CRIME DE ESCRAVIDÃO
TIPO OBJECTIVO
CONSENTIMENTO DO OFENDIDO
BONS COSTUMES
FALTA DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Sumário


I – Para efeitos do preenchimento do crime de escravidão, p. e p. pelo art. 159º, alínea a), do Código Penal, a atuação do agente causalmente condicionante do exercício da liberdade da vítima, ao ponto de praticamente a excluir, tornando esta um “escravo”, alguém desprovido de direitos, deve ser aquilatada objetivamente, segundo parâmetros hodiernos e comprováveis, válidos em relação a qualquer pessoa humana, independentemente das suas convicções religiosas ou quaisquer outras particularidades como ser excecionalmente ingénua ou timorata.
II – Não obstante as ofendidas não serem ouvidas sobre o tipo e horário de prestação do trabalho que lhe era imposto pelos gerentes da instituição, limitando-se a cumprir as ordens que lhes eram dirigidas por estes, nunca foram aquelas privadas do poder, da faculdade intelectual e física, de negarem a execução dessas tarefas, excessivamente árduas ou não, porquanto bastava-lhes sair do convento, ainda que isso implicasse o indesejado abandono da sua formação/vocação religiosa que ali empreendiam ou julgavam empreender (se considerarmos a vertente de falta reconhecimento pela competente entidade eclesiástica).
III - Inexistiu por parte dos arguidos esbulho do salário, com a consequente privação do mesmo por parte das vítimas, uma vez que estas não tinham qualquer expectativa de auferirem uma remuneração monetária pelos trabalhos que desempenhassem em prol da instituição.
IV - Os maus tratos físicos e psicológicos sofridos pelas ofendidas não eram de molde a impedir que quem quisesse abandonar o convento, por sua iniciativa, o fizesse, tanto mais que durante o período em discussão catorze noviças saíram, três regressaram após terem saído da instituição e duas foram expulsas por não cumprirem as regras da mesma ou não demonstrarem a necessária vocação religiosa, factos que não se coadunam com a ideia de uma pretensa “fortaleza” em que as irmãs estivessem, inapelavelmente, cativas.
V - As ofendidas não foram remetidas a uma condição sub-humana, desprovida de direitos, de afetos, não foram tratadas como meros objetos, dos quais os seus donos ou detentores põem e dispõem a seu bel-prazer, sem atender aos seus interesses e vontades.
VI – Os comportamentos adotados pelos arguidos no período de menoridade das ofendidas constituem intoleráveis «maus tratos», porquanto globalmente valorados, pela sua reiteração e gravidade, refletem um tratamento degradante, aviltante das vítimas, adequados a lograr o seu rebaixamento enquanto pessoas, a afetar a sua dignidade humana, sem que exista motivo justificativo para o seu cometimento dado que excedem manifestamente o exigido pelo processo de formação religiosa das ofendidas.
VII – Não se verifica a alegada causa de exclusão da ilicitude estribada no consentimento das ofendidas (menores) para o cometimento pelos arguidos dos factos apurados, desde logo porque estas foram coagidas a suportar os atos consubstanciadores de maus-tratos sobre si perpetrados, não se tendo submetido de livre vontade a tal tratamento impiedoso e degradante, não se provou que as vítimas tivessem manifestado aos arguidos o assentimento para tais práticas nem esse suposto consentimento se pode extrair da conduta objetiva por elas assumida ao permanecerem na instituição.
VIII - Ademais, sempre se impõe negar eficácia a tal hipotético consentimento em virtude de estarmos perante condutas cuja gravidade objetiva, numa visão global dos factos, não permite a sua tolerância ético-social, porquanto violam de modo severo e irreversível um bem jurídico que transcende as “meras” ofensas corporais, injúrias, humilhações, sujeição a trabalhos realizados em condições inadequadas para a idade das vítimas, privações de liberdades, para se erigir como um bem jurídico superior: a própria dignidade da pessoa humana (que, sendo complexo, engloba a saúde física, psíquica e mental). Assim, o conjeturado consentimento dado pelas ofendidas – que, frisa-se, inexistiu – ofenderia os “bons costumes” e, como tal, não podia produzir efeito como causa de exclusão da ilicitude.
IX – Igualmente não se verifica causa de exclusão da culpa fundada em falta de consciência da ilicitude do facto, na medida em que os arguidos, como qualquer cidadão medianamente formado colocado na sua posição, não desconhece que mesmo em contexto de vivência religiosa, em regime ou não de clausura, o Direito não permite, contra a vontade das vítimas, particularmente quando indefesas em razão da idade, as ajuizadas práticas abusivas, degradantes, atentatórias da saúde física e psíquicas das noviças/irmãs, da sua dignidade enquanto indivíduos humanos, tratando-se de comportamentos que se revelam dispensáveis, rectius, desadequados ao prosseguimento do objetivo maior de fornecer às menores que ingressaram na instituição a correta formação religiosa, criando as sãs condições para que exercessem a sua vocação.

Texto Integral


Recurso Penal
Processo nº 894/04.0GAVNF.G1

Acordam os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:
           
I.1 No âmbito do Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 894/04...., do Tribunal Judicial da Comarca de ... - Juízo Central Criminal de Guimarães – Juiz ..., por acórdão proferido e depositado no dia 01.07.2022 (referências ...49 e ...86, respetivamente), foi decidido:

Nestes termos e face ao exposto, o Tribunal julga totalmente procedente a pronuncia e, em consequência:
5.1. Condena os arguidos AA, BB, CC, DD, pela prática, como co-autores de nove (9) crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º/1 a), 26º, 30º/1 e 2, 14º/1, 11º/2 a) do C.P., nas pessoas das ofendidas EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL e MM, nas seguintes penas parcelares:

a) Pela pratica de 1 crime de escravidão p. e p. pelo art. 159º/1 a) do C.P., na pessoa da ofendida HH:
· Condena-se a arguida BB, numa pena de 9 anos de prisão;
· Condena-se o arguido Padre AA, numa pena de 7 anos de prisão;
· Condena-se a arguida CC, numa pena de 6 anos de prisão;
· Condena-se a arguida DD, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
b) Pela prática de 1 crime de escravidão p. e p. pelo art. 159º/1 a) do C.P., na pessoa de GG:
· Condena-se a arguida BB, numa pena de 9 anos de prisão;
· Condena-se o arguido Padre AA, numa pena de 7 anos de prisão;
· Condena-se a arguida CC, numa pena de 6 anos de prisão;
· Condena-se a arguida DD, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
c) Pela prática de 1 crime de escravidão p. e p. pelo art. 159º/1 a) do C.P., na pessoa de EE:
· Condena-se a arguida BB, numa pena de 9 anos de prisão;
· Condena-se o arguido Padre AA, numa pena de 7 anos de prisão;
· Condena-se a arguida CC, numa pena de 6 anos de prisão;
· Condena-se a arguida DD, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
d) Pela prática de 1 crime de escravidão p. e p. pelo art. 159º/1 a) do C.P., na pessoa da ofendida II:
· Condena-se a arguida BB, numa pena de 9 anos de prisão;
· Condena-se o arguido Padre AA, numa pena de 7 anos de prisão;
· Condena-se a arguida CC, numa pena de 6 anos de prisão;
· Condena-se a arguida DD, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
e) Pela prática de 1 crime de escravidão, na pessoa de LL:
· Condena-se a arguida BB, numa pena de 7 anos de prisão;
· Condena-se o arguido Padre AA, numa pena de 6 anos de prisão;
· Condena-se a arguida CC, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
· Condena-se a arguida DD, numa pena de 5 anos de prisão;
f) Pela prática de 1 crime de escravidão, na pessoa de FF:
· Condena-se a arguida BB, numa pena de 7 anos de prisão;
· Condena-se o arguido Padre AA, numa pena de 6 anos de prisão;
· Condena-se a arguida CC, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
· Condena-se a arguida DD, numa pena de 5 anos de prisão;
g) Pela prática de 1 crime de escravidão, na pessoa de JJ:
· Condena-se a arguida BB, numa pena de 7 anos de prisão;
· Condena-se o arguido Padre AA, numa pena de 6 anos de prisão;
· Condena-se a arguida CC, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
· Condena-se a arguida DD, numa pena de 5 anos de prisão;
h) Pela prática de 1 crime de escravidão p. e p. pelo art. 159º/1 a) do C.P., na pessoa da ofendida KK:
· Condena-se a arguida BB, numa pena de 7 anos de prisão;
· Condena-se o arguido Padre AA, numa pena de 6 anos de prisão;
· Condena-se a arguida CC, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão;
· Condena-se a arguida DD, numa pena de 5 anos de prisão;
i) Pela prática de 1 crime de escravidão, p. e p. pelo art. 159º/1 a) do C.P., na pessoa de MM:
· Condena-se a arguida BB, numa pena de 10 anos de prisão;
· Condena-se o arguido Padre AA, numa pena de 8 anos de prisão;
· Condena-se a arguida CC, numa pena de 7 anos de prisão;
· Condena-se a arguida DD, numa pena de 6 anos de prisão;

5.2. Em cúmulo Jurídico, condena a arguida BB numa pena única de 17 (dezassete) anos de prisão;
5.3. Em cúmulo Jurídico, condena o arguido AA, numa pena única de  15 (quinze) anos de prisão;
5.4. Em cúmulo Jurídico, condena a arguida CC, numa pena única de  14 (catorze) anos de prisão;
5.5. Em cúmulo Jurídico, condena a arguida DD, numa pena única de  12 (doze) anos de prisão;
5.6. Condena o Centro Social de Apoio e Orientação ..., nas seguintes penas parcelares de multa:
a) Pela prática de um crime de escravidão praticado na pessoa da ofendida EE, a pena de 900 dias de multa, à taxa diária de 200,00 Euros;
b) Pela prática de um crime de escravidão praticado na pessoa da ofendida HH, a pena de 900 dias de multa, à taxa diária de 200,00 Euros;
c) Pela prática de um crime de escravidão praticado na pessoa da ofendida GG, a pena de 900 dias de multa, à taxa diária de 200,00 Euros;
d) Pela prática de um crime de escravidão praticado na pessoa da ofendida II, a pena de 900 dias de multa, à taxa diária de 200,00 Euros;
e) Pela prática de um crime de escravidão praticado na pessoa da ofendida MM, a pena de 1000 dias de multa, à taxa diária de 200,00 Euros;
f) Pela prática de um crime de escravidão praticado na pessoa da ofendida FF, a pena de 700 dias de multa, à taxa diária de 200,00 Euros;
g) Pela prática de um crime de escravidão praticado na pessoa da ofendida JJ, a pena de 700 dias de multa, à taxa diária de 200,00 Euros;
h) Pela prática de um crime de escravidão praticado na pessoa da ofendida KK, a pena de 700 dias de multa, à taxa diária de 200,00 Euros;
i) Pela prática de um crime de escravidão praticado na pessoa da ofendida LL, a pena de 700 dias de multa, à taxa diária de 200,00 Euros
5.7. Em cúmulo jurídico, condena o Centro Social de Apoio e Orientação a Juventude na pena única em 2 000 dias de multa, à taxa diária de 200,00 euros, no montante global de 400 000,00 Euros.
5.8. Julga parcialmente procedente o pedido cível formulado pela Assistente EE, condenando solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e Centro Social de Apoio e Orientação ... a pagar à Assistente a quantia global de 175 000, 00 Euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento, absolvendo os arguidos do demais contra si peticionado;
5.9. Julga parcialmente procedente o pedido cível formulado pela Assistente GG, condenando solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e Centro Social de Apoio e Orientação ... a pagar à Assistente a quantia global de 176 020, 00 Euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento, absolvendo os arguidos do demais contra si peticionado;
5.10. Julga parcialmente procedente o pedido cível formulado pela Assistente II, condenando solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e Centro Social de Apoio e Orientação ... a pagar à Assistente a quantia global de 170 000, 00 Euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento, absolvendo os arguidos do demais contra si peticionado;
5.11. Julga totalmente procedente o pedido cível formulado pela Assistente HH, condenando solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e Centro Social de Apoio e Orientação ... a pagar à Assistente a quantia global de 50 000, 00 Euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento;
5.12. Julga totalmente procedente o pedido cível formulado pela Assistente JJ, condenando solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e Centro Social de Apoio e Orientação ... a pagar à Assistente a quantia global de 50 000, 00 Euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento;
5.13. Julga totalmente procedente o pedido cível formulado pelos herdeiros da ofendida MM, condenando solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e Centro Social de Apoio e Orientação ... a pagar à Assistente a quantia global de 335 000, 00 Euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento, absolvendo os demandados Fraternidade Missionária ..., Arquidiocese ... e Dom NN do pedido contra eles peticionado.
5.14. Arbitra oficiosamente uma indemnização à ofendida FF, condenando solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e Centro Social de Apoio e Orientação ... a pagar à ofendida a quantia global de 30 000, 00 Euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento;
5.15. Arbitra oficiosamente uma indemnização à ofendida KK, condenando solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e Centro Social de Apoio e Orientação ... a pagar à ofendida a quantia global de 30 000, 00 Euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento;
5.16. Arbitra oficiosamente uma indemnização à ofendida LL, condenando solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e Centro Social de Apoio e Orientação ... a pagar à ofendida a quantia global de 30 000, 00 Euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento;
5.17. Arbitra oficiosamente uma indemnização à ofendida OO, condenando solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e Centro Social de Apoio e Orientação ... a pagar à ofendida a quantia global de 160 000, 00 Euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento.
5.18. mantém-se o estatuto coativo dos arguidos.
5.19. Condena solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e Centro Social de Apoio e Orientação ... nas custas criminais, fixando a taxa de justiça em 5 UCs.
5.20. Condena solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e Centro Social de Apoio e Orientação ... nas custas cíveis, sendo que quanto às Assistentes EE, GG, II, as custas são na proporção do decaimento;”

I.2.1 Inconformados com a sobredita decisão, dela vieram os arguidos CC e AA interpor recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões e petitório (referências ...48 e ...82)[1]:

