerente reflexo no âmbito registral, e muito menos com as alterações urbanísticas promovidas pelo Município de ..., entidade autárquica a quem compete zelar pela sua observância – que não a A., na qualidade de simples munícipe e vizinha dos RR.

Tais alterações edificativas (que não fizeram desaparecer, nem modificaram o dito carreiro/vereda) são, em qualquer caso, completamente irrelevantes para a sorte da lide, na medida em que, independentemente da sua realização, envergadura, âmbito e extensão, a A. continua, em qualquer caso, a não ser titular de qualquer direito sobre o leito onde se situa o dito carreiro/vereda que lhe permitisse juridicamente obstar, de algum modo, à sua utilização por terceiros.

Não se integrando o mesmo nos limites do seu imóvel, que, como se provou na anterior acção, não o abrange, não lhe é permitido tentar de alguma forma obstaculizar à sua utilização, não existindo fundamento jurídica para a sua qualificação como traduzindo uma servidão (extinta) ou atravessadouro (a declarar abolido).

O decidido na anterior acção, com a força de caso julgado, afastou definitivamente a A. dessa mesma discussão jurídica a que é, pela ausência de título válido, absolutamente alheia.

Admitir o contrário era abrir a porta a uma inadmissível colisão de julgados, em conflito lógico e necessário, totalmente intolerável para o ordenamento jurídico.

Dir-se-á, ainda, a propósito, concretamente, da alegação da A. nesta revista per saltum:

1º - A factualidade essencial em discussão é exactamente a mesma nos dois processos em causa, nada se acrescentando de relevante através da (dita) nova causa de pedir.

Na primeira acção, a A. peticiona o reconhecimento de que as escadas e carreiro a que corresponde uma faixa de terreno de 21 metros de cumprimento e 90 centímetros de largura, confrontando a norte com o prédio de que o 1º R. é possuidor, integram a propriedade da A. por transmissão dos seus pais e avós; que as escadas e carreiro a que corresponde uma faixa de terreno de 21 metros de cumprimento e 90 centímetros de largura, confrontando a norte com o prédio de que o 1º R. é possuidor, integram a propriedade da A.; e que se entenda que o carreiro descrito constitui uma servidão sobre o prédio da A. deverá a mesma ser declarada extinta pelo não uso durante mais de 30 anos (o que logicamente integrará a possibilidade subsidiária de nesse mesmo espaço existir um atravessadouro utilizado pelos RR.

Na segunda acção, o seu pedido não é diverso, em termos práticos e essenciais.

A A. volta a pedir que seja reconhecido que o caminho/carreiro não tem a natureza de um caminho público, pois só pode ser usado pelas pessoas que desejem aceder ao prédio dos R.R., não tendo utilidade pública para a população local, nem tendo atualmente utilidade para os R.R. que já possuem um acesso mais cómodo para o Largo ..., em ..., constituindo um mero atalho ou atravessadouro, porquanto o prédio dos R.R., acima identificado, já não se encontra encravado, pelo que além de ser inútil o atalho em causa, a sua utilização põe em causa a privacidade da A., sendo outrossim declarado que assiste à Autora, na qualidade de interessada, o direito de pedir o reconhecimento judicial da extinção do atravessadouro mencionado na alínea i) deste pedido.

Ora, todas estas pretensões voltam invariavelmente a ter como pressuposto essencial a circunstância de o prédio de que a A. é titular ser directamente onerado com a dita passagem (seja ela servidão, caminho público ou atravessadouro).

É isso que verdadeiramente está em causa, visando a demandante o fim comum prosseguido no primeiro processo: tornar ilícita a passagem dos RR. por aquele mesmo local, habilitando-a simultaneamente a interditar essa sua (indesejada) presença.

Tal pressuposto não se encontra reunido, como se viu.

2º - O A. alegou na acção anterior que a sua propriedade particular se encontrava afectada e devassada pela actuação ilícita dos RR. que a utilizava (mormente o espaço do carreiro/vereda) contra a sua vontade.

Admitiu, ainda, neste contexto, que a existir uma servidão em favor dos RR, incidente sobre um bem da sua exclusiva titularidade, a mesma fosse declarada extinta por desnecessidade.

Ora, esse pedido soçobrou, com trânsito em julgado, como soçobraria, por imperativo lógico, se nessa sede fosse invocada a existência de um atravessadouro.

Logo, não faz sentido voltar a discutir se esse mesmo carreiro/vereda, que se situa fora dos limites da propriedade da demandante, tem qualquer outra natureza diversa.

Em qualquer caso, a circunstância de a A. não ter logrado obter esse seu reconhecimento do direito de propriedade retira-lhe qualquer legitimidade processual activa para discutir essa matéria.

3º - O que está unicamente em causa é uma passagem (o dito carreiro/vereda) que dá acesso à propriedade da Ré e não à sua. O pretexto da ofensa à reserva da intimidade não serve para procurar afastar o direito à utilização de um espaço que – conforme foi afirmado com trânsito em julgado – não se integra no âmbito do direito de propriedade do peticionante, podendo assim ser licitamente aproveitado por terceiro para o percorrer com toda a naturalidade.

Na anterior acção inexistiu qualquer decisão quanto a saber se o leito do carreiro/caminho, que dá acesso ao prédio dos RR., não seria, afinal, propriedade destes (já que não se provou que fosse propriedade da A), na medida em que tal questão não foi objecto do necessário pedido, neste caso reconvencional.

Mas aventou-se mesmo a possibilidade (teórica) de ser comum aos AA. e RR., o que a acontecer aventou-se, inclusive, a possibilidade de ser comum aos AA. e RR., o que a confirmar-se legitimaria de pleno a utilização por estes últimos, licitamente, dessa exígua passagem, que estava – como se provou – à disposição de quem quisesse por ali passar.

Não se descortina igualmente a referida violação das disposições legais sobre edificações urbanas do Município de ..., matéria sobre a qual apenas a entidade autárquica tomará – se assim o entender e quando entender - as providências que tenha por adequadas e pertinentes.

Pelo que a presente revista é negada.

IV – DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar a revista, mantendo a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2024.

Luís Espírito Santo (Relator)

Cristina Coelho

Luís Correia de Mendonça

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.