O limite de € 100.000,00, tal como se encontra fixado no artigo 23º, n.º 10, do Estatuto de Administrador Judicial, expressa o tecto máximo final aplicável à remuneração variável do administrador da insolvência, entendida globalmente, como um todo, e não apenas o limite parcelar relativo à componente da remuneração sem a majoração que seja devida.
Revista nº 380/12.5TYNGN-N.P1.S1
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção-Cível):
I - RELATÓRIO.
Nos autos de insolvência da COOPERATIVA DE CONSTRUÇÃO A REALIDADE, CRL, a administradora de insolvência veio, em 17 de Outubro de 2023, apresentar proposta de rateio final e remuneração variável, tendo a mesma sido calculada em € 645.667,42.
A Secretaria, em 18 de Dezembro de 2023, procedeu ao cálculo da remuneração variável, nos termos que constam do “Termo” de 18 de Dezembro, no montante de €505.919,91.
O Ministério Público veio dizer que não concorda com qualquer dos cálculos efetuados - o cálculo efectuado pela administradora da insolvência não teve em consideração o disposto nos nº 7 e 10 do art.º 23º do EAJ; o cálculo efetuado pelo Escrivão seguiu o entendimento do tribunal, designadamente no que respeita ao cálculo da majoração, mas não considerou o disposto no nº 10 da cita norma legal, tal como vem sendo interpretada pelos tribunais superiores, pelo que, a remuneração variável da administradora da insolvência deve ser fixada em € 100.000,00, a que acresce IVA à taxa legal aplicável, valor que não deve ser reduzido em qualquer medida ao abrigo do n.º 8 do art.º 23º do EAJ, tendo em conta, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo Sr. Administrador da Insolvência no exercício das suas funções e, sendo fixado no referido valor a remuneração variável, o rateio proposto deverá ser retificado em conformidade.
Em 9 de Fevereiro de 2024, conforme ordenado por despacho de 24 de Julho de 2024, o Contador pronuncia-se quanto ao cálculo da remuneração variável de 18 de Dezembro de 2023, entendendo, no entanto, que a fórmula utilizada está de acordo com o que resulta das alterações ao Estatuto do Administrador Judicial, introduzidas pela Lei 9/2022 de 11 de Janeiro, parecendo que o cálculo da RV do AI deve refletir as operações aritméticas previstas no artº. 23º do EAJ e de acordo com o que resulta dos autos, sendo que o Mmº Juiz pode sempre reduzir o valor apurado, conforme está previsto no nº 8 do mencionado artigo.
Veio a ser proferido despacho que decidiu a questão nos seguintes termos:
“Pelo exposto, fixo no montante de 100.000,00euros, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, o valor global da remuneração variável devida à Sra. Administradora da Insolvência.”
Inconformada, a administradora de insolvência, AA, veio interpor o presente recurso de apelação
Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Setembro de 2024 foi julgado totalmente improcedente o recurso de apelação.
Veio a administradora da insolvência interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:
I. Recorreu-se inicialmente do despacho proferido em 23 de Março de 2024, nomeadamente da parte onde se decidiu o seguinte:
“(….) “Como vimos, do disposto no art. 23-º, n.º 10, da Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro, resulta um limite máximo, uma vez que a remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100.000,00 euros.
Tal valor, contudo, representa o tecto máximo para a remuneração variável no seu todo e não apenas o limite da componente da remuneração sem a majoração. (…)
“Pelo exposto, fixo no montante de 100.000,00 euros, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, o valor global da remuneração variável devida à Sr.a Administradora da Insolvência.”.
II. Só que, em 10 de Setembro de 2024, o Tribunal da Relação do Porto veio a proferir o Acórdão de que aqui se recorre, no qual confirmou a sentença da 1.º instância, concluindo o seguinte: “Pelo exposto e em conclusão acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e em confirmar a decisão recorrida.”.
III. Porém, tal decisão mereceu o voto de vencida da Juíza Desembargadora Márcia Portela, a qual, discordando frontalmente da conclusão do Acórdão, não deixou de positivar o seu “vencimento” nos moldes seguintes: “Para o efeito, determinaria a baixa dos autos à 1.ª instância para fixação dos actos praticados a fim de melhor se aquilatar o montante adequado da remuneração.”.