“1. O presente recurso tem por objecto matéria de facto e de direito do Douto Acordão proferido nos autos, que julgou procedente a Acusação Publica, e condenou:
- a aqui Recorrente CC, pela prática, como co-autora de nove (9) crimes de escravidão, p. e p. pelo art.º 159.º, n.º 1, alínea a); art.º 26.º; art.º 30.º, n.º 1, e n.º 2; art.º 14.º, n.º 1; e art.º 11.º, n.º 2, alínea a), todos do C.Penal, tendo também sido condenada de forma solidária ao pagamento de indeminizações às Assistentes e Ofendidas, e bem assim a pagar as quantias arbitradas pelo Tribunal a quo, nas pessoas de: EE (numa pena de 6 anos de prisão e ao pagamento de 175.000,00 €); FF (numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão e ao pagamento de 30.000,00 €); GG (numa pena e 6 anos de prisão e ao pagamento de 176.200,00 €); HH (numa pena de 6 anos de prisão e ao pagamento de 50.000,00 €);
II (numa pena de 6 anos de prisão e ao pagamento de 170.000,00 €); JJ (numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão e ao pagamento de 50.000,00 €); KK (numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão e ao pagamento de 30.000,00 €); LL (numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão e ao pagamento de 30.000,00 €); e MM (numa pena de 7 anos de prisão e ao pagamento de 335.000,00 €), e a OO (ao pagamento de 160.000,00 €), e cúmulo jurídico, condenada numa pena única de 14 (catorze) anos de prisão.
- o aqui Recorrente AA, pela prática, como co-autora de nove (9) crimes
de escravidão, p. e p. pelo art.º 159.º, n.º 1, alínea a); art.º 26.º; art.º 30.º, n.º 1, e n.º 2; art.º 14.º, n.º 1; e art.º 11.º, n.º 2, alínea a), todos do C.Penal, tendo também sido condenado de forma solidária ao pagamento de indeminizações às Assistentes e Ofendidas, e bem assim a pagar as quantias arbitradas pelo Tribunal a quo, nas pessoas de: EE (numa pena de 7 anos de prisão e ao pagamento de 175.000,00 €); FF (numa pena de 6 anos de prisão e ao pagamento de 30.000,00 €);
GG (numa pena de 7 anos e ao pagamento de 176.200,00 €);
HH (numa pena de 7 anos de prisão e ao pagamento de 50.000,00 €);
II (numa pena de 7 anos de prisão e ao pagamento de 170.000,00 €); JJ (numa pena de 6 anos de prisão e ao pagamento de 50.000,00 €); KK (numa pena de 6 anos de prisão e ao pagamento de 30.000,00 €);
LL (numa pena de 6 anos de prisão e ao pagamento de 30.000,00 €);
 e MM (numa pena de 8 anos de prisão e ao pagamento de 335.000,00 €), e a OO (ao pagamento de 160.000,00 €), e cúmulo jurídico, condenado numa pena única de 15 (quinze) anos de prisão.
2. A causa não foi bem decidida, padecendo de manifesto erro de julgamento, quer de facto como de direito, pelo que a Recorrente impugna, neste Recurso, os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, com reapreciação da prova gravada, e bem assim, a subsunção jurídica dos mesmos, e ainda a qualificação jurídica do crime de escravidão e da autoria que lhes foi imputada, pois nas suas modestas opiniões, não praticaram os crimes pelos quais foram condenados, nem os Factos Provados a manterem-se inalterados, podiam configurar a prática de crimes de escravidão.
3. O Tribunal a quo considerou provados os factos transcritos na Motivação supra e que aqui agora se enumeram como concretos pontos de facto que os Recorrentes CC e AA consideram ter sido incorrectamente julgados:
- Factos 1.º; 2.º; 6.º; 7.º; 8.º; 10.º; 13.º; 16.º; 17.º; 18.º; 20.º; 21.º; 22.º; 23.º; 24.º; 27.º; 28.º; 29.º; 30.º; 31.º; 32.º; 33.º; 34.º; 41.º e 42.º:
4. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão no depoimento prestado pelas Assistentes, no entanto, não se pode perder de vista que estas têm interesse directo na causa, e o testemunho de cada uma a favor das demais devia ter sido apreciado com muita reserva e parcimónia pelo Tribunal a quo, e agora pelo Tribunal a quem.
Mesmo assim,
5. Da audição das gravações afere-se da existência de erro na apreciação dos depoimentos prestados pelas Assistentes e pelas testemunhas, por evidente contradição entre aquilo que foi dito em julgamento e o que o Tribunal a quo deu depois como provado, como mais à frente se concretizará.
6. Os documentos juntos aos autos, de fls. 121 e de fls. 123, ambos do Anexo I, encontram-se os decretos de constituição canónica da Fraternidade Missionária e do Centro Social de Apoio e Orientação ..., ambos pelo então Arcebispo de ..., D. PP, respectivamente em Janeiro de 1978 e 22 de Agosto de 1985.
7. No entanto, a Fraternidade Missionária já havia sido criada em 1967, pelos aqui Recorrentes, então com sede na ..., depois na Rua ..., em Lisboa, mudando-se para o ..., em ..., e por fim fixou-se em ..., ..., conforme audição da inquirição da testemunha MM, que depôs de forma imparcial, isenta e coerente, demonstrando ter conhecimento directo desses factos, por ter ingressado na Fraternidade Missionária em 1968 e saído em 1973, atente-se aos minutos 00:00:05; 00:00:37; e 00:01:11, na Sessão de Julgamento de 25/02/2022, por reporte à Acta desse dia, sob o ficheiro áudio 20220225095931_5876324_28705322.
Pelo que,
Nos termos das alíneas a) e b) do art.º 431.º, do C.P.Penal, deverá a redacção do Factos provados em 1.º e em 2.º, passarem a ter a seguinte redacção:
1. A arguida Centro Social de Apoio e Orientação ... é uma instituição particular de solidariedade social (IPSS), criada por iniciativa da União das Irmãs Missionárias ..., denominada “Fraternidade Missionária ...”, esta criada em 1967, com sede originária na ..., depois em Lisboa, mudando-se para o ... em ..., e por fim na Rua ..., ..., ..., tendo como fundadores os Arguidos AA e CC, e ereta pessoa jurídica canónica por decreto de 24 de Janeiro de 1978, do Arcebispo de ... de então, D. PP.
2. A arguida Centro Social de Apoio e Orientação ..., por seu turno, foi ereta, também do decreto emitido por D. PP, como pessoa jurídica canónica em 22 de Agosto de 1985 e constituída como IPSS em 05 de Dezembro de 1985.
8. Apesar da Recorrente CC figurar como “Presidente” Tesoureira da Direcção” na Provisão dos Corpos Gerentes da Fraternidade Missionária ..., conforme Acta n.º ..., de 22 de Maio de 2014, junta a fls. 63 e 64 do Anexo I; e constar como tal também na Provisão dos Corpos Gerentes da Arguida Centro Social, nos termos da Acta n.º ..., de 07 de Novembro de 2014, junta a fls. 93 e 94 dos autos, e nos novos Estatuto da Fraternidade Missionária ..., redigidos em Julho de 2014, e juntos a fls. 123 e ss, do também Anexo I, tais competências e responsabilidades apenas constavam no papel, mas não de facto, porquanto a mesma, apesar de fundadora da Fraternidade Missionária, e de ter participado na elaboração dos seus Estatutos, não correspondia à verdade de facto.
9. A redacção do Facto Provado em 8.º deve ser alterada, nos termos das alíneas a) e b) do art.º 431.º, do C.P.Penal, porquanto a Fraternidade Missionária possuiu Número de Identificação Fiscal desde ../../1978, conforme o original do Cartão de Contribuinte da Fraternidade Missionária, junto aos autos a fls. (…), conta passando a constar:
- “À Fraternidade Missionária ..., foi atribuído o número de identificação de pessoa coletiva canónica nº ...10, número fiscal que possui desde ../../1978, tendo como sede social ... – ..., conforme Cartão de Identificação de Pessoa Colectiva junto a fls. (…), por requerimento apresentado no decurso da 26.ª Sessão, por reporte à Acta de Julgamento de 21/04/2022;
Ou seja,
10. Todo o giro de actividade era realizado pela Fraternidade Missionária, e sempre assim se manteve, mesmo depois da criação da Arguida Centro Social, em 22 de Agosto de 1985.
11. Decorre das cartas juntas aos autos na Secção de julgamento de 21/04/2022, e bem assim dos testemunho do Comissário do E.P. ..., a alteração a promover na redacção do facto Provados em 10.º:
10. Era a Fraternidade Missionária ..., principalmente através dos arguidos AA e CC quem desenvolvia, desde 1995, um trabalho anual de evangelização dos reclusos, e apoio moral aos mesmos, quer através das visitas junto de todos os estabelecimentos prisionais de Portugal, quer pelo envio gratuito das suas publicações, que, pela prática continuada da leitura.
12. O Facto Provado em 13.º foi mal julgado, devendo ser dado pelo Tribunal a quem como Não Provado, porquanto, contrariamente à fundamentação da Decisão Recorrida, que resulta dum convencimento empírico, que perante terceiros as personalidades jurídicas Fraternidade Missionária e a Arguida Centro Social eram confundíveis, no entanto nenhum documento nem nenhuma testemunha, à excepção do Padre QQ, fazem alusão ao Centro Social ter sido criado para ser o suporte jurídico da actividade da Fraternidade.
Desde logo,
13. Os Estatutos da Fraternidade Missionária e os Estatutos do Centro Social juntos aos autos definem objectos diferentes, e nos termos do Facto Provado em 8.º, aquela possui Identificação Fiscal de Pessoa Colectiva Religiosa (junto aos autos) desde ../../1978, o que significa que muito antes da constituição da Arguida Centro Social a Fraternidade Missionária já desenvolvia actividade (compra de matérias necessários às edições, como papel e tintas; e ao equipamento gráfico, como manutenção e aquisição de máquinas – e a venda das suas publicações), não podendo o Centro Social ser o suporte jurídico da actividade da Fraternidade Missionária, por impossibilidade de facto, devido à inexistência daquele.
14. O Tribunal a quo convenceu-se com o depoimento prestado pelo Representante Legal do Centro Social, o Arguido Padre QQ, que só exerceu essas funções por nomeação do então Arcebispo de ... Dom NN, e que motivou até a abertura da instrução, porquanto aquele entendia que não poderia assumir essa qualidade, não tendo o mesmo estado na constituição de cada uma das referidas pessoas jurídicas, só em 2012 é que teve contacto com o Convento, tendo em vista a elaboração dos novos estatutos de ambas, tendo evidenciado, ao longo das suas declarações, um desconhecimento absoluto sobre o assunto.
15. Esse desconhecimento revela-se do seu próprio depoimento, QQ conforme transcrição parcial, por reporte à Acta de Julgamento de 11 de Maio de 2021, ficheiro (I):
20210511120132_5876324_2870532, aos minutos:
- 00:01:32: “Fui entrando em contacto com a Fraternidade Missionária ... e também com o Centro Social de Apoio e Orientação ... no sentido de organizarmos os estatutos e, depois dos estatutos devidamente organizados e aprovados, também passarmos à aprovação dos corpos gerentes - 00:01:32: Nunca teve qualquer de função nas instituições.
- 00:01:32:
- 00:02:50: Disse que a Fraternidade Missionária era uma União das Irmãs Missionárias ... e que exercia actividade de culto mas também uma certa evangelização, “como vai ser depois a atividade do Centro Social com as suas visitas às cadeias, bem como as publicações de cariz religioso que elas têm.”
16. Deste depoimento do Padre QQ é notório que desconhece o objecto social e a actividade de cada uma das referidas pessoas jurídicas canónicas, porquanto, as visitas às cadeiras (a todos os estabelecimentos prisionais do pais) constituía um dos específicos objectos da Fraternidade Missionária - ponto 8 do Art.º 4.º, dos seus Estatutos, juntos a fls. 29 a 42, do Anexo I;
17. E as publicações de cariz religioso são unicamente propriedade da Fraternidade Missionária – ponto 3 do Art.º 5.º, e ponto único do Art.º 9.º, dos seus Estatutos originários erectos em 24 de Janeiro de 1978, veja-se, a título de exemplo, a edição número 230, do mês de Maio de 2005, da revista mensal “...”, das ..., junto aos autos na Sessão de 21 de Abril de 2022, por reporte à respectiva Acta.
- 00:13:21 a 00:13:33: A instância da Digna Magistrada do M.P, disse não saber responder do porquê da constituição da Arguida Centro Social, supondo, apenas: “A mim dá-me a entender que a Fraternidade Missionária ..., que é uma associação de cariz religioso, sente que as suas iniciativas sociais precisam de um suporte jurídico. Quando digo “sociais”, se calhar englobava também a parte da tipografia e das publicações.
18. Do restante depoimento do Padre QQ, por referência à Acta de Julgamento de 11 de Maio de 2022, por reporte ao Ficheiro áudio (II): 20210511152234_5876324_2870532, disse:
- 01:20:38:“Eu penso que a revista até é anterior á existência do Centro, mas toda a atividade da revista, inclusive a aquisição de materiais e de papel, seria feito em nome do Centro, por aquilo que já falámos aqui, porque era a única pessoa jurídica que teria o contribuinte necessário para fazer as coisas devidamente. Por isso, entendo que a revista seria propriedade do Centro Social. Agora, é como vos digo, não fui eu que a criei e não sei, mas tenho essa convicção.
19. E quando questionado se a Fraternidade Missionária teria, ou não, Número de Contribuinte, ou se não sabia se teria, respondeu:
- 01:21:37: “Que eu tenha conhecimento, a Fraternidade nunca teve número de contribuinte.”.
- 01:21:45: Asseverou: “Eu estou a dizer o que sei”.
20. De realçar que o Tribunal antes mesmo do Padre QQ ter respondido manifestou o seu convencimento prévio, atente-se ao minuto:
- 01:21:24: “Parece-me que não. Se precisou de recorrer ao centro para contornar essa tal”
21. A única pessoa que falou sobre este assunto foi o Padre QQ, e fê-lo nos termos supra referidos, revelando um absoluto desconhecimento sobre o que levou á criação do Centro Social, e bem assim do seu objecto social e do da Fraternidade Missionária.
22. A explicação que apresentou parte duma suposição empírica, que ele próprio fez dum facto que não é verdadeiro, pois ao contrária do que ele supunha, a Fraternidade Missionária possui Número de Contribuinte desde ../../1978 – Facto Provado em 8.º.
E contra o seu próprio convencimento, a prossecução do objecto social da Fraternidade Missionária era todo desenvolvido por esta – o culto religioso; a evangelização; as publicações (a tipografia, os livros e as revistas); as visitas aos Estabelecimentos Prisionais – Facto Provado em 9.º: “Segundo consta da credencial de 27 de Janeiro de 2015, emitida pelo Cónego Dr. RR, as ...” e “...” são pertença da Fraternidade Missionária ....
23. Diga-se, por último, que os Estatutos da Fraternidade Missionária nada se assemelham aos do Centro Social, prosseguindo fins diversos, nos termos dos documentos juntos aos autos.
24. A convicção do Tribunal a quo, de que dois entes eram confundíveis perante terceiros e que na prática toda a actividade económica desenvolvida pela Fraternidade Missionária tinha suporte jurídico no Centro Social, o qual tinha sido criado como receptor de financiamentos e donativos angariados por aquela, absorvendo todo o seu património, resultou apenas do depoimento do Padre QQ, que se apurou assentar em factos não verdadeiros, e sem a mínima razão de ciência, pelo que ,
25. Como já vimos, a Fraternidade Missionária possuía Número de Contribuinte ...10, junto a fls. (…), junto no decurso da Sessão de julgamento de 21 de Abril de 2022, por reporte à Acta desse dia, facto reconhecido pelo Acordão Recorrido, que dá como assente o Facto Provado em 8.º.
26. O Acordão Recorrido também dá como assente o Facto Provado em 9.º: “Segundo consta da credencial de 27 de Janeiro de 2015, emitida pelo Cónego Dr. RR, as ...” e “...” são pertença da Fraternidade Missionária ....”, facto corroborado pela edição 230 da revista “... de 2005, junta aos autos.
27. Este ponto da matéria de facto (Facto 13.º) não se sustenta em nenhum documento junto aos autos, nem do depoimento do Arguido Padre QQ, nem de nenhuma das testemunhas ouvidas sobre esta matéria.
Pelo que,
Nos termos das alíneas a) e b) do art.º 431.º, do C.P.Penal, este ponto da matéria de facto (Facto 13.º) não se sustenta e qualquer documento junto aos autos nem de nenhum dos depoimentos prestados nas diversas audiências de julgamento, pelo que deve ser eliminado das factos provados.
28. Os Factos Provados em 16.º e em 17.º, foram igualmente mal julgados pelo Tribunal a quo.
29. A Fraternidade Missionária foi erecta pessoa jurídica canónica por decreto de D. PP, então Arcebispo de ..., que aprovou os seus Estatutos em ../../1978.
Estes Estatutos foram alterados em 03/06/2014, por redacção do Padre QQ, sem intervenção ou participação do Recorrente AA, e com anuência da Recorrente CC.
tendo passado a constar do seu objecto o descrito no seu Artigo 4.º:, tendo passado a constar do seu Artigo 2.º: “A Fraternidade Missionária ... é uma Associação Pública de Fiéis.”.
30. Para prova do Facto Provado em 16.º, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão nos depoimentos do Padre QQ, no testemunho do Padre SS e do Padre TT, e reporta-se à carta dirigida pelo Padre UU ao Arcebispo de ... – Dom NN, tendo dado como assente que: “a Fraternidade Missionária é uma Associação pública de fiéis, gerida pelos Arguidos à margem da Igreja Católica, pelo menos até 2014.”
31. Para prova do Facto Provado em 17.º, o Tribunal a quo sustentou-se nos depoimentos da arguida BB e do Padre QQ, nas declarações das Assistentes EE, II e HH, e nas declarações da testemunha VV, este Arcebispo Emérito de Évora, e Tribunal a quo “convenceu-se apenas que as arguidas e noviças não tinham votos reconhecidos pela Igreja.”, dando como assente que: “Apesar se apelidarem como “irmãs”, de envergarem o hábito, as arguidas, na realidade não são freiras pois não têm votos reconhecidos pela Igreja Católica.”
32. Diga-se, desde logo, que os novos Estatutos datam de 03/07/2014 e foram elaborados pelo Padre QQ, conforme reconheceu em audiência.
De acordo com o Facto Provado em 17.º, as Arguidas e as Noviças não são freiras porque não tem votos reconhecidos pela Igreja Católica.
Porém,
33. A testemunha VV, na Sessão de 14/01/2022, por reporte à Acta de Julgamento desse dia, sob o Ficheiro áudio: 20220114151408_5876324_2870532, na qualidade de Arcebispo Emérito de Évora, esclareceu uma das características de uma congregação religiosa é os seus membros terem uma vida em comunidade, podendo os seus membros ser chamadas de freiras, revertendo todo o trabalho de cada uma voluntariamente, e de forma gratuita, a favor da própria comunidade, e quando esses membros celebram os seus votos de castidade, obediência e pobreza numa cerimónia presidida por um sacerdote autorizado pela autoridade eclesiástica competente, ou pelo próprio Bispo, sendo ainda possível através do Bispo Emérito, com prévia autorização ou desde que comunique a intenção de praticar o acto, passam a ser reconhecidas como freiras aos olhos da Igreja.
34. Caso o Bispo Emérito não dê conhecimento nem peça autorização ao titular, a cerimónia não é nula para quem dele recebeu os votos;
35. E tendo ele conhecido muito bem o antigo Arcebispo Emérito D. PP, a celebração religiosa por este presidida de imposição de votos a duas noviças da Fraternidade Missionária o fez com a autorização necessária, ou pelo menos deu conhecimento daquela acto ao então Arcebispo de ... , depreende-se, pela pessoa em causa que preside ao acto, que o fez com a autorização, caso contrário não a celebraria, conforme declarações prestadas aos minutos 00:15:56 ao minuto 00:23:32.
36. Por sua vez, o então Arcebispo de ..., agora Emérito, D. NN, na Sessão de 28/03/2022, por reporte à Acta de Julgamento desse dia, sob o Ficheiro áudio 20220328111700_5876324_2870532, esclareceu que as Associações de Fiéis Públicas “agem em nome da Igreja, e as privadas não, não é? Mas elas aqui como não trataram de fazer esses estatutos, nem são uma coisa, nem outra, não é? Eles podiam ser públicas e então teriam o dever de se subordinar diretamente à Igreja.”, conforme minuto 00:16.22.
37. Porém, foi o próprio Arcebispado de ... que elaborou os novos Estatutos da Fraternidade Missionária, conferindo-lhe a qualidade de Associação Pública de Fiéis, de acordo com o Artigo 2.º, significa isto que Fraternidade se subordina à Igreja, e nessa circunstância, adquire o estatuto de congregação religiosa.
38. Esta mesma Testemunha D. NN, quando questionado se seria possível o D. PP ter presidido a uma celebração de imposição de votos a duas noviças da Fraternidade Missionária sem lhe ter pedido autorização ou dado apenas conhecimento, apenas respondeu: “não acredito que ele tenha feito presidir uma cerimónia solene de votos sem pedir autorização para isso”, .conforme minuto 00:55:16, não tendo dito nada acerca da verdeira possibilidade de aquele ter celebrado a cerimónia mediante comunicação dos acto, apenas.
39. O Padre QQ disse que não ter procurado pelas actas a documentar a realização da cerimónia de votos, conforme minto 00:56:32.
40. Certo é que a Assistente HH afirmou categoricamente ter recebido o hábito de freira e tomado os votos, juntamente com outra noviça, WW, de Itália, no dia 08/09/1999, em cerimónia presidida pelo Arcebispo Emérito de ... D. PP, no convento da Fraternidade Missionária, em ..., perante 30 sacerdotes e mais de 100 pessoas.
41. Facto corroborado pela Testemunha XX, na Sessão de 25/02/2022, por reporte à Acta de Julgamento desse dia, sob Ficheiro áudio 20220225120431_5876324_2870532, minuto 00:14:07 a 00:15:19.
42. Encontra-se junto aos autos, a fls. 15 a 18 do Anexo I, o ritual de Tomada de Hábito das Irmãs, da Fraternidade Missionária, revestindo uma intensa espiritualidade religiosa, de abnegação do mundo terreno, e adoração ao Evangelho e entrega a Cristo, em consagração numa aliança como Esposa de Cristo: “Entrega da aliança: Vem, esposa de Cristo!”, em tudo igual à consagração religiosa.
43. Destes meios de prova aqui descritos resulta provado que aquela tomada de votos pela Assistente WW, presidida pelo Arcebispo Emérito de ... D. PP se realizou, constituindo eficácia ao reconhecimento de freiras da Fraternidade Missionária ..., como congregação religiosa no seio da Igreja Católica, conferiu às noviças e às Arguidas, e a toda a comunidade, uma consciência de que era realmente religiosas e freiras, tanto assim é que o actual Arcebispo Emérito quando se referia aos membros da Fraternidade dirigia-se às Irmãs.
Por outro lado,
44. Não se fez prova alguma, nem o Tribunal a quo o diz na sua fundamentação, que a Fraternidade Missionária era gerida pelos Arguidos à margem da Igreja Católica, se o Arcebispo Emérito de Évora disse ter conhecimento das publicações editadas em ..., e em momento algum, quer o Padre QQ nem mesmo o Arcebispo Emérito de ..., fizeram qualquer alusão a esta segmento de facto, atendendo ainda à publicação junta na Sessão de 21/04/2022.
Pelo que,
Nos termos das alíneas a) e b) do art.º 431.º, do C.P.Penal, estes pontos da matéria de facto (Facto 7.º; facto 16.º e Facto 17.º) não se sustenta em qualquer documento junto aos autos nem se retira de nenhum dos depoimentos prestados nas diversas audiências de julgamento, pelo que devem ser eliminados dos factos provados.
Sem prescindir.
45. Por estarem convictas e na convicção, que lhes havia sido dada pela cerimónia de tomada de votos à Assistente WW e à outra noviça WW (...), para além do rigoroso cumprimento de rituais religiosos e pela forma como se vestiam e por todos eram tratadas como sendo freiras, até pela autoridade eclesiástica máxima de ..., e no resto do pais, e de que estavam no cumprimento dos direitos e deveres impostos pelo Direito Canónico, há um erro sobre a ilicitude não censurável do art.º 17.º, n.º 1, do C.Penal, exactamente porque actuaram convencidas de que estavam a fazer o que o Senhor delas exigia e em todo aquele contexto de fé tal não seria censurável.
46. Ou, caso assim não se entenda, deverá a sua redacção ser alterada para:
Facto Provado em 16.º:
“Porém, nenhuma das pessoas jurídicas canónicas atrás mencionadas é considerada uma congregação religiosa, mas apenas associação publica de fiéis e Fundação, sendo, no entanto, convicção dos arguidos que integravam uma congregação religiosa, por toda a essência dos hábitos e tomada de votos de duas noviças pelo Arcebispo Emérito de ....”
Facto Provado em 17.º:
“Apesar de se apelidarem como “irmãs”, de envergarem o hábito, as arguidas, na realidade não são freiras pois não têm votos reconhecidos pela igreja Católica, apesar de as mesma estarem convictas que o são.”
47. O Facto Provado em 18.º foi igualmente mal julgado, impugnação nos mesmo termos dos Factos provados em 16.º e 17.º, esclarecendo que o recorrente AA não desempenhou nunca cargos de gestão da Fraternidade, e a recorrente CC apenas desempenhava funções de Tesouraria, revista, publicações e vida exterior do Convento, competido à Arguida BB
48. Os Factos Provados em 20.º; 21.º; e 22.º foram também mal julgados.
49. Das declarações das Assistentes, e bem assim das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, não se fez nenhuma alusão ao Recorrente AA nem à Recorrente CC como tendo sido vítimas dum esquema, por aqueles idealizado, num embuste que redundava em servirem-se do Carisma/Ideário da Fraternidade, para angariar jovens tementes a Deus e convencidas da sua vocação religiosa, para forçar estas a exercerem contrariadas, todas as tarefas diárias exigidas para a conservação e manutenção das instalações propriedade do Centro Social, sem qualquer contrapartida financeira, mediante a implementação de um clima de terror, que lhes foi coartando, ao longo do tempo, qualquer capacidade de reação, utilizando-as como mera força de trabalho e, por essa via, beneficiando patrimonialmente o Centro Social, na modalidade de poupança de despesas.
50. Ao longo dos anos em que as Assistentes permaneceram no Convento nunca suscitaram ou
sentiram a falta de remuneração ou contrapartida financeira, pelo facto de viverem em comunidade religiosa despedias de bens, até pela circunstância da Assistente GG ter uma Tia Religiosa aquilo não lhe causou estranheza, minuto 00:01:38 da Sessão de 14/...21.
51. O mesmo se diga relativamente ao ingresso de cada Assistente, não havendo relato de terem sido aliciadas ou forçadas a tal, mas de um acto voluntário, livre e consciente.
Termos em que,
De acordo com o art.º 431.º, a) e b), do C.P.Penal, também aqui não se fez nenhuma referência à pessoa da Recorrente CC, razão pela qual, a exemplo dos anteriores depoimentos, os factos que respeitam aos Factos 20.º, 21.º e 22.º, foram mal julgados, padecendo, nesta parte, de erro de julgamento, e em consequência serem estes Factos 20.º, julgados como não provados, e bem assim no que respeita ao Recorrente AA.
52. O mesmo se diga no que respeita ao Facto Provado em 23.º, pois das declarações das Assistentes não se retira qualquer acção ou intervenção dos aqui Recorrente AA ou CC na transmissão de ensinamentos de fidelidade a Deus, caso contrário sofreriam consequências para a eternidade, tanto é que nenhum deles desempenhava trabalho e orientação das vocações da noviças, competindo essa tarefa á Arguida BB, pelo que Pelo que,
Nos termos do art.º 431.º, a) e b), do C.P.Penal, deve este facto ser dado como não provado, por erro de julgamento, no que respeita aos aqui Recorrentes.
Facto Provado em 24.º:
53. Este facto não consubstancia uma imputação objectiva à aqui Recorrente CC nem a nenhum dos outros arguidos, pois há uma imputação genérica e conclusiva de factos, sem especificar o quê e a quem, nem uma imputação objectiva e concretizadora de cada um dos factos a cada um dos Arguidos.
54. Para além disso, os arguidos deparam-se com a impossibilidade de exercer direito ao contraditório e à sua defesa. Da globalidade desta peça recursória, e da prova produzida em audiência este facto deve ser dado como não provado.
Facto Provado em 25.º:
55. Também este facto foi mal julgado, remetendo-se para os argumentos já apresentados sobre o Facto Provado em 20.º, nem tão pouco havia nem houve angariação.
Factos Provados em 27.º; 28.º; 29.º; e 30.º:
56. Destes Factos 27.º a 30.º, não resulta haver uma imputação objectiva e concretizadora de cada um dos factos aos aqui Recorrentes, deparando-se com a impossibilidade de exercer direito ao contraditório e à sua defesa, nem tão pouco o Tribunal a quo especifica os termos e o modo do consentimento e da anuência dos aqui Recorrentes AA e CC aos actos praticados pela Arguida BB.
57. Da globalidade desta peça recursória, e da prova produzida em audiência estes factos 27.º a 30.º, devem ser dados como não provados.
Facto Provado em 31.º e em 32.º:
58. No que concerne ao plano espiritual os arguidos AA, BB, CC e DD, aproveitando-se da fé das ofendidas, apresentavam-lhes um Deus como alguém que castiga, oprime e envia para o inferno impondo, em consequência, um rigor espiritual opressivo sobre as mesmas para que elas, aterrorizadas, lhes devessem total obediência, tornando o seu plano mais eficaz.
59. O Facto Provado em 31.º também não consubstancia uma imputação objectiva aos aqui Recorrentes, resultando duma imputação genérica e conclusiva de factos sem especificar o quê a cada um deles, sendo certo que nenhuma das Assistentes relatou que o Arguido AA ou a CC lhes apresentasse um Deus castigador, sendo certo que todas relataram que as leituras ocorriam aos Domingos à tarde, e eram efectuadas pela Arguida BB, responsável pelas vocações, no que respeita ao Facto Provado em 32.º.
Factos Provados em 33.º e 34.º:
60. Na fundamentação à verificação destes dois factos, o Tribunal a quo considerou apenas as declarações das Assistentes II, EE e GG.
61. Diga-se, antes de mais, que a parte do Facto Provado em 33.º - “e através do identificado esquema”, e bem assim o trecho do facto Provado em 34.º - “com o conhecimento e anuência dos arguidos”, não constam da Acusação Pública, nem integram o Despacho de alteração não substancial dos factos, proferido na Sessão de Julgamento de 24/06/2022, razão pela qual ora se suscita a nulidade do Acordão, devendo, em face disso, serem consideradas como não escritas, porque está violado o princípio da vinculação temática, pois é a Acusação que define o objecto do processo, mesmo quendo se trata de uma alteração não substancial, nos termos do art.º 358.º n.º 1, e art.º 378.º, n.º 1 b), ambos do C.P.Penal, porquanto estes factos são muito importantes pois imputam aos aqui Recorrentes, à excepção da BB, e do Centro Social, a prática daqueles mesmo factos.
62. Aqueles Facto 33.º e Facto 34.º foram mal julgados pelo Tribunal a quo.
Vejamos:
63. A Assistentes II disse em audiência de julgamento que chegavam a trabalhar durante 20 horas nas madeiras, pinturas exteriores, carregavam pedras, construíam muros, canteiros, fez com a BB a substituição das pedras e ainda tratavam da revista “..., tendo relatado situações vividas com a Arguida BB no tratamento da lenha com o trator conduzido por esta, e da crueldade desta num único episódio
64. A Assistente EE relatou, por seu turno, um outro episódio no transporte de um saco muito pesado de folhas de eucalipto, ao longo de 1 km, tendo sido depois insultada pela Arguida BB.
65. A Assistente GG referiu também um episódio na queima da lenha das podas que excedia as 14 horas, sem haver depois compensações.
. Provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412.º, n.º 3, al. B), do C.P.Penal)
66. O Tribunal a quo desvalorizou, por completo, o depoimento da testemunha YY, que exerceu as funções de Jardineiro, cumprindo um horário de trabalho das 08h até às 12h, e das 14h às 18h, conforme declarações prestadas na Sessão de 02/10/2021, por reporte à Acta de Julgamento desse mesmo dia, sob Ficheiro áudio 20211012142243_5870522_2870532, ao minuto 00:01:31.
67. Associou a sua prestação de trabalho na Fraternidade Missionária ao tempo em que lá ainda se encontra a irmã MM, “eu sou do tempo da falecida”, ou seja, no ano de 2004 já lá trabalhava, e era contemporâneo da Assistente HH, conforme minuto 00:44:24.
68. E deixou de trabalhar para a Fraternidade Missionária já depois do Covid-19, isto é, depois de 2020, conforme minuto 00:04:01.
69. Significa então que quando as Assistentes ingressaram na Fraternidade Missionária: - EE (../../2004); - II (../../2004); - GG (../../2005); - JJ (Junho de 2005); - KK (Junho de 2008); - LL (22 de Novembro de 2013); - FF (../../2013), a Fraternidade Missionária já tinha um Jardineiro a trabalhar a tempo inteiro.
70. E trabalhou lá durante todo o tempo em que as Assistentes se encontraram no convento.
71. Esta testemunha apesar desempenhar as funções de Jardineiro, “trabalhava em tudo”, e acompanhava a rotina do trabalho das Assistentes no exterior das instalações, e revelou-se imparcial, claro, preciso e coerente na medida em que já não trabalhava no Convento, por ter sido despedido em 2020, depois do Covid-19, nos termos descritos aos minutos 00:01.06, 00:03:27, 00:03:54 e 00:04:01.
72. Quando foi contratado estavam a Arguida BB e a aqui Recorrente CC presentes, era esta que lhe pagava (responsável pela parte financeira), mas quem lhe dava as ordens de trabalho era a Arguida BB, mesmo quando eram transmitidas pela Arguida DD e pelas Assistentes: “Senhor AA, a Irmã BB mandou que faça …”., conforme minuto 00:18:46; 00:21:11; 00:21:14.
73. Relatou que as Assistentes quando andavam a trabalhar à beira dele, faziam uma pausa por volta das 5 (cinco) horas da tarde para merendarem, conforme minuto 00:24:30 a minuto 00:24:51.
74. Mais relatou que quando era acompanhado pelas Assistentes no seu trabalho estas nunca se queixaram que os trabalhos executados por elas eram demasiado pesados, e não conseguiu especificar em que consistiam as dores de que diziam padecer, conforme minuto 00:23:46
75. Esclareceu que as Assistentes quando o acompanhavam no trabalho paravam ao meio-dia para almoçar, durante meia hora, conforme minuto 00:25:04.
Isto contraria, em absoluto, o que as Assistentes disseram em Tribunal, que almoçavam em 5 minutos.
76. Contrariou também a versão das Assistentes que ficavam proibidas de beber por castigo, conforme minuto 00:25:22.
77. A testemunha YY mais informou o Tribunal a quo que era ela quem executava os trabalhos no jardim, e aqueles que lhe eram inerentes à sua profissão e para a qual tinha sido contratado e era assalariado, como plantar, podar e abater árvores de grande porte, sendo muitas das vezes ajudado pela sua esposa e por um homem que lá ia também.
78. Era ele que depois carregava os esteios, com a ajuda de um terceiro – homem que se deslocava de propósito ao Convento, fazia os roletes de corte de árvores, rachava lenha, carregava a lenha e estrume, tudo conforme minuto 00:32:38 ao minuto 00:33:57.
79. Realçar que o Jardineiro YY clarificou o Tribunal a quo que as Assistentes não faziam trabalho relacionado com a lenha, nem a apanhavam e nem a colocavam no trator, era sempre ele e um outro homem que o faziam, conforme minuto 00:34:17 ao minuto 00:34.54, contrariando deste modo a versão trazida pelas Assistentes.
80. Também informou o Tribunal a quo que nunca viu qualquer das Assistentes a trabalhar com motoserra e a botar árvores abaixo, conforme minuto 00:33:47 e 00:37:57.
81. Disse ainda que era ele e a sua mulher quem tratava do jardim, cortava as sebes e apanhava e arrumava o lixo, e também apanhava o estrume, conforme minuto 00:38:55 a minuto 00:40:37, e minuto 00:59:54 a minuto 00:59:57.
82. Precisou, reiteradamente, que era a Arguida BB “que estava à frente do trabalho”; “A BB é que estava a guiar o Trabalho. Era a BB.”, conforme minuto 00:58:26 a minuto 00:58:39.
83. Os trabalhos de lixar e envernizar madeiras, executar pinturas exteriores, carregar pedras, construírem muros, substituírem pedras da calçada, eram todos executados por pessoal contratado para o efeito, tendo o Jardineiro identificado mesmo as pessoas e donde eram oriundas: o Senhor ZZ, perto da Arguida BB (pintor); de ... (calçadas); trolhas (muros), conforme minuto 01:01:56 ao minuto 01:03:25.
84. Era ele quem plantava e semeava, e apanhava pinhas, e na bouça só existia mato e pinheiros, não se agricultava.
85. Foi ele que passou depois a dar comida aos animais, conforme minuto 01:04:07 a minuto 01:05:34.
86. Disse ainda esta testemunha que a Arguida BB todas as 2.ª e 6.ª feira, entre as 2h ou as 3h da tarde, saia para ir piscina, conforme ...29 a minuto 01:07:21.
87. De referir que esta testemunha já não trabalha para o Convento, tendo dito que até foi despedido e perdeu a acção em Tribunal, o que revela tratar-se de um depoimento isento, ao contrário das Assistentes que têm interesse directo na causa.
88. Relativamente ao Facto 34.º, como já foi sobejamente dito pelas Assistentes, todas elas estavam sob a alçada e a tutela exclusiva da arguida BB.
89. De facto, era a BB quem mandava no Convento, e quem determinava tudo, não dando conhecimento a ninguém nem carecia do consentimento dos demais.
90. De maior importância, retira-se deste testemunha, sujeito com conhecimento directo dos factos por ele relatados na primeira pessoa, vivendo de 2.ª a 6.ª interior, mas da parte exterior do Convento, comungando das rotinas de trabalho com as Assistente, desmentiu, categoricamente a versão que estas apresentaram em juízo da sobrecarga de horas e de trabalhos.
Termos em que,
Nos termos das alíneas a) e b) do art.º 431.º, do C.P.Penal, deverão estes Factos 33.º e 34.º; serem dados como Não Provados, e bem assim no que concerne ao conhecimento e anuência da aqui Recorrente CC e do Recorrente AA, quanto àquele Facto 34.º, e por absoluto erro de julgamento quanto ao Facto 33.º.
92. Factos Provados em 35.º a 39.º (este até: “Pelas 22h00 tinham que comparecer novamente na capela, onde voltavam a rezar e regressavam novamente aos quartos”).
93. Estes factos foram todos correctamente julgados.
94. E evidenciam que naquele Convento, em ..., havia o cumprimento de práticas religiosas diárias, em tudo igual às normais congregações religiosas, e de acordo com estes factos as Assistentes de manhã apenas tinham práticas e religiosas
95. Os trabalhos eram apenas realizados durante a parte da tarde, depois do almoço, e até às 20h00.
96. Se o almoço era às 13h00, e se às 20h00 já tinham que regressa à Capela, admite-se que nesse período de tempo, se trabalhasse cerca de 06h00/dia.
97. Estes factos contradizem, em absoluto, o facto Provado em 33.º: “… impor ás ofendidas jornadas diárias de trabalho que chegavam a atingir as 20 horas …”
98. É absolutamente impossível que uma pessoa que tem que cumprir um ritual religioso rígido das 06h30 até às 13h00, e depois até às 20h00, com posterior regresso à cama, possa, nesse período de tempo trabalhar 20 horas. Trata-se de um facto impossível, e os factos impossíveis não podem ser dados como assentes, compreendendo até um facto notório.
99. O Facto Provado em 42.º não consta da Acusação Pública, e não consta do Despacho proferido na audiência de 24/06/2022, onde foi comunicada aos arguidos algumas alterações não substancial dos factos, estado por isso ferido de nulidade, devendo considerar-se como não escrito.
Factos Provados em 44.º; 45.º; 46.º; 47.º; 49.º; 50.º e 54.º: - relativamente à MM:
100. O Tribunal a quo baseou a sua convicção no Relatório da Perícia Tanatológica de fls. 37, e no relato das Assistentes, tendo, desde logo, desconsiderado o Exame do Hábito Externo, junto a fls. 38 e 39, que concluiu pela inexistência se lesões sofridas pela MM, e falta de alimento:
Pesava 54 kg e media 1,48 m, evidenciando: Constituição esquelética: Normal; - Estado de nutrição:
Normal; - Membros Superiores: Sem alteração; e Membros Inferiores: Sem alteração.
101. No entanto, da análise crítica da prova produzida em audiência – as Assistentes EE, II e HH, aqueles factos não resultam provados, porque estas não fazem qualquer referência à pessoa da Recorrente CC e muito menos ao recorrente AA, como tendo tidos qualquer intervenção ou acção na humilhação, maus-tratos ou das injúrias ou das agressões perpetradas na MM, e bem assim que os mesmos tivessem conhecimento ou manifestado a sua anuência.
102. Também os irmãos da MM ouvidos como testemunha não relataram, em momento algum, a presença dos aqui Recorrentes aquando das idas que aquela fez a casa dos seus pais, ou quando se deslocaram a ... para visitar a sua irmã.
103. De referir que a Recorrente CC não tinha a seu cargo o trabalho que era destinado à MM. Quem de facto mandava no interior do Convento era a arguida BB, e as situações que ocorriam entre esta e as demais Irmãs, não lhe chegavam ao o conhecimento, pois nenhuma delas, ouvidas em Tribunal, relatou que alguma vez se tivesse queixado ou lamentado à aqui Recorrente CC, nem ao Recorrente AA, por actos praticados por terceiros.
104. Neste último facto 50.º, não foi dito por ninguém que naquela ocasião, a aqui Recorrente CC se encontrava na sala da televisão, quando a MM foi levar o jantar.
A ter estado presente, e a ser verdade, não foi ela que se dirigiu à MM.
105. Não é feita também nenhuma referência a qualquer tipo de intervenção ou acção conducente a maus tratos, insultos ou agressões da aqui Recorrente CC na pessoa da MM.
106. O único relato acerca da Recorrente CC, é trazido por um dos irmãos de sangue da MM, ouvido na Sessão de 12/10/2022, por reporte à Acta de Julgamento desse dia, que disse: “Quando a minha irmã ligava lá para casa dizia-nos muitas vezes para nós rezarmos pela Irmã CC.”
107. Daqui se retira que em relação à Recorrente CC a MM não tinha nenhuma mágoa ou sentimento de maus-tratos, ao invés, leva a crer que ela sabia que a Recorrente CC também era uma das que estava sujeita à arguida BB.
108. Ninguém viu o episódio constante do Facto 49.º, e ninguém tem efectivamente conhecimento directo sobre o mesmo, nem ninguém disse que os Recorrentes tiveram dele conhecimento, razão pela qual o Tribunal a quo não podia dar como provado.
Por outro lado,
109. A ter existido este facto 49.º, ou seja, encontrando-se a MM no seu quarto doente, e tendo a arguida BB lá levado o almoço, e depois ter feito o que ali se diz que fez (no facto 49.º), só a ela é que poderiam sido imputada responsabilidade, em exclusivo.
Por último,
110. Não há qualquer alusão a uma qualquer conduta da aqui Recorrente CC para com a MM, no sentido de a ter colocado num progressivo estado depressivo profundo, e que determinou ter-se afogado no tanque no dia ../../2004.
Termos em que,
Nos termos das alíneas a) e b) do art.º 431.º, do C.P.Penal, deverão estes factos 44.º; 45.º; 46.º, 47.º, 49.º, 50.º e 54.º serem dados como Não Provados, no que concerne ao conhecimento e anuência da aqui Recorrente CC nem AA, nem que aquele facto 49.º se tenha verificado.
111. Factos Provados em 79.º; a 85.º - referentes à FF:
Para a prova dos factos o Tribunal a quo fundamentou nas declarações da Assistente FF, na Sessão de 21/09/2022, por reporte à Acta de Julgamento desse mesmo dia, sob o Ficheiro áudio:
20210921101752_5876324_2870532, e ouvindo aquilo que esta relatou, entre os minutos: 00:15:04 a minuto 00:17:30, retira-se precisamente o contrário do foi provado pelo Tribunal a quo, pois quando precisou de ir ao médico-dentista, foi, não lhe tendo sido negado.
112. Como do relato do minuto 00:19:31 ao minuto 00:19:35:
Daqui se retira novamente o contrário do que o Tribunal a quo deu como provado relativamente a esta Assistente FF.
113. Ouvida ao minuto 00:24:54 ao minuto 00:25:53, retira-se também o contrário do Facto Provado em 85.º, pois a Assistente não disse que os seus documentos foram retidos pela Recorrente CC, mas apenas que ficou com eles.
114. Do restante depoimento desta Assistente afere-se da acção que a Recorrente CC e o AA tinham na vida interna do Convento, não intervindo em nada relativamente às noviças, nem se retira de que tivessem conhecimento ou que tivesse dado a sua anuência, de referir que aquele passava a maior parte do tempo no seu quarto, e só a Arguida BB é que insultava.
Termos em que,
Nos termos das alíneas a) e b) do art.º 431.º, do C.P.Penal, deverão estes factos 79.º; 80.º; 81.º, 82.º, 83.º, e 85.º serem dados como Não Provados, porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove, relativamente aos aqui Recorrentes, consignado mesmo que sobre esta Assistente FF não se verificaram os elementos objectivos nem subjectivos do crime de escravidão .
115. Provados em 86º a 102.º - referentes à KK:
O Tribunal a quo fundamentou, para dar como assente aqueles factos concretos, nas declarações da própria Assistente KK, e das declarações das outras Assistentes EE, GG, HH e II.
116. No entanto da audição das declarações prestadas por esta Assistente resulta que não foram negados cuidados médicos. Num primeiro momento, como é normal, ficou em repouso, e quando viram que não resultava foi ao médico, e ir a um endireita não é negar cuidados de saúde.
117. Tal como todas as Assistentes relataram, os castigos eram implementados pela Arguida BB, pois nunca houve qualquer intervenção dos aqui Recorrentes na prática dos factos aqui em causa, não lhes podem ser imputados, seja a qualquer título.
Termos em que,
Nos termos das alíneas a) e b) do art.º 431.º, do C.P.Penal, deverão estes factos 86º a 102.º, serem dados como Não Provados, porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove, relativamente à aqui Recorrente CC, consignado mesmo que sobre esta Assistente KK, não se verificaram os elementos objectivos nem subjectivos do crime de escravidão, até pelo facto da mesma reconhecer que se quisesse sair e vir embora o podia ter feito.
118. Factos Provados em 103.º a 112.º - referentes à HH:
O Tribunal fundamentou a prova dos factos nas declarações da Assistente HH.
119. Nenhum dos insultos foram verbalizados pela aqui Recorrente CC.
120. E não obstante o Recorrente AA ter proferido insultos, isso por si só não consubstancia a prática do crime de escravidão
121. A Assistente nas privações de que padecia pela arguida BB, entendeu, em verdadeira consciência que era a forma de Deus a colocar à prova da sua fé, e da sua vocação, conforme minuto 01:24:34.
122. Daqui resulta que não havia nenhum sentimento de privação da liberdade, ou que as Assistentes estivesse sujeitas a uma condição da qual não pudessem reagir.
Termos em que,
Nos termos das alíneas a) e b) do art.º 431.º, do C.P.Penal, deverão estes factos 86º a 102.º, serem dados como Não Provados, porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove, relativamente à aqui Recorrente CC, consignado mesmo que sobre esta Assistente HH, não se verificaram os elementos objectivos nem subjectivos do crime de escravidão, até pelo facto da mesma reconhecer que aquilo que sofria era Deus a coloca-la á prova.
123. Factos Provados em 113.º a 140.º - referentes à GG:
A carta que a Assistente juntou aos autos a ../../2016, de fls. 537, onde manifestou vontade de regressar após ter estado recolhida na casa de protecção em ..., logo aí fez saber que se alguma coisa de mal ou suspeita acontecesse ela própria comunicaria ao Ministério Público.
124. Certo é que a presença da Recorrente CC nessa altura, como nos anos anteriores, não representava nem constituía qualquer óbice ou problema á sua vida na Fraternidade Missionária, por isso regressou voluntariamente, e em plena liberdade, ao Convento.
125. Quando saiu da Fraternidade Missionária, a 18/11/2018, 2 anos e 10 meses depois, não fez chegar ao processo nem ao Ministério Público, qualquer relato crítico do período da sua permanência.
126. Esta Assistente não teve privação de cuidados médicos, sempre que necessitou foi devidamente encaminhada.
127. Sobre a prova do Facto Provado em 123.º, o tribunal a quo baseou-se apenas no depoimento da Assistente WW, sem fundamentar a sua razão de ciência, evidenciando, deste modo, um caracter geral e circunstanciado,
128. Daqui resulta que não havia nenhum sentimento de privação da liberdade, ou que as Assistentes estivesse sujeitas a uma condição da qual não pudessem reagir.
Termos em que,
Nos termos das alíneas a) e b) do art.º 431.º, do C.P.Penal, deverão estes factos 113º a 140.º, serem dados como Não Provados, porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove, relativamente à aqui Recorrente CC nem o AA, consignado mesmo que sobre esta Assistente GG, não se verificaram os elementos objectivos nem subjectivos do crime de escravidão, até pelo facto da mesma ter regressado ao convento, elucidativo do seu consentimento.
129. Factos Provados em 141.º a 163.º - referentes à II:
O Tribunal a quo desconsiderou, mais uma vez, as declarações prestadas pelas Assistentes, neste caso a Assistente II, na Sessão de 07/...22, por reporte à Acta de Julgamento desse dia, sob o Ficheiro áudio: 20220407122354_5876324_2870532, tendo esta afirmado que às 2.ª feiras de tarde ia quase sempre ao correio, sem qualquer companhia, e que levava muitas vezes consigo o telemóvel, conforme minuto 00:07:35.
130. O Tribunal a quo desconsiderou igualmente o depoimento da testemunha AAA, prestado naquela mesma Sessão de Julgamento, tendo esclarecido que explora o aviário que se localiza mesmo defronte do Convento, e que a Assistente II (a quem chamavam BBB, tal como esta testemunha) muitas vezes ali se deslocava sozinha para lhe levar, e aos seus empregados, um lanche. Situação ocorrida também com a Assistentes HH; GG e EE, e também com a aqui Recorrente DD, conforme minuto 00:10:30 a minuto 00:12:26, ficando por vezes muito tempo a falar daquilo que faziam no Convento, e alguns dos seus empregados chegaram a ir aos convívios a convite delas.
131. Daqui se retira que esta Assistente, como outras, tinha muita liberdade para sair do Convento e ir ao aviário da testemunha levar comida para os trabalhadores, ficando muitas vezes a falar com eles.
Mas mais importante ainda:
132. Quando a Assistente II decidiu deixar a Fraternidade, pegou no telemóvel e telefonou à testemunha CCC, combinando com este a hora em que a devia ir buscar, tendo depois aberto o portão e saído sem problema algum, conforme minuto 01:30:29, tendo esta testemunha corroborado estes factos, em declarações prestadas na Sessão de Julgamento de 08/11/2021, por reporte à Acta desse dia, sob o Ficheiro áudio 20211108141801_5876324_2870532, entre o minutos 00:34:15 e 00:45:18.
133. Atente-se nas declarações das Assistentes EE, HH e GG, a Assistente II era uma das protegidas da arguida BB, a quem denunciava as “asneiras” que as colegas faziam, e quando lhe era permitido sovar nas outras, a mando da referida BB, batia com força, com gosto, leiam-se as transcrições já juntas neste nas Motivações deste Recurso.
Atente-se nas suas declarações, minutos 01:30:29.
Termos em que,
Nos termos das alíneas a) e b) do art.º 431.º, do C.P.Penal, deverão estes factos141.º a 163.º, serem dados como Não Provados, porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove, relativamente à aqui Recorrente CC, consignado mesmo que sobre esta Assistente II, não se verificaram os elementos objectivos nem subjectivos do crime de escravidão, até pelo facto da mesma ter saído quando quis sair.
164. Factos Provados em 164.º a 184.º - Referentes Assistente LL:
O Tribunal a quo deu como assente que a Assistente LL foi expulsa da Fraternidade Missionária, daqui se retira que pelos seus motivos pode-se a Fraternidade Missionária não pretendia angariar mão-de-obra, mas sim receber no seu seio noviças com valores religiosos.
165. Nos factos dados como provados pelo Tribunal não resulta qualquer imputação aos aqui Recorrentes.
Termos em que,
Nos termos das alíneas a) e b) do art.º 431.º, do C.P.Penal, deverão estes factos 164.º a 181.º, serem dados como Não Provados, porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove, relativamente à aqui Recorrente CC, consignado mesmo que sobre esta Assistente LL, não se verificaram os elementos objectivos nem subjectivos do crime de escravidão, até pelo facto da mesma ter sido expulsa.
166. - Factos Provados em 182.º a 184.º - referentes à JJ:
O Tribunal a quo desconsiderou, mais uma vez, as declarações prestadas pela Assistente JJ, Sessão de 01/06/2021, por reporte à Acta de Julgamento desse dia, sob o Ficheiro áudio 20210601144553_5876324_2870532, do minuto 00:35:10 ao minuto 00:35:53, tendo esta esclarecido que deixou a Fraternidade Missionária saindo pelo parque de estacionamento, por volta do meio-dia, tal como a Assistente II o havia feito, ou seja, quando quis ir embora, abriu o portão e saiu.
167. Mais esclareceu esta Assistente que nunca foi agredida pelos Arguidos AA e CC, conforme minutos 01:34:01 a 01:34:10, devendo, também por aqui, serem aqueles factos dados como Não Provados, porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove, relativamente aos aqui Recorrentes.
Pelo exposto
Perante a impugnação da matéria assente e das concretas provas aqui apresentadas e que impõem decisão diversa da Decorrida, deve o Tribunal a quem proceder à alteração dos factos incorrectamente julgados, nos termos das alíneas a) e b) do art. 431.º, do C.P.Penal, conforme referidos no presente Recurso.
DO DIREITO:
168. O arguido AA e CC foram condenados por crimes materiais ou de resultado, no sentido em que atendendo ao elemento estruturante do tipo objectivo “conduta” não basta o a mera actuação mais sim a produção de um resultado, conforme prescreve o artº 10 nº1 e 2 do CP.
169. Assim, ao nível do tipo objectivo, coloca-se o problema da imputação ao resultado à conduta.
170. Pelo que o primeiro degrau valorativo que o intérprete e aplicador da lei tem de percorrer é perguntar se sem a conduta do agente o resultado se teria ou não produzido do mesmo modo, segundo um processo de supressão mental.
171. Se a resposta for no sentido de que só com a conduta do agente é que o resultado se produziu, então este responde pelo último, pois sem a atuação do agente não há ‘possibilidade no mundo real e lógico de que o resultado ocorra. Daí a designação conditio sine qua non.
172. Este primeiro grau valorativo terá que ser percorrido pelo intérprete e aplicador da lei sob pena de a imputação objetiva se converter num processo meramente teórico, sem qualquer adesão à realidade.
173. Na medida em que ficando por aqui, resultaria que a responsabilidade pela conduta do agente seria sempre de quem a teria gerado, a relação da causalidade não é suficiente. Há que imputar aquele resultado à conduta do agente – Teoria da adequação.
174. Segundo esta teoria, seria causa de um dado resultado todo o comportamento que fosse adequado a produzi-lo, de acordo com os conhecimentos da generalidade da comunidade e os conhecimentos do concreto agente, desde que se pudesse elaborar um processo de prognose póstuma. Concluindo-se que a teoria da adequação não era a mais perfeita, que tinha falhas, uma vez que abrangia certas situações que não deviam ser abrangidas e outras em que sucedia o contrário, entendeu-se que o problema exigia que se percorresse os dois degraus valorativos – teoria das condições e teoria da adequação e se passasse para um terceiro momento – teoria da conexão do risco.
175. Assim, se se concluísse que, facticamente aquela acção ou omissão produziu aquela conduta e que a mesma era adequada, no sentido de previsível, não poderíamos ficar por aqui.
176. Há que analisar se existiu ou interrupção de nexo causal, causalidade cumulativa, causalidade alternativa, conforme a teria da conexão do risco.
177. Apesar de haver autores que, ao contrário destas três hipóteses de conexão de risco, defendem os critérios correctores de risco diminuído, dos comportamentos lícitos alternativos, do âmbito de protecção da norma ou do risco permitido, estas hipóteses não interessam para o caso, sendo certo que nenhuma delas se verifica aqui, pelo que se continua a negar a imputação objectiva.
178. Revertendo ao caso dos autos, no que contende com o Sr. Padre foi provado à saciedade, como resulta da impugnação da matéria de facto, que aquele sacerdote tinha apenas por funções o acompanhamento espiritual das irmãs e noviças, ou seja, de todas as pessoas que integravam a Fraternidade. A ele não cabia o cuidado diário das supostas ofendidas, nem as ordens concretas que a arguida BB lhes podia dar.
179. Do mesmo modo, este arguido não se ocupava do modo como eram alimentadas, onde e como dormiam, se tinham ou não contactos com o exterior e se necessitavam de cuidados de saúde.
180. Esse papel cabia à arguida BB que, para o efeito, muitas vezes usava a DD como se de um verdadeiro instrumento se tratasse.
181. Ora para que o arguido AA possa ser condenando como co-autor, torna-se essencial que a este se possam imputar os resultados à conduta, pois que a co-autoria exige o preenchimento dos requisitos de acordo prévio e de realização conjunta, sem os quais inexiste co-autoria.
182. E tal não sucede a luz de teoria da conexão do risco, nem de qualquer das teorias explanadas na motivação e supre referidas.
183. Há prova suficiente que demonstra que, ao ignorar os alegados abusos de que foram vítimas as ofendidas, nunca os resultados lesivos lhe podiam ser imputados, na medida em que qualquer que seja a modalidade de imputação objectiva que se propugne, ela importa sempre o conhecimento da realidade de facto sobre a qual o agente actua.
184. Não se pode, de idêntico modo, elaborar qualquer requisito de previsibilidade à luz da teoria da adequação, nem se coloca qualquer dos requisitos adicionais que compõem o cerne da “teoria da conexão do risco”.
185. Nos que concerne ao arguido AA, nem sequer o mesmo preenche o primeiro elemento do conceito do dolo-do-tipo, o elemento intelectual, dado que este dolo é definido como o conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo.
186. Pelo que, nunca poderia o arguido ter-se colocado contra o Direito ou mostrar atitude de indiferença, pois que tal só pode suceder quando se conhece a realidade externa.
187. Nem se diga que ao arguido incumbia conhecê-la, porquanto o acórdão lhe imputa os crimes sempre a título de acção e nunca de omissão impura ou imprópria do artº 10º nº1 e nº2 do CP.
188. O mero equacionamento dos crimes por omissão impura violaria a estrutura tendencialmente acusatória do nosso processo penal, imposta pelo artigo 32º nº 5 da CRP - que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais -, dado que nunca tal foi aflorado na acusação, pelo que os arguidos nunca poderiam ter-se defendido em relação a tais imputações, por inexistentes.
189. Nem nunca o tribunal lançou mão dos mecanismos a que aludem os artigos 358.º e 359.º do CPP.
190. Assim, estamos perante uma nulidade de sentença do artº 379.º nº 1, al.b) do CPP
191. Daqui resulta que que outra não pode ser a solução jurídica resultante do exame crítico da prova que não seja a da absolvição do arguido AA.
192. Por economia processual e comodidade de exposição, o mesmo se pode dizer em relação à arguida CC, uma vez que, tendo em conta a prova produzida em audiência, a mesma se ocupava da direcção financeira da Fraternidade e não dos cuidados que eram ou não dispensados às noviças, aqui alegadas ofendidas.
193. Na medida em que não lhe cabendo outras funções e, não estando alegado que sobre ela impendia qualquer dever legal de garante do art.º 10º nº 2 do CP, não há imputação à conduta.
194. Nem se diga que, quer no caso do arguido AA, quer no caso da arguida CC, existia uma espécie de “domínio potencial de imputação” como se pela simples circunstância de estarem na Fraternidade, tivessem de conhecer tudo o que lá se passa.
195. A teoria da e equivalência das condições equivalentes surgiu precisamente contra “o domínio meramente potencial”, de tal forma que o resultado tem que ser sempre obra física, própria e efectiva de alguém e não meramente teorético ou potencial.
196. Pelas mesmas razões invocadas a propósito do arguido AA, deve também a arguida CC ser absolvida de todos os crimes de escravidão.

