RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS NOTÓRIOS
ERRO DE DIREITO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
PODERES DA RELAÇÃO
LEI PROCESSUAL
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
ÓNUS DA PROVA
Sumário


I. Se a revista se funda em erro, erro, deficiência e omissão na decisão sobre a impugnação da matéria de facto, proferida no acórdão da Relação, sem fazer apelo nem se sustentar nas hipóteses excepcionais do art. 674º, 3, e 682º, 3, do CPC (cfr. ainda o art. 637º, 2, 1.ª parte, CPC), ingressa na regra de insusceptibilidade de conhecimento ditada pelo art. 674º, 3, 1.ª parte, do CPC.
II. Escapa-se à irrecorribilidade-regra da decisão tomada em matéria de facto pela Relação se a revista se funda em vícios que se apontem expressamente ao exercício do art. 662º, 1 e 2, do CPC, que, no âmbito de recorribilidade permitido, sindicam o não uso ou uso deficiente ou patológico dos poderes-deveres funcionais previstos no art. 662º do CPC (em especial na vertente de “erros processuais”, sem olvidar a eventual conjugação com o art. 674º, 3, 2.ª parte, do CPC); se assim não for, estamos caídos na regra do art. 662º, 4, do CPC.
III. A desconsideração ou ignorância de «factos notórios» na decisão da Relação sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, enquanto “erro de direito” correspondente a procedimento de direito probatório, tendo em vista a interpretação e aplicação do art. 412º do CPC aquando da tomada de decisão ao abrigo do art. 662º, 1, do CPC, pode ser apreciada em revista (arts. 607º, 4, 663º, 2, 674º, 1, b), CPC), devendo ser conhecido e decidido esse segmento de impugnação; será improcedente a impugnação conhecida se, para a fiscalização do n.º 1 do art. 412º, estamos perante factos de conhecimento específico e restritos a um determinado meio geográfico, social e desportivo, sem a difusão generalizada que lhe conferiririam o grau de certeza para efeitos de aquisição no processo e do regime da dispensabilidade da prova.

Texto Integral


Processo n.º 2913/23.2T8VNG.L1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, 8.ª Secção


Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO

1. «Internacional Foot II – Gestão e Assessoria de Carreiras Desportivas, Lda.» intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, enquanto futebolista, pedindo que se declare válida a resolução, comunicada com justa causa e por factos imputáveis ao Réu, por factos imputáveis ao réu, do contrato de intermediação desportiva entre ambos celebrado, em regime de exclusividade, e, consequentemente, a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), a título de cláusula penal pelo incumprimento do contrato e consequente resolução do mesmo, acrescida dos juros comerciais calculados desde a data do incumprimento até efetivo e integral pagamento, tendo em conta, em síntese, que o Réu teria violado aquele contrato, celebrando novo contrato com outro agente de intermediação desportiva.

O Réu não apresentou Contestação.

Foi proferido despacho considerando provados os factos articulados pela Autora (art. 567º, 1, CPC).

O Réu constituiu mandatário e apresentou alegações, pugnando pela improcedência da acção.

2. O Juiz ... do Juízo Central Cível do ... proferiu sentença, julgando procedente a acção e, consequentemente, “validamente resolvido o contrato celebrado entre as partes, condenando-se o réu a pagar à autora a quantia de €1.000.000,00 (um milhão euros), a título de cláusula penal pelo incumprimento culposo daquele contrato, acrescendo àquele valor os juros de mora comerciais vencidos e vincendos, desde a data da resolução até integral pagamento.”

3. Inconformado, o Réu interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a ser proferido acórdão, no qual se indeferiu a arguição de nulidade por excesso de pronúncia, se julgou procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto – modificação parcial do facto provado 3.1.1., consideração do facto provado 3.1.4. como facto não provado 1. –, e, por fim, na apreciação do mérito, se julgou procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e absolvendo o Réu do pedido.