IV. Ou seja, a Sr.a Desembargadora foi sensível aos argumentos da Recorrente, considerando aquela decisão injusta e merecedora de reparação, interpretando esta matéria de acordo com o vertido no Acórdão de Tribunal Constitucional n.º 33/2017, defendendo assim a aplicação, in casu, do princípio da proporcionalidade, consagrado no art. 18.º da Constituição da República Portuguesa.
V. Em sintonia com a Sr.a Desembargadora que votou vencida e em oposição ao acórdão aqui proferido, já o Tribunal da Relação do Porto se tinha pronunciado muito recentemente, entrando agora em profunda contradição.
VI. Com efeito, sobre esta questão (do cálculo da remuneração variável e da obrigatoriedade da sua redução a 100.000,00 €), pronunciou-se o Tribunal da Relação do Porto por acórdão de 7 de Novembro de 2023 (processo n.º 691/12.0TYVNG-I.P1), no qual veio a concluir que era devida uma remuneração variável ao então apelante (Sr. AI) no valor de 160.000,00 € porque, in casu, não se observava “qualquer desproporção ou excesso no valor da remuneração variável encontrado por aplicação dos critérios estabelecidos nos n.º 4 a 7 do EAJ” que importasse corrigir ou mitigar com recurso à aplicação do n.º 8 do mesmo artigo.
VII. Ou seja, no dito acórdão fundamento, o Tribunal da Relação do Porto considerou, e bem, que, se por aplicação dos critérios normais de cálculo da remuneração variável o valor obtido foi de € 160.000,00, e se este valor, face às circunstâncias do processo, não for exagerado e/ou desproporcional, então não deve ser reduzido judicialmente (por aplicação do n.º 8 do art. 23.º do EAJ).
VIII. Ao mesmo tempo, e sem margem para qualquer dúvida, isto quer dizer que, ali, os Sr.s Desembargadores (e bem) entenderam que não era de aplicar a limitação imposta pelo n.º 10 do art. 23.º do EAJ a toda a remuneração variável, mas apenas e só à que resultar da alínea b) do n.º 4 do mesmo artigo, respeitando assim a vontade expressa pelo legislador na letra da lei.
IX. A contrario, no caso vertente, com excepção da Sr.a Juiz Desembargadora que votou vencida, os outros Sr.s Desembargadores consideraram que era de aplicar a limitação imposta pelo n.º 10 do art. 23.º do EAJ a toda a remuneração variável, não vislumbrando qualquer injustiça na adopção dessa solução legal e, assim sendo, negaram qualquer hipótese de, por uma questão proporcionalidade e justiça, a remuneração da recorrente ser fixada em montante superior aos ditos € 100.000,00.
X. Aqui chegados, fácil é verificar que, com uma diferença de apenas alguns meses, o mesmo Tribunal da Relação do Porto proferiu dois acórdãos sobre a mesma questão legal – mais propriamente quanto à interpretação e aplicação do n.º 10, do art. 23.º da Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro – decidindo num caso que por uma questão de justiça e de proporcionalidade o limite dos 100.000,00 € não seria aplicável e, noutro, no nosso caso, que esse limite é inultrapassável.
XI. Pelo que importa esclarecer, mais não seja através de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, se esse limite se aplica sempre e a toda a remuneração dos Administradores de Insolvência, de modo cego e irrevogável, ou se, pelo contrário, não se aplica a toda a remuneração ou, pelo menos, admite excepções, nomeadamente quando o trabalho realizado e a complexidade do processo assim o exigem.
XII. Em tal despacho, quanto a nós, o tribunal recorrido aplicou erradamente a norma expressa no n.º 10 do art. 23.º do EAJ à totalidade da remuneração variável, não admitindo qualquer excepção a essa fixação, o que, salvo devido respeito, torna esta decisão nula, porque contrária à lei.