SEM CONCEDER, O QUE NÃO SE CONCEDE:
PARA O CASO SE MANTER INALTERADA A MATÉRIA DE FACTO DO ACORDÃO RECORRIDO:

197. De acordo com os instrumentos de Direito Internacional Público e Direito Europeu que vinculam o Estado Português, em especial a Convenção relativa à Escravatura de 1926, a Convenção Suplementar Relativa à Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura e a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, todas elas, de entre outros monumentos legislativos vinculativos para o Estado português, nos termos do art. 8.º da CRP, a escravatura é definida como “o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade”.
198. Sabido que a fonte legislativa do art. 159.º do CP nacional foi o seu homólogo austríaco, o § 104 do diploma, sob a epígrafe “trabalho forçado” (Sklaverei), não define o que entende por “escravatura” ou “escravidão”, sendo exacto que sempre terá de ser à luz da noção apresentada na conclusão anterior que tal estado ou condição terá de ser entendida.
199. Mesmo partindo do princípio, por mera cautela de patrocínio e exercício académico, que todos os factos dados como provados pelo tribunal a quo – o que se não concede, como visto –, correspondem efectivamente à prova produzida e examinada em audiência de julgamento (art. 355.º do CPP), existe um clamoroso erro de qualificação jurídica, dado que os mesmos se não enquadram no crime p. e p. no art. 159.º, al. a), do CP.
200. Na verdade, reconhece-se que os presentes autos, fruto da sua ampla cobertura mediática, suscitaram e podem ainda suscitar opiniões apaixonadas, subjectivas e irracionais, todavia, como V. Exas. melhor que ninguém sabem, a administração da Justiça não se compadece com nenhuma destas formas de actuar, exigindo antes objectividade, seriedade, racionalidade e ausência de pré-juízos formados pelo que se leu ou ouviu.
201. É exactamente a essas qualidades presentes nos Venerandos Desembargadores que ora se apela.
202. Para estarmos perante um crime de escravidão, mister se torna que, sem ou contra a vontade do ou dos titulares dos bens jurídico-penais, sendo estes disponíveis, não violando os “bons costumes” e obedecendo aos demais requisitos do art. 38.º do CP, inexista qualquer tipo de consentimento – expresso, tácito ou por actos concludentes – que exclua a tipicidade da conduta.
203. Acresce que o ou os ofendidos têm de ser reduzidos à condição de um simples objecto em relação ao qual se exerçam todas as faculdades inerentes ao direito real de propriedade, de tal forma que não reste nenhum espaço de liberdade ou de iniciativa para quem se vê reduzido à condição ou ao estado de escravo/a.
204. Não é isto que se retira do acervo factual dado como provado, na medida em que, como melhor explanado nas motivações recursórias – de novo mesmo que se admita todo o dito acervo, o que se não concede –, não há uma limitação total, por parte dos arguidos, em relação às alegadas ofendidas.
205. Assim é que, como se indicou por referência aos específicos pontos da matéria de facto dada por provada, as pretensas ofendidas não se encontravam encerradas nas instalações da Fraternidade, como se de um cárcere privado se tratasse, tendo várias delas daí saído para receber cuidados médicos, para visitar a família e também – e sobretudo –, várias delas, de livre e espontânea vontade, sem que os arguidos lhes tivessem colocado qualquer obstáculo, saíram da instituição.
206. Se estivessem reduzidas à condição de escravo, estando coisificadas, nunca tal poderia suceder de acordo com as regras da experiência comum do art. 127.º do CPP, nem os arguidos o teriam permitido, por certo com receio que elas pudessem apresentar queixas-crime nas autoridades competentes.
207. Tudo, no sentido, de que nada tinham a esconder, pois todas as acções e omissões que os arguidos empreenderam eram sempre orientadas para o cumprimento das regras da Fraternidade e da educação das noviças para o serviço a Deus.
208. Podemos gostar mais ou menos das mesmas, no entanto, atento o direito constitucional da liberdade religiosa, de crença, de culto e de pensamento do art. 41.º da CRP, não violando outros bens jurídicos, é materialmente inconstitucional a interpretação segundo a qual cabe ao Estado, através dos seus tribunais, como órgão de soberania, aquilatar da correcção ou não de tais práticas.
209. Bastará recordar o que sucede em várias congregações religiosas também catolicamente erectas, bem como em prelaturas pessoais de Sua Santidade o Papa, como o Opus Dei, onde as mortificações e os castigos corporais fazem parte do modo de vivência dos ensinamentos católicos – concorde-se ou não com eles, mas tendo de ser respeitado por via do art. 41.º da CRP –, ponto é, naturalmente, que com o consentimento do titular do bem jurídico, a que se associam períodos de oração em condições físicas difíceis ou de jejum de comida e/ou bebida.
210. Pelo exposto – e como se desenvolveu nas motivações de recurso – as ofendidas, expressa ou tacitamente, consentiram na factualidade descrita no acórdão a quo, sendo que se acham verificados todos os requisitos exigidos pelo art. 38.º do CP: eram maiores de 16 anos e estavam em condições de entender e querer o alcance e sentido do consentimento, estamos em face de bens jurídicos livremente disponíveis pelo próprio – integridade física e honra – e, em face do quadro descrito, que deve ser sempre tido em consideração, não há ofensa aos “bons costumes”.
211. Dúvidas inexistem quanto ao cariz disponível da integridade física, bastando compulsar o art. 149.º, n.º 1, do CP.
212. O mesmo se diga quanto à honra, bastando pensar que os tipos legais p. e p. pelos artigos 180.º, ss., do CP são, por regra (art. 188.º do CP) crimes particulares, o que é uma claríssima nota distintiva da sua disponibilidade, por mais se exigir ao ofendido.
213. O preenchimento do conceito de “bons costumes”, sendo de ius aequum, é sempre mais complexo, mas vem sendo defendido na doutrina – com o que se concorda – que o n.º 2 do art. 149.º do CP deve iluminar os demais bens jurídicos para além da integridade física a que directamente se aplica.
214. Assim, “os motivos e os fins do agente” foram sempre no sentido de fazer com que as ofendidas interiorizassem as regras da Fraternidade, da congregação e da Igreja Católica, tendo-se já visto que alguns sectores da mesma, provavelmente mais conservadores, usam castigos físicos e ofensas à honra como forma de interiorização dos ensinamentos da fé que professam.
215. Em momento algum houve qualquer intenção dos arguidos de diminuir as ofendidas à condição de objectos, de escravas, de as quantificar, mas somente – o que acontece em qualquer instituição como esta que, na prática, funcionava para as ofendidas como um convento – a de as preparar para serem irmãs plenas e cumpridoras das regras da congregação.
216. Os “meios empregados” – de novo admitindo como totalmente válidos os factos dados por provados, o que se não concede – podem ter sido, aqui e além, um pouco desproporcionados em relação aos objectivos atrás transcritos, mas de modo algum importaram a coisificação das ofendidas, dado que não há sequelas graves do prisma da integridade física ou mesmo da honra, tanto mais que todos nós conhecemos expressões bem mais ofensivas.
217. Sendo certo que o bem jurídico do crime de escravidão contempla uma inegável feição qualitativa – sobre a qual já nos debruçaremos –, certo é que também existe nele uma dimensão quantitativa.
218. Trace-se o paralelo com o delito de violência doméstica, onde a hermenêutica do segmento do tipo objectivo “maus tratos físicos ou psíquicos”, não contendendo já com a existência ou não de reiteração (art. 152.º, n.º 1, do CP), tem sido interpretado como situando- se no campo de tensão entre a tortura e a vulneração de outros bens jurídicos associados a esse fenómeno, como a integridade física, a honra, a liberdade pessoal ou a liberdade sexual.
219. Donde, tem sido jurisprudência pacífica, p. ex., que um estalo não é apto a preencher o crime de violência doméstica, o que não significa que fique impune, pois o ordenamento conta com normas como a do art. 143.º, n.º 1, do CP.
220. Ora, é disto que se trata nos presentes autos: a imagem global da ilicitude e da culpa que se retira dos factos provados não é adequada, em nosso juízo, a que se possa dizer que o bem jurídico foi violado – mesmo desconsiderando, por momentos, por mera necessidade de interpretação, a justificação da ilicitude do art. 38.º do mesmo Código – de forma tal que possamos em face de crimes de escravidão, os quais exigiriam comportamentos muito mais graves em quantidade e em qualidade.
221. É este o momento, pois, para afrontarmos a questão de qual o valor ou interesse juridicamente tutelado pelo art. 159.º, al. a), do CP.
222. Como se desenvolveu nas motivações recursórias, existem, no essencial, duas visões sobre o mesmo: a dignidade da pessoa humana (TAIPA DE CARVALHO) ou a existência de um bem jurídico complexo, que engloba a liberdade, a integridade física, a honra, entre outros (PINTO DE ALBUQUERQUE).
223. Tal como de igual modo houve ocasião de explicar, como magistralmente foi demonstrado por FIGUEIREDO DIAS, atenta a função específica que ocupa em todo o nosso ordenamento jurídico e a sua rarefacção, a dignidade da pessoa humana não tem rendibilidade político-criminal e dogmática para ser erigida a um específico bem jurídico-penal.
224. Ora, foi esse o entendimento seguido pelo tribunal de 1.ª instância, o que, como visto, é tecnicamente errado.
225. Assim, para além do erro de Direito de os factos dados como provados – ainda que indiscutidos – não serem aptos a preencher os elementos objectivos e subjectivos do crime de escravidão, existe um outro erro quanto à identificação do bem jurídico, que, como se sabe, é sempre um padrão de leitura e uma luz iluminadora das condutas que se devem ou não considerar abrangidas.
226. Por mera lógica, caindo a concepção de bem jurídico patrocinada no aresto a quo, cai a demais construção jurídica e os factos provados não são aptos a preencher o art. 159.º, al. a), do CP.
227. Todavia, se se seguir a posição de Pinto de Albuquerque, de igual modo chegamos ao mesmo resultado, visto que, como dito, a quantidade e qualidade do descrito não chega para assumir a gravidade tal que justifique a existência de escravidão.
228. Repare-se num dado muito importante: quando se defende que um crime tem por bem jurídico complexo um que se designa dessa forma, tal não significa que o dito interesse seja um simples conglomerado dos “sub-bens” que o integram, mas comporta sim que se reconheça à imagem global de tais factos uma dimensão de ilicitude e/ou culpa aumentada significativamente.
229. Se assim não fosse, perderia todo o sentido lógico e jurídico da existência de crimes pluriofensivos.
230. Revertendo ao caso dos autos, tal acréscimo destes elementos do conceito material de crime não se vislumbra, de novo mesmo tendo como certos – o que se não admite – os factos dados por provados, quando dos mesmos se respiga:
a) Como entender o largo tempo que grande parte das ofendidas passou na Fraternidade, sendo que houve algumas que fugiram, outras que foram expulsas e ainda outras que decidiram, livremente, abandonar aquele local e até regressar?
b) A ofendida HH esteve 25 anos na Fraternidade, a GG 10 anos, 7 meses e 25 dias, a EE 10 anos, 9 meses e 17 dias e a II 9 anos e 3 meses (facto 26).
c) O facto 30 diz que as ofendidas conviviam mensalmente com os familiares, o que é habitual numa instituição religiosa, algumas existindo em que não mais as noviças voltam a ter contacto algum com a família de origem. Do mesmo passo, não é verdade que tenham sido totalmente privadas dos contactos telefónicos com os seus familiares, como aliás flui do facto 106 – “os contactos telefónicos eram esporádicos” –, de novo se salientando que o tribunal a quo se alheou totalmente da dinâmica própria deste tipo de instituições, em que o vínculo com a família é, muitas vezes, até totalmente cortado.
d) Os factos 82 e 106 reconhecem que as ofendidas tomavam banho.
e) O facto 84 relata que EE “abandonou a Fraternidade”, nada se dizendo quanto a obstáculos que a tivessem impedido. E mesmo que tivessem existido, o certo é que o conseguiu fazer, o que bem mostra que se não tratava de um castelo medieval com sevícias maléficas como pretende fazer crer o aresto ora impugnado.
f) O mesmo sucedeu com JJ, que fugiu da instituição em 6/1/2007 (facto 182), tendo relatado em audiência de julgamento que o fez ao meio-dia, abrindo o portão do parque de estacionamento, e saiu.
g)A II também fugiu – facto 141 e 317, tendo esta relatado em audiência de julgamento que telefonou previamente à testemunha CCC para a vir buscar á noite ao portão do parque de estacionamento, e à hora aprazada, abriu o portão e saiu.
h) O facto 86 indica que KK foi expulsa da Fraternidade a 13/5/2009.
Ora, se o plano criminoso fosse o descrito pelo aresto recorrido, nunca os arguidos teriam deixado qualquer noviça sair da instituição, com alegado medo de que pudessem contactar o MP ou a polícia, relatando o que aí se passava, o que depõe no sentido de que os arguidos – mesmo admitindo a totalidade dos factos dados como provados – estavam convencidos que cumpriam os objectivos da Fraternidade e a educação para que as noviças se viessem a tornar mulheres dedicadas em exclusivo a Deus.
i) O mesmo quando à FF, pois o facto 80 dá como provado que esta no dia 16/5/2015 abandonou a Fraternidade Missionária, por sua iniciativa.
Então qualquer uma das Assistentes o podia fazer, revelando que não estavam privadas de liberdade. Acresce que as Assistente nas declarações prestadas em audiência de julgamento confirmaram todas que os portões não eram fechados à chaves, só estavam com o trinco e que se podiam abrir todos por dentro, tendo a Assistente KK confirmado que se quisesse sair podia sair livremente.
g) O facto 100 reconhece que a mesma KK se deslocou ao médico, pelo que não é verdade que em absoluto era negado às ofendidas tratamento clínico.
h) O facto 103 dá conta que WW “ingressou na Fraternidade” em 1990 (…) “permanecendo até ao dia ../../2015”, ou seja, 25 anos, “tendo voltado a ingressar em 7/1/2016, onde ainda permanece”. Se tudo o que foi dado como provado fosse verdade, não apenas não teriam deixado os arguidos que a HH saísse da Fraternidade, como se não compreende como, tendo lá estado 25 anos e, por isso, bem conhecendo o que lá se passava e a alegada conduta dos agentes, tenha, motu proprio, regressado menos de 2 meses depois. Se houvesse algo a esconder, por outro lado, os arguidos também nunca teriam aceitado o regresso da HH. Basta conjugar este facto com o art. 127.º do CPP para se entender que não pode este facto ser dado como provado.
i) Algo de semelhante aconteceu com GG, como resulta do facto 113: permaneceu no local cerca de 10 anos, saiu voluntariamente, “tendo voltado a ingressar em 7/1/2016”, conforme documento junto a fls. 537 dos autos, uma vez mais menos de 2 meses depois da sua saída, e aí permaneceu mais cerca de 2 anos até 18/11/2018.
j) Quanto à mesma ofendida, os factos 118 a 121 demonstram que a mesma teve assistência médica no centro de saúde de ... e no Hospital ..., para além de acesso a uma consulta médica privada, a que se junta o internamento na Casa de Saúde ..., no Porto e nova ida ao centro de saúde.
k) A LL foi expulsa da instituição, repetindo-se aqui o que já se disse acima quanto ao que isto representa (facto 164).
l) Não é verdade o quadro resultante do aresto sob recurso, quando o próprio admite que, ao menos em dado momento, pessoas como a JJ “foi levada para um quarto onde tinha todas as comodidades” (facto 388) e teve acesso a cuidados de saúde, como expressamente se reconhece no facto 402.
231. Reportando-nos à al. a) do n.º supra, é nossa convicção que a perda do direito de ir e de vir, rectius, a sua supressão pelo agente (do ius ambulandi) é um elemento implícito do tipo, o que de todo se verifica no manancial de factos dados por provados, pois que as ofendidas circulavam dentro do espaço ocupado pela Fraternidade, saíam para receber cuidados médicos, para conviverem com as famílias e até tinham a liberdade de abandonar a Fraternidade e, mais tarde regressarem, o que só pode ser interpretado no sentido de que aí se sentiam bem.
232. Perante o exposto, o aresto recorrido padece da nulidade de sentença a que alude a al. c) do n.º 1 do art. 379.º do CP, pois que em momento algum o tribunal recorrido analisou com cuidado, de modo aprofundado, nem se pronunciou sobre a existência de consentimento relevante, válido e eficaz, como o devia fazer, tratando-se como se trata de um tipo justificador que, oficiosamente, o tribunal deve analisar – iura novit curia.
233. Assim, não se pronunciou sobre matéria em relação à qual se devia ter pronunciado.
234. Mas o aresto recorrido representa ainda uma violação de dois dos fundamentos do recurso de revista ampliado previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
235. Em primeiro lugar porque, como visto acima, mesmo que os factos provados fossem incontestáveis e incontestados – que não são –, há insuficiência dos mesmos para o que deles se pretende retirar, ou seja, o preenchimento do crime do art. 159.º, al. a), do CP, bastando atentar nos factos que atrás transcrevemos e que demonstram que as ofendidas não foram coisificadas.
236. Por outro lado, e decorrente do que se escreveu agora, há contradição insanável entre a fundamentação (de facto e de Direito) e a decisão final, pois que os ditos factos não têm virtualidade para condenar os arguidos mas, ao invés, para os absolver.
237. O Acordão Recorrido violou as normas dos artigos 127.º, 355.º, 358.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1 b) e c), todos do C.P.Penal, e bem assim as normas dos artigos 10.º, n.º 1; 14.º, n.º 1 e n.º 2; 17.º; 26.º; 33.º; 34.º; 35.º; n.º 1; 37.º; 38.º; e 159.º, al. a), todos estes do C.Penal, e ainda os artigos 8.º e 41.º, ambos da C.R.Portuguesa.

