USUCAPIÃO
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
BOA -FÉ
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
QUESTÃO NOVA
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
FACTOS IRRELEVANTES
Sumário


I. A revista, como recurso ordinário, não pode incidir sobre questões novas, que não tenham sido colocadas ao tribunal recorrido e por este resolvidas, uma vez excluídas da apelação matérias do objecto delimitado pela apelação em 2.ª instância (nomeadamente por não aproveitamento processual do art. 636º, 1, do CPC), pois o recurso destina-se à reponderação da decisão sobre matéria oportunamente suscitada, em face dos elementos apreciados pelo tribunal recorrido e de acordo com o âmbito de cognição delimitado pelo conteúdo do acto recorrido (arts. 635º, 2, 3 e 5, 671º, 1, 608º, 2, 637º, 2, 1.ª parte, do CPC) sem que tal conteúdo seja integrado por declarações de voto que se opõem à fundamentação e dispositivo decisório do acórdão definitivo e proferido nos termos do art. 663º, 1, do CPC.
II. O regime do art. 662º do CPC consagra o duplo grau de jurisdição no âmbito da motivação e do julgamento da matéria de facto, estabilizando os poderes da Relação enquanto verdadeiro tribunal de instância e proporcionando a reapreciação do juízo decisório da 1.ª instância para um efectivo e próprio apuramento da verdade material e subsequente decisão de mérito; sempre com a mesma amplitude de poderes de julgamento que se atribui à 1.ª instância (remissão feita pelo art. 663º, 2, para o art. 607º, que abrange os seus n.os 4 e 5) e, destarte, sem qualquer subalternização – inerente a uma alegada relação hierárquica entre instâncias de supra e infra-ordenação no julgamento – da 2.ª instância ao decidido pela 1.ª instância quanto ao controlo sobre uma decisão relativa ao julgamento de uma determinada matéria de facto, precipitado numa convicção verdadeira e justificada, dialecticamente construída e, acima de tudo, independente da convicção de 1.ª instância.
III. O regime do abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, sancionado pelo art. 334º do CCiv. e plasmando excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé, aplica-se a situações de omissão prolongada do exercicio de um direito, em circunstâncias tais que suscitam a confiança e expectativa legítimas e fundadas sobre a inalterabilidade do reconhecimento jurídico de uma certa situação factual-concreta, porque estabilizada na relação entre as partes, e de que o direito em sentido antagónico não virá a ser exercido, uma vez imputável ao titular do direito essa consolidação da “fé”; a consequência é a perda do direito por ilicitamente exercido e a insusceptibilidade de ser sufragado em juízo.

Texto Integral


Processo n.º 4810/20.4T8LSB.L1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, 2.ª Secção


Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO

1. AA, depois sendo BB habilitado por óbito, propôs acção declarativa de reconhecimento e condenação contra CC e DD, casados, pedindo que sejam condenados a reconhecer o direito de utilização exclusiva da área de 94,87 m2 do logradouro localizado a tardoz do prédio sito na Rua ..., em ..., com início no tardoz da fracção B (rés-do-chão direito), alegando ser proprietária dessa fracção B do prédio sito na Rua ..., sendo que da escritura de constituição da propriedade horizontal e da caderneta predial urbana da fracção resulta que a mesma tem o uso exclusivo de um logradouro com 94,87m2, encontrando-se, porém, tal espaço a ser utilizado pelos Réus, proprietários de outras fracções do prédio (rés-do- chão esquerdo, 1.º e 2.º andares esquerdos), impedindo o seu uso pela Autora, ou seja, de “usufruir de um direito legítimo e devidamente protegido por lei”, “apossando-se indevidamente da área que lhe é atribuída pela escritura de propriedade horizontal e que, de outra forma, pemitiria à Autora usufruir da área comum de utilização exclusiva da sua fracção”.

Os Réus apresentaram Contestação e pugnaram pela sua improcedência; alegaram ter comprado a fracção D do referido em prédio em 1996, a qual lhes foi vendida com a utilização do logradouro, que usam desde então, sendo assim já pelos anteriores proprietários, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição; adquiriram por isso o direito de utilização sobre o mesmo por usucapião face à inversão do título da posse; defendem que a Autora actua em abuso de direito, uma vez que durante anos nunca se opôs à utilização do logradouro pelos Réus.

A Autora atravessou Resposta, sustentando que o direito de uso invocado pelos Réus não é susceptível de aquisição por usucapião e que nunca residiu no imóvel, sendo apenas arrendatária, pelo que desconhecia a utilização que era dada ao logradouro.

2. Tramitada a instância com articulados das partes, proferido despacho saneador (com fixação do valor da causa em € 34.653,33, transitado em julgado, e do objecto do litígio) e realizada audiência final de julgamento, o Juiz ... do Juízo Local Cível de ... proferiu sentença, na qual, cumprindo apreciar “se deve ser reconhecido que a fracção B tem o direito de uso exclusivo de uma parcela de 94,87 m2 do logradouro, localizado imediatamente a tardoz da fracção, nomeadamente verificando se os réus adquiriram o direito de uso exclusivo sobre parte dessa área por usucapião ou se a pretensão do autor não deve ser reconhecida por actuar em abuso de direito”, se julgou improcedente a pretensão dos Réus quanto à aquisição do direito de utilização exclusiva por usucapião e se julgou procedente a pretensão dos Réus quanto à actuação dos Autores em abuso de direito a exigirem dos Réus o reconhecimento do direito a uma utilização diversa do logradouro, concluindo, no dispositivo, pela improcedência total da acção e consequente absolvição dos Réus do pedido formulado pelo Autor.