4. Sem se resignar, a Autora veio interpor recurso de revista para o STJ, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões, visando a revogação do acórdão recorrido:

I. A posição do Tribunal da Relação de que ora se recorre, não faz uma correcta aplicação do direito;

II. A aplicação do direito que se acredita ser a correcta levaria a que o Ac. proferido tivesse mantido a decisão de primeira instância, ou, no limite anularia a decisão proferida, fazendo baixar o processo à primeira instância, e determinaria que fosse proferido despacho de aperfeiçoamento;

III. Na verdade, o digníssimo tribunal da relação com a douta decisão proferida violou os artigos 5.º/n.º1, 411.º/6, 514.º/n.º1, e 590.º/n.º4, todos do CPC

IV. Quanto à nova redacção do ponto 3.1.1, configurada pelo douto Acórdão de que se recorre, refira-se o seguinte:

V. A A. é uma entidade que se dedica à intermediação desportiva sendo devidamente licenciada para o efeito sob número 868;

VI. Tal facto não foi de facto alegado, nem tinha de o ser;

VII. A conclusão de que a A. era uma agente licenciada, foi retirada à luz do artigo 514.º n.º1 do CPC, visto estarmos, perante uma circunstância enquadrável no conceito de facto notório ao abrigo daquele dispositivo legal;

VIII. Dispõe o mesmo que “Não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral;

IX. Na esteira do que se vem explanando, encontra-se, ipsis verbis, semelhante entendimento no douto Ac. Do Tribunal da Relação de Coimbra - 1803/08.3TBVIS.C1 - 22-06-2010:

(…)

X. Assim, analisando-se a situação dos factos parece-nos “evidente” em face do mais alegado, tal como configurada a acção pela A., que esta é uma agente de futebol registada cujo raciocínio lógico através da leitura dos documentos juntos pela mesma permitem aferir tal qualidade;

XI. Tal conclusão é reforçada pela facilidade de acesso a essa informação através das listagens públicas constantes no site da Federação Portuguesa de ...;

XII. Face ao exposto nunca o facto dado por provado pelo tribunal de primeira instância poderia ter sido dado por não provado nos moldes constantes no Ac. da Relação ora em foco;

Não obstante,

XIII. Ainda que o Digníssimo Tribunal da Relação pactuasse, conforme pactuou, pelo entendimento de que tal facto não foi alegado nem provado pela A., sempre se dirá, salvo melhor entendimento, que ainda assim o direito aplicado, que determinou a alteração da redacção do facto dado por provado em 3.1.1, não foi a correta;

Senão vejamos,

XIV. O Ac. do Tribunal da Relação, ora em debate, suscita a vicissitude da A. não ter alegado nem provado que era, uma intermediária registada sob o n.º ...68;

XV. Com essa conclusão procede à alteração do ponto 3.1.1 da matéria dada por provada pelo tribunal da primeira instância e absolveu o R. do pedido;

XVI. Porém, ainda que o entendimento do Tribunal da Relação quanto à necessidade de alegação e de prova de tal facto, esteja correto, salvo melhor opinião tal vicissitude teria de ser sanada pela A.

XVII. Quer isto dizer que o Digníssimo Tribunal da Relação, teria forçosamente de devolver o processo à primeira instância com a obrigatoriedade de este, proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento;

XVIII. Não o tendo feito nesses moldes, violou o artigo 590.º, n.º4 e o artigo 5.º, n.º1 ambos do CPC.

XIX. O artigo 590.º do CPC dispõe o seguinte:

(…)

XX. Este poder do Juiz não é um poder discricionário, que deva ser usado arbitrariamente, é, antes, um poder-dever do Juiz, que deve convidar a parte a compor, aditar, esclarecer, aperfeiçoar o seu processado, pois, só assim, terá em mãos toda a matéria essencial a produzir a justiça que se espera das instâncias judiciais;

XXI. Ora, nos presente autos a PI da A., não configurando uma situação de ineptidão, deveria ter sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado;

XXII. Por outro lado a ineptidão da PI a verificar-se, além do mais, levaria à absolvição da instância e nunca do pedido como no presente caso após decisão da Relação;

XXIII. O articulado apresentado pela ora recorrente, em consonância com os documentos juntos, evidenciam um quadro factual mínimo que justificava, em face do entendimento do Tribunal da Relação, um convite ao aperfeiçoamento.

XXIV. Veja-se a respeito o entendimento do douto Acórdão do Tribunal da Relação De Coimbra de 14.03.2017, processo 10327/15.1T8CBR.C1, o qual refere o seguinte:

(…)

Isto posto,

XXV. Do entendimento do Tribunal da Relação quanto à falta de alegação e de prova, só poderia resultar o convite de aperfeiçoamento previsto no artigo 590.º, n.º 4, do CPC.