****
Termos em que, e nos demais de direito,

Deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele:
a) O Acordão ser declarado nulo, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, b), porquanto condenou a aqui Recorrente CC e o Recorrente AA por factos diversos dos escritos na Acusação Pública, não foi dado cumprimento ao n.º 1 do art.º 358.º, ambos do CPP;
b) O Acordão ser declarado nulo, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, c), do CPP, porquanto o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a existência de consentimento relevante, válido e eficaz, como o devia fazer, tratando-se como se trata de um tipo justificador que, oficiosamente, o tribunal deve analisar.
c) O Acordão padece de dois dos vícios da decisão sobre a matéria de facto, da insuficiência para a decisão da matéria de factos provada e de erro notório na apreciação da prova, nos termos das alíneas a) e c), do n.º 2 do art. 410.º, do CPP, e que aqui se suscitam.
d) Alterados os factos provados no Acordão, nos termos supra enunciados na impugnação da matéria de factos, ao abrigo do art. 431.º, al. a) e b), do CPP.
e) O Acordão revogado, e serem os Recorrentes CC e AA absolvidos do crime de escravidão, bem como dos respectivos pedidos de indemnização civil, e também das indemnizações arbitradas pelo Tribunal a quo.
Sem precindir:
f) Atento o direito constitucional da liberdade religiosa, de crença, de culto e de pensamento do art. 41.º da CRP, não violando outros bens jurídicos, é materialmente inconstitucional a interpretação segundo a qual cabe ao Estado, através dos seus tribunais, como órgão de soberania, aquilatar da correcção ou não de tais práticas, inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca.
Fazendo-se Justiça.”

I.2.2 Inconformada com a decisão condenatória contra si proferida, dela veio a arguida DD interpor recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões e petitório (referências ...51 e ...83)[2]:

“Dos Factos:
1. O presente recurso tem por objecto matéria de facto e de direito do Douto Acordão proferido nos autos, que julgou procedente a Acusação Publica, e condenou a aqui Recorrente DD, pela prática, como co-autora de nove (9) crimes de escravidão, p. e p. pelo art.º 159.º, n.º 1, alínea a); art.º 26.º; art.º 30.º, n.º 1, e n.º 2; art.º 14.º, n.º 1; e art.º 11.º, n.º 2, alínea a), todos do C.Penal, tendo também sido condenada de forma solidária ao pagamento de indeminizações às Assistentes e Ofendidas, e bem assim a pagar as quantias arbitradas pelo Tribunal a quo:, mas pessoas de: EE (numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão e ao pagamento de 175.000,00 €); FF (numa pena de 5 anos de prisão e ao pagamento de 30.000,00 €); GG (numa pena e 5 anos e 6 meses de prisão e ao pagamento de 176.200,00 €); HH (numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão e ao pagamento de 50.000,00 €); II (numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão e ao pagamento de 170.000,00 €); JJ (numa pena de 5 anos de prisão e ao pagamento de 50.000,00 €); KK (numa pena de 5 anos de prisão e ao pagamento de 30.000,00 €); LL (numa pena de 5 anos de prisão e ao pagamento de 30.000,00 €); e MM (numa pena de 6 anos de prisão e ao pagamento de 335.000,00 €), e a OO (ao pagamento de 160.000,00 €), e cúmulo jurídico, condenada numa pena única de 12 (doze) anos de prisão.
2. A causa não foi bem decidida, padecendo de manifesto erro de julgamento, quer de facto como de direito, pelo que a Recorrente impugna, neste Recurso, os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, com reapreciação da prova gravada, e bem assim, a subsunção jurídica dos mesmos, e ainda a qualificação jurídica do crime de escravidão e da autoria que lhe foi imputada, pois na sua modesta opinião, não praticou o(s) crime(s) pelo(s) qual(is) foi condenada, nem os Factos Provados a manterem-se inalterados, podiam configurar a prática de crimes de escravidão.
3. O Tribunal a quo considerou provados os factos transcritos na Motivação supra e que aqui agora se enumeram como concretos pontos de facto que a Recorrente DD considera terem sido incorrectamente julgados:
- Factos 5.º; 6.º; 13.º; 16.º; 17.º; 18.º; 20.º; 21.º; 22.º; 23.º; 24.º; 27.º; 28.º; 29.º; 30.º; 31.º; 32.º; 33.º; 34.º; e 41.º:
4. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão no depoimento prestado pelas Assistentes, no entanto, não se pode perder de vista que estas têm interesse directo na causa, e o testemunho de cada uma a favor das demais devia ter sido apreciado com muita reserva e parcimónia pelo Tribunal a quo, e agora pelo Tribunal a quem.
Mesmo assim,
5. Da audição das gravações afere-se da existência de erro na apreciação dos depoimentos prestados pelas Assistentes e pelas testemunhas, por evidente contradição entre aquilo que foi dito em julgamento e o que o Tribunal a quo deu depois como provado, como mais à frente se concretizará.
6. O mesmo se diga na apreciação da prova documental em confronto com os depoimentos prestados pelas Assistentes e por diversas testemunhas, pois, apesar da Recorrente DD figurar como “Tesoureira da Direcção” na Provisão dos Corpos Gerentes da Fraternidade Missionária ..., conforme Acta n.º ..., de 22 de Maio de 2014, junta a fls. 63 e 64 do Anexo I; e constar como tal também na Provisão dos Corpos Gerentes da Arguida Centro Social, nos termos da Acta n.º ..., de 07 de Novembro de 2014, junta a fls. 93 e 94 dos autos, e nos novos Estatuto da Fraternidade Missionária ..., redigidos em Julho de 2014, e juntos a fls. 123 e ss, do também Anexo I, se definir a responsabilidade inerente a esse cargo/função, de acordo com os seus artigos 12.º; 14.º; 28.º; 29.º; e 34.º, tais competências e responsabilidades apenas constavam no papel, mas não de facto, porquanto a mesma não foi fundadora da Fraternidade Missionária, nem participou nem acompanhou na elaboração dos seus Estatutos, nem dos da Arguida Centro Social, nem tão pouco esteve na criação desta instituição, porquanto no seio da vida do Convento tinha uma função igual às das Assistentes.
7. Até por clara contradição com o Facto Provado em 19.º, pois o Tribunal a quo deu como assente que a Arguida CC, tinha como funções próprias: “a gestão financeira, administrativa, e detinha a seu cargo a tipografia.”, facto corroborado por todas as Assistentes e por testemunhas.
Por outro lado,
8. A Fraternidade Missionária ... (doravante designada apenas por Fraternidade Missionária) foi constituída em 1967, teve como fundadores os Arguidos AA e CC, tendo-se estabelecido, primeiramente na ..., depois na Rua ..., em Lisboa, mudando-se para o ..., em ..., e por fim fixou-se em ..., ..., tendo a recorrente DD ingressado no ano de 1972, para Lisboa, conforme audição da inquirição da testemunha MM, que depôs de forma imparcial, isenta e coerente, demonstrando ter conhecimento directo desses factos, por ter ingressado na Fraternidade Missionária em 1968 e saído em 1973, e recordar-se da Recorrente DD ter entrado em 1972 para Lisboa, nomeadamente aos minutos 00:00:05; 00:00:37; 00:01:11 e 00:03:11, na Sessão de Julgamento de 25/02/2022, por reporte à Acta desse dia, sob o ficheiro áudio 20220225095931_5876324_28705322.
Mais flagrante ainda:
9. O Tribunal a quo desvalorizou por completo as declarações prestadas pelas próprias Assistentes, conforme transcrições dos depoimentos apresentadas na Motivação supra, e que aqui se resumem:
- EE, quando ingressou no Convento tinha 20 anos de idade e o 12.º ano de escolaridade:
- prestadas na Secção de 31/05/2021, por reporte à Acta de Julgamento desse dia, sob o Ficheiro áudio: ...13_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial aos minutos:
00:28:07; 00:28:14; 00:39:38; 01:16:44:
- a Irmã DD, “era uma como nós” (como as Assistentes);
- a única diferença é que era muito mais velha do que as Assistentes, cerca de 30 anos;
- “não mandava”;
-“a Irmã DD já chegou a dormir com outro cão que nós tínhamos, que também teve um cancro de estômago e passava muitas noites também com ele. …mas como nessa altura a Irmã DD tinha sido operado às costas, ela não tinha condições de poder estar com o cão nessa altura e então fomos as mais novas, as quatro.”.
- A Recorrente também não jantava na sala da televisão, e comia com as Assistentes na cozinha;
- prestadas da parte da tarde daquele dia 31/05/2021, por referência à Acta de Julgamento desse dia, por referência ao Ficheiro áudio: ...39_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial aos minutos: 00:33:58; 00:34:02; 00:34:07; 00:34:11; do minuto 00:34:53 ao minuto 00:35:09; minutos: 00:35:02; 00:35:09; 00:34:11; 00:34:26:
- “Ela também tinha muito medo dela!” (referindo-se à Arguida BB);
- “Tinha medo dela! Tinha pavor! Nós todas! Ai Jesus!”;
- “A gente, só de ver que ela já se estava a aproximar… Nós já ficávamos com o coração na boca!”
- questionada pela Meritíssima Juíza se a Recorrente DD estava ao mesmo nível do que as Arguidas BB e CC, respondeu: “Não, não, a Irmã DD era igual a nós!”
- novamente questionada pela Meritíssima Juíza, se a Arguida BB “também poderia dar socadas e desferir assim umas bofetadas na DD?”, respondeu afirmativamente: “Ai, sim, sim, sim. Ai sim, sim”, confirmando ter assistido a Arguida BB “a dar-lhe uma bofetada na cara!”.
- prestadas ainda naquele 31/05/2021, por referência à Acta de Julgamento desse dia, e à referência do Ficheiro áudio: ...03_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial aos minutos: 00:24:34; 00:24:52; 00:29:42:
- a Recorrente DD fazia tudo igual a elas, Assistentes, e só pelo facto de ter sido operada à coluna “não fazia tantos esforços como nós fazíamos”.
- prestadas ainda da tarde daquele 31/05/2021, por referência à Acta de Julgamento desse dia, e à referência do Ficheiro áudio: ...11_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial aos minutos: 00:10:42 a 00:11:06, 00:26:32:
- o Senhor D. NN, então Arcebispo de ..., nas visitas que o Senhor D. NN, então Arcebispo de ..., fez ao Convento de ..., e nos contactos que manteve nos diversos almoços e jantares, só se dirigia às Arguidas BB e CC, nunca falando com as Assistentes nem com a Recorrente DD.
- “nessa altura, quando eu entrei, eu sentia que a BB tinha o mesmo tratamento com a MM e com a Irmã DD!”.
- prestadas na Sessão de julgamento de 31/05/2021, por reporte à Acta desse dia, por referência ao Ficheiro áudio: 202105311095513_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial ao minutos 00:06:43, e a partir do minuto 00:09.56 até ao minuto 00:11:16:
Meritíssima Juiz – (00:06:36): “Mas então essa questão da sua vocação religiosa como é que nasceu? Foi desses convívios então na…?
EE – (00:06:43): Sim, algo me tocava dentro de mim e até notava que era diferente. As minhas irmãs não sentiam o mesmo que eu, portanto, alguma coisa era diferente em mim. … a Irmã BB, como era a responsável das vocações, aproximou-se mais de mim no sentido de que pudesse haver ali/que podia estar uma vocação, tinha vinte anos nessa altura,”
Meritíssima Juiz – (00:08:49): “Mas quando é que verdadeiramente decidiu que ia ficar lá?
EE – (00:09:56): “Foi nessa altura que eu decidi ficar, mas não fiquei logo.”
Meritíssima Juiz – (00:10:57): “Portanto, para aí um mês ou dois, não é?
EE – (00:10:59): “Para aí. Era quase páscoa.”
Meritíssima Juiz – (00:11:14): “Portanto, foi um desejo seu, não é?
EE – (00:11:16): “Sim!”
***
- GG, ingressou no Convento aos 21 anos de idade e frequentava
o 1.º ano do Curso de Contabilidade:
- prestadas na Sessão de Julgamento de 14/07/2021, por reporte à Acta desse dia, sob o Ficheiro (I) áudio: 20210714102350_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial aos minutos 00:24:27 a 00:24:57:
- o único privilégio da Recorrente DD era a sua idade (cerca de 30 anos mais velha que as Assistentes) e estar há mais tempo no Convento, e por isso, não obstante usar a mesma casa de banho, podia tomar banho de água quente, mas sempre mediante prévia autorização.
- prestadas naquele dia, sob o Ficheiro áudio (III): 20210714144329_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial aos minutos 00:36:52 a 00:37:11:
- a Recorrente DD acompanhava-a aos Hospitais ou Centros de Saúde, em estrita obediência às ordens transmitidas pela Arguida BB:
- prestadas naquela Sessão de julgamento, por reporte à Acta desse dia, por referência ao Ficheiro áudio (I): 20210714102350_5876324_2870532, conforme transcrições apresentadas na Motivação supra, em todo o seu depoimento e em especial aos minutos 00:00:41 e 00:01:38;
- “… num dia de convívio a Irmã HH –…– perguntou-me se eu queria lá passar uns dias com elas. Eu não era estranha à ideia porque eu também ia – e ia a minha tia, que era religiosa …”
- “É assim, a ideia de lá passar uns dias não me era estranho porque eu tinha uma tia religiosa e então também costumava ir à instituição com a minha tia. Eu estava a estudar em ..., mas depois achava que não estava a ter grande proveito ou incentivo. Já não gostava tanto de estudar como antes e então achei que …, depois incentivada um bocado pela Irmã HH, porque era uma data bonita, porque era na altura da Anunciação de Nossa Senhora, eu acedi, sim. Achei que, pelo ambiente… Senti que Deus me queria ali.
***
- FF, prestadas na Sessão de Julgamento de 21/09/2022, por reporte à Acta desse dia, sob o Ficheiro (I) áudio: 202109211101752_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial ao minuto 00:23:30:
- a Recorrente DD, tal como as Assistentes, não via televisão e jantava com elas na cozinha, e era ela que levava o jantar aos outros Arguido.
***
- II, prestadas na Sessão de julgamento de 14/06/2021, por reporte à Acta desse dia, por referência ao Ficheiro áudio (I): 20210614095618_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial a partir do minuto 00:01:59:
- “Em 2004, quando eu tinha quinze anos, em agosto, fui passar férias, como era hábito, e foi nessa altura que, por meio de um livro, “A Verdadeira Vida em Deus”, um livro da Vassula… A EE falou-me desse livro – que falava na vocação –, de que se abríssemos o livro ao calhas Jesus dava-nos uma resposta. Eu fiquei com curiosidade, “também quero saber o que me vai dizer a mim”. Então abri o livro ao calhas e a mim Jesus dizia: “chamei-te”. A partir daí comecei a assimilar e a pensar: “porque não seguir a vida religiosa?”. Então eu sentia vocação. Eu sentia a vocação para ser religiosa. Então decidi que queria ficar na Fraternidade.”.
Precisar que o Acordão Recorrido padece de erro na apreciação dos depoimentos prestados por esta Assistente, porquanto fundamentou a sua Decisão numa versão totalmente diferente daquelas que haviam sido efectivamente relatada, e que aqui se transcreve:
“a BB abria um dos livros à sorte e começava a ler um segmento de leitura no qual Jesus alegadamente dizia: “Chamei-te”, e ao ouvir aquelas palavras, a Assistente (II) julgou ter começado a sentir vocação religiosa e decidiu que queria ficar.
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- JJ, prestadas na Sessão de julgamento de 01/06/2021, por reporte à Acta desse dia, por referência ao Ficheiro áudio: 20210601144553_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial aos minutos 00:02:00; 00:04:50 e 00:04:55:
- “elas estiveram aqui na Madeira a fazer visitas a uns presos e a patroa com quem eu trabalhava conhecia e quando foi mostrar a ilha a elas, eu fui junto e as senhoras convidaram-me para ir a um retiro lá, uns tempos, para ir conhecer a Fraternidade e ao menos via uma coisa nova. Eu como tinha saído da casa dos meus pais, estava um bocadinho assim em baixo, aproveitei e fui. Fui, com viagem marcada de ida e volta no mesmo ano, e acabei por ficar.”, mais esclareceu que as Senhoras eram a “A Irmã CC, a Irmã BB”
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- FF, prestadas na Sessão de julgamento de 21/09/2021, por reporte à Acta desse dia, por referência ao Ficheiro áudio: 20210921101752_5876324_2870532, a partir do minuto 00:01:14, em todo o seu depoimento e em especial aos minutos 00:06.20; 00:09:16 e 00:09:22;
- “os meus pais gostavam de lá ir, e eu também gostava, e começámos a ir praticamente todos os meses até que fui conhecendo melhor a instituição. … Eu cheguei a lá ficar uns dias com mais umas jovens, … convidaram-me para ir com elas para ajudar nesse convívio em Lisboa e eu fui. … depois foram-me convencendo a ficar lá. Sempre me disseram que tinha vocação, que Deus me chamava e que deveria seguir a minha vocação e, … e antes de eu ir ter com os meus pais, elas disseram-me para eu me despedir, para ficar e para seguir a minha vocação, que não deveria deixar de seguir o chamamento que Deus me estaria a fazer naquele momento.”
Meritíssima Juíza: “Pronto. Quando diz “elas”, quando diz “elas”, está a falar da BB?
FF: “Sim. Sim!”.
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- HH, prestadas na Sessão de julgamento de 06/07/2021, por reporte à Acta desse dia, por referência ao Ficheiro áudio (I): 20210706102511_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial a partir do minuto 00:02:34 até ao minuto 00:03:39;
Meritíssima Juiz – (00:02:12): “O que é que a levou para lá? Quem é que a convidou? Como é que foi o acesso à Fraternidade?
HH – (00:02:34): “A minha mãe já conhecia a Fraternidade desde o seu tempo de juventude e eu comecei a frequentar a Fraternidade tinha para aí os meus cinco/seis/sete anos talvez, … isto ainda a Fraternidade estava no .... Depois veio para ... e continuei … de ir passar alguns dias à Fraternidade. Até que a uma certa altura que fui, quando tinha quinze anos, senti que Deus me chamava para ficar. Explicar o que é a vocação, só cada um sente como é, e quem não experimentou não poderá dizer, não é?
Meritíssima Juiz – (00:03:24): “Mas se de alguma forma também sentiu algum tipo de pressão de…?
HH – (00:03:38): “Não!
Meritíssima Juiz – (00:03:40): “Não?
HH – (00:03:39): “Não!
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- KK, prestadas na Sessão de julgamento de 21/09/2021, por reporte à Acta desse dia, por referência ao Ficheiro áudio: 20210921145010_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial ao minuto 00:02:01 e ao minuto 00:02:05;
Meritíssima Juiz – (00:00:55): “Tinha catorze anos. E em que contexto é que a senhora ingressou na instituição?
KK – (00:01:01): “Eu lembro-me que a minha mãe conhecia a instituição e começámos a ir lá todos os meses aos convívios. … gostei do espírito daquilo e daquilo que via, de todas as irmãs, e comecei lá a passar os fins de semana a ajudar na revista, até que, quando acabaram as aulas em junho, ingressei na instituição.
Meritíssima Juiz – (00:02:01): “Olhe, e quando ingressou, ingressou de livre vontade? Não foi pressionada por ninguém?
KK – (00:02:05): “Não, foi de livre vontade!”
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- LL, qera Enfermeira quando ingressou no Convento:
- prestadas na Sessão de julgamento de 29/09/2021, por reporte à Acta desse dia, por referência ao Ficheiro áudio: 20210929095940_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial ao minuto 00:01:29, e a partir do minuto 00:02:21 até ao minuto 00:02:43;
Meritíssima Juiz – (00:01:18): “A senhora quer-nos explicar em que circunstâncias é que entrou? O que é que a levou a entrar?
LL – (00:01:29): “Eu entrei porque achava que tinha vocação para a vida religiosa. Pronto. Houve algumas pessoas da minha terra que me apresentaram a essa comunidade e eu fui lá conhecer e, pronto, gostei daquilo que vi e fiquei.
LL - 00:02:03: “Não, nunca tinha ido (aos convívios). Depois quando conheci a Fraternidade, fui lá ao convívio e gostei e foi quando fiquei.
Meritíssima Juiz - 00:02:13: “Mas então a senhora ficou por sua livre vontade? Não sentiu nenhum tipo de pressão de ninguém lá dentro para ficar?
LL - 00:02:21: “É assim, eu fui… Pronto, eu conheci a Fraternidade… Eu já tinha vontade em ingressar e depois, claro, a Irmã BB também… Eu falei com ela e ela disse que realmente se calhar eu era chamada para essa comunidade… Pronto, eu achei que fosse de avançar e fiquei…
Meritíssima Juiz - 00:02:40: “Pronto. A BB incentivou, mas a senhora já tinha essa vontade, não era?
LL - 00:02:43: “Sim, já tinha a vontade. Exatamente.
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10. O Tribunal a quo desvalorizou também o depoimento do Padre QQ, na Sessão de 11 de Maio de 2021, por referência à Acta de Julgamento desse mesmo dia, por reporte ao Ficheiro áudio 20210511120132_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial do minuto 00:47:55 até ao minuto 00:48:15, tendo o mesmo esclarecido que os Estatutos foram elaborados por si, e que a Recorrente DD não teve qualquer participação ou intervenção, tendo os seus interlocutores sido as Arguidas BB e CC.
11. O Tribunal a quo desvalorizou igualmente o depoimento de testemunhas, conforme transcrição das declarações apresentadas na Motivação supra, e que aqui se resumem, nomeadamente de:
- OO, prestado na audiência de julgamento de dia 11 de Outubro de 2021, por reporta à Acta desse mesmo dia, sob o Ficheiro áudio: 20211011142005_5876324_2870532, em todo o seu depoimento e em especial aos minutos 00:00:15 e 01:14:36, que disse ter ingressado no Convento a 04 de Março de 1974 e saído em 14 de Fevereiro de 1988, com o seguinte esclarecimento:
- “A Irmã DD era uma igual que eu, era uma igual que eu.
- “ela era tanto como eu e como outras todas que lá passaram.
- “E apanhou. A DD apanhou, muito, muito, muito, muito.
- YY, na Sessão de Julgamento de 12/10/2021, por reporte à Acta desse dia, sob o Ficheiro áudio: 20211012142243_5870522_2870532, em todo o seu depoimento e em especial aos minutos 00:00:50; 00:01:06; 00:08:29; 00:08:56 e 00:09:07, que disse ter sido Jardineiro durante mais de 10 (dez) anos, que trabalhava em tudo e acompanhava a rotina das Assistentes, tendo esclarecido que a pessoa que lhe dava ordens era a Arguida BB, directamente, ou através da Recorrente DD ou das Assistentes:
. “A BB dizia-me: Senhor AA, você vai fazer este trabalho agora, vai fazer …”
. “Senhor AA, a Irmã BB disse que você vai fazer aquele trabalho”, e eu ia fazer o trabalho.”
. (as noviças) davam-me as ordens que a chefe mandava: “Olhe, você vai fazer aquilo que a BB disse”… “Tudo bem”… Tinha que cumprir.”
12. Deste testemunho, que se revelou isento, imparcial, claro, preciso e coerente, na medida em que já não trabalhava no Convento por ter sido entretanto despedido resultou ainda, ao minuto 00:02:27, que cumpria um horário das oito até ao meio dia, e depois das duas até às seis, mais esclarecendo:
“sou do tempo da falecida”, dando assim a saber que desde pelo menos de 2004, ano da morte
da MM, já lá trabalhava.
13. Destas provas, aqui resumidamente reproduzidas, resulta que não há nenhum relato de imputabilidade da Recorrente na prática dos factos supra identificados e incorrectamente julgados, pelo que estas mesmas provas impõem decisão diversa da recorrida, devendo, nos termos das alíneas a) e b), ambos do n.º 1 do art.º 431.º, do C.P.Penal, ser modificada a matéria de facto que consta daqueles factos, eliminando a referência que se faz à Recorrente DD, e como tal, dar-se como Não Provado que tivesse:
- Criado/constituído a Fraternidade Missionária e/ou a Arguida Centro Social, e que tivesse participado na elaboração dos novos Estatutos, e que exercia funções de “Tesoureira da Direcção” – Factos 5.º; 6.º e 13.º;
- e que as representava de facto, e que lhe competia também a prática de actos de gestão, desde a organização ao planeamento da atribuição de qualquer tarefa, mesmo espirituais – Factos 16.º e 18.º;
- e que em conjugação de esforços e vontades, tivesse idealizado um esquema para angariar jovens que redundava em servirem-se do Carisma/Ideário da Fraternidade, para as forçar à prática dos factos descritos no Facto 20.º, tendo como alvo jovens de raízes humildes mediante um plano previamente gizado convencendo-as à vida religiosa amedrontando-as com castigos divinos e infiéis a Deus com consequência para a eternidade, com recurso à leitura de livros amedrontando-se com desgraças e que assim lhe devesse total obediência – Factos 21.º; 22.º; 31.º; e 32.º;
- e que para assegurar tais intentos, em conjugação de esforços com os outros Arguidos a Recorrente tivesse delineado e praticado diariamente várias agressões físicas, injúrias, pressões psicológicas e tratamentos humilhantes, castigos, trabalhos pesados, escassez de alimentos de alimentos, negação de cuidados médicos e restringindo a liberdade das Assistentes, ou que a mesma tivesse conhecimento e dado anuência à Arguida BB para a sua execução, nos termos sob o Facto 24.º; 27.º; 28.º; 29.º; e 30.º;
- e que a Recorrente tivesse imposto, ou anuído, às Assistentes jornadas diárias de trabalho, nos termos descritos nos Factos 33.º e 34.º.
14. Dizer ainda que que o Facto Provado em 20.º, onde se lê: “em conjugação de esforços e vontades, idealizaram um esquema, um embuste que redundava em servir-se do Carisma/Ideário da Fraternidade,” não consta como facto da Acusação, nem do Despacho de Alteração Não Substancial dos factos, sendo, por isso, nula, devendo considerar-se como não escrita.
15. De igual modo, o Tribunal a quo considerou também provados os factos transcritos na Motivação supra e que aqui agora se enumeram como concretos pontos de facto que a Recorrente DD considera terem sido incorrectamente julgados, relativos às Assistentes:
A - Referentes à MM: Factos 44.º a 47.º; 49.º; 50.º; 54.º
16. O Tribunal a quo baseou a sua convicção no Relatório da Perícia Tanatológica de fls. 37, e no relato das Assistentes, tendo, desde logo, desconsiderado o Exame do Hábito Externo, junto a fls. 38 e 39, que concluiu pela inexistência se lesões sofridas pela MM, e falta de alimento:
Pesava 54 kg e media 1,48 m, evidenciando: Constituição esquelética: Normal; - Estado de nutrição:
Normal; - Membros Superiores: Sem alteração; e Membros Inferiores: Sem alteração.
17. O Tribunal a quo desconsiderou também o depoimento das Assistentes EE, HH, GG e até da testemunha OO, prestadas nas Sessões de Julgamento supra identificadas, tendo em conta todo o relato das mesmas e os minutos também indicados, conforme transcrições já realizadas, não resultou provada a autoria da prática dos factos pela aqui Recorrente DD, nem tão pouco lhe é feita qualquer referência nesse sentido, de a mesma ter tido qualquer intervenção ou acção na humilhação, ou das injúrias ou das agressões perpetradas na MM, e bem assim que a mesma tivesse conhecimento ou manifestado a sua anuência, não há qualquer alusão ao seu conhecimento e anuência, porquanto a Recorrente DD:
- Dormia no quarto com a MM, isto é, não tinha um quarto só para si;
- Jantava na cozinha, e tal como MM também não podia ver televisão;
- Utilizava a mesma casa de banho, com as noviças;
- Partilhava as mesmas cuecas com as noviças, conforme declarações das Assistentes II, ao minuto 00:34:42; e HH, ao minutos 00:54:51 e 00:55:11;
- Chegou também a dormir à noite com um cão que também tinha cancro, e só não dormiu com
o outro, porque tinha sido operada às costas.
18. Quanto ao Facto 49.º, não decorre de nenhum conhecimento directo prestado em audiência de julgamento, porquanto a Assistente EE (minutos 00:34:03 ao minuto 00:34:22), disse ter ouvido da Assistente HH, e esta, por sua vez (minuto 01:25.58 a minuto 01:26:42) disse que quem lhe contou foi a Assistente II, no entanto, esta, em todo o seu depoimento não relatou nem fez a mais pequena alusão à existência nem ao conhecimento daquele facto, devendo, por isso, ser dado aquele Facto 49.º dado como Não Provada, decorrente do conhecimento indirecto.
B - Referentes à Assistente EE: de 55.º a 58.º; 63.º; 64.º; 78.º:
19. O Tribunal a quo desvalorizou por completo as declarações da própria Assistente EE, prestadas na Sessão de 31/05/2021, por referência aos ficheiros áudio ...13; ...39; ...03; ...13; ...11; todos eles com a referência completar: _5876324_2870532, onde a própria esclareceu que a Recorrente DD:
- fazia tudo igual a elas, Assistentes, e só pelo facto de ter sido operada à coluna “não fazia tantos esforços como nós fazíamos”.
- a única diferença é que era muito mais velha do que as Assistentes, cerca de 30 anos;
- “era uma como nós” (como as Assistentes);
- “Ela também tinha muito medo dela!” (referindo-se à Arguida BB);
- “Tinha medo dela! Tinha pavor! Nós todas! Ai Jesus!”;
- “A gente, só de ver que ela já se estava a aproximar… Nós já ficávamos com o coração na boca!”
20. Mais esclareceu que a Recorrente, tal como as Assistentes, era obrigada pela Arguida BB a agredir as demais, e que as Assistentes II; KK, FF e mais tarde a LL é que eram as protegidas da Arguida BB, a quem denunciavam os comportamentos das outras.
21. Em momento algum a Assistente EE deu a saber ao Tribunal a quo que os factos constantes da matéria assente e que a ela dizem respeito, a aqui Recorrente DD tivesse dado causa à produção dos mesmos, e mesmo estando presente, não podia fazer nada para a impedir, pois estava, também como as demais noviças, sujeita aos castigos e maus-tratos da arguida BB, razão pela qual, devem aqueles factos serem dados como Não Provados, e bem assim no que concerne à imputação dos mesmo à aqui Recorrente DD, nem tão pouco ao seu conhecimento generalizado nem sequer à sua anuência.
C - Referentes à Assistente FF: de 79.º a 83.º:
22. O Tribunal a quo não só desconsiderou o depoimento da Assistente FF, como as desvirtuou, atente-se nas declarações prestadas na Sessão de 21/09/2022, por reporte à Acta de Julgamento desse mesmo dia, sob o Ficheiro áudio: 20210921101752_5876324_2870532, e aos minutos 00:15:23; 00:17:30; 00:19:55 e do 00:25:28 ao 00:26:05:
- “Comigo nunca aconteceu nada assim de muito relevo. As únicas coisas que me aconteciam, que era também o que acontecia a todas as outras que lá estavam, era… Por exemplo, o banho: só tomávamos banho uma vez por semana e era só quinze minutos que tínhamos para tomar esse banho… As refeições eram sempre orientadas pela BB, ou seja, nós só comíamos aquilo que ela deixava comer e aquilo que ela nos dava autorização e quando ela nos dava para comer… E mais…? O trabalho era sempre o trabalho que ela nos orientava para fazer, portanto, de tarefas de cozinha, de cuidar dos animais, de cuidar do campo, de cuidar da capela… Tínhamos essas tarefas que ela nos incutia, que normalmente eram tarefas que fazíamos durante uma semana e depois, ao fim dessa semana, poderíamos trocar ou não… Tínhamos as tarefas também da revista, quando era altura de fazer a revista…”
- “No período que lá estive nunca precisei de ir ao médico. Eu ia ao médico porque… O único médico a que eu ia era ao dentista. Eu fazia uso de aparelho e tinha que fazer a manutenção do aparelho e então levavam-me ao dentista delas, que elas tinham”
23. Mais esclareceu que só a Arguida BB é que dirigia os insultos verbais que constam da acusação.
Mas mais importante do que tudo:
24. No Facto Provado em 80.º, o Tribunal a quo deu como assente que esta Assistente FF:
- “abandonou-a (a Fraternidade) por sua iniciativa, no dia ../../2015.”.
25. Do relato desta Assistente retira-se exactamente o contrário daquilo que o Tribunal a quo considerou à formação da sua convicção, razão pela qual, devem aqueles factos serem dados como Não Provados, pois da prova produzida em audiência há uma qualquer referência à intervenção ou participação da Recorrente DD à produção dos mesmos.
D - Referentes à Assistente KK: de 86.º a 102.º:
26. A exemplo dos factos anteriores, também aqui Tribunal a quo desvirtuou o depoimento da Assistente KK, atente-se nas declarações prestadas pela própria na Secção de 21/09/2021, por reporte à Acta de Julgamento desse dia, por referência ao ficheiro áudio:
20210921145010_5876324_2870532, aos minutos 00:12:23 a 00:12:31; do minuto 00:18:05 ao minuto 00:18:48; ao minuto 00:39:59; e do minuto 00:56.09 ao minuto 00:56:17:
27. A Assistente KK relatou que os castigos eram implementados unicamente pela Arguida BB, e que não se queixava à aqui Recorrente DD com medo de que a Arguida BB ainda fizesse pior.
28. E não o fez porque o Arguido Padre AA contava a confissão a esta Arguida BB.
Mas o que é certo é que nunca se queixou à Recorrente DD, ou à Arguida CC, logo, não pode concluir o que não aconteceu.
Mas mais importante do que tudo,
29. Esta Assistente revelou que os portões do Convento estavam sempre abertos, e quando questionada:
-“A KK quando quisesse sair podia sair livremente?”, respondeu, de forma categórica:
-“Sim!”, conforme minuto 00:56:17.
30. Motivo pelos quais os supra referidos factos, no que à Recorrente DD se imputam, devem ser dados como Não Provados, porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove.
E - Referentes à Assistente HH: de 103.º a 112.º:
31. O Tribunal a quo formou a sua convicção para prova destes factos nas declarações da Assistente HH, porém, desconsiderou-as por completo no que respeita à imputação dos mesmo à aqui Recorrente, porque em momento alguma aquela Assistente relatou ter sido alvo de insultos verbais ou de agressões por parte da DD, nem tão pouco afirmou que esta sabia ou anuísse a tais práticas, nem que soubesse ou concordasse que tivesse dormido 5 (cinco) noites no chão, atente-se ao depoimento prestado na Sessão de 06/07/2021, por reporte à Acta desse dia, por referência áudio: 20210706102511_5876324_2870532, do minuto 00:21:31 ao minuto 00:22:48; minuto 00:31:00; do minuto 00:33:29 ao minuto 00:36:01.
32. Há que realçar o que esta Assistente disse acerca das privações e sofrimento de que padecia às mãos da Arguida BB:
- “Sentia, em verdadeira consciência, que era a forma de Deus me colocar à prova, a minha fé e a minha vocação!”, conforme minuto 01:24:34.
33. Motivo pelos quais, a exemplo dos anteriores, também os supra referidos factos, no que à Recorrente DD se imputam, devem ser dados como Não Provados, até porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove.
F - Referentes à GG: de 113.º a 140.º:
34. O Tribunal a quo desvirtuou as declarações prestadas pela Assistente GG em audiência, por reporte à Acta de Julgamento de 14/07/2021, sob o Ficheiro (I) áudio:
20210714102350_5876324_2870532, ao minuto 00:10:46 e ao minuto 00:22:15; e sob o Ficheiro (II) áudio: 20210714144329_5876324_2870532, ao minuto 00:37:11.
35. Relatou a Assistente GG que a Recorrente DD não teve qualquer intervenção ou participação nas suas idas ao médico, ou aos hospitais, e só a acompanhava porque “a BB lhe incutia essa tarefa”, minuto 00:37:11.
No entanto,
36. Esclareceu que, contrariamente à fundamentação da Decisão Recorrida, a Recorrente DD a deixava à vontade, tendo numa das ocasiões o médico diagnosticado uma depressão, conforme minuto 00:22.15.
37. Das declarações prestadas pela própria Assistente GG, corroboradas pelas demais, em momento algum se fez referência a qualquer acto praticado pela Recorrente DD, nem que a mesma tivesse anuído, aos factos descritos no Facto Provado em 123.º, sendo que este tem caracter geral e circunstanciado
Mas mais importante ainda:
38. O Tribunal a quo deu como assente que a Assistente GG “voltando a ingressar (a Fraternidade) em ../../2016”. Para prova deste facto, encontra-se o documento junto a fls. 537, de “../../2016”, onde aquela manifesta vontade de regressar, sendo que nessa data, já a Arguida BB havia sido expulsa por ordem da Diocese ..., e só se encontravam (no Convento) a aqui Recorrente DD e a Arguida CC, devendo, por isso, proceder-se à rectificação da data de regresso naquele Facto Provado em 113.º.
39. Pelo que a imputação dos Factos Provados em 113.º a 140.º, no que respeita á imputação dos mesmos à Recorrente DD, devem ser dados como Não Provados, ou eliminada a referência que a ela se faz, até porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove.
G - Referentes à Assistente II: de 141.º a 163.º:
40. O Tribunal a quo desconsiderou, mais uma vez, as declarações prestadas pelas Assistentes, neste caso a Assistente II, na Sessão de 07/...22, por reporte à Acta de Julgamento desse dia, sob o Ficheiro áudio: 20220407122354_5876324_2870532, tendo esta afirmado que às 2.ª feiras de tarde ia quase sempre ao correio, sem qualquer companhia, e que levava muitas vezes consigo o telemóvel, conforme minuto 00:07:35.
41. O Tribunal a quo desconsiderou igualmente o depoimento da testemunha AAA, prestado naquela mesma Sessão de Julgamento, tendo esclarecido que explora o aviário que se localiza mesmo defronte do Convento, e que a Assistente II (a quem chamavam BBB, tal como esta testemunha) muitas vezes ali se deslocava sozinha para lhe levar, e aos seus empregados, um lanche. Situação ocorrida também com a Assistentes HH; GG e EE, e também com a aqui Recorrente DD, conforme minuto 00:10:30 a minuto 00:12:26, ficando por vezes muito tempo a falar daquilo que faziam no Convento, e alguns dos seus empregados chegaram a ir aos convívios a convite delas.
Mas mais importante ainda:
42. Quando a Assistente II decidiu deixar a Fraternidade, pegou no telemóvel e telefonou à testemunha CCC, combinando com este a hora em que a devia ir buscar, tendo depois aberto o portão e saído sem problema algum, conforme minuto 01:30:29, tendo esta testemunha corroborado estes factos, em declarações prestadas na Sessão de Julgamento de 08/11/2021, por reporte à Acta desse dia, sob o Ficheiro áudio 20211108141801_5876324_2870532, entre o minutos 00:34:15 e 00:45:18.
43. Do relato desta Assistente não há a imputação de qualquer facto á aqui Recorrente DD, devendo, também por isso, serem aqueles factos dados como Não Provados, até porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove.
H - Referentes à Assistente LL: de 164.º a 184.º:
44. O Tribunal a quo deu como assente que a Assistente LL foi expulsa da Fraternidade Missionária.
Por outro lado,
45. Dos factos provados e supra identificados não resulta qualquer imputação á aqui Recorrente DD, razão pelas quais deverão estes factos 164.º a 181.º, serem dados como Não Provados, porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove, relativamente à aqui Recorrente DD.
I - Factos Provados em 182.º a 184.º - referentes à JJ:
46. O Tribunal a quo desconsiderou, mais uma vez, as declarações prestadas pela Assistente JJ, Sessão de 01/06/2021, por reporte à Acta de Julgamento desse dia, sob o Ficheiro áudio 20210601144553_5876324_2870532, do minuto 00:35:10 ao minuto 00:35:53, tendo esta esclarecido que deixou a Fraternidade Missionária saindo pelo parque de estacionamento, por volta do meio-dia, tal como a Assistente II o havia feito, ou seja, quando quis ir embora, abriu o portão e saiu.
47. Mais esclareceu esta Assistente que nunca foi agredida pelos Arguidos AA e CC, nem pela aqui Recorrente DD, conforme minutos 01:34:01 a 01:34:10, devendo, também por aqui, serem aqueles factos dados como Não Provados, porque dos autos não existe nenhum documento ou testemunho que o comprove, relativamente à aqui Recorrente.
48. Pelo exposto, perante a impugnação da matéria assente e das concretas provas aqui apresentadas e que impõem decisão diversa da Decorrida, deve o Tribunal a quem proceder à alteração dos factos incorrectamente julgados, nos termos das alíneas a) e b) do art. 431.º, do C.P.Penal, nos termos supra.