3. Inconformado, o Autor habilitado interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a ser proferido acórdão, no qual, identificadas as questões recursivas – a saber: “a) A matéria de facto deve ser alterada nalguns pontos? b) O direito subjacente ao pedido formulado nesta ação está a ser atuado de modo abusivo?” –, foi julgada improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto provada nos pontos 15., 22., 23., 25 e 30, assim como sobre a matéria de facto não provada nos pontos 1. a 4. (Conclusões 35. a 57.), e, quanto ao mérito, julgou não ser de aceitar a excepção de abuso de direito, concluindo em julgar procedente a apelação e, por isso, “condenando os réus a reconhecer o direito de utilização exclusiva da área de 94,87 m2 do logradouro localizado a tardoz do prédio sito na Rua ..., em ..., com início a tardoz da fração B do autor”.

4. Agora sem se resignarem, os Réus interpuseram recurso de revista para o STJ, visando revogar o acórdão recorrido e repristinar a sentença proferida em 1.ª instância.

O Autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência de todas as questões recursivas levantadas pelos Recorrentes e pela confirmação do acórdão recorrido.

5. Subidos os autos, foi proferido despacho no âmbito de aplicação do art. 655º, 1, do CPC, ao abrigo do contraditório sobre a susceptibilidade de não conhecimento parcial do objecto do recurso.

Os Réus e Recorrentes responderam: entendem que a questão reapreciada do abuso de direito implica o conhecimento de todas as demais questões suscitadas nas suas alegações.

O Autor e Recorrido entende que não devem ser conhecidas em revistas as novas questões que extravasam a questão da existência ou não de abuso de direito.




Colhidos os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir.

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objecto do recurso

1.1. Estão preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade do recurso ordinário (arts. 629º, 1, 631º, 1, CPC).

1.2. O acórdão recorrido reapreciou somente em sede de aplicação do direito a interpretação e a aplicação do art. 334º do CCiv. ao exercício do direito do Autor invocado na presente acção, na modalidade de “venire contra factum proprium”, invocada como excepção peremptória pelos Réus na sua Contestação, atentas as respostas às Conclusões 1. a 34. e 57. da Apelação, como, aliás, assume aquando da delimitação do objecto do recurso: “O direito subjacente ao pedido formulado nesta ação está a ser atuado de modo abusivo?”

Não houve ampliação do objecto do recurso por parte dos Réus Apelados e Recorridos nos termos do art. 636º, 1, do CPC (cfr., em esp., Conclusões XXI. a XXXVI.); o que foi reconhecido pelo acórdão recorrido aquando da decisão sobre a impugnação da matéria de facto:

“Sendo o direito discutido um direito de uso de uma área comum, a sua alteração diria respeito a todos os condóminos. Por outro lado, tratando-se de um direito de uso, poderia esbarrar na insuscetibilidade de aquisição por usucapião estatuída no artigo 1293.º, al. b), do CC. Usucapião não se verificou, conforme julgado, e bem. Tão-pouco os recorridos pediram a ampliação do objeto do recurso.”

1.3. Os Réus e aqui Recorrentes vieram em revista alegar e pedir a sindicação de várias questões, constantes das Conclusões X. a LVIII., demandantes, em especial, do regime jurídico previsto nos arts. 247º, 227º, 1252º, 2, e 1256º do CCiv., tendente a saber ser “a utilização que as fracções A e D fazem dos respectivos logradouros faz parte integrante do logradouro da frcção B, da propriedade dos Recorridos” (Conclusão X.).

Trata-se de questões de direito novas, enquanto assentes em regimes jurídicos que, como tal, não foram matérias apreciadas ou reapreciadas pelo acórdão recorrido (sem prejuízo de em parte serem referidas a latere na reapreciação, em conexão instrumental, da decisão sobre a matéria de facto, em bloco decisório alheiro à decisão do mérito da questão submetida a juízo).

Ora.

1.4. O objecto dos recursos não pode integrar questões que não tenham sido colocadas ao tribunal recorrido e por este resolvidas, destinadas a serem objecto de reponderação, em face dos elementos apreciados pelo tribunal recorrido e de acordo com o âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrrido1 – a saber, questão da excepção de abuso de direito, como tal deduzida na contestação dos Réus, nos termos dos arts. 573º e 576º, 3, do CPC.

Como, por ex., foi sublinhado no Ac. do STJ de 19/1/20232, “os recursos visam a reanálise de decisões adoptadas à luz da situação trazida pelas partes – ou de conhecimento oficioso – no momento em que foram proferidas, de acordo com a livre disponibilidade da defesa e o princípio da concentração da defesa na contestação. Não sendo este o caso, não pode a questão ser objecto do recurso, não tendo o tribunal – nem podendo – dela conhecer”. Ou seja, “na fase de recurso, as partes e o tribunal superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objeto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. A demanda do tribunal superior está circunscrita a questões que já tenham sido submetidas ao tribunal de categoria inferior”, visando “obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre”, sob pena de, “por se tratar de questão nova, nunca submetida ao conhecimento do tribunal a quo, dela não se toma conhecimento” (agora o Ac. do STJ de 15/10/20243).

