AVAL
VINCULAÇÃO
LIVRANÇA EM BRANCO
SÓCIO
CÔNJUGE
DENÚNCIA
PACTO DE PREENCHIMENTO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
AVALISTA
CESSÃO DE QUOTA
ABUSO DO DIREITO
SUPRESSIO
BOA -FÉ
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
EMBARGOS DE EXECUTADO
Sumário


I. A mulher do ex-sócio de uma sociedade por quotas que avalizou uma livrança em branco, juntamente com o marido, respeitante a uma conta-cartão movimentada por este último, não existindo qualquer dívida da sociedade à data em que deixa de ser sócio e comunica ao banco a sua vontade de “denunciar o aval”, rectius o acordo de preenchimento, enviando comunicação de denúncia, não pode ser responsável pelo pagamento de dívidas que surgem depois de denunciado esse acordo de preenchimento.
II. A decisão proferida no processo em que era executado o marido da recorrida nos presentes autos, processo esse baseado no mesmo título executivo (a mesma livrança) e nos mesmos factos provados, uniformizou jurisprudência que orienta diretamente a decisão do presente caso no sentido de considerar eficaz a denúncia do acordo de preenchimento da livrança que ambos os cônjuges assinaram em branco.
III. O banco que move uma execução contra a avalista de uma livrança em branco, mulher do ex-sócio da sociedade avalisada, preenchendo a livrança 12 anos depois de aquele ter deixado de ser sócio da sociedade, de ter devolvido ao banco o cartão que servia para movimentar a conta e de ter comunicado a vontade de deixar de ser avalista, pedindo para ser substituído nessa posição pelo novo sócio, e banco este que atribuí um novo cartão para que o novo sócio movimente a conta avalizada, criando a dívida exequenda, bem sabendo que os executados já nada tinham a ver com a vida da sociedade, excede manifestamente os limites impostos pelo princípio da boa-fé, incorrendo em abuso do direito (artigo 334.º do CC).

Texto Integral


Processo n.º 4839/21.5T8FNC-B.L1.S1

Recorrente: Caixa Geral de Depósitos SA

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. Em 21.10.2021 a Caixa Geral de Depósitos, S.A. propôs execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, contra AA, BB e CC, tendo como título uma livrança avalizada pelos executados, no valor de 56.758,77 Euros, com data de vencimento de 28.05.2021, que juntou aos autos.

A exequente alegou que preencheu aquela livrança, dotando-a de valor e data, em cumprimento da convenção de preenchimento, anteriormente celebrada, respeitante à utilização de um cartão de crédito emitido a favor da “E..., Lda. Nos termos daquela convenção, a exequente estaria autorizada a preencher a livrança pelo valor correspondente ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão, incluindo capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos, em caso de incumprimento.

2. Por apenso aos autos da execução, a executada AA deduziu embargos.

Invocou, além do mais, que a entrega da livrança se destinou exclusivamente a caucionar um cartão de crédito atribuído ao executado BB, o qual, por carta de 14.04.2009, solicitou à exequente-embargada o cancelamento daquele cartão de crédito e, de seguida, entregou-o à exequente, sendo que à data a respetiva conta bancária se encontrava saldada; e em 30.11.2011 o executado BB e a embargante denunciaram as obrigações respeitantes ao aval em causa.

Afirmou que o crédito relativo à livrança exequenda se refere a um outro cartão de crédito, cujo contrato data de 31.03.2010, e concluiu que o preenchimento da livrança em causa constituiria uma falsificação.

Invocou ainda o artigo 70.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, referindo que decorreram mais de três anos entre o alegado incumprimento do contrato subjacente à letra, ocorrido em 26.11.2014, segundo a embargada, e a citação da embargante, ocorrida em 12.01.2022, termos em que concluiu ter ocorrido prescrição extintiva da livrança exequenda, bem como violação do princípio da boa fé e preenchimento abusivo da mesma.

3. A exequente-embargada contestou. Alegou que mesmo que existisse irregularidade no reconhecimento das assinaturas constantes da livrança, tal não a invalidaria enquanto título de crédito. Afirmou que o cartão de crédito em causa foi atribuído à referida E..., Lda., e que esta o utilizou em seu benefício, não cumprindo o acordado, sendo que a obrigação da Embargante, enquanto avalista, é cumprir o que a avalizada incumpriu.

Alegou que nunca prescindiu do aval prestado pela Embargante, e que não ocorreu a alegada prescrição da obrigação cartular. Concluiu pedindo que os embargos de executado fossem julgados improcedentes.

4. A primeira instância julgou improcedentes os embargos da executada, determinando a continuação da execução.

5. A executada-embargante interpôs recurso de apelação, tendo o TRL julgado o recurso procedente, revogando a decisão recorrida e julgando procedentes os embargos de executado com extinção da execução.

6. A exequente-embargada – CGD – interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«I) O douto Acórdão recorrido, proferido nos autos em 22.06.2023, a fls…, em suma, julgou procedente o recurso de Apelação que tinha sido interposto pela Executada AA da douta sentença, proferida nos autos em 18.01.2023, a fls..., pelo que revogou a mesma e, em consequência, julgou procedentes os Embargos de Executado e extinta a execução.

II) Contudo, salvo o devido e merecido respeito, que é muito, afigura-se à aqui Recorrente CGD que o doutamente decidido, a fls…, enferma de errada aplicação de Direito, não tendo sido considerados todos os elementos constantes dos autos.

III) Desde logo, a considerar-se ser possível a desvinculação unilateral da avalista, que não é, mas que aqui se concebe por mera hipótese de raciocínio, sem com tal conceder ou transigir, a verdade é que, no caso dos autos inexistiu qualquer pretensa denúncia válida e eficaz por parte da Embargante, como resulta dos factos dados como provados pelas instâncias, pelo que o entendimento do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, salvo o devido e merecido respeito, que é muito, não pode prevalecer.

IV) O produto bancário “cartão caixaworks” não foi revogado, caducado, resolvido ou denunciado com a mera entrega do “cartão – plástico” por parte da embargante.

V) Com efeito, o que resulta dos factos provados n.ºs 16, 17, 18 e 19 é que apenas foi “cancelado” o cartão – plástico, respeitante ao mesmo produto bancário e à mesma “conta – controlo”, pelo que, ao invés do concluído no douto Acórdão recorrido, não existiu qualquer aceitação de substituição do Recorrido por parte da Caixa Geral de Depósitos, S.A..

VI) Desde logo, como resulta da carta datada de 14.04.2009, o pedido, formulado por parte do então marido da Embargante, não é “extensível” à própria Embargante, ao invés do concluído no douto Acórdão recorrido – neste sentido, Jurisprudência supra citada.