Ora,
XIII. A Sr.a AI foi nomeada na sentença que decretou a insolvência, ou seja, em 18 de Abril de 2012.
XIV. No cumprimento das suas funções: elaborou o relatório a que alude o art. 155.º do CIRE; recepcionou, analisou e pronunciou-se sobre as reclamações de créditos, no valor total de € 12.658.070,54; elaborou as listas de créditos reconhecidos e não reconhecidos; resolveu oito contratos de várias espécies; respondeu às várias impugnações da lista de créditos; efectuou a apreensão dos bens da insolvente, saber: 235 Imóveis e 1 lote de mobiliário; promoveu o registo dos bens imóveis; elaborou parecer de qualificação da insolvência (art. 188.º do CIRE); efectuou as necessárias diligências de liquidação, das quais se destacam: solicitou e acompanhou as perícias e avaliações feitas aos bens; instrução e realização de várias tentativas de venda dos imóveis apreendidos, com notificações aos intervenientes processuais, anúncios, visitas, diligências de abertura de propostas, etc; concretização da venda de todos os imóveis, em 54 escrituras distintas e consequente entrega física dos imóveis; gestão de um contrato de arrendamento durante 9 anos, com uma renda mensal de € 8.340,00 a reverter para a massa insolvente, até à venda da fracção; gestão de um parque de estacionamento com 111 lugares, com um funcionário permanente durante cerca de oito anos, até à sua venda; legalização de dezenas de fracções e prédios, que só posteriormente puderam ser liquidados; reuniu centenas de vezes com diversas entidades, a saber: Câmara Municipal de ...; Serviços de Finanças; Comissão de credores; Inquilinos vários; Mandatários das partes; Peritos; Grupos de moradores dos edifícios da cooperativa; Empreiteiros que realizaram obras nos imóveis; Administração de condomínio; Potenciais compradores das centenas de fracções; assumiu a gerência da insolvente, que se manteve em actividade com a exploração do parque de estacionamento, com o respectivo proveito, e com o recebimento da renda da fracção arrendada, durante cerca de 9 anos; contratou serviços de contabilidade para efectuarem esse serviço para a insolvente, por ser um imperativo legal possuir contabilidade organizada e um TOC responsável; realizou centenas de deslocações em serviço para os presentes autos; representou a massa insolvente em vários apensos processuais, onde existia litigância, entre os quais: A - Apreensão de bens, B - Incidente qualificação insolvência, C - Verificação ulterior créditos/outros direitos, D -Reclamação Créditos, E - Verificação ulterior créditos/outros direitos, F - Verificação ulterior créditos/outros direitos, J - Acção de Processo Comum (acção de despejo), L - Recurso em separado;
XV. O resultado da sua dedicação, competência e diligência, foi uma liquidação no valor total de € 9.302.215,87, num processo que dura há 12 (doze) anos, mas que irá permitir uma satisfação dos créditos de aproximadamente 65%, já descontadas as despesas do processo, as custas judiciais e a remuneração da apelante (calculada conforme aqui é defendido).
XVI. Nunca tendo recebido, até ao momento, qualquer remuneração (e adiantando, inicialmente, muitas das despesas necessárias).
XVII. A Sr.a AI apresentou então a sua proposta de rateio final, aí incluindo os cálculos relativos à sua remuneração, nomeadamente quanto à remuneração variável, requerendo o direito a uma remuneração variável (sem majoração) no valor de € 431.205,86 (art. 23.º, n.º 4, b), do EAJ) valor este que deve ser deduzido a € 100.000,00, por aplicação do n.º 10 do mesmo artigo 23.º de EAJ.
XVIII. Mas também o direito à remuneração variável, vulgarmente designada por “majoração”, prevista do mesmo art. 23.º do EAJ, que se calculou em € 424.932,86, sem qualquer redução legal.
XIX. Ou seja, nos termos da lei, entende-se que a Sr.a AI tem direito a uma remuneração variável total no valor de € 524.932,86, acrescido de IVA à taxa legal.
XX. O Sr. Contador do tribunal, veio emitir parecer (de 9 de Fevereiro de 2024) no sentido de considerar válidos os cálculos feitos pela Sr.a administradora da insolvência, confessando estarem de acordo com as normas aplicáveis e com a jurisprudência mais recente (da própria Relação do Porto) sobre a matéria.
XXI. Porém, alinhando com a posição do Ministério Público, o tribunal recorrido decidiu que a remuneração variável total a atribuir à recorrente devia limitar-se a um máximo de € 100.000,00, aplicando (cegamente, dizemos nós) a toda a remuneração variável o limite constante do n.º 10 do art. 23.º do EAJ – no que foi apoiado pelo acórdão agora proferido e aqui posto em causa.