Em suma: as questões novas não podem ser apreciadas no recurso, “quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos”4, uma vez que o objecto cognitivo da revista é definido na fundamentação e no dispositivo decisório do acórdão proferido pela Relação (enquanto conteúdo do próprio acórdão5).

No caso, tal âmbito reconduz-se à questão delimitada pelo acórdão recorrido da excepção peremptória de “abuso de direito” (págs. 22 a 24 do acórdão recorrido), em resposta às Conclusões pertinentes da Apelação (1. a 34. e 58.), de acordo com o previsto, em geral, no art. 635º, 2, 3 e 5, e, em particular para a revista, no art. 671º, 1, do CPC, em conjugação com o princípio geral de cognição contemplado no art. 608º, 2, e o especialmente previsto no art. 637º, 2, 1.ª parte, sempre do CPC, sob pena de não conhecimento do objecto da revista incidente sobre o segmento do acórdão recorrido que assim dispôs: “não se alcança que o exercício do direito do autor exceda, por qualquer forma, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

Razão pela qual falece o conhecimento do objecto do recurso nas Conclusões referidas sob 1.3., o que se decidirá, sendo tal conhecimento admitido para as Conclusões III. a IX. e LIX. a LXXVI.

2. Materialidade factual apurada

2.1. Factos provados

1. Pela Ap. ...4 de 1991.03.06, encontra-se inscrita a aquisição da propriedade a favor de EE, por herança, da fração B, correspondente ao rés-do-chão direito, do imóvel sito na Rua ..., em ..., inscrito na matriz predial urbana de ..., freguesia do ..., sob o artigo ...24 e registado na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...20.

2. Pela Ap. ...9 de 1996.01.30 encontra-se inscrita a aquisição da propriedade a favor dos Réus da fração D, correspondente ao 1º andar esquerdo do referido imóvel.

3. Os antecessores haviam adquirido a respetiva fração D em 1992.

4. Pela Ap. ...7 de 2001.02.12 encontra-se inscrita a aquisição da propriedade a favor dos Réus da fração F, correspondente ao 2.º andar esquerdo do referido imóvel.

5. Pela Ap. ...52 de 2011.07.29 encontra-se inscrita a aquisição da propriedade a favor dos Réus da fração A, correspondente ao rés-do-chão esquerdo.

6. Os antecessores haviam adquirido a respetiva fração A no dia 16 de Junho de 1995.

7. Os Réus celebraram escritura de compra e venda da fração D, a 22 de Março de 1996, ali constando que foi exibida fotocópia em substituição da caderneta predial urbana, emitida a 23 de Novembro de 1995 pela Repartição de Finanças do ...º Bairro Fiscal.

8. Os Réus celebraram escritura de compra e venda da fração F, a 3 de Abril de 2001, ali constando que foi apresentada a Caderneta Predial emitida a 4 de Dezembro de 2000 pelo quinto serviço de Finanças.

9. Em 29 de Julho de 2011, em sede de processo de insolvência, os Réus adquiriram a fração A do referido prédio, a G..., SA., constando do título de transmissão a referência à apresentação da Caderneta Predial.

10. Da Caderneta predial de todas as frações consta, na descrição do prédio, a existência de logradouro dividido em 3 zonas, sendo uma de uso exclusivo da fração A com 21 m2, outra de uso exclusivo da fração B, com 94,87 m2 e a terceira de uso exclusivo da fração D, com área de 183,13 m2.

11. A propriedade horizontal do prédio sito na Rua ... foi constituída por escritura de 2 de Outubro de 1980, não tendo sofrido qualquer alteração até à presente data.

12. Da escritura de constituição da propriedade horizontal consta, no número Segundo, que “À tardoz do edifício existe o logradouro dividido em três zonas por muretes, sendo uma do exclusivo uso da fração “A”, outra do uso exclusivo da fração “B”, a terceira do uso exclusivo da fração D e a quarta do uso exclusivo da fração “F”, digo fração “D”.

13. E do número Quarto que “As zonas do logradouro têm a seguinte área por ordem que estão mencionadas no número dois: vinte e um metros quadrados, noventa e quatro metros e oitenta sete decímetros quadrados e cento e oitenta e três metros e treze decímetros quadrados”.

14. De acordo com a escritura de constituição da propriedade horizontal, o logradouro é de uso exclusivo das frações “A”, “B” e “D” e dividido da seguinte forma:

- Fração “A”, com 21 m2,

- Fração B, com 94.87 m2,

- Fração D, com 183,13 m2. (Modificado pela Relação, identificação de lapso na área da fracção D.: “A área correta é «183,13 m2», conforme factos 10 e 13 (tendo-se confrontado também os documentos indicados nos mesmos), pelo que se retificou o lapso.”)

15. Até data não concretamente apurada, mas anterior a 1996, existiam 3 muros a dividir o logradouro: um murete que dividia o pátio subsequente à fração B do restante espaço do logradouro, e que ainda se encontra edificado; um muro que dividia o logradouro numa zona central, que, em data não concretamente apurada, mas anterior a 1996, foi destruído; um muro que delimita o logradouro que é utilizado pela fração A.