VII) O certo é que na carta datada de 14.04.2009 o marido da Embargante solicita a substituição dos avales e responsabilidades por si assinados, o que, como é bom de ver, não consubstancia uma qualquer declaração resolutiva válida e eficaz – neste sentido, Jurisprudência supra citada.

VIII) E, por outro lado, a tal carta, datada de 14.04.2009, respondeu a Exequente CGD, por carta com a ref.ª 4399 de 03.06.2009, ponto 20 da matéria de facto dada como provada, nos termos da qual comunicou ao Embargante que «(...) concluímos não estarem actualmente reunidas as condições para prescindir do seu aval e do da sua esposa (...) nas responsabilidades que a empresa E..., Lda. (...) apresenta no grupo Caixa Geral de Depósitos», posição reiterada por cartas datadas de 27.05.2010, de 12.11.2014, de 07.08.2020 e de 03.11.2020, e por email de 02.07.2020.

IX) Significa isto que a carta aludida no douto Acórdão recorrido, datada de 30.11.2011, foi objecto de resposta posterior por parte da Exequente, como resulta dos factos dados como provados nas instâncias.

X) Do teor da correspondência junta aos autos, confessada pelo Avalista, resulta que a CGD sempre comunicou, reiteradamente, sublinhe-se, ao Embargante que não aceita o seu pedido de desvinculação do aval prestado.

XI) Inexiste, assim, qualquer pretensa denúncia válida e eficaz, pelo que o não houve qualquer desvinculação do avalista, aqui recorrido.

XII) Em todo o caso, sem com tal conceder ou transigir, a verdade a tese a que se alude no douto Acórdão recorrido, de eventual desvinculação unilateral da avalista, não encontra suporte no Direito Cartular, inexistindo qualquer disposição legal que suporte tal tese.

XIII) A perda, por parte do marido (à data) da Embargante, da sua qualidade de sócio não determina, ipso facto, a extinção da qualidade de avalista por parte da Embargante.

XIV) Facto esse que a Embargante tem perfeita consciência, porquanto apenas solicita a sua desvinculação, a qual, de resto, não mereceu qualquer aceitação por parte da Embargada.

XV) A lei Uniforme sobre letras e livranças (LULL) não admite a desvinculação unilateral do avalista das obrigações cambiárias que, por esse aval, assumiu. É sempre indispensável a autorização do beneficiário do aval, aqui a CGD, que como resulta dos factos provados n.ºs 20 e 21, inexistiu.

XVI) E, sendo a “denúncia” um acto jurídico unilateral, relativamente a terceiros, não criam obrigações salvo se os destinatários as aceitarem – cfr. Doutrina supra citada.

XVII) Sendo que a CGD não aceitou qualquer pretensa denúncia.

XVIII) Por Acórdão de Uniformização de Jurisprudência deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2013, publicado no Diário da República, 1.ª Série – n.º 14 – 21 de Janeiro de 2013, págs., 433 e segts., foi fixada a Jurisprudência no seguinte sentido:

«Tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada»,

Acórdão esse que é totalmente aplicável ao caso em apreço, ao invés do que resulta do decidido no douto Acórdão recorrido.

XIX) Tal entendimento jurisprudencial foi igualmente recebido de um modo, em geral, favorável na comunidade jurídica portuguesa, cfr. Doutrina supra citada, e proferidas decisões em igual sentido, nomeadamente a referida nas presentes alegações.

XX) A dicotomia a que se alude no douto Acórdão recorrido (livrança completa / aval geral) não é susceptível de afastar o atento entendimento jurisprudencial fixado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2013.

XXI) Situando-se o presente caso na área das relações jurídicas cartulares, seria nesse campo que teria de existir uma norma que permitisse tal acto de denúncia, o que não é o caso.

XXII) A Lei Uniforme sobre Letras e Livranças não impede actos de denúncia se previstos em estipulação pelas partes, mas se e só se, estipulados no seu próprio contexto, o que, de resto, é bem compreensível.

XXIII) De facto, a rigorosíssima literalidade de qualquer título cambiário é obstáculo a isso. Quando muito poderia figurar no pacto de preenchimento. Mas não tendo sido estipulada essa possibilidade de denúncia, a mesma inexiste.

XXIV) O douto Acórdão recorrido pretende aplicar ao aval regras estabelecidas para a fiança (como, de resto, resulta da Doutrina aí citada) quando, afinal de contas, a Jurisprudência aplicável, como se viu, tem tal denúncia como ilegal, como, de resto, sucedeu no AUJ citado.

XXV) A afirmação de que é possível denunciar o aval em circunstâncias como as do presente processo viola, pois, frontalmente o referido AUJ n.º 4/2013, razão mais do que bastante para revogar o douto Acórdão recorrido.

XXVI) Note-se que, a CGD deu à execução um título de crédito, Livrança, cujos caracteres de (i) literalidade, (ii) abstracção e (ii) autonomia, sobre os quais incidiu já vastíssima Doutrina e Jurisprudência, permitem concluir que a Livrança tem um valor próprio, maxime, valendo por si mesma – cfr. Doutrina supra citada.

XXVII) Daí que, após o vencimento da Livrança, sem que a mesma tenha sido paga, como foi invocado pela Exequente, e não foi impugnado pelo Embargante, antes confessado por este, pode o legítimo portador instaurar a respectiva acção executiva para cobrança integral do seu crédito, contra os devedores, como a CGD fez.

XXVIII) E tendo a Embargante confessado a veracidade e genuinidade da livrança dada à execução, é manifesto o integral e pleno incumprimento da obrigação a que este está vinculado nos termos do art.º 32.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.

XXIX) Assim, as questões suscitadas por parte da Embargante, seja por que prisma se coloque a questão, nunca serão susceptíveis de colocar em crise a exequibilidade do título dado à execução (livrança, vencida e não paga).

XXX) O aval diverge da fiança, com a qual não se confunde – cfr. Jurisprudência supra citada.

XXXI) No caso dos autos não há qualquer indeterminação da livrança dada à execução.

XXXII) O aval dos autos não corresponde a uma qualquer “relação contratual duradoura celebrada por tempo indeterminado”.

XXXIII) O pacto de preenchimento dos autos não estabelece qualquer prazo pelo qual deve ser preenchida a livrança entregue em branco, pelo que, é direito potestativo do portador preencher a livrança com uma qualquer data de vencimento ulterior ao momento do alegado incumprimento da subscritora, o que a CGD fez – neste sentido Jurisprudência supra citada.