DO DIREITO:

49. A DD, de acordo com a prova produzida em audiência de discussão e julgamento – única a que o tribunal pode atender, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 355.º do CPP –, era tratada como as alegadas Assistentes/Ofendidas, as quais afirmaram, no presente processo, que a Irmã DD:
-“era uma como nós”;
- “não mandava”;
-“fazia tudo igual a nós, só pelo facto de ter sido operada à coluna não fazia tantos
esforços como nós fazíamos”;
- “chegou a dormir com outro cão que também tinha cancro no estômago, e passava muitas noites com ele … mas como a Irmã DD tinha sido operada às costas, ela não tinha condições de poder estar com o cão e então fomos as mais novas, as quatro”;
- “Ela também tinha muito medo dela!” (referindo-se à Arguida BB);
- “Tinha medo dela! Tinha pavor! Nós todas! Ai Jesus!”;
- “A gente, só de ver que ela já se estava a aproximar… Nós já ficávamos com o coração na boca!”;
- a Assistente EE confirmou ter assistido a Arguida BB “a dar-lhe uma bofetada na cara!”;
- “o único privilégio era a sua idade e estar há mais tempo no Convento”, mas se queria tomar banho de água quente “tinha que pedir autorização”;
- “não dormia sozinha”;
- jantava na cozinha com as outras (Assistentes);
- tal como as Assistentes, também transmitia as ordens da Arguida BB ao Jardineiro – YY;
- “partilhava com as Assistentes a mesma casa de banho e as mesmas cuecas”;
- a Arguida DD ingressou na Fraternidade em 1972, depois daquela ter sido criada em 1968, não teve qualquer intervenção ou participação na elaboração dos seus Estatutos, nem da Arguida Centro Social, nem desempenhava nem lhe competia gerir também toda a actividade daquelas instituições, desde a organização, planeamento e atribuição de tarefas até às exigências “espirituais”, apesar de constar como “Tesoureira”;
50. As Assistentes não relataram terem sido agredidas, insultadas, humilhadas, e cumprir trabalhos por ordem da aqui Arguida DD, factos que todas imputaram a autoria à Arguida BB.
51. Nas declarações prestadas em audiência de julgamento as Assistentes não afirmaram que todos os actos praticados pela Arguida BB eram do conhecimento da Recorrente DD, nem que esta dava a sua anuência, até porque aquela não carecia disso.
52. Declararam também que ingressaram na Fraternidade por vontade própria, por decisão livre e sem qualquer pressão das Arguidas.
53. A II declarou que quase todas as 2.ª feiras ia, sem ser acompanhada por outra da Fraternidade, aos correios, levando consigo o telemóvel.
54. Mais declarou que quando quis fugir, telefonou à testemunha CCC para a ir buscar ao portão do parque de estacionamento, e à hora combinada, abriu o portão e saiu durante a noite.
55. Também a Assistente JJ quando quis ir embora, abriu aquele portão do parque de estacionamento e saiu, ao meio-dia.
56. As Assistentes deram a saber que os portões nunca estavam fechados à chave, podendo-se abrir sempre por dentro, tendo a Assistente KK afirmado que quando quisesse sair podia sair livremente, pelo que o Tribunal a quo não interpretou nem aplicou correctanente o art. 159.º, al. a), do CP, porquanto da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente das declarações das próprias Assistentes, não resulta que estivessem privadas de liberdade.
57. De toda a prova impõe-se a alteração dos Factos Provados, para Factos Não Provados, nos termos enunciados e constantes da impugnação da matéria de facto, conforme motivações e conclusões supra, devendo, por isso, a aqui Recorrente DD ser absolvida de todos os crimes de escravidão pelos quais foi condenada, porquanto não os praticou, nem se encontram satisfeitos os elementos subjectivos nem objectos do art. 159.º, al. a), do CP.

SEM CONCEDER, O QUE NÃO SE CONCEDE:
58. PARA O CASO DE SE CONSIDERAR QUE A RECORRENTE DD ACTUAVA EM RELAÇÃO ÀS ASSISTENTES/OFENDIDAS, NOMEADAMENTE NOS FACTOS DADOS COMO PROVADOS EM QUE SE LHE IMPUTA a prática de crimes de ofensa à integridade física, fê-lo, tal como as outras, porque já havia experimentado na pele o que lhe aconteceria se não cumprisse as ordens que lhe eram dadas pela Arguida BB, ou seja, ela própria era vítima de ofensas à integridade física.
59. A Recorrente DD actuou, portanto, em relação a estes comportamentos, sempre a coberto de uma causa de exclusão da culpa, que é o estado de necessidade subjectivo ou desculpante do art. 35.º, n.º 1, do CP.
60. Como houve ocasião de estudar com maior pormenor, todos os requisitos deste inciso se acham preenchidos na factualidade vertente, sendo exacto que este é um dos afloramentos do princípio geral da inexigibilidade que se apresenta como um dos requisitos essenciais para que se possa afirmar a culpa do agente (a par da imputabilidade e da consciência da ilicitude do facto).
61. Estamos em face de situações extrínsecas ao agente que o colocam num conflito interno que o Direito compreende, por estarem em causa bens jurídicos de natureza pessoal do próprio agente, pelo que não poderia o mesmo agir de forma diferente, pois como sempre ensinou EDUARDO CORREIA, “o Direito Penal não quer fazer dos homens sábios, artistas, heróis ou santos”.
62. Vejamos o preenchimento de cada um dos requisitos aludidos no art. 35.º, n.º 1, do CP:
a) Prática de um facto ilícito: inexistem dúvidas de que os factos imputados à arguida DD, alegadamente perpetrados sobre várias das ofendidas, constituem a prática de crimes.
b) Adequado a afastar um perigo actual e não removível de outro modo: tem de se fazer apelo aqui à teoria da adequação, que encontra algum acolhimento literal no art. 10.º, n.º 1, do CP (“adequada”), ou, se se pretender, às mais modernas “teorias da conexão do risco”. Existe prova que demonstra à saciedade que a arguida em causa era coagida pelos demais co-arguidos no sentido de ela própria ofender a integridade física das ofendidas, pois que sabia e lhe era dito que se não o fizesse, seria ela própria vítima da prática desses crimes, o que faz com que o seu espaço de livre conformação da realidade, na verdade, não existisse, sendo sim usada como um mero instrumento às mãos dos demais arguidos.
Atentas as circunstâncias de facto, não poderia a arguida DD recorrer em tempo útil à força pública e, por isso, não apenas o perigo que impendia sobre ela era actual, como irremovível de outra forma.
c) Perigo esse que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro: o perigo por DD afectava a sua integridade física, que era ameaçada não apenas em abstracto, como esta sabia bem, porque tais ameaças já haviam sido concretizadas em outros momentos temporais, que se não fizesse o que lhe era ordenado, efectivamente sofreria consequências que, pelo menos, lesariam o bem jurídico-penal da integridade física de que é titular.
d) Quando não seja razoável exigir ao agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente: esta é a verdadeira marca de inexigibilidade nesta concretização daquele princípio. Parece-nos de meridiana clareza que, atento o panorama geral descrito pelos factos dados como provados, não se poderia exigir à arguida DD que não cumprisse as ordens que lhe eram dadas, pois que ficaria à mercê dos ataques dos co-arguidos e não tinha outro meio, em tempo útil, de obstar à agressão.
63. Assim sendo, a Arguida DD actuou sem culpa e sem elemento material do conceito de crime não pode haver qualquer condenação, mas sim absolvição.
64. Concluindo-se como se concluiu – e como se demonstrou nas motivações recursórias a Arguida DD não pode ser considerada co-autora, ao invés do que pretende o Acórdão Recorrido, mas sim autora mediata, uma vez que a doutrina e a jurisprudência são unânimes no sentido de considerar o estado de necessidade desculpante como uma das modalidades em que se afirma a autoria mediata, na qual, como se sabe, uma vez que o “homem-da-frente” não tem qualquer domínio do facto, havendo sim, neste caso, o “domínio da coacção”, não pode nunca ser punida.

SEM CONCEDER, O QUE NÃO SE CONCEDE:
PARA O CASO SE MANTER INALTERADA A MATÉRIA DE FACTO DO ACORDÃO RECORRIDO:
65. De acordo com os instrumentos de Direito Internacional Público e Direito Europeu que vinculam o Estado Português, em especial a Convenção relativa à Escravatura de 1926, a Convenção Suplementar Relativa à Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura e a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, todas elas, de entre outros monumentos legislativos vinculativos para o Estado português, nos termos do art. 8.º da CRP, a escravatura é definida como “o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade”.
66. Sabido que a fonte legislativa do art. 159.º do CP nacional foi o seu homólogo austríaco, o § 104 do diploma, sob a epígrafe “trabalho forçado” (Sklaverei), não define o que entende por “escravatura” ou “escravidão”, sendo exacto que sempre terá de ser à luz da noção apresentada na conclusão anterior que tal estado ou condição terá de ser entendida.
67. Mesmo partindo do princípio, por mera cautela de patrocínio e exercício académico, que todos os factos dados como provados pelo tribunal a quo – o que se não concede, como visto –, correspondem efectivamente à prova produzida e examinada em audiência de julgamento (art. 355.º do CPP), existe um clamoroso erro de qualificação jurídica, dado que os mesmos se não enquadram no crime p. e p. no art. 159.º, al. a), do CP.
68. Na verdade, reconhece-se que os presentes autos, fruto da sua ampla cobertura mediática, suscitaram e podem ainda suscitar opiniões apaixonadas, subjectivas e irracionais, todavia, como V. Exas. melhor que ninguém sabem, a administração da Justiça não se compadece com nenhuma destas formas de actuar, exigindo antes objectividade, seriedade, racionalidade e ausência de pré-juízos formados pelo que se leu ou ouviu.
69. É exactamente a essas qualidades presentes nos Venerandos Desembargadores que ora se apela.
70. Para estarmos perante um crime de escravidão, mister se torna que, sem ou contra a vontade do ou dos titulares dos bens jurídico-penais, sendo estes disponíveis, não violando os “bons costumes” e obedecendo aos demais requisitos do art. 38.º do CP, inexista qualquer tipo de consentimento – expresso, tácito ou por actos concludentes – que exclua a tipicidade da conduta.
71. Acresce que o ou os ofendidos têm de ser reduzidos à condição de um simples objecto em relação ao qual se exerçam todas as faculdades inerentes ao direito real de propriedade, de tal forma que não reste nenhum espaço de liberdade ou de iniciativa para quem se vê reduzido à condição ou ao estado de escravo/a.
72. Não é isto que se retira do acervo factual dado como provado, na medida em que, como melhor explanado nas motivações recursórias – de novo mesmo que se admita todo o dito acervo, o que se não concede –, não há uma limitação total, por parte dos arguidos, em relação às alegadas ofendidas.
73. Assim é que, como se indicou por referência aos específicos pontos da matéria de facto dada por provada, as pretensas ofendidas não se encontravam encerradas nas instalações da Fraternidade, como se de um cárcere privado se tratasse, tendo várias delas daí saído para receber cuidados médicos, para visitar a família e também – e sobretudo – várias delas, de livre e espontânea vontade, sem que os arguidos lhes tivessem colocado qualquer obstáculo, saíram da instituição.
74. Se estivessem reduzidas à condição de escravo, estando coisificadas, nunca tal poderia suceder de acordo com as regras da experiência comum do art. 127.º do CPP, nem os arguidos o teriam permitido, por certo com receio que elas pudessem apresentar queixas-crime nas autoridades competentes.
75. Tudo, no sentido, de que nada tinham a esconder, pois todas as acções e omissões que os arguidos empreenderam eram sempre orientadas para o cumprimento das regras da Fraternidade e da educação das noviças para o serviço a Deus.
76. Podemos gostar mais ou menos das mesmas, no entanto, atento o direito constitucional da liberdade religiosa, de crença, de culto e de pensamento do art. 41.º da CRP, não violando outros bens jurídicos, é materialmente inconstitucional a interpretação segundo a qual cabe ao Estado, através dos seus tribunais, como órgão de soberania, aquilatar da correcção ou não de tais práticas.
77. Bastará recordar o que sucede em várias congregações religiosas também catolicamente erectas, bem como em prelaturas pessoais de Sua Santidade o Papa, como o Opus Dei, onde as mortificações e os castigos corporais fazem parte do modo de vivência dos ensinamentos católicos – concorde-se ou não com eles, mas tendo de ser respeitado por via do art. 41.º da CRP –, ponto é, naturalmente, que com o consentimento do titular do bem jurídico, a que se associam períodos de oração em condições físicas difíceis ou de jejum de comida e/ou bebida.
78. Pelo exposto – e como se desenvolveu nas motivações de recurso – as ofendidas, expressa ou tacitamente, consentiram na factualidade descrita no acórdão a quo, sendo que se acham verificados todos os requisitos exigidos pelo art. 38.º do CP: eram maiores de 16 anos e estavam em condições de entender e querer o alcance e sentido do consentimento, estamos em face de bens jurídicos livremente disponíveis pelo próprio – integridade física e honra – e, em face do quadro descrito, que deve ser sempre tido em consideração, não há ofensa aos “bons costumes”.
79. Dúvidas inexistem quanto ao cariz disponível da integridade física, bastando compulsar o art. 149.º, n.º 1, do CP.
80. O mesmo se diga quanto à honra, bastando pensar que os tipos legais p. e p. pelos artigos 180.º, ss., do CP são, por regra (art. 188.º do CP) crimes particulares, o que é uma claríssima nota distintiva da sua disponibilidade, por mais se exigir ao ofendido.
81. O preenchimento do conceito de “bons costumes”, sendo de ius aequum, é sempre mais complexo, mas vem sendo defendido na doutrina – com o que se concorda – que o n.º 2 do art. 149.º do CP deve iluminar os demais bens jurídicos para além da integridade física a que directamente se aplica.
82. Assim, “os motivos e os fins do agente” foram sempre no sentido de fazer com que as ofendidas interiorizassem as regras da Fraternidade, da congregação e da Igreja Católica, tendo-se já visto que alguns sectores da mesma, provavelmente mais conservadores, usam castigos físicos e ofensas à honra como forma de interiorização dos ensinamentos da fé que professam.
83. Em momento algum houve qualquer intenção dos arguidos de diminuir as ofendidas à condição de objectos, de escravas, de as quantificar, mas somente – o que acontece em qualquer instituição como esta que, na prática, funcionava para as ofendidas como um convento – a de as preparar para serem irmãs plenas e cumpridoras das regras da congregação.
84. Os “meios empregados” – de novo admitindo como totalmente válidos os factos dados por provados, o que se não concede – podem ter sido, aqui e além, um pouco desproporcionados em relação aos objectivos atrás transcritos, mas de modo algum importaram a coisificação das ofendidas, dado que não há sequelas graves do prisma da integridade física ou mesmo da honra, tanto mais que todos nós conhecemos expressões bem mais ofensivas.
85. Sendo certo que o bem jurídico do crime de escravidão contempla uma inegável feição qualitativa – sobre a qual já nos debruçaremos –, certo é que também existe nele uma dimensão quantitativa.
86. Trace-se o paralelo com o delito de violência doméstica, onde a hermenêutica do segmento do tipo objectivo “maus tratos físicos ou psíquicos”, não contendendo já com a existência ou não de reiteração (art. 152.º, n.º 1, do CP), tem sido interpretado como situando-se no campo de tensão entre a tortura e a vulneração de outros bens jurídicos associados a esse fenómeno, como a integridade física, a honra, a liberdade pessoal ou a liberdade sexual.
87. Donde, tem sido jurisprudência pacífica, p. ex., que um estalo não é apto a preencher o crime de violência doméstica, o que não significa que fique impune, pois o ordenamento conta com normas como a do art. 143.º, n.º 1, do CP.
88. Ora, é disto que se trata nos presentes autos: a imagem global da ilicitude e da culpa que se retira dos factos provados não é adequada, em nosso juízo, a que se possa dizer que o bem jurídico foi violado – mesmo desconsiderando, por momentos, por mera necessidade de interpretação, a justificação da ilicitude do art. 38.º do mesmo Código – de forma tal que possamos em face de crimes de escravidão, os quais exigiriam comportamentos muito mais graves em quantidade e em qualidade.
89. É este o momento, pois, para afrontarmos a questão de qual o valor ou interesse juridicamente tutelado pelo art. 159.º, al. a), do CP.
90. Como se desenvolveu nas motivações recursórias, existem, no essencial, duas visões sobre o mesmo: a dignidade da pessoa humana (TAIPA DE CARVALHO) ou a existência de um bem jurídico complexo, que engloba a liberdade, a integridade física, a honra, entre outros (PINTO DE ALBUQUERQUE).
91. Tal como de igual modo houve ocasião de explicar, como magistralmente foi demonstrado por FIGUEIREDO DIAS, atenta a função específica que ocupa em todo o nosso ordenamento jurídico e a sua rarefacção, a dignidade da pessoa humana não tem rendibilidade político-criminal e dogmática para ser erigida a um específico bem jurídico-penal.
92. Ora, foi esse o entendimento seguido pelo tribunal de 1.ª instância, o que, como visto, é tecnicamente errado.
93. Assim, para além do erro de Direito de os factos dados como provados – ainda que indiscutidos – não serem aptos a preencher os elementos objectivos e subjectivos do crime de escravidão, existe um outro erro quanto à identificação do bem jurídico, que, como se sabe, é sempre um padrão de leitura e uma luz iluminadora das condutas que se devem ou não considerar abrangidas.
94. Por mera lógica, caindo a concepção de bem jurídico patrocinada no aresto a quo, cai a demais construção jurídica e os factos provados não são aptos a preencher o art. 159.º, al. a), do CP.
95. Todavia, se se seguir a posição de Pinto de Albuquerque, de igual modo chegamos ao mesmo resultado, visto que, como dito, a quantidade e qualidade do descrito não chega para assumir a gravidade tal que justifique a existência de escravidão.
96. Repare-se num dado muito importante: quando se defende que um crime tem por bem jurídico complexo um que se designa dessa forma, tal não significa que o dito interesse seja um simples conglomerado dos “sub-bens” que o integram, mas comporta sim que se reconheça à imagem global de tais factos uma dimensão de ilicitude e/ou culpa aumentada significativamente.
97. Se assim não fosse, perderia todo o sentido lógico e jurídico da existência de crimes pluriofensivos.
98. Revertendo ao caso dos autos, tal acréscimo destes elementos do conceito material de crime não se vislumbra, de novo mesmo tendo como certos – o que se não admite – os factos dados por provados, quando dos mesmos se respiga:
a) Como entender o largo tempo que grande parte das Assistentes/Ofendidas passou na Fraternidade, sendo que houve algumas que fugiram, outras que foram expulsas e ainda outras que decidiram, livremente, abandonar aquele local e até regressar?
b) A ofendida HH esteve 25 anos na Fraternidade, a GG 10 anos, 7 meses e 25 dias, a EE 10 anos, 9 meses e 17 dias e a II 9 anos e 3 meses (facto 26).
c) O facto 30 diz que as ofendidas conviviam mensalmente com os familiares, o que é habitual numa instituição religiosa, algumas existindo em que não mais as noviças voltam a ter contacto algum com a família de origem. Do mesmo passo, não é verdade que tenham sido totalmente privadas dos contactos telefónicos com os seus familiares, como aliás flui do facto 106 – “os contactos telefónicos eram esporádicos” –, de novo se salientando que o tribunal a quo se alheou totalmente da dinâmica própria deste tipo de instituições, em que o vínculo com a família é, muitas vezes, até totalmente cortado.
d) Os factos 82 e 106 reconhecem que as ofendidas tomavam banho.
e) O facto 84 dá como provado que EE “abandonou a Fraternidade”, nada se dizendo quanto a obstáculos que a tivessem impedido. E mesmo que tivessem existido, o certo é que o conseguiu fazer, o que bem mostra que se não tratava de um castelo medieval com sevícias maléficas como pretende fazer crer o aresto ora impugnado.
f) O mesmo sucedeu com JJ, que fugiu da instituição em 6/1/2007 (facto 182), tendo relatado em audiência de julgamento que o fez ao meio-dia, abrindo o portão do parque de estacionamento, e saiu.
g) A II também fugiu – facto 141 e 317, tendo esta relatado em audiência de julgamento que telefonou previamente à testemunha CCC para a vir buscar à noite ao portão do parque de estacionamento, e à hora aprazada abriu o portão e saiu.
h) O facto 86 dá como assente que KK foi expulsa da Fraternidade a 13/5/2009. Ora, se o plano criminoso fosse o descrito pelo aresto recorrido, nunca os arguidos teriam deixado qualquer noviça sair da instituição, com alegado medo de que pudessem contactar o MP ou a polícia, relatando o que aí se passava, o que depõe no sentido de que os arguidos – mesmo admitindo a totalidade dos factos dados como provados – estavam convencidos que cumpriam os objectivos da Fraternidade e a educação para que as noviças se viessem a tornar mulheres dedicadas em exclusivo a Deus.
i) O mesmo quando à FF, pois o facto 80 dá como provado que esta no dia 16/5/2015 abandonou a Fraternidade Missionária, por sua iniciativa.
Então qualquer uma das Assistentes o podia fazer, revelando que não estavam privadas de liberdade. Acresce que as Assistente nas declarações prestadas em audiência de julgamento confirmaram todas que os portões não eram fechados à chaves, só estavam com o trinco e que se podiam abrir todos por dentro, tendo a Assistente KK confirmado que se quisesse sair podia sair livremente.
j) O facto 100 reconhece que a mesma KK se deslocou ao médico, pelo que não é verdade que em absoluto era negado às ofendidas tratamento clínico.
k) O facto 103 dá conta que WW “ingressou na Fraternidade” em 1990 (…) “permanecendo até ao dia ../../2015”, ou seja, 25 anos, “tendo voltado a ingressar em 7/1/2016, conforme documento junto a fls. 536 dos autos, onde ainda permanece”.
Se tudo o que foi dado como provado fosse verdade, não apenas não teriam deixado os arguidos que a HH saísse da Fraternidade, como se não compreende como, tendo lá estado 25 anos e, por isso, bem conhecendo o que lá se passava e a alegada conduta dos agentes, tenha, motu proprio, regressado menos de 2 meses depois. Se houvesse algo a esconder, por outro lado, os arguidos também nunca teriam aceitado o regresso da HH. Basta conjugar este facto com o art. 127.º do CPP para se entender que não pode este facto ser dado como provado.
l) Algo de semelhante aconteceu com GG, como resulta do facto 113: permaneceu no local cerca de 10 anos, saiu voluntariamente, “tendo voltado a ingressar em 7/1/2016”, conforme documento junto a fls. 537 dos autos, uma vez mais menos de 2 meses depois da sua saída, e aí permaneceu mais cerca de 2 anos até 18/11/2018.
m) Quanto à mesma ofendida, os factos 118 a 121 demonstram que a mesma teve assistência médica no centro de saúde de ... e no Hospital ..., para além de acesso a uma consulta médica privada, a que se junta o internamento na Casa de Saúde ..., no Porto e nova ida ao centro de saúde.
n) A LL foi expulsa da instituição, repetindo-se aqui o que já se disse acima quanto ao que isto representa (facto 164).
o) Não é verdade o quadro resultante do aresto sob recurso, quando o próprio admite que, ao menos em dado momento, pessoas como a JJ “foi levada para um quarto onde tinha todas as comodidades” (facto 388) e teve acesso a cuidados de saúde, como expressamente se reconhece no facto 402.
99. Reportando-nos à al. a) do n.º supra, é nossa convicção que a perda do direito de ir e de vir, rectius, a sua supressão pelo agente (do ius ambulandi) é um elemento implícito do tipo, o que de todo se verifica no manancial de factos dados por provados, pois que as ofendidas circulavam dentro do espaço ocupado pela Fraternidade, saíam para receber cuidados médicos, para conviverem com as famílias e até tinham a liberdade de abandonar a Fraternidade e, mais tarde regressarem, o que só pode ser interpretado no sentido de que aí se sentiam bem.
100. Perante o exposto, o aresto recorrido padece da nulidade de sentença a que alude a al. c) do n.º 1 do art. 379.º do CP, pois que em momento algum o tribunal recorrido analisou com cuidado, de modo aprofundado, nem se pronunciou sobre a existência de consentimento relevante, válido e eficaz, como o devia fazer, tratando-se como se trata de um tipo justificador que, oficiosamente, o tribunal deve analisar – iura novit curia.
101. Assim, não se pronunciou sobre matéria em relação à qual se devia ter pronunciado.
102. Mas o aresto recorrido representa ainda uma violação de dois dos fundamentos do recurso de revista ampliado previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
103. Em primeiro lugar porque, como visto acima, mesmo que os factos provados fossem incontestáveis e incontestados – que não são –, há insuficiência dos mesmos para o que deles se pretende retirar, ou seja, o preenchimento do crime do art. 159.º, al. a), do CP, bastando atentar nos factos que atrás transcrevemos e que demonstram que as ofendidas não foram coisificadas.
104. Por outro lado, e decorrente do que se escreveu agora, há contradição insanável entre a fundamentação (de facto e de Direito) e a decisão final, pois que os ditos factos não têm virtualidade para condenar os arguidos mas, ao invés, para os absolver.
105. O Acordão Recorrido violou as normas dos artigos 127.º, 355.º, 358.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1 b) e c), todos do C.P.Penal, e bem assim as normas dos artigos 10.º, n.º 1; 14.º, n.º 1 e n.º 2; 17.º; 26.º; 33.º; 34.º; 35.º; n.º 1; 37.º; 38.º; e 159.º, al. a), todos estes do C.Penal, e ainda os artigos 8.º e 41.º, ambos da C.R.Portuguesa.
****
Termos em que, e nos demais de direito,

Deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele:
a) O Acordão ser declarado nulo, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, b), porquanto condenou a aqui Recorrente DD por factos diversos dos escritos na Acusação Pública, não foi dado cumprimento ao n.º 1 do art.º 358.º, ambos do CPP;
b) O Acordão ser declarado nulo, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, c), do CPP, porquanto o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a existência de consentimento relevante, válido e eficaz, como o devia fazer, tratando-se como se trata de um tipo justificador que, oficiosamente, o tribunal deve analisar.
c) O Acordão padece de dois dos vícios da decisão sobre a matéria de facto, da insuficiência para a decisão da matéria de factos provada e de erro notório na apreciação da prova, nos termos das alíneas a) e c), do n.º 2 do art. 410.º, do CPP, e que aqui se suscitam.
d) Alterados os factos provados no Acordão, nos termos supra enunciados na impugnação da matéria de factos, ao abrigo do art. 431.º, al. a) e b), do CPP.
e) O Acordão revogado, e ser a Recorrente DD absolvida do crime de escravidão, bem como do respectivos pedidos de indemnização civil, e também das indemnizações arbitradas pelo Tribunal a quo.
Sem precindir:
f) Atento o direito constitucional da liberdade religiosa, de crença, de culto e de pensamento do art. 41.º da CRP, não violando outros bens jurídicos, é materialmente inconstitucional a interpretação segundo a qual cabe ao Estado, através dos seus tribunais, como órgão de soberania, aquilatar da correcção ou não de tais práticas, inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca.
Fazendo-se Justiça.”

I.2.3 Inconformada com a decisão condenatória contra si proferida, dela veio a arguida BB interpor recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...10):

I. A aplicação da medida da pena, em concreto, fixada à arguida, na 1ª Instância, com a qual não concordamos (e, por isso recorremos) para o Venerando Tribunal ad quem; razão por que, pugnamos, e esperamos, que a arguida veja a pena de prisão efetiva de 17 anos, REVOGADA!...
II. A arguida recorrente pugna para que a factualidade julgada provada, e cujo rol dos factos assentes acham-se descritos no item 3 do corpo das alegações, deverá ser julgada não provada.
III. De igual modo, o elenco dos factos provados descritos no corpo das alegações, nos itens 4, 5 e 6, deverão ser julgados não provados.
IV. Para operar a modificação – revogação – da matéria de facto supra aludida de provada em não provada, a arguida recorrente fundamenta tal revogação no teor dos depoimentos das ofendidas.
V. Pois que, os depoimentos de todas as ofendidas não foram uns verdadeiros depoimentos; foram induzidos e não prestados de forma espontânea.
VI. Todas, sem exceção, foram inquiridas em primeira instância pelo Tribunal, que lhes relatava, de forma circunstanciada, os episódios referidos na acusação, lendo ponto por ponto.
VII. Todas as ofendidas, sem exceção, limitaram-se a confirmar o articulado da acusação (não houve um depoimento que fosse prestado de forma espontânea).
VIII. A prova tida como produzida e provada em relação a cada uma das ofendidas teve sempre como base o depoimento (obviamente, comprometido e interessado) das ofendidas, conjugado com o articulado na acusação, em relação a cada uma destas.
IX. Verificado que está a “daily routine” do Convento, leva-nos a questionar onde estão as 20h de trabalhos forçados? (só se a jornada diária tivesse mais de 24 horas).
X. Por todas as ofendidas foi referido que os portões do convento estavam abertos.
XI. Que, quem quisesse podia simplesmente abrir o portão e sair!... e, abandonar a Instituição.
XII. Por todas as ofendidas foi referido que tinham acesso ao telefone fixo.
XIII. A ofendida II “BBB” inclusive era quem estava encarregue de se deslocar aos correios à cidade ... e sempre na posse de um telemóvel.
XIV. As ofendidas sempre tiveram ao seu dispor cuidados médicos.
XV. A modificação da decisão de facto assentará na auscultação, através de suporte áudio digital, cujas indicações de gravação acham-se descritas nas atas referidas nos itens 32, 33 e 34.
XVI. O TRG terá a oportunidade de constatar que TODOS os depoimentos das ofendidas – sem excepção – foram induzidos e prestados de forma parcial (não espontânea), para confirmar a versão (inverídica) constante na acusação.
XVII. Pugnamos para que o Julgamento realizado na 1ª Instância seja anulado – e, consequentemente, repetido – porque a produção de prova foi iníqua e não conforme às regras de produção probatória.

Subsidiariamente
XVIII. Há um “grupo de factos” – os constantes no rol dos factos provados, nos itens 185 a 190 – que deverão ser considerados não escritos (por se tratar de “não factos” ou factos nulos); na medida em que, se atentarmos ao teor dos mesmos, somos forçados a concluir que estamos perante factos conclusivos, logo, insusceptíveis de serem subsumidos a uma qualquer previsão normativa; concretamente, à hipótese legal do tipo de ilícito de “escravidão”, p.p. no artigo 159º do CP.
XIX. no que tange a estes apelidados “factos”, a arguida tem esperança sustentada de que o TRG anule tal factualidade, de todo, porque a análise da estrutura das orações semânticas que constituem os referidos itens, não integram factos enunciativos; ou seja, verdadeiros factos.
XX. a arguida acredita que tais (apelidados) “factos” deverão ser expurgados do rol da factualidade julgada assente e provada. E, claro está, com todas as consequências daí advenientes; nomeadamente, com a não subsunção à previsão normativa do tipo de ilícito do crime de escravidão, p.p. no artigo 159º do CP.

De direito
XXI. O artigo 159º do CP, cuja epigrafe é “escravidão”, dispõe o que segue: “Quem: a) reduzir outra pessoa ao estado ou condição de escravo […] é punido com pena de prisão de cinco a quinze anos”.
XXII. A primeira preocupação que nos assalta o pensamento será como definir “condição de escravo”, porque tal conceito terá de ser preenchido, segundo o princípio da tipicidade, de modo a não deixar margem para dúvidas acerca do que seja “ser escravo de alguém”.
XXIII. A noção de “escravo”, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa, consiste no seguinte: “pessoa que não é de condição livre, que está sob a dependência absoluta de um senhor, de quem é propriedade, por nascimento, venda, captura na guerra ou condenação” […] “pessoa privada de liberdade ou de direitos” …
XXIV. Reconhecemos que aceção que o legislador quis dar ao termo “escravo” será esta: «individuo que foi destituído da sua liberdade e que vive em absoluta sujeição a alguém que o trata como bem explorável e negociável… como “coisa”».
XXV. estamos perante um crime comum, quanto ao agente activo (“Quem”) e ao agente passivo (“outra pessoa”).
XXVI. É um crime de dano quanto ao bem jurídico e de resultado quanto ao objecto da acção, conforme PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, Universidade Católica, pág. 625.
XXVII. Trata-se de um crime de execução livre; isto é, a redução ao estado de escravo pode operar-se por qualquer meio.
XXVIII. O tipo objetivo do crime consiste em reduzir uma pessoa ao estado ou à condição de escravo. No fundo, trata-se de reduzir a pessoa a uma coisa, um objeto, propriedade do agente (“coisificar um sujeito”).
XXIX. Relativamente ao elemento subjetivo, a escravidão é um crime doloso. No entanto, relativamente à modalidade de dolo exigida, a doutrina diverge por completo.
XXX. A JURISPRUDÊNCIA (no que, à matéria que estamos a dissecar, diz respeito) também trata esta questão de forma elucidativa; e, porque não há (felizmente) muitos casos de escravidão submetidos a julgamento, dada a sua raridade na vida em sociedade, selecionamos alguns acórdãos paradigmáticos, para servirem de “norte” à nossa subsunção; a análise factual e jurídica dos acórdãos selecionados acha-se descrita supra no corpo das alegações nos itens 73 a 138.
XXXI. Da análise factual e jurídica aos 3 acórdão selecionados e supra analisados, podemos extrair algumas características comuns.
XXXII. Nos três acórdãos, as vítimas viram ser-lhes retidos os rendimentos fruto do seu trabalho ou “actividade” (no primeiro, os rendimentos provêm de esmolas, ao passo que nos segundos provêm do trabalho agrícola realizado), de que se apropriam, contra a vontade e sem o consentimento daquelas.
XXXIII. Em todas elas, resulta provado que os arguidos controlavam todos os movimentos dos ofendidos, não lhes permitindo a saída dos locais de “trabalho” e de residência sem o seu controlo.
XXXIV. Em todas as factualidades constantes dos acórdãos em análise, estamos perante vítimas que apresentam especial debilidade ou vulnerabilidade.
XXXV. No primeiro caso relatado, o comportamento dos agentes teve lugar sem qualquer tipo de agressões ou ameaças (elas até podem ter existido, mas não ficaram provadas), mas perante uma pessoa particularmente indefesa fisicamente como é um invisual; assim, para o seu efetivo controlo, tal não se mostrava tão necessário.
XXXVI. No segundo caso, o “cativeiro” das vítimas não tem quaisquer condições de habitabilidade, não dispondo de casa de banho para efetuar necessidades fisiológicas ou banhos. Além disso, sempre que as vítimas decidiam encetar a fuga daquelas condições de vida desumana, o arguido espancava-as.
XXXVII. No terceiro caso, além das características anteriormente relatadas, e do facto de também não disporem de condições de habitabilidade adequadas, a comida que era fornecida aos trabalhadores/escravos era diferente da usufruída pelos agentes, claramente deficitária, tendo em conta o trabalho duro que aquelas tinham de realizar.
XXXVIII. Em suma, podemos considerar que a retenção dos valores fruto do trabalho, bem como a constante vigilância e controlo dos movimentos das vítimas, são fatores indiciadores da prática do crime de escravidão.
XXXIX. O crime de escravidão implica uma conceção da vítima como uma espécie de “coisa”, tal como acontecia com a posse de animais usados para o trabalho, ainda tradicionalmente vistos como propriedade do dono, ou seja, a verdadeira “coisificação” da vítima que a verificação do crime de escravidão exige.
XL. Depois de discorrermos acerca da previsão normativa do crime de “escravidão” e de analisarmos os acórdãos mais significativos (de sublinhar que inexistem – que saibamos – no TRG, acórdãos relativos a tal matéria) orientadores para a subsunção dos factos da causa; é agora, o momento, para elencarmos os factos julgados provados com relevância para operarmos, ulteriormente a subsunção.
XLI. A factualidade provada nos autos, reputada relevante para que se proceda a ulterior subsunção à previsão normativa do crime de escravidão, são os factos vertidos nos itens 26 a 42 do acórdão e que se acham transcritos no item 152 do corpo das alegações.
XLII. A matéria de facto assente, entre os itens 43 e 184 do acórdão, descreve as situações particularizadas, relativamente a cada uma das ofendidas (e, como tais, não relevarão para a subsunção ao crime de “escravidão”; antes, terão relevo para a situação do desvalor da acção e resultado, relativamente a cada uma das lesadas).
XLIII. O acórdão volta a unificar os factos provados, relativamente a todas as ofendidas, a partir do item 185 até ao número 190; sendo certo que defendemos no corpo das alegações que deveriam ser considerados não escritos na medida em que, não são verdadeiros factos; antes, dever-se-ão qualificar como factos conclusivos e/ou imputações e considerações jurídicas.
XLIV. Todavia, mesmo que se considere tratar-se de factos provados; o certo é que – mesmo assim – toda a factualidade assente não habilita a qualificar a situação sub iudice como subsumível ao crime de “escravidão”.

Da subsunção dos factos provados ao direito aplicável

XLV. Concretamente, antecipámos, desde já, a conclusão a que chegaremos neste texto (porque, previamente refletimos acerca da questão decidenda): com os factos supra enumerados (extraídos do acórdão), entendemos que os factos provados não habilitam o tribunal a condenar a arguida pelo crime de escravidão; razão por que, atrevemo-nos a solicitar a revogação da condenação por crime de “escravidão”.
XLVI. O Tribunal a quo entendeu que estavam preenchidos os elementos do tipo de ilícito do crime de escravidão.
XLVII. Face aos factos provados, entendeu o tribunal a quo que o trabalho efetuado pelas ofendidas era prestado “em condições análogas às de escavo, em que a vítima, colocada sob o domínio do agente é destituída de toda a dignidade inerente ao ser humano”.
XLVIII. Não podemos olvidar que um dos lemas maios conhecidos de um convento é o “ora e labora”.
XLIX. A vida em convento passa por, grande parte do dia, ser preenchida com questões de oração e rituais litúrgicos; e, outras horas da jornada diária, serem ocupadas com trabalhos (essencialmente domésticos) relacionados com a manutenção da limpeza e organização da instituição.
L. Quando se fala em trabalho conventual, não se pensa em trabalho remunerado, porque o trabalhador não “vende” a sua capacidade produtiva à instituição para a qual trabalha.
LI. A “noviça” coloca-se, claro está, numa situação de hétero-disponibilidade, em favor da comunidade intramuros conventuais e extramuros da sociedade civil que auxilia.
LII. Todo o trabalho prestado no Convento é, por natureza, gratuito. A única compensação é ter abrigo grátis e mantimento dado.
LIII. Parece-nos que o equívoco cometido pelo Tribunal a quo foi entender que se estava a escravizar as ofendidas segundo novas “formas de escravidão”: a laboral, cujo trabalho é realizado “em condições análogas à de escravo”.
LIV. Mas, como vimos, não se verificava assim: a jornada diária das “noviças” é a que resulta provada supra nos itens 35 a 39 dos factos provados; cuja hora de levantar situava-se entre as 6h30 e 6h45; durante a manhã, as ofendidas dedicavam-se essencialmente à atividade de reza, missa e adoração; e (item 37), após o almoço das 13h, durante a tarde, tinham que executar as tarefas que lhes tinham sido atribuídas; sendo certo que, depois do jantar e do ofício litúrgico, deitavam-se cercas das 23h.
LV. Perguntamos, incrédulos, como se poderá qualificar tal jornada diária equivalente a um trabalho escravo?
LVI. Essencialmente, cumpria-se a regra do “ora e labora”; de manhã orava-se; de tarde, trabalhava-se.
LVII. Nenhuma das noviças foi colocada à força dentro do Convento. Não foram raptadas, nem sequestradas, nem compradas. Entraram dentro do domínio da congregação pelo seu próprio pé, ou foram lá colocadas pelos seus pais.
LVIII. Não podemos concordar com a afirmação vertida no acórdão, de que o seu isolamento era involuntário e que existiria impossibilidade de acesso à civilização.
LIX. Acha-se provado e foi declarado pela KK: “Na sua perspetiva, privilegiada não havia ninguém, todas eram tratadas por igual”.
LX. Todas estavam sujeitas a eventuais castigos corretivos; e, eventuais autoflagelo que constituíam sacrifícios próprios de adoração a Deus, segundo as suas conceções religiosas.
LXI. Não podemos classificar tais castigos como atitudes de “desumanização” e “coisificação” das ofendidas.
LXII. Bem pelo contrário. Tratava-se do reconhecimento que eram humanas e pecadoras; simplesmente, o deus que elas adoravam não eram um deus complacente e tolerante (do Novo Testamento), antes sim um deus castigador e que redimia os pecados através de um processo de expiação, com castigos que qualquer humano suporta (nunca exagerados, nem desumanizados). O diapasão aferidor da congregação era o deus retratado no Velho Testamento, que todos adoravam: arguidos e ofendidas.
LXIII. Não se pode falar em escravas segundo o Direito e por aferição do art. 159º do CP, pois, nunca por nunca, as ofendidas foram desumanizadas ou coisificadas.
LXIV. O Tribunal a quo – na nossa humilde perspetiva – deveria ter aferido a situação dos autos segundo as peculiaridades da vida conventual; e, nunca, olhar os factos com “os óculos” da sociedade civil comum.
LXV. Não se verificava relação de domínio sobre as ofendidas (a não ser o respeito pelas hierarquias que também a arguida respeitava, porque era a terceira na ordem de comando).
LXVI. As ofendidas foram sempre tratadas como pessoas e nunca como coisas ou animais.
LXVII. As ofendidas não poderão ser classificadas de modo algum como propriedade dos arguidos, porque a propriedade recai sobre coisas que conferem senhorio ao proprietário, com a faculdade de usar, fruir e dispor.
LXVIII. No caso concreto, as ofendidas prestavam a sua mão de obra laboral (como um qualquer operário numa fábrica, ou mulher a dias na casa de uma senhora), recebendo a contrapartida do seu trabalho totalmente em espécie.
LXIX. A única divergência em relação ao contrato de trabalho é aquela segundo a qual o salário do trabalhador tem de corresponder, pelo menos em 50%, em pecúnia; sendo que, apenas, poderá ser em espécie, a outra metade.
LXX. Horário de trabalho certo, as ofendidas tinham: era da parte da tarde; e, só quando havia trabalho acrescido de impressão das revistas e livros (ocasionalmente), é que a jornada começava às cinco da manhã e eram dispensadas de algumas obrigações de oração e rituais litúrgicos.
LXXI. Não foram as ofendidas, usadas (e abusadas) e fruídas; prestaram a sua força de trabalho, como qualquer outro trabalhador, a troco de um salário integralmente pago em espécie: habitação e comida.
LXXII. Nunca a hierarquia do convento decidiu comprar ou vender uma qualquer ofendida.
LXXIII. Portanto, não se pode falar em direito de propriedade sobre as mesmas, porque as três faculdades que compõem o direito de propriedade – usar, fruir e dispor – não foram (nenhuma delas) utilizadas.
LXXIV. Parece-nos que o Tribunal a quo forçou demasiado a nota ao ter julgado que as ofendidas foram reduzidas “à condição de escravo”.
LXXV. resta-nos concluir que, com os factos provados colocados em evidência supra, o Tribunal ad quem julgará – estamos disso convictos – que a arguida aqui recorrente (e, reflexamente, os demais arguidos) não poderão ser condenados pelo crime de escravidão, porquanto os factos provados não são passíveis, nem suscetíveis, de ser subsumidos à previsão normativa do art. 159º, al. a).

Subsidiariamente (para o caso de se julgar existir factualidade típica) …
inexistência de culpa; ou (pelo menos) censurabilidade (culpa) reduzida

LXXVI. Estes arguidos submetidos a julgamento, e os factos a eles imputados, não poderão ser aferidos por referência à sociedade civil comum.
LXXVII. A comunidade denominada “Fraternidade Missionária ...”, cuja organização situava-se na Rua ...”, na freguesia ..., ... – e, era liderada e coordenada pelos arguidos deste processo – NÃO poderá ser julgada à luz dos valores da sociedade civil geral.
LXXVIII. Não podemos olvidar que, tratava-se de uma comunidade religiosa que pautava os seus comportamentos com a rigidez, cujos cânones afinavam por comportamentos austeros e próprios da vida num “Convento”.
LXXIX. “CONVENTO” no sentido atual, de cariz religioso, remonta apenas ao século XIII, aplicando-se às casas onde religiosos ou religiosas viviam em comunidade, com regras próprias e autónomas, diferenciadas da sociedade civil, em geral.
LXXX. Do livro cujo título é “Os Espaços de reclusão e a vida nas margens”, da autoria de CC Guimarães de Sá, existe um capítulo denominado “GENERO E INTERIORIDADE NA VIDA RELIGIOSA”, do qual colocamos em evidência a seguinte citação: “No que se refere à verificação do cumprimento da Regra geral e de todas as normas escritas (onde abundam as punições por quebra da disciplina, da clausura ou de algum dos três votos professados) encontramos um controlo triplo exercido pelos religiosos da mesma família espiritual: sobre cada religiosa, sobre a abadessa (a autoridade máxima de cada Casa), e sobre todas as madres que desempenham cargos (sobremaneira as que lidam com as zonas sensíveis de contacto entre o intramuros e a sociedade exterior). Os três níveis da pirâmide hierárquica de cada comunidade religiosa feminina (o individual, o dos cargos intermédios entre todas e a chefia máxima, e, no vértice, a abadessa ou a madre superiora) estão, pois, completamente subordinados a autoridades masculinas da mesma Ordem ou Congregação.” (sublinhados nossos)
LXXXI. Daqui podemos concluir que é comum a existência de “punições por quebra de disciplina”!...
LXXXII. Também existem “zonas sensíveis” que são aquelas que propiciam “o contacto entre o intramuros e a sociedade exterior”.
LXXXIII. A comunidade “intramuros” (o Convento) pauta as suas regras de convivência por cânones diferentes, daqueles que constituem parâmetro de referência da sociedade civil, em geral.
LXXXIV. A “caixa de ressonância ética” da comunidade conventual é diferente do conjunto de valores e referências de censurabilidade que constituem a “consciência da i/licitude”, da sociedade civil comum.
LXXXV. Por causa desta problemática (e de muitas outras), o Professor Figueiredo Dias escreveu a sua tese de Doutoramento, subordinada ao tema: “O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal” que deu origem ao art. 17º do CP.
LXXXVI. Dispõe o art. 17º do CP que “age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável”.
LXXXVII. Da mesma forma que entendemos ser um equívoco, actualmente, julgarmos os erros das sociedades esclavagistas, por aferição aos valores e cânones atuais.
LXXXVIII. Também, com discordância pelo decidido no tribunal a quo (sempre com o respeito que nos é merecido), afirmamos ser um tremendo equívoco aferir e julgar a comunidade constituída em “Convento”, denominada Fraternidade Missionária ..., pelo “diapasão” da “caixa de ressonância ética da sociedade civil comum”; pois, na verdade, aquela comunidade vivia “dentro de uma bolha”… totalmente separada da sociedade civil em geral.
LXXXIX. Creiam… Venerandos Desembargadores, se os arguidos “suspeitassem” que os actos (e factos) considerados provados constituíam um crime de “escravidão”; certamente, jamais teriam praticado os factos que lhes são imputados.
XC. Todos os arguidos (acreditamos) – e, em particular, a arguida que patrocinámos – padeciam de “daltonismo” ético, no que respeita ao crime de “escravidão”!...
XCI. E, “daltonismo” esse… NÃO CENSURÁVEL, à luz das regras e cânones que pautavam as suas condutas!… (que julgavam de acordo com os parâmetros “normais” de um Convento, no qual imperam a disciplina, os comportamentos austeros, os autoflagelos e outras privações e sacrifícios, como forma de “louvar Deus”!...)
XCII. Colocamos em evidência a anotação n.º 3, página 168, do Código Penal Anotado, de Paulo Pinto Albuquerque que cita exemplos compilados do Código Penal Anotado, por Miguez Garcia e Castela Rio, acerca de situações de “falta de consciência da ilicitude”; e, entre as quais figura o “o erro sobre a existência ou os limites de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa ou erro indirecto sobre a proibição”. E, o exemplo apontado é o caso do “professor que esbofeteia um aluno na convicção de que tem um direito de correcção física. (sublinhado nosso).
XCIII. A este propósito é, deveras, relevante a análise do relatório social da arguida, cujos excertos que pretendemos realçar acham-se descritos nos itens 215 a 233 do corpo das alegações; e, dos quais sublinhamos o seguinte: “(…) BB manifesta sentimentos de surpresa, mágoa e desgosto pessoal face ao seu estatuto de arguida, transparecendo o impacto emocional da situação jurídico-penal, cujo desfecho aguarda com ansiedade, não antecipando a hipótese de condenação.”; “A notícia do atual processo e da situação jurídico-penal constituiu uma surpresa, sendo encarado com incredulidade, na sua área de proveniência sociofamiliar, como no seu contexto habitacional (…)”.
XCIV. A arguida nunca – por nunca – hostilizou o Direito. Sempre pautou o seu comportamento em sociedade civil (extramuros do Convento) dentro dos parâmetros de uma cidadã cumpridora da Ordem Jurídica.
XCV. Poderá beneficiar do regime da “falta de consciência da ilicitude”, porque só estarão excluídos (de tal regime) “os casos de hostilidade ao Direito”; Figueiredo Dias, obra citada, pag. 644.
XCVI. Manda o dever de patrocínio que – muito embora defendamos tratar-se de um caso claro e inequívoco de falta de consciência da ilicitude não censurável - ; o certo é que, manda a humildade jurídica que reconheçamos ser possível o Tribunal ad quem – mesmo assim – entender que haverá censurabilidade não desculpável.
XCVII. Na nossa perspetiva (reconhecemos), existe de facto censurabilidade; mas, tal censurabilidade ficará circunscrita aos factos típicos integrantes dos crimes de “ofensas corporais” e de “difamação”, decorrentes dos castigos (segundo os factos julgados provados) subsumíveis ao crime de ofensas corporais simples; bem como, os factos assentes subsumíveis à previsão normativa do crime de injúrias perpetrado em relação às ofendidas, através dos impropérios relatados no acórdão a quo.
XCVIII. Mas, censurabilidade não desculpável, decorrente de eventuais atos praticados, subsumíveis ao crime de “escravidão”, julgamos inexistir de todo.
XCIX. Seja-nos permitido expressar o seguinte desabafo: estamos certos que o Tribunal a quo, com os factos provados, não estaria habilitado a condenar os arguidos pelo referido crime de “escravidão”; antes, deveria subsumir a factualidade aos referidos crimes de “ofensas corporais” e “injúrias”.
C. Colocamos a seguinte interpelação: como poderia o Tribunal de Primeira Instância absolver os arguidos, face à pressão mediática que este caso padeceu; uma vez que, os crimes de ofensas corporais e injúrias estavam prescritos?
CI. Os arguidos não poderiam sair do tribunal sem uma condenação!... (porque o julgamento efetuado no “pelourinho” da comunicação social exigia uma condenação… e, exemplar!)
CII. Reiteramos, portanto, que a censurabilidade do crime de escravidão é desculpável; isto é, a falta de consciência da ilicitude do facto não é censurável, nos termos do art. 17º do CP.
Todavia

CIII. Para o caso de o Tribunal ad quem entender existir censurabilidade, o certo é que – estamos convictos – a pena a aplicar à arguida deve ser “especialmente atenuada”, nos termos do art. 17º, n.º 2, cujas regras de atenuação especial estão consagradas nos arts. 72º e 73º do CP.
CIV. Mas, reiteramos e sublinhamos, acreditamos na coragem e determinação dos Venerandos Desembargadores que compõem a Secção Criminal do TRG, que não se vergarão à pressão dos ecos mediáticos e dos clamores condenatórios da justiça de pelourinho; e, por virtude disso, absolverão (como se impõe) a arguida do crime a que se acha condenada; pois, só assim se materializará a almejada Justiça.