16. No final do logradouro e em data anterior à aquisição das frações pelos réus foram construídos diversos anexos que ocupam toda a sua largura.

17. Por carta datada de 13 de Setembro de 2018, EE, através do seu mandatário, solicitou comparência da ré para tratar de assunto relacionado com o logradouro existente no imóvel que habita.

18. Por carta datada de 01 de Outubro de 2018, a ré respondeu invocando:

“(…) gostaria de deixar indicação de que as áreas e os muretes existentes no local são as corretas e conhecidas da Sra. D. EE há longuíssimo tempo.

Aproveito para renovar a informação que transmiti anteriormente da existência de erros nalguns documentos no que se refere às diferentes áreas do logradouro, que poderei confirmar a partir de documentos mais antigos nos próximos dias.

Parece-me, assim, esta a via mais adequada (… e não tanto a da realização da construção que sugere para o dia 04 de Outubro, com a qual naturalmente não posso concordar”.

19. Por e-mail de 06 de Dezembro de 2018, o Il. Mandatário de EE, insistiu no sentido de que: “a fração da nossa constituinte tem efetivamente logradouro com a área de 94,8m2, não existindo qualquer lapso na PH.

Assim, solicito a sua presença (…) a fim de definir o calendário para levantamento de áreas e reposição de muretes”.

20. Tendo a ré respondido, por e-mail da mesma data, mantendo que: “A situação por mim descrita é a correta e mantém-se estabilizada há longos anos, razão pela qual entendo não haver lugar à reposição de quaisquer muretes ou a qualquer atuação que a ponha em causa”.

21. Pelo menos desde 1996, ano em que os réus adquiriram a fração D, as áreas dos logradouros não se encontram distribuídas e delimitadas no terreno nos mesmos termos que constam da escritura de propriedade horizontal, mas sim de acordo com a planta junta como Doc. n.º 1 da contestação.

22. À data de aquisição do imóvel pelos réus existiam e continuam a existir dois muretes, que dividem as áreas do logradouro.

23. Anteriormente havia um terceiro murete, que se situava na zona central o logradouro, e que foi destruído antes da aquisição pelos réus.

24. As áreas do logradouro tal como atualmente se encontram delineadas e são utilizadas foram decisivas para a formação da vontade dos Réus em adquirir, atentas as suas necessidades familiares.

25. Desde pelo menos 1996, a área do logradouro utilizado pela fração B corresponde a cerca de 12 m2 (excluindo os muros), a área do logradouro utilizado pela fração A corresponde a cerca de 49 m2 (incluindo os anexos), a área do logradouro utilizado pela fração D corresponde a cerca de 283,18 m2 (incluindo os anexos), encontrando-se as diferentes áreas delimitadas por muretes.

26. O logradouro de uso exclusivo da fração D confina com A e B, impedindo que estes confinem entre si.

27. EE, por virtude da morte da sua mãe AA, anterior proprietária de todo o prédio, aquando ainda em propriedade vertical, e responsável pela constituição da propriedade horizontal, herdou várias frações do imóvel, que posteriormente veio a vender.

28. Tendo ficado com apenas uma das frações, a Fração B, utilizada como loja e que atualmente se encontra ocupada pelo seu mandatário.

29. EE não residia no imóvel objeto do presente litígio, sempre o tendo tido arrendado.

30. A utilização dos logradouros era do conhecimento de EE, bem como dos demais condóminos.

2.2. Factos não provados

i. A área de utilização exclusiva da fração “B”, inicialmente dividida entre pátio e horta com portão, viria a ser reduzida ao pátio através do encerramento do referido portão pelo lado da horta.

ii. E, após interpelação da Autora para que os Réus restituíssem a utilização, foi por estes vedado definitivamente o acesso.

iii. Uma vez que a autora não residia no imóvel, não lhe foi possível controlar a real utilização do espaço por parte dos vários condóminos.

iv. Foi na visita que realizou ao imóvel no momento da saída do anterior inquilino que a Autora se apercebeu da utilização que estava a ser feita da sua área de uso exclusivo.

3. Sindicação da decisão sobre a matéria de facto

Nas Conclusões III. a IX. da revista, o Recorrente refere-se à actuação da Relação no âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto como sendo violadora dos princípios da imediação e da oralidade, reservados em exclusivo à actuação da 1.ª instância na produção de prova e consequente averiguação e fixação da matéria de facto.

Antes de mais, assinale-se que o acórdão recorrido, confrontado com a impugnação do Autor Apelante, dirigida aos factos provados 15., 22., 23., 25. e 30., assim como a toda a factualidade não provada, pugnando por um outro elenco de factos provados, foi rejeitada, acima de tudo pela razão simples e linear de a sua alteração não influir na resolução do litígio.

Em rigor, portanto, não tem qualquer cabimento lógico e fundado o que consta das conclusões III. a IX., que teria como pressuposto que a Relação tinha apreciado a impugnação e alterado, modificado ou aditado o elenco factual que os autos traziam do 1.º grau – não foi de todo o que aconteceu.