XXXIV) Por isso, não poderia o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa afirmar que «não podia era ter deixado decorrer o tempo, mais de 12 anos, para depois preencher a livrança e exigir da Executada/Avalista o pagamento da quantia nela aposta».

XXXV) Em suma, a tese da denúncia unilateral da avalista, em circunstâncias como as do presente processo, não é admissível (pois viola frontalmente o referido AUJ n.º 4/2013) e, por outro lado, não houve, in casu, qualquer pretensa desvinculação do avalista (atento o teor material da carta datada de 14.04.2009 e resposta da CGD à carta datada de 30.11.2011), pelo que, inexiste qualquer pretenso preenchimento abusivo da livrança dada à execução.

XXXVI) Face ao exposto, e salvo o devido e merecido respeito, que é muito, mal andou o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa quando conclui no sentido inverso, impondo-se, por isso, a revogação do aí decidido.

XXXVII) O douto Acórdão recorrido fez, assim, menos correcta interpretação e aplicação da Lei, violando, designadamente, as normas constantes dos art.º’s 17º, 30º, 32º e 77º da LULL, 762º, n.º 1 do CC e 703º, n.º 1, alínea c) do CPC.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogado o douto Acórdão recorrido e, em consequência, julgando-se os presentes Embargos de Executado improcedentes, com as legais consequências, fazendo-se assim, como sempre, a acostumada Justiça.»

7. A recorrida apresentou resposta, tendo concluído nos termos que se transcrevem:

«A. A declaração negocial tendente à extinção do contrato de cartão bancário – por revogação, caducidade, resolução ou denúncia –, ainda que imperfeitamente expressa, opera a extinção desse contrato, ainda que se mantenha o contrato de conta, com efeitos imediatos ou, no limite, no termo do prazo de um mês a contar da comunicação ao destinatário, o que, neste caso, ocorreu em 16/04/2009 (artigos 217.º, 236 e 239.º do Código Civil).

B. Extinto o contrato de cartão e saldado o crédito dele emergente, extinguem-se, por consequência, as garantias a ele associadas, in casu, a livrança e respectivo pacto de preenchimento.

C. No âmbito das relações imediatas, como é o caso dos presentes autos, não valem os princípios cambiários da literalidade e abstração (acórdãos do STJ de 16-06-2009/Proc. 344/05.5TBBGC-A.S1, Fonseca Ramos, e de 10-07-2008 Proc. 08B2107, Salvador da Costa).

D. O aval não está associado a contas bancárias, mas a operações de crédito.

E. A livrança em branco não vale como livrança sujeita ao regime da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças antes do preenchimento regular do título, conforme decorre claramente do art.º 76,º § I, da LULL.

F. A livrança em branco só surge como título cambiário com o respetivo preenchimento. E o aval conferido numa letra em branco não é um aval cambiário, embora determine para quem assina o aval um vínculo jurídico.

G. O avalista BB, cônjuge da aqui Recorrida, em 30/03/2009, cedeu a outrem a sua participação social na E..., Lda. e, por carta datada de 14/04/2009, comunicou tal cedência à aqui Recorrente, documentando-a, e solicitou a esta a sua substituição no contrato de garantia «pelos atuais sócios» da E..., Lda., entregando o cartão de crédito associado ao referido financiamento, o qual foi aceite pela Recorrente.

H. O facto provado n.º 16, espelha bem que a Exequente/Recorrente, através da sua colaboradora DD, ao referir-se expressamente a «extinguir o aval» sabia perfeitamente o que pretendiam os avalistas BB e AA, sendo que a carta de 16/04/2009, atentas as circunstâncias que a envolveram, não poderá ter outro sentido que não o de provocar a extinção do vínculo de aval.

I. Contudo, se dúvida houvesse quanto ao sentido da declaração negocial de denúncia ou resolução do vínculo de aval ela dissipou-se com a carta de 30/11/2011, em que os Executados BB e AA comunicaram à aqui Recorrente, na «qualidade de avalistas», que denunciavam «a obrigação de aval em livranças nos contratos» celebrados com a aqui Recorrente, conforme documento de fls. 10 verso dos autos.

J. Note-se que a circunstância da denúncia operar em 14.04.2009 ou 30.11.2011 é irrelevante para o desfecho do caso, tal como concluiu o TRL, pois, como consta na sentença de 1.º instância, proferida no apenso B, e a Recorrida expressamente assume nas páginas 36 e 37 das suas alegações de recurso, em «30 de novembro de 2011 (…) não havia qualquer montante em dívida.

K. A denúncia, e bem assim a resolução, enquanto declaração unilateral receptícia, não carece de autorização ou aceitação da contraparte para produzir os seus efeitos, produzindo-os inclusive contra a vontade expressa desta.

L. Entender o contrário, seria desvirtuar a natureza da livrança-caução ou livrança-garantia, revestindo-lhe sem mais o caráter de título de crédito conferindo ao Banco a faculdade de preencher a letra em violação do pacto de preenchimento, após denúncia exercida em data em que inexistia incumprimento contratual.

M. Em função da factualidade apurada importa entender que a Executada, enquanto avalista, denunciou válida e eficazmente o contrato de garantia e respetivo aval que conferiu à livrança exequenda.

N. É de prima importância notar que, perante tal denúncia, a Exequente poderia ter também denunciado o contrato de crédito ou, se assim o entendesse, celebrado novo contrato de garantia, com nova livrança subscrita pela E..., Lda. e avalizada pelo novo sócio desta, com novo pacto de preenchimento.

O. Não o tendo feito corre por sua conta as consequências daí decorrentes.

P. A jurisprudência do AUJ n.º 4/2013 é inaplicável ao presente caso, se interpretada como abarcando o aval aposto em livrança em branco.

Q. O AUJ 4/2013 reporta-se tão-só ao aval relativo a letra ou livrança completa, com todos os seus elementos preenchidos, enquanto negócio cambiário, situação que no caso do aval geral apenas sucederá com o incumprimento do contrato de financiamento por parte da sociedade.

R. Um avalista de livrança que cede a sua participação social e se desliga da vida societária, e bem assim o seu cônjuge, podem válida e eficazmente desvincular-se do pacto de preenchimento subjacente à emissão desse título em branco.

S. Desde logo, a exigência de que um sócio-gerente de uma sociedade avalize a livrança que garante o bom cumprimento de determinado negócio por ela efectuado tem como pressuposto aquela sua qualidade, o que é válido tanto para o que assume essa responsabilidade acrescida como para quem dela beneficia. Na verdade, não fosse tal nexo, nem ao credor do título cambiário ocorreria fazer tal exigência nem o avalista aceitaria a mesma. Raciocínio que vale para o cônjuge, também avalista, do sócio e legal representante da subscritora da livrança.