Porém,
XXII. A questão a apreciar e decidir consiste em saber qual a interpretação a dar ao n.º 10 do art.º 23.º do EAJ – “A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100.000 euros” - com vista a saber se este limite se aplica apenas ao cálculo proveniente da al. b) do n.º 4 do art.º 23.º do EAI – como o entende a recorrente e o Sr. Contador do tribunal - ou se aplicará a toda a remuneração variável – como o entende o Ministério Público, o tribunal recorrido e uma parte do Tribunal da Relação do Porto.
XXXIII - Sabe-se que o administrador da insolvência tem direito a ser remunerado pelos actos praticados, sendo essa remuneração composta por uma parte fixa e, caso venha a ser aprovado um plano de recuperação ou a liquidação da massa insolvente, por uma parte variável – a parte fixa permite maior certeza na remuneração e a parte variável constitui como que uma motivação para o bom exercício da actividade, pois será tanto mais elevada quanto maior for o resultado da liquidação e a satisfação dos créditos reclamados.
XXIV - Com a alteração introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, o legislador pretendeu, de facto, compensar a degradação da remuneração do administrador judicial, optando por aumentar significativamente a componente variável da sua remuneração.
XXV - Entende-se que, por aplicação das alterações introduzidas pela Lei 9/2022, de 11 de Janeiro, a remuneração variável é determinada através de duas operações distintas: - na primeira operação, após se apurar o saldo da liquidação - produto da liquidação deduzido das despesas da massa, com ressalva da remuneração fixa do administrador e custas dos processos pendentes -, aplica-se a este saldo a taxa de 5%, obtendo-se assim o valor da remuneração variável; - na segunda, o valor obtido é majorado em função do grau de satisfação dos créditos reconhecidos numa nova percentagem de 5% do montante dos créditos satisfeitos.
XXVI - Haverá então que determinar se o valor de € 100.000,00 é o valor máximo para a remuneração variável na liquidação “tout court”, ou se constitui apenas o limite da componente da remuneração sem a majoração – como não duvidamos ser o caso.
XXVII - Fazendo apelo ao elemento literal da lei, verifica-se que o limite aí referido se reporta ao cálculo efectuado nos termos da alínea b) do n.º 4, ou seja, refere-se à primeira parte do cálculo, antes da aplicação da majoração - por isso se entende que a letra da Lei não permite, nem dá espaço, a qualquer outra interpretação que não seja que esse limite de € 100.000,00 é para o cálculo elaborado para a referida al. b).
XVIII -Nos termos do art. 9.º do CC, do qual decorre que a interpretação da lei tem como base e limite a letra, afigura-se que a interpretação supra exposta encontra na letra da lei correspondência verbal bastante, uma vez que o artigo 4.º é aquele que, na sua alínea b), se ocupa do cálculo da remuneração variável do administrador em caso de liquidação.
Sem prescindir,
XXIX. Parece óbvia a intenção do legislador ao dividir a remuneração variável em dois cálculos distintos: por um lado, quis limitar o cálculo automático e cego da remuneração variável, inserindo um duplo cálculo e um travão nos € 100.000,00 em relação ao primeiro desses cálculos; por outro, quis premiar o bom desempenho daqueles que conseguem garantir para o processo o máximo de valor possível (de molde a satisfazerem o máximo possível de créditos), aqui sem qualquer redução legal.
XXX. E é assim porque, cremos, se o primeiro cálculo pode ser objectivamente cego, conferindo uma remuneração excessiva e, logo, injusta, no segundo cálculo, o da majoração, estamos perante o momento de premiar quem trabalha mais e melhor, não fazendo qualquer sentido usar novamente uma norma travão, cujo resultado prático seria igualar a remuneração variável entre quem desempenha um bom trabalho e quem não o desempenha tão eficazmente.
XXXI. Até porque, se a norma travão se aplicar a toda a remuneração variável, o resultado só pode ser contrário ao ambicionado pelo legislador, porque vai deixar de premiar os que melhor desempenharam o seu trabalho.
XXXII - Aliás, a aplicação da norma travão à totalidade da remuneração variável, dá um sinal adverso aos Sr.a AI, que a partir de certo momento deixam de ter incentivo remuneratório no desempenho das suas funções, porque atingindo os 100.000,00 € o seu trabalho passa a ser pro bono.