XXVI. O que obrigaria a que a decisão fosse no sentido de determinar a baixa dos autos à 1.ª instância, para que fosse proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do disposto no artigo 590.º, n.º 4, do CPC, o que só após seguir-se-iam os ulteriores termos do processo;

XXVII. Relativamente ao facto dado por provado em 3.1.4, o qual, considera o Acórdão de que se recorre que deve ser dado por não provado refira-se o seguinte:

XXVIII. Por uma questão de economia processual, dá-se por reproduzido tudo o anteriormente alegado quanto aos factos notórios;

XXIX. Pois foi de conhecimento público que o R. assinou o contrato de trabalho desportivo com o ..., tanto assim o é que este ano foi transferido do ... para o ...;

XXX. Tornou-se evidente através das fotos que publicou nas redes sociais que foi aquele Intermediário a representar o R.;

XXXI. Fotos, essas juntas aos autos;

XXXII. Porém o jogador incumpriu o contrato de intermediação que o ligava à R., tenha sido esse intermediário, outro intermediário, ou tenha agido na sua pessoa, já que o contrato veda tal iniciativa ao jogador aqui R.;

XXXIII. Pelo que o Intermediário que representou o jogador torna-se indiferente;

XXXIV. O jogador nunca poderia ter assinado um contrato de trabalho desportivo com outro clube sem que esse processo passasse pela A., com representação de intermediário ou não;

XXXV. Quanto ao contrato de trabalho, na posse de terceiros, como é evidente!!!

XXXVI. Deveria ter sido apresentado, se o Meritíssimo Juiz assim o pretendesse, em juízo pelo R.

XXXVII. Já que, como é possível extrair da leitura da PI., a A. requereu a notificação do R. para apresentar o contrato de trabalho;

XXXVIII. Se o processo tivesse seguido o curso natural, o R. teria apresentado o mesmo, ou não o fazendo acarretaria com as consequências processuais dessa conduta;

XXXIX. A A. poderia sempre dependendo dessa junção ou não, ter requerido a notificação da federação e da segurança social para informar quanto ao actual vínculo laboral do R.;

XL. Pelo que tivesse o processo seguido os trâmites normais e nunca se colocaria a situação do contrato de trabalho;

XLI. O que não sucedeu por conta da revelia operante do R.;

XLII. Mas sobretudo por conta da leitura do digníssimo Tribunal da Relação que, salvo melhor opinião, ao violar os artigos supra mencionados, sonegou os direitos da A..”




Veio o Réu apresentar contra-alegações, pugnando pela não admissibilidade e, se for de apreciar, pela sua improcedência e manutenção do acórdão recorrido.

5. Subidos os autos, foi proferido despacho, ao abrigo dos poderes atribuídos pelo art. 655º do CPC, para exercício do contraditório sobre o não conhecimento do objecto do recurso em face do objecto recursivo delimitado pela Recorrente; a Autora respondeu, pugnando pelo conhecimento da revista, nomeadamente em face do art. 674º, 3, 2.ª parte, do CPC.




Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, enfrentando desde logo a questão prévia da admissibilidade do recurso de revista, atento o objecto da revista normal configurada e interposta como tal pela Recorrente.

II) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS

A. Questão prévia da admissibilidade da revista

1. O objecto da revista limita-se em exclusivo à impugnação da decisão proferida pela Relação em sede de matéria de facto: (i) modificação parcial do facto provado 3.1.1.; (ii) consideração do facto provado 3.1.4. como não provado.

2. O objecto da revista não incide sobre o mérito do pedido da Autora, relativamente ao qual o acórdão recorrido chegou à absolvição do Réu.

Assim sendo.

3. A revista normal tem como objecto, no que tange às decisões finais, os acórdãos recorridos nos termos do art. 671º, 1, e tem por fundamento as situações previstas no art. 674º, 1, do CPC.

4. Prescreve o n.º 3 do art. 674º que «O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista», significando – ou traduzindo – o princípio geral de conhecimento exclusivo de matéria de direito pelo STJ em sede de revista, sendo da competência das instâncias a apreciação e fixação da matéria de facto e estando arredado do poder cognitivo do STJ a modificação da decisão de facto vinda das instâncias – arts. 682º, 1 e 2, e 662º, 4, do CPC.

5. Tal inadmissibilidade da revista pode ser afastada, em sede de impugnação da matéria de facto, pela excepção decorrente da 2.ª parte do art. 674º, 3, acompanhada pela 2.ª parte do art. 682º, 2, do CPC – a invocação de «ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» (prova “vinculada” ou “tarifada”), ainda enquanto “erros de direito” em face do controlo da observância do direito probatório material.