T. É facto que no caso em apreço tal faculdade de resolução não consta expressamente no pacto de preenchimento, desconhecendo a embargante, sem culpa, se a mesma consta do contrato de cartão de crédito.

U. Mas é de entender que a mesma deverá ser reconhecida, por integração do conteúdo negocial dos referidos contratos, em conformidade com o disposto no artigo 239º do Código Civil.

V. Por certo, quer por força do princípio da boa-fé quer apelando àquela vontade conjectural, não pode sobrar nenhuma dúvida em afirmar que sendo a qualidade de sócio e gerente da sociedade avalizada sempre pressuposto que as partes consideraram essencial à vinculação daquele como avalista da livrança em branco, estará implícito um acordo de que o referido aval apenas abarcará as responsabilidades assumidas pela sociedade enquanto o avalista mantiver a referida qualidade. Tal só não sucederá em situações excepcionais que, como tal, deverão essas sim ser expressamente previstas no acordo de preenchimento.

W. O aval vale apenas para as obrigações constituídas quando o avalista exercia funções e/ou era sócio da sua avalizada, valendo o aval do cônjuge apenas enquanto este mantiver essa qualidade de sócio.

X. Tendo a livrança-caução ou livrança-garantia sido emitida sem data de vencimento, no âmbito de uma relação duradoura e, assim, não podendo valer como título de crédito, o avalista que, entretanto, cedeu a sua posição de sócio na sociedade subscritora da livrança, e bem assim o seu cônjuge, podem valida e eficazmente denunciar o aval geral desde que à data se mostrem saldadas as dívidas da sociedade relativamente ao Banco.

Y. Assim, atenta a natureza do contrato em pauta (cartão de crédito) — acontecendo o mesmo nos casos de contas caucionadas —, mormente ao facto de o montante da dívida só ser determinado a posteriori, mediante a concreta utilização do cartão, não é legítimo pretender validar a obrigação decorrente do preenchimento da livrança em relação ao cônjuge de um avalista que deixou de ter a qualidade pressuposta no pacto de preenchimento há mais de 12 anos (abril de 2009 a outubro de 2021), não tendo nenhum controle, nem sequer conhecimento, sobre os montantes que nesse lapso de tempo foram utilizados pela sociedade avalizada.

Z. Sendo certo que quer a perda da qualidade de sócio quer a manifestação da vontade de fazer cessar o pacto de preenchimento, foram inequivocamente comunicadas à exequente em março de 2009, repetidos em 14 de abril desse ano, e reiterados em 30 de novembro de 2011, afigurando-se fácil a interpretação, nos termos do artigo 236.º do Código Civil, no sentido de que a referida manifestação de vontade se dirigiu efectivamente ao pacto de preenchimento e à respectiva vinculação para aval, isto é, à livrança ainda em branco.

AA. De realçar, neste conspecto, que a resolução — e bem assim a denúncia —, enquanto declaração unilateral receptícia, não carece que autorização ou aceitação do declaratário para produzir os seus efeitos, produzindo-os inclusive contra a vontade expressa deste. Assim, a matéria dos pontos 20.º e 21.º dos factos provados é totalmente inócua, inábil a evitar a válida e eficaz resolução do pacto de preenchimento e respectiva vinculação para aval, pelo que será de considerar lícita a revogação operada.

BB. O montante titulado pela referida livrança exequenda é, pois, inexigível aos executados BB e AA.

CC. De resto, cremos ser inquestionável que a conduta da embargada sempre integrará uma actuação manifestamente abusiva do seu pretenso direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.

DD. O acórdão recorrido não merece qualquer censura.

Nestes Termos:

Nos mais de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Ex.as deve o presente recurso de revista ser julgado improcedente e, em consequência, ser o acórdão recorrido mantido na íntegra, assim se fazendo justiça.»

8. Em 16.05.2024, encontrando-se o presente recurso já inscrito para decisão, constatou-se que se encontrava pedida uma Revista Ampliada no processo n.º 4839/21.5T8FNC-A.L1.S1 (no qual era recorrido BB, marido da recorrente nos presentes autos à data da subscrição da livrança em branco) e no qual se discutia a mesma questão jurídica dos presentes autos (e tendo ambos os processos factualidade idêntica), os presentes autos foram suspensos até à prolação da decisão nesse processo, a qual ocorreu em 20.11.2024.

Em tal processo foi uniformizada jurisprudência com o seguinte teor:

«1 - A vinculação para aval prestada em livrança em branco é, desde que assumida sem prazo ou por prazo renovável, decorrido o prazo inicial, suscetível de denúncia, pelo vinculado para aval que tenha deixado de ser sócio ou sócio-gerente da avalizada, até ao preenchimento do título.

2 – A denúncia só produzirá efeitos para o futuro, ou seja, a desvinculação só será eficaz em relação a montantes que venham a ser solicitados após a denúncia produzir os seus efeitos.»

Cabe apreciar.


*

II. FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso.

Verificados os pressupostos gerais de recorribilidade previstos no art.º 629.º, n.º 1 do CPC, e não sendo o recurso obstaculizado pela regra prevista no art.º 854.º do CPC, a revista é admissível.

O objeto do recurso é o de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito ao determinar a procedência dos embargos de executado com a inerente extinção da execução.

2. Factualidade relevante.

A segunda instância deu como provada a seguinte matéria.

«1. No dia 21 de outubro de 2021, foi(ram) apresentado(a/s) à execução ordinária n.º 4839/21.5T8FNC, em apenso, uma livrança, que aqui se dá por integralmente reproduzida (…)

2. Na livrança consta como subscritora a sociedade E..., Lda. e a assinatura dos seus legais representantes à data da sua emissão.

3. No verso consta, precedida da expressão “Bom para aval ao subscritor” a assinatura da executada/embargante aposta pelo seu próprio punho.

4. A livrança foi assinada em branco e, posteriormente, preenchida pela exequente.

5. A autorização concedida pela executada à exequente para preencher a livrança foi efetuada nos moldes vertidos no documento 1, junto com o requerimento executivo, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

6. Trata-se de documento assinado pela executada/embargante, cuja assinatura foi aposta pelo seu próprio punho.

7. Esse documento encontra-se dirigido à exequente e tem como “Assunto: Cartão Caixa Works; Entrega de Livrança em Branco”.

8. No seu texto consta: “Ex.mos Senhores,

Tal como solicitado, em complemento do contrato de atribuição e utilização do cartão em título, vimos pela presente carta proposta entregar à Caixa Geral de Depósitos, S.A. (CGD), uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, por nós subscrita e avalizada pelo(a)(s) avalista(s) abaixo assinado(a)(s)”, destinada a titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes da utilização do referido cartão e de acordo com as respectivas Condições Gerais de Utilização.