XXXIII – In casu, se aderirmos à interpretação recorrida, a apelante não receberá qualquer montante referente à majoração, ou seja, não será minimamente premiada pelo seu trabalho, já que a norma travão fica logo preenchida pela remuneração variável obtida através da aplicação da alínea b) do n.º 4, logo, é indiferente que tenha tido um excelente desempenho ou que apenas tenha cumprido minimamente as suas funções.
Acresce que,
XXXIV. A jurisprudência é unânime em considerar que a nova lei pretendeu actualizar o estatuto remuneratório dos Sr.s AI, o qual se encontrava há quase 20 anos sem qualquer actualização, aumentando a remuneração variável em função do desempenho.
XXXV. Porém, aqueles que aceitam que a lei nova pretendeu actualizar a remuneração dos Sr.s AI e premiar a sua competência, são os mesmos que interpretam a nova lei no sentido dela diminuir a
remuneração a que os Sr.s AI teriam direito pela lei antiga e que limitam (ilegalmente) a remuneração, maxime a sua componente de majoração.
XXXVI. Portanto, admite-se que a lei pretendeu aumentar as remunerações dos Sr.s AI e premiar a sua diligência, mas interpreta-se e aplica-se a lei precisamente no sentido contrário, ou seja, por aplicação de uma lei de melhoria das remunerações, diminuem-se as remunerações.
XXXVII. No caso vertente é disso exemplo, porque a aplicação da lei nova, no sentido que o tribunal recorrido pretende impor, resulta numa diminuição clara da remuneração variável a auferir pela apelante, pese embora o seu trabalho tenha sido muito diligente e competente.
A somar a isto,
XXXVIII. Se virmos a redacção de todo o art. 23.º do EAJ, verificamos que o poder de reduzir a remuneração variável dos administradores da insolvência mantém-se no julgador, por aplicação do nº 8 do mesmo artigo. poder de reduzir a
remuneração variável dos Sr.s AI mantém-se no julgador, por aplicação do número 8 do mesmo artigo.
XXXIX. É esta via que o legislador escolheu para combater as remunerações injustas e desproporcionais e não outra... e, também por isso, é que restringiu a norma travão à remuneração variável resultante da alínea b) do n.º 4.
XL. Ou seja, não faz sentido vir defender que só a aplicação da norma travão (€100.000,00) a toda a remuneração variável permite acabar com as remunerações excessivas dos Sr.s AI, porque isso será aceitar a demissão dos Sr.s Juízes das suas funções ou, pior ainda, defender a sua menorização processual - na certeza de que, como ficou expresso supra, não foi isso que o legislador quis.
XLI. Repare-se, voltando à literalidade da lei, que o legislador teve aqui (no n.º 8) o cuidado de, ao falar na remuneração variável, referir expressamente “incluindo portanto a majoração” - prova evidente de que, se tivesse querido a aplicação da norma travão inclusa no n.º 10 a toda a remuneração variável, não teria referido apenas a al. b) do n.º 4, ou teria, no mínimo teria feito igual referência à que fez no n.º 8.
XLII. Donde resulta, salvo devido respeito, que não vemos como se pode pensar que o legislador, quando escreveu: “a remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euros)”; queria ter escrito: a remuneração variável não pode ser superior a 100 000 (euros).
XLIII. Até porque, como vimos supra, cremos que ele não se enganou, nem se esqueceu, apenas pretendeu premiar os Sr.s AI mais competentes e diligentes pelo trabalho efectuado – prémio esse que, estando fora da norma travão, não ficou ainda assim à margem da redução judicial permitida por via do n.º 8 do mesmo art. 23.º do EAJ.
Por último,
XLIV. Quanto à questão da justiça na quantificação da remuneração variável, a recorrente entende que também aí a razão lhe assiste de sobremaneira, sendo certo que tanto o Ministério Público como a decisão inicialmente recorrida apontam expressamente para a sua competência e diligência.
XLV. Não podemos esquecer que a remuneração variável agora em fixação corresponde a mais de 10 (dez) anos de trabalho, de um vasto número de pessoas, com centenas de diligências e com resultados muito positivos.