Seja como for, a decisão censurada pelo Recorrente é uma decisão tomada com toda a legitimidade, no exercício de poderes próprios da Relação, ao abrigo do cosmos aplicativo do art. 662 do CPC, mesmo que seja para confirmar e nada alterar.

Com efeito.

O art. 662º constitui a norma central de atribuição de autonomia decisória à Relação em sede de reapreciação da matéria de facto, traduzida numa convicção própria de análise dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se encontrem disponíveis no processo.

Começa tal atribuição por estar plasmada na prescrição-matriz da competência de reavaliação factual do n.º 1, sem dependência de provocação pelas partes em sede de recurso para esse efeito:

«A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»

Depois, o n.º 2 do art. 662º, 2, do CPC estabelece verdadeiros poderes-deveres funcionais e qualificados (a lei diz «deve ainda, mesmo que oficiosamente») sempre que, aquando da reapreciação da prova sujeita à livre apreciação, não resulte uma convicção segura e fundamentada sobre os factos, uma vez confrontada com a motivação e a decisão reflectidas na 1.ª instância.

Para isso, tais poderes-deveres não dependem de iniciativa das partes (nem são direito potestativo que lhes assista)6. São (ou podem-devem ser) exercidos oficiosamente e aspiram à formulação de um resultado judicativo próprio, destinado a “superar dúvidas fundadas sobre o alcance da prova já realizada”7. Estamos verdadeiramente perante deveres processuais de carácter vinculado, impostos para “proceder a um (verdadeiro) novo julgamento da matéria de facto, em ordem à formação da sua própria convicção, designadamente verificando se a convicção expressa pelo tribunal a quo possuía razoáveis tradução e suporte no material fáctico emergente da gravação da prova (em conjugação com os mais elementos probatórios constantes do processo)”8.

Esta é uma intervenção que está de acordo com uma filosofia clara do CPC de 2013, em que, sem abdicar do princípio do dispositivo, “o tribunal também está comprometido com a verdade dos factos e daí que, por força do princípio do inquisitório, alguns desses factos possam vir a ser provados por mor da sua intervenção”, no contexto de um processo “trialógico”, “um processo de partes perante um juiz activo”9.

Assim sendo.

Precisemos que o art. 662º do CPC, consagrando o duplo grau de jurisdição no âmbito da motivação e do julgamento da matéria de facto, estabiliza os poderes da Relação enquanto verdadeiro tribunal de instância, proporcionando a reapreciação do juízo decisório da 1.ª instância para um efectivo e próprio apuramento da verdade material e subsequente decisão de mérito. Por isso a doutrina tem acentuado que, nesse segundo grau de jurisdição, se opera um verdadeiro recurso de reponderação ou de reexame, sempre que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da matéria de facto em causa (em especial os depoimentos gravados), que conduzirá a uma decisão de substituição, uma vez decidido que o novo julgamento feito modifica ou altera ou adita a decisão recorrida.10

Sempre – nunca é demais sublinhar – com a mesma amplitude de poderes de julgamento que se atribui à 1.ª instância (é perfeitamente elucidativa a aludida remissão feita pelo art. 663º, 2, para o art. 607º, que abrange os seus n.os 4 e 5) e, destarte, sem qualquer subalternização – inerente a uma alegada relação hierárquica entre instâncias de supra e infra-ordenação no julgamento – da 2.ª instância ao decidido pela 1.ª instância quanto ao controlo sobre uma decisão relativa ao julgamento de uma determinada matéria de facto, precipitado numa convicção verdadeira e justificada, dialecticamente construída e, acima de tudo, independente da convicção de 1.ª instância11.

Como ainda recentemente se enfatizou, exemplarmente, no Ac. do STJ de 26/11/2024, com este mesmo Colectivo nesta Secção (sendo Relatora a aqui Conselheira 1.ª Adjunta), a propósito da inviabilidade de um “segundo julgamento” da Relação, que se limitaria a rectificar erros patentes da 1.ª instância:

“Através do disposto no art. 662º do CPC, foi concedida (pelo NCPC) ao Tribunal da Relação autonomia decisória em sede de reapreciação e modificabilidade da decisão da matéria de facto.”;

“(…) no âmbito da apreciação da decisão de facto impugnada, incumbe ao Tribunal da Relação formar o seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos, e das que lhe for ainda lícito renovar ou produzir (nos termos do disposto no art. 662º, nº 2, als. a) e b), do CPC), à luz do critério da sua livre e prudente convicção (nos termos do art. 607º, nº 5, ex vi do disposto no art. 663º, nº 2, do CPC), tendo um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa (como decorre do nº 1 do art. 662º do CPC), sem estar adstrito aos meios de prova convocados pelas partes ou indicados pelo tribunal de 1ª instância, e sem se limitar à verificação da existência de erro manifesto na apreciação da prova.”12.

Por isso, não tem qualquer viabilidade a pretensão dos Recorrentes, que desde logo não demonstram lógica na impugnação em face da confirmação em 2.º grau da materialidade provada e não provada –, nem a actuação da Relação – fazendo em juízo próprio a confirmação do juízo de facto da 1.ª instância – configura qualquer vício que possa ser imputado com sucesso ao acórdão recorrido.

Naufraga, assim, o pretendido nas Conclusões III. a IX.