Pela presente carta, ainda, autorizamos a CGD a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CGD, tendo em conta, nomeadamente o seguinte:

a) A data de vencimento será fixada pela CGD quando, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, a CGD decida preencher a livrança;

b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos, incluindo os fiscais relativos à própria livrança;

c) A CGD poderá inserir cláusula “sem protesto” e definir o local de pagamento.

A livrança não constitui novação do crédito, pelo que se mantêm as respectivas condições, incluindo as garantias.

EM ANEXO: LIVRANÇA EM BRANCO»

9. O documento encontra-se datado de 18 de setembro de 2007 e a assinatura dos subscritores está reconhecida presencialmente por advogado como sendo as dos legais representantes da sociedade E..., Lda..

10. O executado assinou o documento na parte dos subscritores, em nome da sociedade, e na parte dos avalistas em nome próprio.

11. A livrança em anexo a este documento tem aposto o número ...00.

12. O produto bancário “Cartão Caixa Works” consistia na atribuição, neste caso, à sociedade E..., Lda. de um valor máximo para usar a seu bel-prazer, com pagamentos acrescidos de juros remuneratórios nos moldes contratualizados.

13. No fundo, funcionava em moldes similares a uma conta corrente caucionada.

14. Uma das formas de utilizar esse valor da conta mãe consistia no cartão, o chamado plástico, ao qual se encontrava associada uma conta cartão, na qual se discriminava os movimentos efetuados pelo cartão que usava o saldo da conta mãe.

15. À data da cessão de quotas da executada para terceiro, a conta cartão e a conta mãe não tinham nenhum saldo em dívida, não se encontrando usado qualquer valor.

16. Antes da cessão de quotas, a exequente, através de EE, informou o executado, em contato por este iniciado, que a cessão de quotas não era o procedimento adequado para extinguir o aval por si prestado e que o Banco poderia recusar libertá-lo dessa posição de avalista.

17. Todavia, a executada, ainda assim, resolveu proceder à cessão de quotas.

18. A 16 de abril de 2009, o executado entregou nas instalações da exequente, o documento n.º 1, junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido, bem como o cartão de plástico

19. Nesse documento consta: «Na sequência da nossa reunião e carta do dia 09 de Março 2009 (em anexo), foi efectuado no dia 30 de Março 2009 o contrato de transmissão de quota da sociedade E..., Lda. e entregue cópia do registo comercial na vossa instituição pelos actuais sócios (cópia em anexo).

Neste sentido e visto que neste momento o documento solicitado (registo comercial) foi entregue, solicito a substituição dos avais e responsabilidades assinados por mim pelo dos actuais sócios, pois deixei de exercer qualquer função e controlo de gestão na E..., Lda..».

20. Esse documento teve como resposta a carta de fls. 32, que aqui se dá por integralmente reproduzida, na qual foi comunicado ao embargante «não estarem, actualmente, reunidas as condições para prescindir do seu aval e o da sua esposa (AA)».

21. O que foi reiterado por carta de fls. 32 verso, 33 e-mail de fls. 33 verso, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

22. A 31 de março de 2010, o novo sócio da E..., Lda. formulou proposta de cartão respeitante ao mencionado produto e conta mãe, tendo-lhe sido concedido tal plástico.

23. Por carta datada de 30 de novembro de 2011, a executada comunicou à exequente a denúncia do referido aval – cf. carta de fls. 10 verso, que aqui se dá por integralmente reproduzida.»

3. O direito aplicável.

3.1. Está em causa a questão de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito ao determinar a procedência dos embargos da executada com a inerente extinção da execução.

Segundo a perspetiva da exequente-recorrente não terá existido qualquer desvinculação dos avalistas dessa qualidade, não havendo denúncia válida e eficaz do pacto de preenchimento da livrança, pelo que na data em que a credora procedeu ao preenchimento desse título ainda teria poderes para o fazer. E sustenta que o facto de o avalista BB (marido da embargante) ter cedido as suas quotas da sociedade garantida, 12 anos antes do preenchimento da livrança, não o desresponsabiliza face à credora, invocando, para o efeito, a jurisprudência do AUJ n.º 4/2013.

A executada-embargante, por sua vez, e enquanto recorrida, sustenta ter havido válida e eficaz desvinculação da qualidade de avalistas da livrança em branco, por denúncia ou resolução do pacto de preenchimento, o que conduziria ao posterior preenchimento abusivo desse título. E sustenta que a jurisprudência do AUJ n.º 4/2013 não teria aplicação ao caso concreto. Por outro lado, entende que a exequente teria agido com abuso do direito ao preencher a livrança e ao mover a ação executiva, 12 anos depois de os avalistas se terem afastado da vida da sociedade.

3.2. O acórdão recorrido, revogando a decisão da primeira instância, julgou os embargos de executado procedentes, com a consequente extinção da execução.

Entendeu-se no acórdão recorrido que a jurisprudência emergente do AUJ n.º 4/2013 não tinha aplicação ao caso concreto. Sintetizou-se esse entendimento nos seguintes termos:

«Tal jurisprudência reporta-se tão-só ao aval relativo a letra ou livrança completa, com todos os seus elementos preenchidos, enquanto negócio cambiário, situação que no caso do aval geral apenas sucederá com o incumprimento do contrato de financiamento por parte da sociedade, salvo abuso no preenchimento da livrança

(…)

«Um tal regime configura-se igualmente aplicável ao cônjuge do sócio cedente que seja parte no aval geral e subscreveu nesse contexto a livrança-caução ou livrança-garantia e o respetivo pacto de preenchimento.

Com efeito, então, mostrando-se saldadas as contas do financiamento e havendo denúncia do contrato de garantia por parte do cônjuge avalista, cessa igualmente para este o vínculo jurídico decorrente do aval por si prestado, não podendo o Banco, financiador, preencher a livrança, sob pena o fazer abusivamente.

Entender o contrário, seria desvirtuar a natureza da livrança-caução ou livrança-garantia, revestindo-lhe sem mais o caráter de título de crédito, conferindo ao Banco a faculdade de preencher a letra em violação do pacto de preenchimento, após denúncia exercida em data em que inexistia incumprimento contratual.

Não se olvide que estamos no âmbito das relações imediatas e que o pacto de preenchimento pressupõe incumprimento contratual que à data da denúncia inexiste.