6. Tal inadmissibilidade da revista pode ainda ser afastada nas circunstâncias, atinentes à decisão da matéria de facto estabilizada em 2.ª instância, previstas no art. 682º, 3, do CPC.

7. De outra banda, pode ainda a revista incidir sobre a apreciação em segunda mão das decisões da Relação tomadas a título próprio e originário – em especial, no tocante à sindicação do cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC ou da observância do não uso ou uso deficiente ou patológico dos poderes-deveres funcionais previstos no art. 662º do CPC (em especial na vertente de “erros processuais”, sem olvidar a eventual conjugação com o art. 674º, 3, 2.ª parte, do CPC).

8. A Recorrente invoca erro, deficiência e omissão na decisão sobre a impugnação da matéria de facto, proferida no acórdão recorrido e respeitante aos factos 3.1.3. e 3.1.4., sem fazer apelo nem se sustentar nas hipóteses excepcionais do art. 674º, 3, e 682º, 3, do CPC (cfr. art. 637º, 2, 1.ª parte, CPC), fazendo recair a sua revista na regra do art. 674º, 3, 1.ª parte, do CPC.

9. A Recorrente, neste âmbito da modificação e alteração de qualidade do facto provado, não alega quaisquer vícios que se apontem expressamente ao exercício do art. 662º, 1 e 2, que, no âmbito de recorribilidade permitido, enquanto tal e por causa do exercício desses poderes deveres-funcionais de reapreciação da matéria de facto, pudesse ser causa de anulação do acórdão recorrido, nem aponta nesse exercício qualquer desrespeito inerente a prova “vinculada” ou “plena” – estamos, pois, caídos na regra do art. 662º, 4, do CPC.

10. De todo o modo, sempre se diga que, a admitir que fosse esse o intento da Recorrente quando, uma vez aceite e não impugnada a aplicação do art. 342º do CCiv., e consequente ónus probatório, à demonstração do facto de estar “registada na Federação Portuguesa de ... com o n° ...68” e à celebração de contrato de trabalho desportivo, aponta ao acórdão recorrido a omissão de devolução dos autos à 1.ª instância para ser proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento nos termos do art. 590º, 4, do CPC, a diligência alegadamente omissa (e, portanto, viciante) não se enquadra no leque de decisões que à Relação cabe tomar para um quadro em que, perante a reapreciação da prova sujeita à livre apreciação do julgador, não resulte uma convicção segura sobre os factos diversa da da 1.ª instância – nomeadamente a al. c) do art. 662º, 1 (anulação da decisão de 1.ª instância para suprir a falta de elementos que poderiam impor a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, por ser deficiente, obscura ou contraditória a resposta dada a determinados pontos de facto, ou quando se considere indispensável a ampliação da matéria de facto), que só actua neste âmbito de reapreciação de prova constante dos autos e se não for possível, recorrendo às duas alíneas anteriores e utilizando a sua autonomia decisória, substituir-se à 1.ª instância, alterando a decisão da matéria de facto1.

Ao invés, foi justamente num quadro de suficiência factual e confronto com as regras de direito probatório de repartição do ónus da prova (aparentemente contestadas pela Recorrente mas sem concretização como fundamento da impugnação) que o acórdão recorrido tomou as suas decisões:

i. “A questão a apreciar tem a ver com a frase inserida na parte final deste facto (“… estando registada na Federação Portuguesa de ...com o n° ...68”). Tal factualidade não é alegada pela autora na petição inicial, nem relativamente a este registo apresenta qualquer prova. Ora, este é um facto essencial, cuja alegação e prova incumbe à autora e de que depende a procedência da sua pretensão. Não o tendo sido, não poderia o tribunal de 1.ª instância substituir-se à parte e introduzir na factualidade provada tal matéria.”;