4. Abuso de direito

Quanto ao mérito do decidido, os Recorrentes insurgem-se contra o acórdão recorrido pela improcedência da excepção de abuso do direito invocado na acção à luz do art. 334º do CCiv.

Batem-se, por isso, pela recuperação do decidido pela 1.ª instância.

Que, nesta matéria, fundamentou assim:

“(…) os réus invocam que a autora, ao propor a presente acção e ao reivindicar a afectação da parcela do logradouro com aquela área e localização, actua em abuso de direito, uma vez que há mais de 20 anos que a utilização é realizada noutros termos, o que é do seu conhecimento e ao que nunca se opôs.

Estabelece o artigo 334º do CC que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

O abuso de direito pressupõe a existência de um direito radicado na esfera do titular, direito que, contudo, é exercido por forma ilegítima por exceder manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico.

Sendo que, como esclarecem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 298), a concepção adotada pela lei é objetiva, na medida em que não é necessária a consciência de que se excederam os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. É suficiente que esses limites sejam ultrapassados.

Conforme se conclui no Acórdão do STJ de 02.06.2016 (p. 1453/13.2TBCTB.C1.S1, in www.dgsi.pt): “O abuso de direito desenhado no art. 334º do CC traduz uma válvula de escape do sistema que pode ser invocada e aplicada para evitar, limitar ou sancionar os efeitos decorrentes da aplicação de alguma norma de direito positivo que confira um direito subjectivo sem ponderação de quaisquer outras circunstâncias.

Para que não se corra o risco de recurso abusivo ao instituto do abuso de direito, a sua aplicação pelos Tribunais obedece a requisitos especialmente rigorosos, em que designadamente se revele uma actuação do sujeito que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé.”

Exige-se que aquele contra quem é invocado o Abuso de Direito tenha criado uma situação objetiva de confiança, isto é, que haja adoptado um comportamento que “objectivamente considerado, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará coerentemente, de determinada maneira (…). Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação da confiança, é preciso que ela directa ou indirectamente revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro” (cfr. Baptista Machado, in “Tutela da Confiança e Venire contra Factum Proprium”, RLJ, ano 118º, págs. 171, 172.)

De entre as modalidades do abuso de direito sobressai o venire contra factum proprium, que pressupõe duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (factum proprium) contrariada pela segunda, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé.

Traduz-se em situações em que uma pessoa, por um certo período de tempo, se comporta de determinada maneira, gerando expectativas na outra de que o seu comportamento permanecerá inalterado.

Neste sentido, na modalidade “venire contra factum proprium”, a conduta do agente acaba por contrariar diretamente um comportamento antes exercido ou presumido pelo mesmo.

Trata-se, em suma, de tutelar a confiança gerada numa das partes pelo comportamento anterior da outra.

No caso, muito embora resulte do título constitutivo da propriedade horizontal uma diversa composição das parcelas do logradouro, há mais de 20 anos que a sua utilização é feita nos termos invocados pelos réus.

Ou seja, a fracção B tem apenas a utilização do pátio com cerca de 12 m2, a fracção D tem a utilização do logradouro e anexos entre este murete e um segundo muro que divide o logradouro de forma longitudinal, e a fracção A tem a utilização da parcela que vai desde este muro até ao limite do prédio.

E esta utilização é feita pelos réus, como já era feita pelos anteriores proprietários das fracções A e D e arrendatários da fracção B. E é feita à vista de toda a gente, sem qualquer oposição e necessariamente com conhecimento da primitiva proprietária, AA, da primitiva autora, EE, sua filha, e do autor.

Veja-se que foi AA, anterior proprietária de todo o imóvel, que arrendou a fracção B, apenas com a utilização do pátio e que vendeu a fracção D aos proprietários que antecederam os réus, e incluiu em tal venda a utilização do logradouro nos exactos termos em que se encontra actualmente a ser utilizado.

E que foi EE, primitiva autora, quem, sucedendo à mãe, continuou a arrendar a fracção B, sempre apenas com a utilização do pátio e não com a utilização de qualquer outra parcela do logradouro.

Não se diga que, porque não residia no imóvel e se limitava a arrendá-lo não tinha qualquer conhecimento da situação, já que os contratos de arrendamento se foram sucedendo ao longo do tempo[,] o que exigia a intervenção da proprietária.

Assim, conclui-se que o autor (e anteriormente a autora EE e já a sua mãe) tinham conhecimento da utilização dada ao logradouro e até ao envio da carta de 13 de Setembro de 2018 (facto n.º 17) nunca se opuseram à mesma, criando nos réus não só a expectativa de que não exerceriam qualquer direito em oposição a tal utilização, como a confiança de que tal utilização era regular e correspondia ao acordado.

Entende-se ainda que a esta conclusão não obsta o facto de nas cadernetas prediais das fracções propriedade dos réus constar a menção às áreas de cada parcela do logradouro, o que lhes permitiria ter conhecimento das mesmas à data da aquisição das fracções.

Por um lado, não foi feita qualquer prova de que os réus tivessem efectivamente consultado as cadernetas prediais aquando da aquisição das fracções ou tivesse relevado tal informação delas constante.