Seria, aliás, um contrassenso que o sócio cedente da participação social, avalista a título pessoal da livrança-caução ou livrança-garantia, pudesse denunciar o contrato de garantia, desvinculando-se do aval que conferiu a título pessoal, e já assim não pudesse proceder o respetivo cônjuge, sabendo-se que ambos assinaram o mesmo contrato de garantia e estavam vinculados pelo mesmo pacto de preenchimento, fundando-se o aval geral do cônjuge do sócio na relação de confiança existente entre ambos.»

E acrescenta-se na fundamentação do acórdão recorrido:

«Em função da factualidade apurada importa entender que a Recorrente, enquanto avalista, denunciou válida e eficazmente o contrato de garantia e respetivo aval que conferiu à livrança exequenda, entendida tal denúncia como o modo típico de desvinculação nas relações contratuais duradouras celebradas por tempo indeterminado.

Tal denúncia é indubitável face à referida carta de 30.11.2011, embora se considere que a denúncia ocorreu com a referida carta datada de 14.04.2009.

É certo que tal carta de 14.04.2009 está apenas assinada pelo Executado BB e dela não consta a palavra denúncia.

Contudo, o sentido material da denúncia decorre da carta, tanto mais que foi acompanhada da entrega do cartão de crédito e de saldo nulo na conta cartão e na conta mãe, e à data aquele Executado era casado com a aqui Recorrente, procedendo do modo descrito naturalmente em conjunto com esta, o que foi manifestamente assumido pela aqui Recorrida nos seus escritos de 03.06.2009 e 27.05.2010, onde alude expressamente à aqui Recorrente.

Não se olvide que a denúncia não está sujeita a forma.»

(…)

Afirma-se ainda nesse acórdão:

«A circunstância da denúncia operar em 14.04.2009 ou 30.11.2011 é irrelevante para o desfecho do caso, pois, como se refere na decisão recorrida e a Recorrida expressamente assume nas páginas 36 e 37 das suas alegações de recurso, em «30 de novembro de 2011 (…) não havia qualquer montante em dívida».

(…)

«É certo que a Exequente, Recorrida, declarou não prescindir do aval da aqui Recorrente, conforme factos provados n.ºs 20 e 21.

Contudo, tal é irrelevante, pois, em situações como a presente, a cessação contratual por denúncia não depende de aceitação do contraparte; basta-se que esta tenha dela conhecimento.

No caso, perante tal denúncia, o Banco/Exequente poderia ter também denunciado o contrato de crédito ou, se assim o entendesse, celebrado novo contrato de garantia, com nova livrança subscrita pela E..., Lda. e avalizada pelo novo sócio desta, com novo pacto de preenchimento.

Não o tendo feito correm por sua conta as consequências daí decorrentes.

Não podia era ter deixado decorrer o tempo, mais de 12 anos, para depois preencher a livrança e exigir da Executada/Avalista, aqui Recorrente, o pagamento da quantia nela aposta.

Assim procedendo, têm-se por abusivo o preenchimento da livrança por parte da Exequente, aqui Recorrida, termos em que merece provimento o presente recurso, pelo que revoga-se a decisão recorrida, procedendo, assim, os embargos de executado e extinguindo-se a execução, conforme artigo 732.º, n.º 4, do CPCivil.»

O acórdão recorrido entendeu, assim, que o AUJ n.º 4/2013 não tinha aplicação ao caso concreto, dado que apenas valeria para a hipótese de o aval ser concedido a uma livrança completa (e não a uma livrança em branco), pelo que os avalistas se teriam desvinculado validamente dessa qualidade, mediante comunicação destinada a denunciar o pacto de preenchimento.

Pode, desde já, afirmar-se que o acórdão recorrido, ao considerar procedentes os embargos da executada, fez a correta aplicação do direito à factualidade provada.

3.3. A problemática da desvinculação superveniente do avalista que avalizou uma livrança em branco, quando a possibilidade de desvinculação não se encontra expressamente prevista no pacto de preenchimento (como frequentemente acontece), tem gerado abundante jurisprudência e motivado diversificada produção doutrinal, em particular quando o avalista é sócio de uma sociedade por quotas e pretende transmitir a sua participação social a terceiro, desonerando-se da qualidade de avalista. E o mesmo se diga quanto à posição do cônjuge desse sócio, que também assumiu a qualidade de avalista (em regra, por força dos efeitos do regime de bens do casamento).

Quando um sócio cede a sua participação a terceiro, desligando-se da vida da sociedade, deixa, obviamente, de poder controlar o futuro cumprimento de dívidas existentes e garantidas por livrança anteriormente prestada. Todavia, caso essa cedência tivesse como consequência automática a extinção do aval, estaria encontrada uma forma de prejudicar o banco concedente de crédito, fazendo desaparecer a garantia pessoal por tais dívidas.

Foi, essencialmente, tendo esta hipótese típica em mente que o pensamento jurisprudencial parece ter-se inclinado no sentido de entender que a cedência de quotas, por si só, não desresponsabiliza o ex-sócio face à livrança já avalizada e não constitui uma razão atendível para proceder à “denúncia” do aval.

O AUJ n.º 4/2013 (de 11.12.2012), proferido no processo n. 5903/09.4TVLSB.L1.L1.S1, publicado no DR em 21.01.2013. Tem o seguinte teor:

«Tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada

Contrariamente ao defendido pelo recorrente (ao sustentar a aplicação desse AUJ ao caso concreto), na fundamentação de tal aresto não resulta, de modo claro, que se esteja a dirigir também à hipótese da livrança assinada em branco. O pensamento uniformizado que emerge desse AUJ parece estruturar-se com base na hipótese típica de uma livrança completa, dado o facto de se reportar, reiteradamente, à natureza abstrata e autónoma desse título; natureza esta que pressupõe a existência de uma livrança completa – artigos 10.º, 75.º e 76.º da LULL.

Na fundamentação desse aresto nunca se refere, de modo expresso, a possibilidade de tal jurisprudência se aplicar também à garantia de dívidas futuras, ou seja, dívidas que ainda não existiam à data em que o sócio pretende “denunciar” o pacto de preenchimento para aval por pretender ceder (ou ter cedido) a sua posição contratual a terceiro.

A hipótese de uma aplicação irrestrita desta jurisprudência, estando em causa uma livrança assinada em branco, suscitou críticas da doutrina, nomeadamente pelo facto de nesse AUJ não se proceder a uma clara distinção entre a livrança preenchida (incorporando o negócio jurídico cambiário de aval) e o pacto para futuro preenchimento da livrança avalizada em branco. Se é pacífico que o aval enquanto obrigação cartular inscrita na livrança preenchida (pela sua própria natureza) não pode ser alvo de denúncia ou resolução pelo avalista, já a denúncia ou resolução do pacto de preenchimento da livrança em branco é amplamente admitido pela doutrina, com consequentes interpretações restritivas da jurisprudência do AUJ n.4/20131.