Algumas considerações acerca da medida da pena

CV. A arguida recorrente foi condenada na prática de 9 crimes de escravidão, cujo resultado do cúmulo jurídico fixou a pena aplicada em 17 anos de prisão.
CVI. Manda a cautela de patrocínio que ainda possamos admitir (se bem que muito remotamente) a possibilidade de uma condenação.
CVII. Se tal suceder – o que não se concebe, nem admite (mas a cautela de patrocínio obriga a hipnotizarmos essa possibilidade) – NUNCA, por nunca, poderá a arguida ser condenada por 9 crimes de escravidão, e muito menos em 17 anos de cadeia.
CVIII. Entendemos que, a existir crime de escravidão, tal crime deverá ser único, porque perpetrado segundo o mesmo modus operandi e perante todas as noviças (as ofendidas e as outras) numa relação de fungibilidade.
CIX. Dispõe o art. 79º do CP que o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
CX. No caso concreto, houve – segundo os factos provados – uma unicidade reiterada de factos praticados, segundo a mesma forma e comportamento, muito embora os agentes lesados tenham sido aquelas que, nos autos, se constituíram como ofendidas.
CXI. A ter de existir punibilidade, dever-se-á punir o comportamento único, agravado pelo resultado “mais grave que integra a continuação”; e, ao contrário, não se deverá punir conduta por conduta, porque a conduta foi única, sem visadas privilegiadas e (a acreditarmos nos factos dados como provados) teriam existido mais lesadas do que aquelas que foram sujeitos processuais.
CXII. A existir punição, ela terá de ser efetuada nos termos do art. 79º do CP e sempre segundo as regras da atenuação especial, consagrada nos art. 72º e 73º do mencionado código.
CXIII. Todavia, realçamos, a justiça que se deverá concretizar no caso concreto, passará pela absolvição integral da arguida aqui recorrente.

TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência:

a) determinar a anulação da decisão de facto proferida em Primeira Instância, com a consequente repetição do julgamento;
Subsidiariamente, se assim não se entender,
b) dever-se-á revogar o decidido e absolver a arguida do crime de escravidão, na medida em que os factos julgados provados não se subsumem na previsão normativa do art. 159º do CP.
Ainda, subsidiariamente, se porventura se entender estar verificado o tipo de ilícito denominado “escravidão; sempre se defenderá
c) a revogação da condenação aplicada à arguida, por verificação dos pressupostos da falta de consciência da ilicitude, segundo o disposto no art. 17º, n.º 1 do CP;

Subsidiariamente, também, caso se entenda que a falta de consciência da ilicitude é censurável, então,
d) dever-se-á condenar a arguida nos termos do art. 17º, n.º 2 do CP, segundo as regras da punição especialmente atenuada, nos termos dos arts. 72º e 73º do CP; sendo certo que, e em quaisquer circunstâncias, nunca a arguida deverá ser condenada por 9 crimes de escravidão, porquanto, ao caso concreto, dever-se-á aplicar o regime do crime continuado do art. 79º do CP, do qual resulta:
e) a condenação da arguida pela punibilidade da conduta mais grave que integra a continuação; ainda com a aplicação do regime da atenuação especial da pena, prevista nos arts. 72º e 73º do CP.”

I.2.4 Inconformado com a decisão condenatória contra si proferida, dela veio o Centro Social de Apoio e Orientação ... interpor recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...64):

“1 – Por Douto Acórdão prolatado nos presentes autos foi a aqui Recorrente condenada penal e civilmente por nove crimes de escravidão;
2 – Condenação que – salvo o devido respeito por melhor opinião- não encontra suporte na matéria de facto dada como provada;
3 – Insuficiência de matéria que o douto Tribunal a quo ainda tentou contornar com uma alteração não substancial de facto pela qual, de forma genérica, indefinida e meramente conclusiva, dá como provado que os Arguidos (agentes singulares) agiam no nome e no interesse da aqui Recorrente;
4 – Conclusão arbitrária e até contraditória com outros pontos da matéria de facto (vide, designadamente, ponto 186) com a qual violou de forma flagrante não só a norma contida no n.º 2 do artigo 11 do CP – cujos pressupostos não se mostram preenchidos;
5 – Como limitou o direito de defesa da ora Recorrente, violando as normas contidas, designadamente, nos n.ºs 1, 2 e 5 do artigo 32.º da CRP;
6 – De facto, para que a ora Recorrente pudesse ser penalmente responsabilizada seria imprescindível  não só demonstrar que o suposto crime foi cometido por quem nela ocupa uma posição de liderança (pressuposto formal do normativo contido no n.º 2 do artigo 11 do CP);
7 – Como também demonstrar que os seus Órgãos e/ou Representantes atuaram no seu nome e interesse;
8 – Pressupostos que não se bastam (como o douto Tribunal a quo se limitou a fazer) com a mera invocação de que os Arguidos atuavam no nome das duas Instituições – “Fraternidade” e “Centro Social” – mostrando-se imperativo, para efeitos de responsabilização do “Centro Social”, que ao atuar aqueles manifestassem, de forma inequívoca, a vontade da pessoa coletiva que efetivamente pretendiam vincular – o que, no que ao “Centro Social” diz respeito, não ficou demonstrado;
9 – Pelo que nunca o mesmo poderia ter sido responsabilizado pela atuação dos Arguidos cujo facto e culpa, em bom rigor, também não ficou demonstrado;
10 – Saliente-se, a este propósito, que a responsabilização da Pessoa Coletiva implica sempre, em primeira linha, a responsabilização dos agentes singulares;
11 – A qual, como referido – salvo o devido respeito por melhor opinião – não ficou demonstrado, como, de resto, facilmente se concluiu pela simples análise da matéria de facto dada como provada, a qual é claramente insuficiente para concluir que as “vitimas” tenham sido esbulhadas de toda a dignidade inerente à pessoa humana, ao ponto de serem reduzidas a simples objetos;
13 – E muito menos concluir que o trabalho por aquelas realizada – que deve sempre ser entendido no contexto em que era praticado (no âmbito de um “convento” onde impera a máxima do “ora” e “labora”) – fosse realizado em condições análogas à de escravo;
14 – Circunstâncias que associadas a todas as demais evocadas em sede de motivação afastam o crime de escravidão fazendo com que a factualidade aqui em apreço se subsuma, quando muito, a um crime de injúria e/ou de ofensa à integridade física que não se subsume na norma contida no n.º 2 do artigo 11.º do CP não determinando, por decorrência, a responsabilização da aqui Recorrente;
15 – A qual, de todo o modo (e como supra referido), nunca seria penalmente responsabilizada pelo facto de, para além do pressuposto formal, ser igualmente imperativo demonstrar o preenchimento dos pressupostos materiais da norma contida no n.º 2 do artigo 11.º do CP, o que (como também já referido) não ficou demonstrado;
16 - De facto, para que se entenda que o agente atua em nome da Pessoa Coletiva é necessário que aquele “atue formalmente no exercício das suas funções e no âmbito das suas competências”, ou seja, é necessário que aquele pratique um ato funcionalvide Germano Marques da Silva in “Responsabilidade Penal das Sociedades” – pág. 248 e ss;
17 – Sendo que, fora do referido âmbito funcional, os atos praticados pelos agentes singulares são, quando muito, atos pessoais, não tendo a virtualidade de vincular a pessoa coletiva;
18 - Ora, basta debruçarmo-nos sobre o ponto 19 da matéria de facto dada como provada – a qual descreve as funções nas quais os Arguidos (agentes singulares) se encontravam investidos quando praticaram os atos aqui em destaque - para perceber que essas nenhuma ligação têm com os cargos que aqueles ocupam no “Centro Social”, tratando-se de funções claramente associadas à “Comunidade Religiosa” da qual os mesmos faziam parte - “Fraternidade Missionária ...”;
19 – Atentemos a esse propósito, designadamente, nas funções em que a principal Arguida dos Autos - BB - se encontrava investida aquando da prática dos atos aqui em apreço: responsável por dirigir as tarefas da “Fraternidade” e a orientação vocacional das Consagradas;
20 – Funções que, à semelhança das desempenhadas pelos demais Arguidos, estão claramente relacionadas com a atividade desenvolvida não pelo “Centro Social de Apoio e Orientação ...” - a qual, de resto, era inexistente – mas com a atividade desenvolvida pela “Fraternidade Missionária ...”, em nome da qual a redita Arguida dirigia as correspondentes tarefas e a Arguida CC, designadamente, a tipografia;
21 – Refira-se que ainda que o douto Tribunal a quo com a alteração não substancial de factos levada a cabo – tenha procurado dar a entender que o “Centro Social” foi constituído para servir de suporte jurídico à atividade económica da “Fraternidade” – o que, de resto, é desmentido pelo depoimento do Pe. QQ na Audiência de Julgamento de 11 de maio de 2021 – 00:13:15 a 00:13.33, não correspondendo à verdade;
22 – Seria sempre imperativo – até porque, como ficou demonstrado, aquelas duas Instituição eram autónomas e distintas entre si – demonstrar que os Arguidos (agentes singulares) atuaram de molde a vincular, não a “Fraternidade, mas o “Centro Social” , manifestando a vontade deste último - o que, salvaguardando uma vez mais o devido respeito por melhor opinião, não ficou demonstrado;
23 – De facto e em bom rigor a única ligação do “Centro Social” com a “Fraternidade” prende-se com o facto daquele ser proprietário dos imóveis onde aquela tem a respetiva sede, imóveis que lhe servem de instalações e onde a mesma desenvolve toda a sua atividade (incluindo a atividade de tipografia, as atividades religiosas e a preparação das atividades de evangelização junto aos Estabelecimentos Prisionais de Portugal);
24 – O que nos permite contextualizar a referida relação como uma típica relação de usufruto ou comodato, pois que apesar dos imóveis serem do “Centro Social”, quem efetivamente os fruía e neles desenvolvia toda a sua atividade era a “Fraternidade”, mantendo-se o “Centro” totalmente inativo (tendo, apenas, existência formal);
25 – Daí no ponto 186 da matéria de facto dada como provada se concluir que os trabalhos desenvolvidos pelas Assistentes/Ofendidas visavam o normal funcionamento da “Fraternidade”;
26 – O que faz sentido já que era aquela quem fruía o espaço competindo-lhe, por decorrência, zelar pela conservação do mesmo, cuidando da sua limpeza interior e exterior;
27 – Refira-se que o espaço em questão era conhecido por “Convento de ...” e não por “Centro Social de Apoio e Orientação ...” o que confirma e demonstra a sua total conexão com a “obra” da Fraternidade;
28 – Circunstância que associada a todas as demais invocadas em sede de Motivação afastam a conclusão arbitrária do douto Tribunal a quo quanto ao facto dos Arguidos (agentes singulares) atuarem em nome do “Centro Social” tendo em vista  o incremento patrimonial do mesmo na modalidade de poupança de despesas - !!??;
29 – Assim como a conclusão – igualmente arbitrária – de que esse fosse o móbil para a “angariação” das Assistentes/Ofendidas;
30 - De facto (e em bom rigor) a grande preocupação dos Arguidos (agentes singulares) sempre foi - como de resto resulta do depoimento do Pe. QQ na Sessão de Julgamento de 11 de maio de 2022 /00:19:13 -  o de elevarem a “Fraternidade” a “Ordem Religiosa” para o que necessitavam de um número mínimo de elementos (número que não possuíam);
31 – Pelo que a falar-se de “angariação” sempre essa (a existir) teria por mote não o incremento patrimonial do “Centro Social”- que à data de entrada de algumas das Ofendidas -como a Ofendida MM e a Ofendida OO que ingressaram na obra na década de 70 - ainda nem sequer existia – mas a fixação do número mínimo de elementos para que a “Fraternidade” fosse reconhecida como “Ordem Religiosa”;
32   - O que igualmente confirma que os Arguidos (Agentes Singulares) agiam não no interesse do “Centro Social”, mas da “Fraternidade”;
33 – De facto, apesar de concluir que os Arguidos (agentes singulares) gizaram um plano para angariar jovens tementes a Deus para depois se servirem do trabalho daquelas para incrementar o património do “Centro Social” na modalidade de poupança de despesas, o douto Tribunal a quo nenhuma prova produziu nesse sentido;
34 – Limitando-se a invocar - mormente nos pontos 20, 186 e 189 – matéria conclusiva, genérica e indefinida que, por não sustentada em factos que a permitem concretizar temporal, espacial e circunstancialmente, violam de forma flagrante o Princípio da Presunção de Inocência e o Princípio do Contraditório (limitando e dificultando o direito de defesa da ora Recorrente) postulados nos n.ºs 1,2 e 5 do artigo 32.º da CRP;
35 – Determinado a desconsideração de tais factos para efeitos de condenação e impondo atento os argumentos fácticos e de direito acima evidenciados - não preenchimento dos pressupostos formais e matérias da norma contida no n.º 2 do artigo 11.º do CP - a absolvição da aqui Recorrente;
36 – Mas ainda que assim não se entenda - o que, só por mera hipótese académica se concebe – sempre se deverá subsidiariamente atender à medida da pena e à quantificação do valor diário da pena de multa os quais se revelam claramente excessivos;
37 – Sendo que para além de, em clara violação do disposto no n.º 1 do artigo 71.º do CP, em sede de “medida da pena” se ter considerado a factualidade respeitante a algumas “Ofendidas” ingressadas na “Fraternidade” antes da constituição do próprio “Centro Social”, sempre o crime em questão deveria, ao abrigo do disposto no artigo 79.º do CP, ter sido qualificado como “continuado”, determinando uma considerável redução de pena;
38 – Acresce que, apesar de ter fixado o valor diário da pena de multa aplicada à Recorrente em € 200,00 (duzentos euros) o douto Tribunal a quo nenhuma prova produziu quanto à situação económico-financeira daquela;
39 - Violando, por decorrência, as normas contidas, designadamente na alínea d) do n.º 2 do artigo 71.º e do n.º 5 do artigo 90-B do CP e determinando a ineficácia da Decisão nessa parte em concreto;
- Ainda a título subsidiário e no que à parte civil diz respeito:
40 - O Acórdão em crise condenou ainda os Arguidos de forma solidária no pagamento de indemnizações cíveis avultadas às Vítimas/Assistentes e compensações às Ofendidas que não deduziram PIC arbitradas pelo Tribunal a quo com base nos danos que estas alegadamente terão sofrido com a prática dos alegados crimes de escravidão que foram imputados aos Arguidos.
41- Fazendo-o, contudo, em clara violação do Direito por não se encontrarem preenchidos os pressupostos dos institutos legais aplicados para o efeito.
42 – Motivo pelo qual o Acórdão em crise viola sobremaneira o disposto nos artigos 165º, 483º, 500º, 562º, 563º e 564º todos do Código Civil e o artigo 82º-A do CPP.
43 - As Assistentes EE, GG, II e os Herdeiros da Vítima MM vieram deduzir PIC no qual requereram a condenação dos Arguidos no pagamento de vultuosas indemnizações referentes aos danos patrimoniais sofridos.
44 - Contudo, esses mesmos danos nunca existiram por nunca terem tido as Vítimas qualquer prejuízo patrimonial.
45 - A este respeito alegaram as Vítimas que na sequência dos atos praticados pelos Arguidos sofreram avultados prejuízos patrimoniais pois trabalharam diariamente ao longo de vários anos entre 16 a 20 horas na Instituição sem nunca terem recebido qualquer salários, subsídios de natal e de férias ou outros direitos conforme lhes seria devido.
46 - Resultou assente da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento que todas as Demandantes ingressaram na Instituição de voluntariamente e com a anuência dos respetivos Progenitores com vista a prosseguirem a vocação religiosa que sentiam e a vontade de servir Deus.
47 - Bem sabendo que ao se integrarem numa comunidade religiosa teriam obrigatoriamente de executar vários trabalhos em função das necessidades da Instituição e em prol da comunidade sempre em regime de voluntariado – como aliás ocorre em todas as comunidades.
48 - Trabalhos esses que no caso em apreço abrangiam a realização das lides domésticas comuns a qualquer casa de habitação e ainda a execução de atividades na tipografia que era uma das principais fontes de rendimento da comunidade onde se encontravam inseridas.
49 – Circunstância que era por estas conhecida quer por terem frequentado a Instituição antes de ingressarem na mesma através, designadamente do auxílio nas atividades desta, da frequência dos convívios mensais, da permanência na comunidade nos períodos de interrupção de atividade letiva ou da frequência dos cursos Dominique.
50 - Quer no caso da Assistente GG por ter sido alertada disso pelo Arguido AA.
51 - Quer no caso das Assistentes GG e a II por terem uma familiar direta que é ou já foi irmã religiosa.
52 - E que configura o modus operandi normal do funcionamento de qualquer comunidade religiosa como confirmado pelo legal representante do Recorrente e as Testemunhas DDD e OO.
53 - Pelo que nunca poderiam as Vítimas sequer criado a convicção de que algum dia iram receber qualquer contrapartida monetária.
54 - Tanto mais porque as mesmas fizeram votos de pobreza perante a instituição os quais apesar de não serem válidos canonicamente não deixam de ser válidos no seio da comunidade em que se inserem como mencionado pelo legal representante do Recorrente e pela Testemunha VV.
55 - Acresce que as Vítimas ao longo dos anos foram sempre vindo a ser compensadas pelos trabalhos prestados através do fornecimento pela Instituição de alojamento, alimentação, vestuário e ainda atividades de espiritualidade (nas quais se incluíam mais de 6 horas diárias de momentos de oração e deslocações a locais de culto fora da Fraternidade).
56 - Estando perante uma situação em que as Vítimas sempre auferiram retribuição em espécie inexistindo, assim, quaisquer danos patrimoniais.
57 - Contudo e ainda que se considere existir algum tipo de prejuízo patrimonial na esfera jurídica das Vítimas nunca seria o mesmo imputável à conduta dos Arguidos por não existir nexo de causalidade entre o facto e o dano.
58 - Porquanto as Vítimas tanto poderiam ter entrado naquela comunidade religiosa como em outra qualquer após terem sentido vocação religiosa.
59 - Não tendo sido produzida qualquer prova que indicie que não tivessem as mesmas ingressado da Fraternidade teriam iniciado uma vida profissional comum na qual tinham auferido salários.
60 - Tendo essa conclusão resultado de mais uma das ilações infundadas retiradas pelo douto Tribunal a quo.
61 - Nem tão pouco ficou demonstrado que as Assistentes não tivessem sabido da invalidade dos votos prestados não teriam prestado o trabalho a que se sujeitaram de forma voluntária.
62 - Pelo contrário tanto assim não o é que conhecendo a invalidade dos votos as Assistentes EE e GG regressaram à Instituição para continuar o trabalho até então desenvolvido.
63 - Trabalho esse que já vinha a ser desenvolvido por todas as Vítimas, inclusive, antes de ingressarem na Instituição.
64 - Havendo, assim, pelo menos, uma clara dúvida se o dano se verificaria na mesma não fosse a conduta dos Arguidos.
65 - Razão pela qual deveria o Tribunal a quo ter absolvido os Arguidos do pagamento das indemnizações relativas aos danos patrimoniais reivindicados nos PIC pelas Assistentes EE, no valor de € 149.000,00 (reduzido pelo douto Coletivo para € 75.000,00), GG, na quantia de € 131.020, (reduzido pelo douto Coletivo para € 75.000,00), II, no valor de € 189.434,30 (reduzido pelo douto Coletivo para € 70.000,00) e pelos Herdeiros da Vítima MM, na quantia de € 140.000,00.
66 - Não o tendo feito e decidindo no sentido da condenação o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 483º, 562º, 563º e 564º todos do Código Civil.
67 - Relativamente ao PIC deduzido pelos Herdeiros da Vítima MM também os demais danos não eram ressarcíeis uma vez que não se encontravam preenchidos os requisitos da aplicação do instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos pelo que deveriam ter sido os Arguidos ser absolvidos in totum do pagamento do mesmo sob pena de se violar (como veio a ocorrer) os artigos 483º, 562º e 563º todos do Código Civil.

68 - Ao longo da produção de prova ficou assente que a Vítima MM estava a receber acompanhamento Médico e medicamentoso por se encontrar em estado depressivo há vários meses.
69 - Estado que se agravou com a morte de um irmão da mesma (que terá ocorrido em razão de causas desconhecidas ou por suicídio) e pela circunstância dos demais irmãos pretenderem que a mesma abandonasse a Instituição para ir tomar conta dos Pais contra a sua própria vontade - conforme confirmado pela Arguida BB e pela Assistente HH nos respetivos depoimentos.
70 - Não sendo, por isso, possível concluir que o ato do suicídio da Vítima MM terá decorrido da circunstância desta vir a ser alegadamente mal tratada e não da conjuntura supra referida.
71 - Tanto mais que se fosse a alegada “escravidão” a que vinha a ser sujeita a causa do dano da morte a mesma não se não teria preocupado em deixar notas com instruções expressas em como operar a máquina da tipografia na qual trabalhava com vista a garantir a continuidade da obra.
72 – Assim, não se encontra preenchido o requisito do nexo de causalidade adequada exigido para que o dano seja indemnizável.
73 - Na eventualidade de assim não se entender também não se poderá dizer que os Herdeiros da Vítima MM lograram provar ter sofrido na respetiva esfera jurídica danos não patrimoniais com dano da morte da irmã/tia.
74 - Porquanto a única coisa que os mesmos demonstraram ao longo de toda a produção de prova é que não tinham qualquer interesse ou consideração pela vida da Vítima uma vez que não só não mantinham contacto regular com a mesma, como a tentaram forçar a abandonar a vocação e a vida que construiu.
75 - Não tendo sequer tratado do funeral da própria, em alguns casos comparecido no mesmo ou a sepultado do cemitério da terra onde cresceu junto aos demais familiares da própria.
76 - Pelo que deveria o Tribunal a quo absolver os Arguidos do pagamento dos mesmos.
77 - Por outro lado, não poderia o Tribunal a quo ter arbitrado qualquer indemnização às Vítimas EEE, KK, LL e OO à luz do disposto no artigo 82º-A do CPP.
78 - Pois os Arguidos não foram condenados pelos crimes que lhes eram imputados relativamente às Vítimas em causa (sobre os quais foi proferido Despacho de Arquivamento em fase de Inquérito por já ter decorrido o prazo de prescrição dos mesmos) – pressuposto cujo preenchimento era essencial para a aplicação do normativo.
79 - Contudo e ainda que assim não se entenda nunca poderia o Tribunal a quo arbitrar as indemnizações na medida em que o fez por serem manifestamente arbitrárias e desproporcionais face aos danos sofridos pelas Vítimas.
80 - Porquanto as Vítimas em causa nunca sofreram quaisquer danos patrimoniais pelos motivos supra expostos relativamente aos PIC que se dão como integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos por questões de economia processual.
81 - Razão pela qual deverão os montantes das indemnizações arbitradas (se devidas o que apenas academicamente se considera) ser reduzidas relativamente às Ofendidas FF, KK e LL.
82 - E absolvidos os Arguidos do pagamento não só do montante da redução realizada como também da quantia de € 60.000,00 arbitrada à Vítima OO referente a danos patrimoniais sob pena de se violar o Princípio da Proporcionalidade e o artigo 82º-A do CPP.
83 - Acresce que a compensação em análise foi arbitrada sem que o Tribunal a quo permitisse aos Arguidos exercer o respetivo contraditório impedindo, assim, o direito de defesa e proferindo uma decisão surpresa neste particular.
84 - Omissão que configura uma irregularidade de conhecimento oficioso pelo que deverá ser declarada a invalidade do Acórdão em crise relativamente à condenação das compensações referidas por forma a que seja concedido o direito ao contraditório aos Arguidos sob pena da violação do n.º 2 do artigo 82º-A do CPP.
85 - Analisados individualmente os pressupostos da aplicação das indemnizações e compensações estipuladas cabia ao douto Tribunal a quo verificar quem respondia pelo pagamento das mesmas.

86 - Momento em que o mesmo determinou a responsabilidade civil de todos os Arguidos de forma solidária em clara violação do disposto nos artigos 165º e 500º ambos do Código Civil.
87 – Ora, pese embora se esteja perante atos praticados pelos representantes do Recorrente (vide ponto 18 dos factos provados da Acusação) isto não significa que o mesmo é responsável civilmente pelo danos causados por estes.
89 - Desde logo porque inexiste qualquer prova nos autos (designadamente uma Ata de uma Assembleia-Geral ou de uma reunião da Direção) que comprove que a colocação em prática do alegado plano de angariação de jovens para se servirem do trabalho delas para incrementarem o património resultou de uma ordem expressa do Recorrente.
90 - Razão pela qual não se encontrava preenchido um dos requisitos previsto no artigo 500º do Código Civil o que permitia, só por si só, afastar a responsabilidade civil do Recorrente.
91 - No entanto e ainda que assim não fosse nunca poderia o Tribunal a quo ter aplicado tal instituto por não se tratarem de atos praticados pelos Arguidos (Agentes Singulares) no desempenho das funções que exerciam no “Centro Social”.
92 - É que como supra mencionado (quanto à matéria penal diz respeito) os Arguidos (Agentes Singulares) não só eram representantes do Recorrente como também o eram relativamente à Fraternidade Missionária ....
93 - Tendo sempre agido dentro das funções desempenhadas na dita Fraternidade.
94 - Circunstância que se verifica, nomeadamente, através das funções que cada Arguido desempenhava (cfr. ponto 19 da Acusação dado como provado) – as quais apenas tem conexão com o objeto social da Fraternidade.
95 - Analisada toda a atividade exercida pelas Assistentes afere-se de igual modo que a mesma sempre assumiu cariz religioso só podendo ser, por isso, referente à Fraternidade.
96 - Conjuntura que se encontra devidamente explanada nos pontos 8, 16 a 35 das presentes conclusões referentes à matéria penal que se dão como integralmente reproduzida para os devidos e legais efeitos por questões de economia processual.
97 - Assim não poderia o Tribunal a quo ter determinado a responsabilização civil do Recorrente por não se encontrarem reunidos os pressupostos estatuídos nos artigos 165º e 500º CC sob pena de ao fazê-lo (como o fez) violar os ditos normativos legais.       

TERMOS EM QUE DEVE ser dado provimento ao recurso ora interposto e em consequência:

a) Determinar-se a absolvição da Recorrente pelos noves crimes de escravidão de que vem acusada (revogando-se toda a matéria que concluí nesse sentido) com todas as consequências legais daí advenientes, porquanto não se mostram preenchidos em relação à mesma os pressupostos formais e materiais da norma contida no n.º 2 do artigo 11.º do CP;
Caso assim não se entenda;

b) Sempre a factualidade contida, designadamente, nos pontos 20, 186 e 189, por se revelar de caráter meramente conclusivo, genérico e indefinido, violando de forma flagrante, designadamente os Princípios da Presunção de Inocência e do Contraditório (postulados nos n.ºs 1,2 e 5 do artigo 32.º da CRP), deve ser revogada e, por decorrência, totalmente desconsiderada para efeitos de condenação, impondo, como acima peticionado, a absolvição da ora Recorrente ou (se o douto Tribunal ad quem assim o entender) a repetição do Julgamento;

Subsidiariamente:
c) Deve a medida da pena em razão das circunstâncias invocadas em sede de Motivação, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 71 e do artigo 79.º do CP ser consideravelmente reduzida;
d) Deve a fixação do valor diário da pena de multa aplicada à Recorrente ser desconsiderada - determinando-se a ineficácia da Decisão recorrida nessa parte em concreto – por violação das normas contidas, designadamente na alínea d) do n.º 2 do artigo 71.º e do n.º 5 do artigo 90-B do CP;

Ainda subsidiariamente e quanto à Parte Civil:

e) Determinar-se a absolvição da Recorrente do pagamento dos PIC e compensações arbitradas pelo Tribunal a quo às Vítimas com todas as consequências legais daí advenientes por não se encontrarem preenchidos os pressupostos legais previstos para o efeito nos termos dos artigo 165º e 500º ambos do Código Civil;

Na eventualidade de assim não se entender:

f) Devem os PIC`s deduzidos pelas Assistentes EE, GG e II ser parcialmente indeferidos e, consequentemente, absolver-se a Recorrente do pagamento das indemnizações relativas aos danos patrimoniais reivindicados nos referidos pedidos.
g) Deve de igual modo ser julgado totalmente improcedente o PIC deduzido pelos Herdeiros da Vítima MM absolvendo-se a Recorrente do pagamento do mesmo.
h) Deve ser declarada a invalidade do Acórdão em crise relativamente à condenação das indemnizações arbitradas oficiosamente por não ter sido concedido o direito ao contraditório previsto no n.º 2 do artigo 82º-A do CPP para o efeito.

Perante a hipótese do pedido supra - h) - não colher o devido e esperado provimento,
i) Deve a decisão referente ao arbitramento oficioso das Indemnizações às Vítimas FF, KK, LL e OO ser totalmente revogada por não se mostrarem preenchidos os requisitos previstos no artigo 82º-A do CPP para o efeito, absolvendo-se a Recorrente dos pagamentos correspondentes.

Caso assim não se entenda,
j) Deverão os montantes das indemnizações arbitradas às Vítimas FF, KK, LL e OO serem reduzidos nos moldes descritos na Motivação por não se terem verificados quaisquer danos patrimoniais na respetiva esfera jurídica, revogando-se parcialmente (e a esse respeito) o douto Acórdão recorrido e absolvendo-se a Recorrente em proporção.”

I.3.1 Na primeira instância, a Digna Magistrada do Ministério Público, notificada do despacho de admissão dos recursos apresentados pelos arguidos, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou respostas em que sustentou a manutenção do acórdão recorrido, com a improcedência dos recursos (referências ...80, ...82, ...83 e ...84).

I.3.2 A Assistente II, notificada do despacho de admissão dos recursos apresentados pelos arguidos, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta peticionando a sua improcedência e consequente manutenção da decisão recorrida (referência ...60).