ii. Quanto à “alegada celebração de um contrato de trabalho desportivo, com recurso à intermediação do empresário BB”, “[s]ucede que a autora, a quem cabia o ónus da prova, não logrou fazer prova da celebração deste contrato, não tendo junto o mesmo. Só com a prova deste facto-celebração de contrato de trabalho desportivo estaria provada a violação do contrato de intermediação desportiva celebrado entre a autora e o réu, facto constitutivo do direito da autora à cláusula penal.”; “a revelia operante tem por efeito a confissão dos factos articulados pelo autor, tal como estabelece o art. 567.º/1, in fine, sendo que este regime tem lugar quando o réu, apesar de não contestar, tenha sido ou deva considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa, ou, pelo menos, haja juntado procuração a mandatário judicial, no prazo da contestação. O efeito deste comportamento omissivo do réu é a chamada "confissão tácita ou ficta". Deste modo, o tribunal perante a ausência de contestação tem de verificar se a acção é fundada, ou seja, se os factos alegados e provados justificam o pedido à luz do direito, num cominatório dito semi-pleno, pois o que a revelia gera é a prova ficta (ficta confessio) dos factos alegados pelo autor. Todavia, e ainda que exista subjacente à revelia uma vontade presumida de não contestar e, logo, de aceitar os factos trazidos pelo autor, tal ficará mitigado quer pelas circunstâncias que não permitem a confissão, quer ainda por eventuais afirmações manifestamente inverossímeis ou totalmente contrários aos elementos probatórios trazidos aos autos. Logo, não se pode olvidar que, confessados os factos, a causa é julgada “conforme for de direito” (n° 2, in fine, do art. 567° do CPC) e esse julgamento pode conduzir ou não à procedência da acção, já que há confissão dos factos, mas não do direito, estando-se perante o chamado efeito cominatório semi-pleno associado à revelia operante (…). (…); “(…) revela-se que o tribunal a quo deu como provado um facto – o vertido no ponto 3.1.4.- que necessita de ser comprovado documentalmente, atento o disposto no artigo 568-d) do CPC. Assiste, por isso, razão, ao recorrente. O facto considerado provado com o n.° 3.1.4 deve ser julgado não provado.”

Como tal, até aqui, não pode ser conhecido o objecto do recurso, respeitante às Conclusões XIII. a XXVI. e XXXII. a XLI.

Sem prejuízo.

B. Sindicação do art. 412º do CPC (“factos notórios”)

11. Identifica-se no recurso, porém, a alegação de o acórdão recorrido ter omitido, nessas decisões sobre a matéria de facto, a notoriedade de factos que implicariam a censura ao julgado sobre os factos provados 3.1.1. e 3.1.4.: o registo da Autora como sociedade intermediária desportiva na FP...; a celebração de contrato de trabalho do atleta com clube e representação por outro intermediário diverso da Autora.

Convoca, por isso, a aplicação do art. 412º do CPC: («Factos que não carecem de alegação ou de prova»):

«1 – Não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.

2 – Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove.”

Assim, factos notórios são aqueles que são do conhecimento geral da população, que não necessitam de alegação nem mesmo de qualquer prova para que possam ser considerados, cabendo ao juiz considerá-los por sua iniciativa (motu proprio), ou do conhecimento do tribunal mediante o exercício das suas funções (por ex., através do exercício funcional em processo pendente), com o complemento da junção de documento comprovativo para o efeito2.

12. O que aqui se deverá discutir é saber, desde logo, se o STJ pode, em face dos poderes cognitivos assaz limitados e excepcionais em sede da matéria de facto estabilizada nas instâncias, dar como provado um facto como notório que o deveria ter sido ou, no limite, avaliar a decisão sobre factos notórios.

Em primeiro lugar, a consideração da notoriedade dos factos e a assunção de factos notórios, ao abrigo dos poderes do art. 607º, 4, estará excluída, enquanto decisão ex novo, da cognição do STJ, pertencendo em exclusivo às instâncias tal decisão (de modo que não se pode aproveitar para esse efeito a remissão do art. 663º, 2, e 679º para esse normativo-base)3 – estamos no domínio da construção do elenco factual e não da mobilização adicional de factos resultantes dos autos, com força plena e sem estarem controvertidos, que possam integrar a solução de direito que cabe ao STJ4.

De todo o modo, em segundo lugar, considerar se a decisão que determinou que certo facto é notório ou não poderá ainda ser fiscalizado, enquanto “erro de direito” correspondente a procedimento de direito probatório, que deve incidir em revista sobre o controlo dos parâmetros do art. 412º do CPC e, eventualmente, à luz das hipóteses excepcionais de sindicabilidade do art. 674º, 3, do CPC (interligado ou não, em segunda linha, com o art. 662º e articulação com o art. 674º, 1, b), do CPC)5.