Sobre o tratamento desta questão na doutrina e na jurisprudência, veja-se a desenvolvida fundamentação da supra referida Revista Ampliada no processo n.º 4839/21.5T8FNC-A.L1.S1, que uniformizou jurisprudência sobre a matéria.

3.4. No caso concreto, a livrança avalizada pelo ex-sócio BB e pela sua mulher, aqui recorrida, respeitava a uma conta-cartão à qual correspondia o cartão por ele usado. Como consta da factualidade provada, ele entregou esse cartão ao banco, quando pediu para ser desvinculado da qualidade de avalista, não tendo essa conta qualquer débito a essa data. O débito só vem a surgir posteriormente, porque o banco concedeu um novo cartão ao novo sócio, respeitante a essa conta, bem sabendo que tal conta se encontrava avalizada pelo ex-sócio e pela sua mulher.

Assim, sendo o ex-sócio quem usava o cartão, as circunstâncias de confiança pessoal em que ele e a sua mulher avalizaram a livrança que garantia a respetiva conta podem razoavelmente levá-los a acreditar que deixando de ser sócio daquela sociedade e devolvendo o cartão ao banco, poderiam desvincular-se da qualidade de avalistas da livrança que ainda se encontrava em branco.

Efetivamente, consta do pacto de preenchimento (facto provado n.º 8) que:

«A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão (…)». Ora, não se encontrando utilizado qualquer saldo do cartão, não havendo, portanto, qualquer dívida que responsabilizasse os avalistas, tinham estes uma justa razão para acreditarem que se poderiam desvincular dessa qualidade, deixando, assim, de ser lícito ao banco vir posteriormente a preencher a livrança por dívidas que não existiam à data em que o cartão é devolvido.

A especificidade desta situação concreta, amparada por uma interpretação conforme às regras da boa-fé objetiva, permite razoavelmente concluir que as partes teriam convencionado um mecanismo de desvinculação da qualidade de avalistas, se tivessem previsto que poderiam vir a ser responsabilizados depois de o cartão ter sido devolvido ao banco não tendo a conta qualquer débito. Ou, em alternativa, não teriam concedido o aval na livrança em branco. Certamente que não seria admissível, por qualquer cidadão normal, a possibilidade de vir a ser responsabilizado, 12 anos depois, por uma dívida futura, cujo surgimento lhe seria completamente desconhecido.

Na carta que os executados enviaram ao banco, em 30.11.2011, foi expressamente invocada a “denúncia” do aval (facto provado n.º 23). Naturalmente que não existindo ainda (a essa data) um aval enquanto negócio jurídico cambiário (porque a livrança não se encontrava completa), o objeto dessa “denúncia” era, obviamente o acordo de preenchimento da livrança (que corresponde ao facto provado n.º 8).

3.5. A questão de saber se num caso como o dos presentes autos os avalistas se podem desvincular do pacto de preenchimento e qual o meio técnico preferível para alcançar esse objetivo – denúncia, resolução ou revogação – encontra-se agora solucionada, com a prolação da Revista Ampliada, de 20.11.2024, no processo n.º 4839/21.5T8FNC-A.L1.S1, a qual uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:

«1 - A vinculação para aval prestada em livrança em branco é, desde que assumida sem prazo ou por prazo renovável, decorrido o prazo inicial, suscetível de denúncia, pelo vinculado para aval que tenha deixado de ser sócio ou sócio-gerente da avalizada, até ao preenchimento do título.

2 – A denúncia só produzirá efeitos para o futuro, ou seja, a desvinculação só será eficaz em relação a montantes que venham a ser solicitados após a denúncia produzir os seus efeitos.»

Considerou-se, assim, maioritariamente, que o meio técnico destinado a extinguir a vinculação para aval prestada em livrança em branco era a denúncia (em detrimento da resolução ou da revogação)2.

Sobre a fundamentação dessa solução remete-se para a referida Revista Ampliada, cujo teor se convoca para a fundamentar a decisão do caso concreto.

Na sequência dessa jurisprudência, concluiu-se que a vinculação para aval prestada pela executada, agora recorrida, foi eficazmente denunciado, com a inerente procedência dos embargos.


*

3.6. Abuso do direito:

Independentemente da posição que se tome quanto à questão de saber se o acordo de preenchimento da livrança foi eficazmente extinto (em 2009 ou em 2011), com a consequente desvinculação dos executados da qualidade de avalistas de uma livrança em branco, e ainda que não tivesse existido a uniformização de jurisprudência supra referida, sempre a factualidade do caso concreto revela a existência de um comportamento abusivo do exequente.

Além de ter pedido ao banco exequente que o desvinculasse da qualidade de avalista, bem como à sua mulher (agora embargante), o avalista BB entregou ao banco o cartão plástico destinado a movimentar a conta avalizada, que não tinha qualquer saldo utilizado, e pediu (em 2009) para ser substituído, na posição de avalista, pelo novo sócio a quem transmitiria as quotas (factos provados 18, 19 e 20), o que demonstra uma preocupação com os interesses da contraparte.

Tendo o banco comunicado que se opunha à respetiva desvinculação como avalistas da livrança em branco, o avalista BB (marido da embargante) enviou uma segunda comunicação que qualificou como “denúncia” da posição de avalistas (em 2011).

O banco sabia (pois revela-o na sua resposta, facto provado n.º 20) que a vontade inequívoca destes avalistas da livrança em branco era a de se desonerarem dessa qualidade, face à cedência da posição social do avalista BB na sociedade titular da conta bancária e à devolução do cartão que era usado por esse sócio.

E bem sabia, como consta do facto provado n.º 15, que «à data da cessão de quotas da executada para terceiro, a conta cartão e a conta mãe não tinham nenhum saldo em dívida, não se encontrando usado qualquer valor».

Todavia, em 2010, o banco atribuiu um novo cartão plástico ao novo sócio (facto provado n.º 22) respeitante à conta-cartão que se encontrava avalizada pelo ex-sócio BB e pela sua mulher.

Ao agir deste modo, sabendo que o ex-sócio já nada tinha a ver com a vida da sociedade, não podendo, por isso, ter qualquer controlo sobre o uso do crédito bancário e sobre o respetivo incumprimento, o banco revela um intolerável nível de falta de razoabilidade e de descaso face aos interesses do casal avalista, que traduz um censurável incumprimento dos deveres de cooperação emergentes do princípio da boa-fé.