Por outro, a informação constante das cadernetas baseia-se numa participação da parte interessada, normalmente nem sequer sujeita a controlo da respetiva Repartição de Finanças. E, as certidões das matrizes prediais emitidas pelas Repartições de Finanças, apenas constituem presunção para efeitos fiscais, pelo que o facto da descrição do logradouro constar das cadernetas não só não permite presumir o seu conhecimento pelos réus; como não permite presumir a valorização de tal informação pelos réus e, consequentemente, infirmar a sua boa-fé na utilização do logradouro.

Por tudo isto, considera-se que o autor ao exigir aos réus, passados mais de 20 anos, que reconheçam o direito a uma utilização diversa do logradouro, está a agir em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, uma vez que está a exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé.”

Pois bem.

O art. 682º, 1, do CPC manda ao tribunal de revista aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado «aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido».

Esta é a função aqui e agora exercida.

Ora.

Julgamos que a factualidade considerada pela decisão de 1.º grau é suficientemente clarividente e persuasiva para ser imputada à parte demandante na acção uma actuação jurídico-processual e material contraditória e, como tal, abusiva (como venire contra factum proprium):

i. ao longo de uma margem de tempo suficientemente longa foram criadas condições objectivas para gerar uma “autovinculação” a comportamento futuro e não contraditório13 sobre a configuração da situação do logradouro em causa, na relação da Autora com a fracção e logradouro dos Réus e Recorrentes, e uma confiança e expectativa legítimas e fundadas na contraparte da actuação da Autora sobre a inalterabilidade do reconhecimento jurídico dessa situação factual-concreta, porque estabilizada na relação entre as partes (correspondente à delimitação física dos logradouros através de “muretes”, tal como constante da descrição em planta constante dos autos; Doc. 1. da Contestação; facto provado 21.);

ii. não tendo sido contrariada durante um tão considerável e significativo lapso temporal a confiança legítima de que já não seria exercido um direito de sentido antagónico ao estabilizado e convictamente acreditado pelos Réus e Recorrentes, tal confiança faz do exercício desse direito (cfr. factos provados 17. a 20.) uma actuação manifestamente desleal, intolerável, de tal sorte inadmissível e a precludir juridicamente por contrariedade com conduta anterior (art. 334º do CCiv., no abrigo do venire contra factum proprium)14.

Mais do que bloquear subjectivamente a pretensão do agente vista como abusiva por actuação respeitante a uma determinada “fé” e, depois, “contraditória”15, impõe-se dar objectivamente um passo mais no tratamento jurídico da confiança legítima. Como há muito enfatizou ORLANDO DE CARVALHO, a correcção que o “abuso de direito” permite não é tanto uma “correcção” normativa do sistema, antes “uma “correcção” pelo sistema. Não é uma entorse ou um desvio da lei – é a voluntas da lei levada, em suma, até ao fim”, consequência de cingir os direitos subjectivos “à zona em que o poder de autodeterminação da pessoa é chamado a intervir ou a ser um poder jurisgénico – ou seja, a da gestão da sua esfera de interesses, não a de negação de interesses ou a de gratuitas agressões16.

E, por isso, a falta e o não reconhecimento do direito, como ilegitimidade de um exercício que com ele se titula, em consequência da sindicação limite da ilicitude17.

Não tanto, no caso em concreto, pela censura – que não deixará de ser feita – à inércia da Autora em fazer reconhecer o que constava da escritura da constituição da propriedade horizontal, das certidões permanentes do registo predial e das cadernetas prediais urbanas das fracções do prédio em tal regime de propriedade (cfr. factos provados 10., 12. e 14.; docs. 1 a 8, 12, 19, 20 e 21 da petição inicial) e excluir o uso indevido pelos Réus de área não pertencente à fracção dos Réus, antes pelo primado da confiança incutida e preservada em que tal uso fáctico e não coincidente com a situação jurídico-registal e fiscal pelos Réus se estabilizara juridicamente e sem oposição – cfr. factos provados 18., 20., 21., 24., 26. e 30. Destruir esta confiança e expectativa juridicamente fundada em conduta propícia a estabilizar esse estado com tutela jurídica é que constitui um excesso dos «limites impostos pela boa fé» à luz do art. 334º do CCiv.: há que considerar como procedente uma “contradição inadmissível em boa fé entre uma omissão prolongada do exercicio do direito, em circunstâncias tais que suscitam a expectativa de que ele não virá a ser exercido. Uma vez consolidada a confiança e a expectativa – a – e desde que essa consolidação da confiança seja imputável ao titular do direito, a brusca inflexão de atitude é contrária à boa fé”18.