XLVI. Basta dizer, se a recorrente trabalhasse como leiloeira ou agente imobiliária, bastaria concretizar a venda do património da insolvente (como fez) para ser remunerada em quase € 500.000.00 (valor correspondente a 5% do valor obtido na venda), sem ter elaborar relatórios, recepcionar, apreciar e guardar reclamações de créditos, apreender bens, emitir pareceres, elaborar lista de créditos, fazer rateios e pagamentos, fazer e receber notificações constantes, cumprir prazos processuais, assumir a representação da insolvente e da massa insolvente perante as entidades públicas e privadas, incluindo em acções pendentes e de enorme responsabilidade.
XLVII. Portanto, o que a recorrente vem requerer ao tribunal não é que tenha pena dela, nem que lhe seja atribuído mais do que aquilo que tem direito, veio apenas solicitar aquilo que a lei taxativamente lhe confere, e que, além do mais, no caso concreto, não é nada injusto, nem excessivo, muito menos injustificado.
Contra-alegou o Ministério Público as seguintes conclusões:
1 - O Acórdão recorrido contem voto de vencido da Ex.ma Desembargadora Márcia Portela, pelo que o n.º 3 do art.º 671.º do CPC não exclui a admissibilidade da revista normal, nos termos previstos no seu n.º 1, “ex-vi” do art.º 17.º, n.º1, do CIRE;
2 – E a revista normal exclui a admissão da revista excecional, prevista no art.º 672.º, n.º1, alíneas a), b) ou c), do CPC.
3 – Por isso, deverá a Formação rejeitar a interposta revista excecional, prosseguindo os autos como revista normal, nos termos dos art.ºs 672.º, n.ºs 3 e 5 do CPC.
4 – Quanto ao mérito da revista, e salvo o devido respeito pela tese da recorrente, sufragamos a posição maioritária e bem fundamentada do Acórdão recorrido – devendo o art.º 23.º, n.º10, do EAJ ser interpretado, como o foi na decisão recorrida, com o sentido de que se aplica à remuneração variável completamente calculada (incluindo majoração) nos processos em que a remuneração variável seja calculada sobre o resultado da liquidação da massa insolvente.
5 - Por isso, e porque a remuneração variável reclamada pela Ex.ma Administradora da Insolvência (no valor de € 424.932,86), ultrapassa de longe o limite máximo de €100.000,00 ali previsto, apenas lhe assiste o direito a auferir tal montante a título de remuneração variável, acrescido de IVA à taxa legal em vigor - sendo essa a remuneração a que tem direito, nos termos do n.º 1 do artigo 60.º do CIRE.
6 – Também não se verificam quaisquer das inconstitucionalidades que a recorrente lhe aponta - ainda que a título subsidiário.
7 – O Acórdão recorrido está bem fundamentado e fez correta interpretação e aplicação do citado art.º 23.º, n.º10, do EAJ – devendo ser mantido nos seus precisos termos.
II – FACTOS PROVADOS.
Os indicados no RELATÓRIO supra.
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
Âmbito e alcance do limite consignado no número 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial.
Passemos à sua análise:
O acórdão recorrido procedeu, a nosso ver, à correcta interpretação do nº 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial, sendo por isso de manter.
(A nossa concordância com o aresto impugnado assenta, no fundamental, nas razões igualmente expressas no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Outubro de 2024 (relatora Maria Olinda Garcia), proferido no processo nº 14878/16.2TBLSB-G.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt.).
Vejamos:
A norma em causa (nº 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial) ao estabelecer que “a remuneração calculada nos termos da alínea b) do nº 4 não pode ser superior a € 100.000,00”, refere-se ao total da remuneração variável, incluindo, portanto, a sua majoração, o que resulta do facto de o disposto no número 7 do mesmo preceito se encontrar directa e intrinsecamente relacionado com o seu nº 4, onde se prevê a remuneração variável do administrador da insolvência sobre que poderá incidir a dita majoração, não havendo justificação alguma para destrinçar, em termos de limite final e global, entre estas duas vertentes da dita (e única) remuneração variável.
Com efeito, o legislador refere-se ao conceito de remuneração (do administrador da insolvência) reportando-se à sua remuneração global nos termos que constam do artigo 60º do CIRE, onde se prevê precisamente que “O administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis”; no artigo 23º, nº 1, do Estatuto do Administrador Judicial, onde pode ler-se: “O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos actos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de € 2.000,00”.