Por maioria de razão, a sindicação da decisão tomada sobre a matéria de facto com desconsideração ou ignorância de factos tidos como notórios, como tal desviados das regras gerais do ónus probatório adoptadas e seguidas pelo acórdão recorrido para a sua tomada de decisão ao abrigo do art. 662º, 1, do CPC, pode ser apreciada em revista – pois ainda se está a sindicar por essa via a norma do art. 607º, 4, aplicável por força do art. 663º, 2, do CPC6.

Ora.

13. Os «factos do conhecimento geral» a que se refere o art. 412º, 1 – e só este aqui se controla – referem-se a factos “conhecidos ou facilmente cognoscíveis pela generalidade das pessoas normalmente informadas de determinado espaço geográfico, de tal modo que não haja razão para duvidar da sua ocorrência”7.

Ora, não julgamos que a factualidade invocada pela aqui Recorrente pudesse ser vista e considerada com a notoriedade que a lei exige como tal, conduzindo, se assim fosse, a decisão diversa (mesmo que a segunda notoriedade se estribe, com rigor, em reprodução por prova documental junta aos autos na petição inicial (arts. 362º, 368º, CCiv.): Docs. 2 e 3 da petição inicial).

O que invoca a Recorrente (registo na FP... e acesso a listagem no “site”; conhecimento de fotografias em redes sociais relativos a celebração de contrato desportivo) não permite caracterizar factos concretos de conhecimento geral; antes factos de conhecimento específico e restritos a um determinado meio geográfico, social e desportivo, sem a difusão generalizada, nos âmbitos pessoal, cognoscitivo e espacial8, que lhe confeririam o grau de certeza para efeitos de aquisição no processo e do regime da dispensabilidade da prova.

Razão pela qual, nesta perspectiva, não merece censura o acórdão recorrido e falecem as Conclusões V., VI., X. a XII. e XXVIII a XXXI.

III) DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em julgar não tomar parcialmente conhecimento do objecto do recurso e, na parte admitida para conhecimento, improcedente a revista.

Custas pela Recorrente.

STJ/Lisboa, 17/12/2024

Ricardo Costa (Relator)

Maria Teresa Albuquerque

Cristina Coelho

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

_____________________________________________

1. V., neste sentido, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 662º”, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 627º a 877º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, págs. 170-172.↩︎

2. Sobre o conceito, v. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 412º”, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, págs. 209 e ss.↩︎

3. É a corrente do STJ que acolhemos: v., mais recentemente, Acs. de 10/9/2019, processo n.º 20714/13 (com jurisprudência anterior de suporte, destacada na nt. 4), e 6/12/2022, processo n.º 2839/19, in www.dgsi.pt. Na doutrina: JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 412º”, ob. cit., pág. 211.↩︎

4. ABRANTES GERALDES, “Artigo 635º”, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, pág. 117.↩︎

5. V., nesta perspectiva de sindicação de erro de direito quanto a direito probatório, a aceitação e incorporação decisória nos Acs. do STJ de 1/4/2014, processo n.º 330/09 (“Não carecendo de alegação nem de prova, podem e devem ser conhecidos, mesmo que a parte a quem aproveitam os não tenha invocado. E, como tal, podem e devem ser conhecidos pelo Tribunal da Relação, ainda que não considerados na 1.ª instância ou nem tenham sido alegados por quem recorre. Esta natureza dos factos leva mesmo a que, apesar de, por regra, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhecer de direito, os possa sindicar (…).”), in www.dgsi.pt; 29/6/2017, processo n.º 4503/14 (“determinar se certo facto é ou não notório compete às instâncias, ainda que o Supremo Tribunal de Justiça, quanto à sua fixação, possa apreciar a legalidade do ato, nomeadamente nos termos do n.º 3 do art. 674.º do CPC”), in www.dgsi.pt; 23/1/2020, processo n.º 12/15 (“Admitindo que o Supremo Tribunal de Justiça possa, no plano dos factos, e não obstante as limitações já acima referidas, sindicar a decisão de facto das instâncias quanto à desconsideração de factos notórios (…)”), in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:12.15.0TNLSB.L1.S1/; e de 10/1/2023, processo n.º 2834/18, in www.dgsi.pt.↩︎

6. Neste sentido: JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMINDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 662º”, pág. 177 (na “análise crítica das provas” e na “especificação dos fundamentos decisivos para a formação da convicção do julgador sobre a matéria de facto”), “Artigo 674º”, pág. 232, ob. cit.↩︎

7. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 412º”, ob. cit., págs. 209-210.↩︎

8. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, “Artigo 412º”, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1º a 702º, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 485.↩︎