É o caso do direito da parte demandante nesta acção, vista a lógica dos factos provados 1. a 3., 7., 10., 12., 14. (“De acordo com a escritura de constituição da propriedade horizontal, o logradouro é de uso exclusivo das frações “A”, “B” e “D” e dividido da seguinte forma: - Fração “A”, com 21 m2, - Fração B, com 94.87 m2,- Fração D, com 183,13 m2.”), 15. (“Até data não concretamente apurada, mas anterior a 1996, existiam 3 muros a dividir o logradouro: um murete que dividia o pátio subsequente à fração B do restante espaço do logradouro, e que ainda se encontra edificado; um muro que dividia o logradouro numa zona central, que, em data não concretamente apurada, mas anterior a 1996, foi destruído; um muro que delimita o logradouro que é utilizado pela fração A.”), 16., 18., 19., 20., 21. (“Pelo menos desde 1996, ano em que os réus adquiriram a fração D, as áreas dos logradouros não se encontram distribuídas e delimitadas no terreno nos mesmos termos que constam da escritura de propriedade horizontal, mas sim de acordo com a planta junta como Doc. n.º 1 da contestação.”), 22. (“À data de aquisição do imóvel pelos réus existiam e continuam a existir dois muretes, que dividem as áreas do logradouro.”), 23., 24. (“As áreas do logradouro tal como atualmente se encontram delineadas e são utilizadas foram decisivas para a formação da vontade dos Réus em adquirir, atentas as suas necessidades familiares.”), 25. (“Desde pelo menos 1996, a área do logradouro utilizado pela fração B corresponde a cerca de 12 m2 (excluindo os muros), a área do logradouro utilizado pela fração A corresponde a cerca de 49 m2 (incluindo os anexos), a área do logradouro utilizado pela fração D corresponde a cerca de 283,18 m2 (incluindo os anexos), encontrando-se as diferentes áreas delimitadas por muretes.”) e 30. (“A utilização dos logradouros era do conhecimento de EE, bem como dos demais condóminos.”) – por isso, direito a precludir por ilicitamente exercido e insusceptível de ser sufragado em juízo, numa situação que poderemos mesmo apelidar de tipológica para a proibição de venire contra factum proprium19.

Estamos perante razões suficientes para considerar procedentes as Conclusões LIX. a LXXVI., dando razão aos Recorrentes.

III) DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em não tomar parcialmente conhecimento do objecto do recurso, no que respeita às Conclusões X. a LVIII., e, na parte conhecida, julgar parcialmente procedente a revista, repristinando a sentença proferida em 1.ª instância e, assim, determinar a absolvição dos Réus do pedido.

Custas pelo Recorrido, na percentagem de 75%, e pelos Recorrentes, pelo decaimento, na percentagem restante (art. 527º, 1 e 2, CPC).

STJ/Lisboa, 17/12/2024

Ricardo Costa (Relator)

Cristina Coelho

Maria Teresa Albuquerque

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

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1. V., sempre convergentes no sistema recursório do CPC, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A eficácia da composição da acção”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 395-396, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMINDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 627º”, pág. 15, “Artigo 635º”, págs. 70-71, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 627.º a 877.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, ABRANTES GERALDES, “Artigo 635º”, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 119-120.↩︎

2. Processo n.º 682/18, in www.dgsi.pt.↩︎

3. Processo n.º 24011/19, in www.dgsi.pt.↩︎

4. ABRANTES GERALDES, “Artigo 635º”, Recursos… cit., pág. 120, sublinhado nosso.↩︎

5. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMINDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 671º”, Código de Processo Civil anotado cit., págs. 197-198.↩︎

6. Por todos, v. ABRANTES GERALDES, “Artigo 640º”, pág. 166, “Artigo 662º, 294-295, Recursos… cit., FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 536-537.↩︎

7. ABRANTES GERALDES, “Artigo 662º”, Recursos… cit., pág. 298.↩︎

8. FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II cit., pág. 537, completando: “Foi, assim, arredada a conceção segundo a qual a atividade cognitiva da Relação se deveria confinar, tão-somente, a um mero controlo formal da motivação/fundamentação efetuada em 1ª instância”.↩︎

9. URBANO LOPES DIAS, “Limites do poder cognitivo do juiz – nas instâncias e no STJ”, Blog do IPPC, 3/4/2017, https://blogippc.blogspot.com/2017/04/limites-do-poder-cognitivo-do-juiz-nas.html, pág. 5.↩︎

10. V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A impugnação das decisões judiciais”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 395-396, 399-400, 400, 402-403.↩︎

11. V., por todos e com adesão no STJ, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia”, CDP n.º 44, 2013, págs. 33-34, 36.↩︎

12. Processo n.º 417/21, in www.dgsi.pt.↩︎

13. JOÃO BAPTISTA MACHADO, “Tutela da confiança e ‘venire contra factum proprium’”, Obra dispersa, Volume I, Studia Juridica, Braga, 1991, págs. 381-382, 383, 416 e ss (com os requisitos para o efeito jurídico de perda do direito pelo “venire contra factum proprium”), ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 334º”, Código Civil comentado, I, Parte geral (arts. 1.º a 396.º), CIDP – Almedina, Coimbra, 2020, págs. 933 e ss.↩︎

14. V. JORGE COUTINHO DE ABREU, Do abuso de direito. Ensaio de um critério em direito civil e nas deliberações sociais, Almedina, Coimbra, 1983, págs. 59-60.↩︎

15. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS/PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil, 9.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 279-280.↩︎

16. Teoria geral do direito civil, Centelha, Coimbra, 1981, págs. 72, 73, sublinhado nosso.↩︎

17. Seguimos a dogmática de ORLANDO DE CARVALHO, Teoria geral do direito civil… cit., págs. 70, em 60-61 e 72-73.↩︎

18. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS/PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil cit., pág. 279.↩︎

19. Várias foram elencadas por JOÃO BAPTISTA MACHADO, “Tutela da confiança e ‘venire contra factum proprium’”, loc. cit., págs. 386 e ss (v., pela proximidade, o caso (2), retirado da jurisprudência do STJ).↩︎