E nenhuma dúvida se pode seriamente colocar quanto à circunstância de a majoração da remuneração fazer parte integrante do próprio conceito de remuneração, sem qualquer tipo de autonomia relativamente a esta.
Neste sentido, afigura-se-nos que o nº 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial tem exactamente a mesma natureza e alcance, ou seja, o de referir-se à remuneração global, enquanto limite final e absoluto, compreendendo a remuneração variável e a majoração (que também se integra na remuneração variável) que seja devida.
Note-se, aliás, que a própria e sintomática inserção desta regra limitativa (o tecto de € 100.000,00) na parte final do mesmo preceito (o artigo 23º do Estatuto de Administrador Judicial) só pode querer significar que se trata de uma operação a realizar na fase derradeira da sequência de procedimentos utilizados com vista ao apuramento da remuneração global a atribuir ao administrador da insolvência.
No fundo, estamos perante duas realidades (remuneração variável e sua possível majoração) que obedecem, lógica e intrinsecamente, ao mesmo regime jurídico e que se encontram unitariamente subordinadas à mesma limitação final e global (não superior a € 100.000,00).
O que significa que o legislador, actuando em conformidade com a coerência que se impunha, estabeleceu um limite total à remuneração variável acrescida da majoração, ao mesmo tempo em que permitiu ao juiz reduzir, justificadamente, a remuneração variável em si (desde que superior a € 50.000,00).
De resto, como sagazmente se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Outubro de 2024 (relatora Maria Olinda Garcia), proferido no processo nº 14878/16.2TBLSB-G.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt.:
“(…) a alínea b) do n.º 4 não encerra, em si mesma, um critério de cálculo definitivo, já que o critério nela previsto tem de ser completado pelo disposto no n.º 6 (que fornece a noção de resultado da liquidação). E o n.º 7 estabelece um complemento (uma majoração) do valor alcançado por aplicação do n.º 6.
Existe, assim, uma sequência articulada de disposições [n.º 4, alínea b), n.º 6 e n.º 7] que traçam o alcance normativo do que deve ser entendido por remuneração variável em caso de liquidação da massa insolvente.
Neste quadro, do ponto de vista da coerência teleológica da norma, não seria compreensível que o legislador fixasse um limite de 100.000 Euros para a primeira parcela da remuneração variável (a que é calculada nos termos do n.º 6), mas que tal limite já não valesse para a segunda parcela (a majoração prevista no n.º 7), que é um complemento da primeira. Efetivamente, a majoração (atualmente prevista no n.º 7) foi, desde a Lei n.º 22/2013 (então prevista no n.º 5 do artigo 23º), legalmente consagrada como um complemento remuneratório da parcela que correspondia a 5% do resultado da liquidação, permitindo, assim, ao administrador receber um valor mais elevado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.
Assim, percebendo a relação entre as duas componentes da remuneração variável, seria incoerente e ilógico fixar um limite máximo à primeira parcela e, depois, continuar a complementar essa parcela com a majoração. E ainda mais ilógico seria entender que esta segunda parcela não teria qualquer limite.
Acresce que, como bem se refere no acórdão recorrido, faria pouco sentido que o legislador não tivesse pretendido aplicar o limite do n.º 10 à parcela da majoração quando, nos termos do n.º 8, o juiz tem o poder de reduzir (de forma justificada) toda a remuneração variável que exceda 50.000 Euros”.
Carece, deste modo, de base legal - e mesmo de razoabilidade - a tese sustentada pela ora recorrente de que o limite previsto no nº 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial (€ 100.000,00) se aplica exclusivamente à remuneração variável do administrador da insolvência e não à sua majoração.
Pelo contrário, há que concluir, pelos motivos enunciados que o limite de € 100.000,00, tal como se encontra fixado no artigo 23º, n.º 10, do Estatuto de Administrador Judicial, expressa efectivamente o tecto máximo aplicável à remuneração variável do administrador da insolvência, entendida globalmente, como um todo, e não apenas o limite parcelar relativo à componente da mesma remuneração sem a majoração.
Pelo que a revista é negada, sem necessidade de quaisquer outras justificações ou desenvolvimentos.
IV – DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar a revista, mantendo o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2024.
Luís Espírito Santo (Relator)
Cristina Coelho
Teresa Albuquerque
V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.