Ao mover a execução, 12 anos depois, contra o ex-sócio e contra a sua mulher, agora embargante, preenchendo a livrança em branco, o banco excedeu manifestamente os limites imposto pelo princípio da boa-fé, pelo que tal comportamento se deve considerar abusivo, sendo o direito de executar o património da avalista-embargante, com base na livrança, paralisado pelo abuso do direito, nos termos do artigo 334º do CC.

Em geral, o simples decurso do tempo de não exercício de um direito, não será, por si só, suficiente para se poder concluir pela existência de uma hipótese de abuso do direito. Todavia, quando a prolongada inércia densifica uma situação de inelutável onerosidade para com a contraparte, ou quando cria nesta última uma crescente expetativa de que o direito não virá a ser exercido, encontrar-se-á, em princípio, justificada a convocação do limite ético-normativo do abuso do direito.

No caso concreto, todo o comportamento do banco é revelador de descaso face aos interesses razoavelmente atendíveis dos avalistas, quando podia ter tutelado os seus próprios interesses de modo diferente. Poderia ter procedido à substituição dos avalistas pelo novo sócio (como lhe foi pedido pelo avalista BB); ou podia ter encerrado a conta avalizada, já que o cartão plástico que servia para a movimentar lhe foi devolvido, quando essa conta não tinha qualquer débito, em vez de conceder um novo cartão ao novo sócio para usar essa conta, desinteressando-se completamente do facto de este poder vir a gerar dívidas nessa conta, bem sabendo que tal poderia onerar (como efetivamente veio a acontecer) os avalistas que claramente haviam manifestado (12 anos antes) a sua vontade de se desvincularem da posição de garantes.

Doze anos depois da cedência das quotas da sociedade, e de terem manifestado a sua vontade de desvinculação da posição de garantes, não poderiam os avalistas executados contar, com razoável grau de probabilidade (como não contaria tipicamente qualquer pessoa na sua situação), que fossem chamados a pagar uma dívida constituída depois da cedência das quotas, cujo cumprimento não podiam, obviamente, controlar ou influenciar, quando o banco exequente poderia hipoteticamente dispor de outros meios de salvaguarda dos seus interesses.

Obrigar alguém a permanecer indefinidamente vinculado ao pagamento de uma dívida futura, contraída por outrem e de montante desconhecido, por via do futuro preenchimento de uma livrança em branco, será uma solução que, em última análise, poderá pôr em causa o direito ao normal desenvolvimento da personalidade, constitucionalmente consagrado no artigo 26º da CRP, na medida em que o avalista verá seriamente afetada a normal liberdade de tomar decisões na sua vida, por não saber em que momento será demandado para pagar dívidas cujo montante desconhece.

A jurisprudência do STJ já se pronunciou pela existência de abuso do direito em hipóteses que apresentam alguma semelhança com o presente caso. Veja-se, neste sentido:

- Acórdão do STJ, de 05.06.2018 (relator Henrique Araújo)3, no processo n.º 10855/15.9T8CBR-A.C1.S1:

«O abuso do direito – art. 334.º do CC –, na modalidade da supressio, verifica-se com o decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido.

O Banco exequente, ao deduzir processo executivo contra o avalista duma livrança em branco, treze anos depois desse mesmo avalista ter abandonado a sociedade subscritora da livrança (entretanto declarada insolvente), e reportando-se as responsabilidades reclamadas (só conhecidas do embargante quando foi citado para a execução), a dívidas contraídas por essa sociedade já após o seu abandono como sócio, age com manifesto abuso do direito, na modalidade da supressio.»

- Acórdão do STJ, de 12.11.2013 (relator Nuno Cameira)4, no processo n.º 1464/11.2TBGRDA.C1.S1:

« Actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o banco que acciona uma livrança, que os executados avalizaram em branco, oito anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora, na qual tinham interesse, tendo o exequente conhecimento que estes só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse na sociedade subscritora, sendo que, na altura do afastamento (meados de 2003), a conta caucionada de que a sociedade era titular encontrava-se regularizada e, posteriormente (já depois de 2004), o exequente, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia dos restantes avalistas, continuou a conceder crédito à sociedade através da renovação do contrato de abertura de crédito que tivera início em 03-07-2002.

Perante estes dados de facto, verifica-se que os executados podiam fundadamente confiar que, tanto tempo depois de se terem apartado da sociedade subscritora, o banco não accionaria o aval que prestaram: é inadmissível e contrária à boa fé a conduta assumida pelo exequente, na exacta medida em que trai a confiança gerada nos executados pelo seu comportamento anterior, confiança essa objectivamente reforçada pelo decurso de um tão dilatado lapso de tempo.»

Em síntese, em linha com esta jurisprudência, é de concluir que o comportamento do banco, ao mover a ação executiva com base naquela livrança, se encontra destituído de substrato normativo, por ter ultrapassado manifestamente o limite ético que lhe era imposto pelo princípio da boa-fé face às especificidades do caso concreto, incorrendo, assim, em abuso do direito, nos termos do art.º 334.º do CC, que determina a paralisação dos pretendidos efeitos normativos do direito invocado face à executada embargante.


*

Em resumo, concluiu-se que o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito ao revogar a decisão da primeira instância, julgando procedentes os embargos da executada e extinta a execução.

*

DECISÃO: Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas: pela recorrente.

Lisboa, 17.12.2024

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Luís Espírito Santo

António Barateiro Martins

_____________________________________________




1. Veja-se, a título de exemplo, a seguinte doutrina: Filipe Cassiano dos Santos, in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3980, páginas 312 a 346 (em anotação ao AUJ n.4/2023, de 11.12.2012); Carolina Cunha, “Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência”, in Direito das Sociedades em Revista, Ano 5, volume 9 (março de 2013), páginas 91 a 114; Manuel Januário da Costa Gomes, “O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio de sociedade para garantia de crédito bancário revolving – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.4/2013”; Cadernos de Direito Privado, n.43, páginas 15 a 47.↩︎

2. Como consta dessa Revista Ampliada, para além da denúncia, foram defendidos outros modos de desvinculação do avalista de uma letra em branco, como a resolução ou a revogação. No entendimento da relatora do presente acórdão, expresso nessa Revista Ampliada, o meio preferível seria o da revogação. Todavia, encontrando-se a jurisprudência uniformizada no sentido da denúncia, é essa figura que passa a ser aplicada nos casos posteriores.↩︎

3. Publicado em:   https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2018:10855.15.9T8CBR.A.C1.S.08?search=qgOIg_IHhWFnzJGYU14↩︎

4. Publicado em:   https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2013:1464.11.2TBGRD.A.C1.S1.65?search=9t8_4nFsXJlnR4C0QxY↩︎