Formulou as seguintes conclusões:
a) O objeto de um recurso penal é definido através das conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, cfr. artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.
b) Nas suas motivações de recurso, os Arguidos mais não tentam do que justificar o injustificável, tentando distorcer a verdade dos factos, invocando nulidades e impugnando factos, sem qualquer fundamento ou prova.
c) Uma leitura mais cuidada do acórdão em causa, uma audição atenta da gravação dos depoimentos prestados em julgamento e uma análise correcta da demais prova produzida, conduz inequivocamente à conclusão que não assiste qualquer razão aos Arguidos.
d) Além de que no caso em apreço, os recorrentes limitam-se a uma impugnação de pontos de facto provados apoiados em elementos probatórios que indicam, mas que, a nosso ver, não evidenciam qualquer erro na apreciação pelo tribunal a quo da prova invocada para a decisão da matéria de facto, antes e tão-só apenas uma diferente interpretação e valoração dessa prova.
e) No que se refere a requisitos formais, quando o recorrente pretende ver reapreciada a matéria de facto, terá de dar cumprimento a um tríplice ónus, indicando, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados; indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação e indicar que provas pretende que sejam renovadas, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação, o que não acontece.
f) Assim, impõe-se ao recorrente o dever de tomar posição clara, nas conclusões, sobre o objeto do recurso, especificando o que, no âmbito factual, pretende ver reponderado.
g) O recurso da matéria de facto vem concebido pela lei como remédio jurídico e não como instrumento de refinamento jurisprudencial.
h) O tribunal superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (ou as questões cuja solução foi impugnada) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração ou não da factualidade apurada.
i) No entanto não há qualquer erro na apreciação da matéria de facto, tendo sido correctamente avaliados os factos dados como provados;
j) Não há assim qualquer violação do princípio in dubio pro reo já que o veredicto não foi sustentado em factos de duvidosa ocorrência, mas sim verdadeiros, e relatados tanto pelas ofendidas.
k) Quanto ao Direito, o crime de escravidão previsto no art° 159° do C. Penal preceitua o 159.º do Código Penal, que quem:
a) Reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo; ou
b) Alienar, ceder ou adquirir pessoa ou dela se apossar, com a intenção de a manter na situação prevista na alínea anterior é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
l) Reduzir uma pessoa à condição de escravo é reduzi-la a uma coisa, tratá-la como sua propriedade, colocando-a num estado de sujeição total, consiste pois em uma pessoa ser tratada não propriamente como uma pessoa mas como uma coisa de que o agente dispõe (cfr. Taipa de Carvalho, loc. Cit. e ainda Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 428). - tipo objectivo
m) O bem jurídico visado pela incriminação do art. 159º (escravidão) é a dignidade da pessoa humana, valor que está para além de qualquer tipo de liberdade.
n) No nosso caso em concreto, temos também patente uma escravidão laboral. A mesma existe, quando se verifiquem duas condições cumulativas: por um lado, a vítima não tem qualquer poder de decisão sobre o número de horas de trabalho que tem de prestar ( chegavam a trabalhar 18 horas diárias) e, por outro, a vítima não dispõe de qualquer parte da retribuição pelos serviços prestados( não eram sequer remuneradas)  (Cfr. Paulo Pinto Albuquerque, op. cit. pág. 429).
o) Os arguidos apropriavam-se da mão de obra, sem dar qualquer remuneração devida às ofendidas, apenas lhes “pagando” com agressões, fome, medo, maus tratos, entre outros. Acresce que, as ofendidos estavam supridas da sua liberdade pessoal uma vez que lhes tinham retirado a sua documentação identificativa, não podiam estar sozinhas com a Família para não contarem o que ocorria naquele espaço, não falavam ao telefone, sendo assim evidente o domínio dos arguidos perante as ofendidas.
p) Quanto ao grau de lesão do bem jurídico, o crime de escravidão é qualificado como um crime de dano (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque in op. cit., p. 490), isto é, pressupõe a efectiva lesão do bem jurídico- elemento subjetivo.
q) Os factos praticados pelos arguidos, consubstanciam o tipo legal do crime de escravidão.
r) Quanto ao pedido de indemnização cível, tal como se provou os Arguidos cometeram os crimes pelos quais foram condenados, bem como causaram nas Ofendidas os danos igualmente considerados como provados nos autos, bem andou o tribunal a quo em condenar os Arguidos no pagamento das indemnizações fixadas;
s) Sendo certo até que se algum reparo pudesse merecer o montante fixado, seria sempre por defeito e não por excesso.
Termos em que deve, não pelo aqui alegado, mas pelo doutamente suprido, improceder o douto recurso dos Arguidos confirmando integralmente a douta decisão proferida pelo tribunal recorrido, negando-se provimento ao recurso interposto, FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA”

I.3.3 A Assistente EE, notificada do despacho de admissão dos recursos apresentados pelos arguidos, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta peticionando a sua improcedência e consequente manutenção da decisão recorrida (referência ...34).

I.3.4 A Assistente GG, notificada do despacho de admissão dos recursos apresentados pelos arguidos, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta ao recurso deduzido por Centro Social de Apoio e Orientação ... peticionando a sua improcedência e consequente manutenção da decisão recorrida (referência ...43).

Formulou as seguintes conclusões:
“1- O douto Acórdão proferido pelo Tribunal Recorrido não merece qualquer censura, porquanto o mesmo é criterioso na análise que fez de toda a matéria carreada e produzida nos autos, fez uma aplicação correta do direito e decidiu corretamente ao condenar o Recorrente nos precisos termos em que o fez.
2- Desde logo, no que diz respeito à Parte Penal, a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” está em conformidade com a matéria de facto provada, não se verificando as alegadas contradições invocadas pelo Recorrente.
3- O Tribunal “a quo” não violou o artigo 11º, n.º 2 do C. Penal, porquanto da matéria de facto provada resulta que os atos foram praticados pelos arguidos em nome e no interesse coletivo do Recorrente.
4- Face à prova carreada para os autos e aos factos dados como provados, o Tribunal “a quo” também aplicou bem o direito, ao concluir que a conduta dos arguidos preenche a tipicidade objetiva e subjetiva do artigo 159º, alínea a) do Código penal, a título de dolo direto, na pessoa de cada uma das vítimas, considerando que foram praticados tantos crimes, quantas vítimas que foram objeto da relação de domínio e reduzidas à condição de escravas – 9 crimes de escravidão.    
5- A condenação do Recorrente e a atribuição da indemnização à Assistente e demais vítimas não resulta de uma decisão “às cegas”, mas sim de uma análise cuidada, pormenorizada e de uma fundamentação irrepreensível, em estrita consonância com o elenco da matéria de facto provada nos autos.
6- A Assistente só ingressou na Fraternidade porque aspirava a ser freira, e só no decurso do presente processo, veio a saber que, afinal, aos olhos da Igreja Católica, não é freira, nem nunca viria a sê-lo junto daquela Instituição, como bem sabiam os Arguidos que, intencionalmente, criaram essa convicção à Assistente.
7- A Assistente representou erradamente – erro que foi induzido pelos arguidos – a validade e o reconhecimento pela Igreja Católica desse voto e não o prestaria se soubesse que o mesmo se inscrevia num embuste e num plano engendrado pelos arguidos para melhor exercer a sua relação de domínio sobre ela.
8- A Assistente, se não tivesse sido aliciada a seguir uma pretensa vocação religiosa, na economia do ilícito de que foi vitima, teria certamente iniciado o seu percurso profissional, compatível com as suas habilitações literárias, tendo ficado demonstrado nos autos que, quando entrou na Fraternidade, encontrava-se a estudar no Instituto Politécnico ... e do ..., onde frequentava o primeiro ano de fiscalidade.
9- Assim sendo,  bem decidiu o Tribunal Recorrido ao ponderar a evolução do salário mínimo desde o ingresso da Assistente na Fraternidade e o tempo em que esta aí permaneceu até à intervenção da Polícia Judiciária e, consequentemente, estabelecer “adequado atribuir à Assistente uma indemnização de 75 000,00 Euros, a que deve acrescer a quantia de 1020,00 euros, que comprovadamente a Assistente gastou com tratamentos dentários, que decorreram do desleixo a que foi sujeita, ao nível da sua saúde em geral e da saúde oral em particular”.
10- De igual modo, e já quanto aos danos morais, nenhum reparo há também a fazer ao Acórdão Recorrido, porquanto, “tendo em conta a idade da ofendida quando ingressou na Fraternidade (20 anos), o período durante o qual foi sujeita ao domínio dos arguidos ( 10 anos, 7 meses e 25 dias), e os concretos atos que sobre ela foram praticados pelos arguidos, para implementar o clima de medo e terror, as consequências desses atos, sendo certo que foi descrita como uma das principais vítimas dos arguidos, tendo sido totalmente privada do contato com a sua família de origem e de cuidados médicos relevantes com repercussões na sua saúde, no período em que permaneceu na instituição, considera-se equitativa uma indemnização de 100 000,00 Euros”, conforme doutamente sentenciado.

Termos em que deve ser negado o Recurso, mantendo-se o Acórdão recorrido, por ser de inteira JUSTIÇA!”

I.4 Neste Tribunal da Relação, na sequência do peticionado pelos recorrentes CC, AA e DD, procedeu-se a audiência, nos termos conjugados dos arts. 411º, nº5 e 423º, ambos do CPP, com observância do formalismo legal (cfr. ata com referência ...33).

No dia 01.03.2024, após deliberação dos Juízes Desembargadores que integram este Tribunal Colegial, foi proferido o seguinte despacho [referência ...93]:
«Nos termos e para efeitos do disposto no artigo 424º, nº3, do Código de Processo Penal, comunica-se à defesa dos arguidos que, em parte, na sequência de modificação da decisão da matéria de facto da primeira instância, poderá ocorrer alteração da qualificação jurídica dos factos imputados na acusação/pronúncia de modo a considerá-los não suscetíveis de preencherem os crimes (nove) de escravidão, previstos e punidos pelo art. 159º, nº1, al. a), do Código Penal, pela prática dos quais, em coautoria, foram condenados, mas antes, quanto aos arguidos AA, CC e BB, a prática, em coautoria, de 4 (quatro) crimes de maus-tratos, cometidos sobre a pessoa de cada uma das ofendidas II, JJ, HH e KK, enquanto Menores, no caso das três primeiras p. e p., à data dos factos, pelo art. 152º do Código Penal de 1982, na redação conferida pelo DL 48/95, de 15.03, e ulteriormente pelo art. 152º-A, nº1, al. a), do mesmo Código, preceito aditado pela Lei nº 59/2007, de 04.09, com entrada em vigor em 15.09.2007, e no caso da então Menor KK, previsto e punido unicamente ao abrigo deste atual regime.
A responsabilização jurídico-penal do arguido Centro Social de Apoio e Orientação ..., IPSS, mantém-se reportada ao disposto no art. 11º, nº2, do Código Penal.
Sem prejuízo de eventual ocorrência de prescrição do procedimento criminal no que tange ao crime de maus tratos perpetrado sobre a então Menor HH, atenta a data dos respetivos factos.
No que tange aos factos perpetrados pelos arguidos AA, CC, BB e DD sobre as sobreditas ofendidas II, JJ e HH após a sua maioridade, outrossim sobre as ofendidas EE, MM, FF, GG e LL, comunica-se o entendimento deste tribunal ad quem de que a respetiva factualidade poderá integrar a prática de crimes únicos, de execução plúrima ou de trato sucessivo de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nºs 1 e 2, do Código Penal, e de injúrias, p. e p. pelo art. 181º, nº1, e 188º, do Código Penal.
Todavia, atenta a natureza semi-pública do crime de ofensa à integridade física simples e à natureza particular do crime de injúria, o que implica, em ambos os casos, o exercício tempestivo do direito de queixa e, no segundo caso, também a dedução de acusação particular – cf. artigos 49º e 50º do Código de Processo Penal e 113º, 114º, 115º e 117º, todos do Código Penal –, adiantamos a possibilidade de faltar no caso a verificação desses pressupostos processuais, por serem extemporâneas as respetivas queixas – no caso da ofendida JJ, nem se vislumbra ter sido apresentada queixa – e inexistirem acusações particulares e, assim, se encontrar extinto o procedimento criminal por tais ilícitos criminais.
Destarte, conforme estatuído no artigo 424º, nº3, do Código de Processo Penal, concede-se à defesa de cada um dos arguidos o prazo de 10 (dez) dias para se pronunciar, querendo.»

Pelo arguido Centro Social de Apoio e Orientação ... foi apresentada pronúncia através de requerimento apresentado em 14.03.2024 [referência ...77], sobre o qual recai o despacho do ora relator, de 22.03.2024 [referência ...06], que entendeu que o conteúdo do requerimento excedia largamente o objeto da notificação que foi dirigida à defesa para eventual pronúncia, nos termos do art. 424, nº 3, do CPP, sobre a eventual alteração da qualificação jurídica dos factos comunicada e, assim, considerou como não escritas e insuscetíveis de valoração autónoma por este Tribunal as alegações vertidas nesse requerimento que se reconduzem a reproduzir ou a reforçar alegações já constantes da motivação do recurso do arguido (só se admitindo o ali alegado quanto a eventuais crimes de “maus-tratos” perpetrados sobre as ofendidas menores).

Os arguidos/recorrentes AA e CC pronunciaram-se nos termos constantes do requerimento de 19.03.2024 [referência ...76].
Aí defendem, em súmula, que o procedimento criminal relativo aos apontados crimes de maus-tratos cometidos sobre as menores HH, II e JJ mostram-se prescritos. Relativamente à ofendida KK alegam que os respetivos factos são da exclusiva responsabilidade da arguida BB, inexistindo verificados os requisitos da coautoria.
Concordam quanto à extinção do procedimento criminal relativamente a outros potenciais crimes (injúrias e ofensas à integridade física simples), por falta de queixa tempestiva e/ou falta de acusação particular.
 
Cumpre agora conhecer e decidir.
*
II – ÂMBITO OBJETIVO DOS RECURSOS (QUESTÕES A DECIDIR):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, CPP)[3] [4].

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir são as seguintes (por ordem de precedência lógica):

II.1 Recurso deduzido pelos arguidos CC e AA:
a - Nulidade do acórdão recorrido por condenação dos recorrentes por factos diversos dos descritos na acusação pública, sem que tivesse sido dado cumprimento ao disposto no art. 358º, nº1, do CPP (cf. art. 379º, nº1, al. b), do CPP).
b - Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia relativamente à existência de consentimento relevante das ofendidas (cf. art. 379º, nº1, c), do CPP).
c - Insuficiência da factualidade apurada para a decisão final condenatória (cf. art. 410º, nº2, a), do CPP).
d - Contradição insanável entre a fundamentação (de facto e de direito) e a decisão final (cf. art. 410º, nº 2, b), do CPP).  
e - Erro de julgamento quanto aos pontos 1, 2º, 6º a 8º, 10º, 13º, 16º a 18º, 20º a 24º, 27º a 34º, 41º, 44º a 47º, 49º, 50º, 54º, 55º a 58º, 63º, 64º, 78º, 79º a 83º, 85º, 86º, 87º, 93º, 94º, 98º, 100º, 102º, 105º, 107º, 110º, 112º, 113º, 122º, 123º, 141º a 163º, 164º a 181º e 182º a 184º.
f – Inexistência, ao nível objetivo, de imputação do resultado à conduta dos arguidos recorrentes, não se verificando coautoria.
g – Ausência de verificação do dolo do tipo do crime de escravidão, que exige o conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo, não admitindo o dolo eventual.
h – Existência de consentimento relevante das ofendidas como causa de exclusão da ilicitude (tipo justificador).
i – Falta de consciência da ilicitude – erro previsto no art. 17º, nº1, do CP; caso se entenda o erro como censurável, aplicabilidade do nº2 do normativo e, consequentemente, de atenuação especial das penas a aplicar, nos termos do art. 73º do CP.
        
II.2 Recurso deduzido pela arguida DD:
a - Nulidade do acórdão recorrido por condenação dos recorrentes por factos diversos dos descritos na acusação pública, sem que tivesse sido dado cumprimento ao disposto no art. 358º, nº1, al. b), do CPP (cf. art. 379º, nº1, al. b), do CPP).
b - Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia relativamente à existência de consentimento relevante das ofendidas (cf. art. 379º, nº1, c), do CPP).
c - Insuficiência da factualidade apurada para a decisão final condenatória (cf. art. 410º, nº2, a), do CPP).
d - Contradição insanável entre a fundamentação (de facto e de direito) e a decisão final (cf. art. 410º, nº 2, b), do CPP). 
e - Erro de julgamento quanto aos pontos 5º, 6º, 13º, 15º a 18º, 20º a 24º, 33º, 44º a 47º, 49º, 50º, 54º, 55º a 58º, 63º, 64º, 78º a 83º, 86º, 87º, 93º, 94º, 98º, 100º, 102º, 105º, 107º, 112º, 113º, 122º, 123º, 141º a 163º, 164º a 181º e 182º a 184º.
f – Inexistência, ao nível objetivo, de imputação do resultado à conduta da arguida recorrente, não se verificando coautoria.
g – Ausência de verificação do dolo do tipo do crime de escravidão, que exigie o conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo, não admitindo o dolo eventual.
h – Existência de consentimento relevante das ofendidas como causa de exclusão da ilicitude (tipo justificador).
i – Atuação da arguida recorrente a coberto de estado de necessidade subjetivo ou desculpante, como causa de exclusão da culpa, nos termos do art. 35º, nº1, do CP. 
j – Falta de consciência da ilicitude – erro previsto no art. 17º, nº1, do CP; caso se entenda o erro como censurável, aplicabilidade do nº2 do normativo e, consequentemente, de atenuação especial das penas a aplicar, nos termos do art. 73º do CP.
 
II.3 Recurso deduzido pela arguida BB:
a – Erro de julgamento em relação a pontos da matéria de facto provada.
b – Desconsideração como “factos” dos pontos 185 a 190, por serem conclusivos.
c – Errada subsunção dos factos provados ao direito – inexistência do crime de escravidão.
d – Atuação sem culpa da arguida recorrente, por falta, não censurável, de consciência da ilicitude do facto – art. 17º, nº1, do CP; a existir, censurabilidade, peticiona a atenuação especial da pena – art. 17º, nº2, do CP.   
e – Verificação de um crime único, punível nos termos do art. 79º do CP, e não de uma pluralidade de crimes de escravidão.

II.4 Recurso deduzido pelo Centro Social de Apoio e Orientação ...:
a – Desconsideração da matéria contida nos pontos 20, 186 e 189, por ser conclusiva, genérica e indefinida (violando os princípios da inocência e do contraditório – art. 32º, nºs 1, 2 e 5 da CRP).
b – Não verificação do pressuposto da responsabilização penal do recorrente Centro Social vertido no art. 11º, nº2, do CP, que exige que os arguidos tivessem atuado no exercício das suas funções, em nome e no interesse daquele. 
c – Errada subsunção dos factos provados ao direito – inexistência do crime de escravidão.
d – Violação das normas dos arts. 71º, nº2, al. d) e 90º-B, nº5, ambos do CP, por falta de apuramento da condição económico-financeira do arguido Centro Social, o que determina a ineficácia da decisão nessa parte.
e - Excessividade da pena de multa, quanto à medida e quantificação do seu valor diário. 
f – Inexistência dos pressupostos legais para atribuição de indemnizações às ofendidas (dano e/ou nexo causal entre o facto e o dano).
g – Inaplicabilidade do disposto no art. 82º-A do CPP quanto às compensações erradamente atribuídas às vítimas KK, LL e OO, por crimes já prescritos, relativamente aos quais houve despacho de arquivamento em fase de inquérito e inexistiu condenação dos arguidos.
h – Revogação das indemnizações oficiosamente atribuídas por não se verificarem danos patrimoniais que justifiquem a sua atribuição.
i – Atribuição das compensações operada sem que fosse permitido aos arguidos exercer o contraditório, tendo assim sido impedido o direito de defesa, o que constitui irregularidade de conhecimento oficioso.    
*
III – APRECIAÇÃO: 

III.1 – Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão das questões suscitadas pelos ajuizados recursos, importa verter aqui a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada e não provada e respetiva motivação.

O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):

“Factos provados oriundos da Acusação Publica/Pronúncia:
1. A arguida Centro Social de Apoio e Orientação ... é uma instituição particular de solidariedade social (IPSS), criada por iniciativa da União das Irmãs Missionárias ..., denominada “Fraternidade Missionária ...”, esta ultima, ereta por decreto de 24 de Janeiro de 1978, emitido por D. PP, com sede provisória no lugar e ... e, mais tarde, com sede definitiva na Rua ..., ..., em ....
2. A arguida Centro Social de Apoio e Orientação ..., por seu turno, foi ereta como pessoa jurídica canónica em 22 de Agosto de 1985 e constituída como IPSS em 05 de Dezembro de 1985.
3. Resulta do texto dos Estatutos originários do Centro Social, de 22 de agosto de 1985, que:
“Art. 1 – O Centro Social de Apoio e Orientação ..., é uma fundação de solidariedade social, criada por iniciativa da União das Irmãs Missionárias ..., denominada “Fraternidade Missionária ...”. O Centro tem a sua sede em ..., ....
Art. 2 – O Centro Social de Apoio e Orientação ... tem por objetivos principais o apoio a adolescentes e jovens, apoio ás famílias, apoio à integração social e comunitária e a educação e formação profissional dos cidadãos, com espirito cristão. Como objetivos secundários, desenvolve atividades de orientação para pais, professores e demais responsáveis pela juventude, de formação destes responsáveis, através dos principais meios de comunicação social, como a imprensa, o cinema, o teatro e sessões culturais – poesia e musica.
(…)”.
4. A arguida, desde a sua constituição, tem a sua sede na Rua ..., ..., em ....
5. Por Decreto datado de 3 de Junho de 2014, emitido pela competente Autoridade Eclesiástica Diocesana, foram aprovados os novos Estatutos da Fraternidade Missionária ..., bem como foi proferido o despacho que os aprovou.
6. Nessa mesma data, foi emitida a Provisão dos seus corpos gerentes, nos termos que constam da Ata nº ..., datada de 22 de Maio de 2014:
Assembleia Geral:
-Presidente: Irmã HH;
- Secretaria: irmã EE;
- 2º Secretária: Irmã GG;
Direção:
Presidente: Irmã CC;
Secretária: irmã BB;
Tesoureira: DD;
Órgão Assessor (“Conselho de Assistência”)
Presidente: FFF – Advogada;
Vogais: GGG – TOC
ZZ – Oficial de Justiça,
7. Dos Estatutos revistos da Fraternidade Missionária ..., aprovados em 3 de Junho de 2014, consta:
- art. 1º: “A Fraternidade Missionária ..., nasceu como União das Irmãs Missionárias ...-
- Art. 2º: A Fraternidade Missionária ... é uma Associação Pública de Fieis, ereta em pessoa jurídica canónica pela Autoridade competente, com Estatutos aprovados em 24 de Janeiro de 1978;
- Art. 4º: Os objetivos da Fraternidade Missionária ... são:
· Consagrar-se totalmente, no ser e no ter, aos jovens como principal e fundamental meio de apostolado.
· Dedicar-se a uma vida de piedade, intimidade e amizade com Deus, através da oração e testemunho de espirito, num carisma de fraternidade contemplativa na ação;
· A salvação do Mundo Jovem pela conversão e orientação para cristo, ajudando a descobrir e viver a extraordinária riqueza da sua vocação cristã, em qualquer dos estados de vida ou perfeição cristã.
· Consagrar-se a um verdadeiro movimento de conversão cristã dos jovens, desejando corresponder a um generoso primeiro passo, na sua consciente e cada vez mais crescente realização cristã, por uma vida apostólica incarnada e vivida no seu meio ambiente próprio, tanto familiar, como social, religioso e vocacional, através das suas atividades próprias.
· Assumir a vida contemplativa como expressão máxima da consagração, tendo apenas como intenção fiel a salvação dos jovens;
· Manter atividade própria e especifica: organização e realização de cursos especializados (cursos de conversão, cursos de orientação para a vida), convívios de oração, intimidades, Betânias, sessões culturais ou artísticas.
· Realizar edições de carater formativo e informativo sem fins lucrativos;
· Visitar todas as cadeias de Portugal, em espirito de missão evangelizadora, dando apoio aos mais carenciados sobretudo os jovens vitimas do flagelo da droga;
· zelar pelo património da instituição;
Art. 14: Os membros dos corpos gerentes são responsáveis perante a lei eclesiástica e estatal, civil e criminalmente, pelas faltas ou irregularidade cometidas no exercício do mandato
(…)”
8. À Fraternidade Missionária ..., foi atribuído o número de identificação de pessoa coletiva canónica nº ...10;
9. Segundo consta da credencial datada de 27 de Janeiro de 2015, emitida pelo Cónego Dr. RR, as ... e ... são pertença da Fraternidade Missionária ....
10. Era a Fraternidade Missionária ..., principalmente através dos arguidos AA e CC quem desenvolvia um trabalho de evangelização dos reclusos junto dos estabelecimentos prisionais de Portugal.
11. Por seu turno, por Decreto de 25/11/2014 e despacho da mesma data, foram aprovados os novos Estatutos do Centro Social de Apoio e Orientação ..., tendo sido emitida a provisão de corpos gerentes que nomeia:
Direção:
Presidente: Irª CC;
Secretária: Irª BB;
Tesoureira:  Irª DD;
Conselho Fiscal:
Presidente: Dr. HHH;
Vogais: Eng. III;
JJJ;
Órgão de Vigilância:
P.e AA.
12. Dos novos estatutos do Centro Social consta:
“- Art. 2 – O Centro Social de Apoio e Orientação ... é uma fundação ereta em pessoa jurídica canónica publica por decreto da autoridade competente, em 22 de agosto de 1985.
O Centro, segundo o D.L. nº 119/83, fica integrado na ordem civil como Instituição Particular de Solidariedade social (IPSS).
- (…)
- Art. 4 – O Centro Social de Apoio e Orientação ... em por objetivo o apoio:
- a adolescentes e jovens;
- às famílias;
- à integração social e comunitária;
- á educação e formação profissional dos cidadãos com espirito cristão.
Como objetivos secundários, o centro desenvolve atividades:
- de orientação para pais, professores e demais responsáveis pela juventude;
- de formação destes responsáveis através dos principais meios de comunicação social (imprensa, cinema, teatro, sessões culturais, poesia e musica).
No exercício destas atividades, o Centro terá sempre presente.
- o conceito unitário e global da pessoa humana e respeito pela sua dignidade;
- o aperfeiçoamento cultural, espiritual e moral de todos os participantes;
- o espirito de convivência e de solidariedade social como fator decisivo de trabalho comum, tendente à valorização integral dos indivíduos, das famílias e demais agrupamentos;
- que é um serviço da Igreja, devendo assim proporcionar, com respeito pela liberdade de consciência, formação cristã aos seus utentes e não permitir qualquer atividade de se oponha aos princípios cristãos.
- o centro procurará dar resposta a todas as forma de pobreza exercendo assim a sua finalidade sócio-caritativa. 
Art. 5 – Para a realização dos seus objetivos, o Centro Mantém uma atividade de tipografia sem fins lucrativos, que produz publicações para a atividade de evangelização do mundo juvenil.
Na medida em que a prática o aconselhe e os meios disponíveis o permitam, o Centro procurará exercer outras atividades de caracter sócio cultural, educativo, recreativo, de assistência, de saúde e de atendimento/acompanhamento social, e designadamente:
- a promoção do culto mariano, fomentando assim um verdadeiro Movimento de Conversão Cristã dos Jovens;
- a organização e realização de cursos especializados (cursos de conversão, cursos de orientação para a vida), convívios, sessões culturais ou artísticas;
- evangelização dos presos nas cadeias.
(…)
Art. 17º - Os membros dos órgãos de gestão são responsáveis perante a lei eclesiástica e estatal, civil e criminal, pelas faltas ou irregularidades cometidas no exercício do mandato.
(…)”
13. Apesar do que consta dos Estatutos do Centro Social de Apoio e Orientação ..., na prática, ele foi criado pelos arguidos, para ser o suporte jurídico da atividade económica levada a cabo pela Fraternidade Missionária ..., para ser recetora de financiamentos para a obra desenvolvida pela Fraternidade e para absorver todo o património gerado por esta.
14. Encontra-se descrita na CRP ..., sob as descrições nº ...34 e ...66, a aquisição por parte do Centro Social de Apoio e Orientação ..., Fundação de Solidariedade Social, de dois terrenos rústicos respetivamente com a área de 30 700 m2 e 7200 m2, inexistindo quaisquer ónus registados sobre os aludidos imoveis e, que se encontram inscritos em nome do Centro Social de Apoio e Orientação ..., na respetiva matiz, a propriedade de três prédios rústicos ( nº 7, 206 e 208) sitos na freguesia ..., bem como o registo provisório da propriedade do artigo Urbano nº ...51, inscrito oficiosamente pelo serviço de Finanças por se encontrar omisso na matriz;
15. A instalação que constituí a sede, quer da Fraternidade, quer do Centro Social de Apoio e Orientação ... é constituída por mais de 20 compartimentos, possui 8 quartos, uma Capela, uma tipografia, uma sala denominada de “...”, a Capela denominada de “Capela da Clausura”, composto por várias bouças, com 4800 m2, 7200 m2 e 30.700m2 e um jardim.
16. Porém, nenhuma das pessoas jurídicas canónicas atrás mencionadas é considerada uma congregação religiosa, mas apenas associação publica de fiéis e Fundação, respetivamente, ambas geridas pelos arguidos AA, BB, CC e DD à margem da igreja Católica, pelo menos até 2014.
17. Apesar de se apelidarem como “irmãs”, de envergarem o hábito, as arguidas, na realidade não são freiras pois não têm votos reconhecidos pela igreja Católica.
18. Desde a constituição da arguida e até ao dia ../../2016, os arguidos AA, BB, CC e DD foram os representantes legais e de facto da IPSS, bem como da Fraternidade Missionária ..., aos quais competia gerir entre si toda atividade das instituições, desde a organização, planeamento e atribuição de tarefas até às exigências “espirituais” que impunham.
19. Cada um dos arguidos tinham as suas próprias funções, ao arguido AA competia direção espiritual da obra, com supremacia sobre os demais, à arguida CC a gestão financeira, administrativa e tinha a seu cargo a tipografia, à arguida DD auxiliar nas tarefas e à arguida BB dirigir as tarefas da Fraternidade e a orientação vocacional das “consagradas”.
20. Assim, os arguidos AA, BB, CC e DD, desde a constituição da IPSS e da Fraternidade, em conjugação de esforços e vontades, idealizaram um esquema, um embuste que redundava em servirem-se do Carisma/Ideário da Fraternidade, para angariar jovens tementes a Deus e convencidas da sua vocação religiosa, para forçar estas a exercerem contrariadas, todas as tarefas diárias exigidas para a conservação e manutenção das instalações propriedade do Centro Social, sem qualquer contrapartida financeira, mediante a implementação de um clima de terror, que lhes foi coartando, ao longo do tempo, qualquer capacidade de reação, utilizando-as como mera força de trabalho e, por essa via, beneficiando patrimonialmente o Centro Social, na modalidade de poupança de despesas.
21. Os arguidos tinham como alvo jovens de raízes humildes, com poucas qualificações ou emocionalmente fragilizadas e com pretensões a integrarem uma comunidade espiritual de raiz católica, piedosas e tementes a Deus.
22. Deste modo, conforme plano previamente por todos gizado, sempre que jovens com o referido perfil visitavam as instalações da arguida ou aí permaneciam por alguns dias para auxiliar em tarefas da Fraternidade, em regime de voluntariado, os arguidos afirmavam que tinham sido escolhidas por Deus, convencendo-as que deviam escolher a vida religiosa, pois que caso negassem as suas vocações daí advinham castigos “divinos”, problemas familiares, mortes na família.
23. Mais lhes transmitiam que se fossem infiéis a Deus tal traria igualmente consequências para a eternidade.
24. Para assegurar os seus intentos, no período temporal desde pelo menos 05 de Dezembro de 1985 até ao início do ano de 2015, os arguidos AA, BB, CC e DD, em conjugação de esforços e vontades, puseram em concretização o esquema previamente delineado e, individualmente e em conjunto, no interior das instalações da arguida, perpetraram, diariamente, várias agressões físicas, injúrias, pressões psicológicas, tratamentos humilhantes, castigos, trabalhos pesados, escassez de alimentação, negação de cuidados médicos e medicamentosos e restringimento da liberdade sobre as jovens que angariavam e aí residentes.
25. Tais atuações visaram várias jovens que permaneceram acolhidas na Fraternidade, por períodos longos e outras mais curtos, jovens essas que aí ingressaram com o objetivo de seguirem uma vida religiosa.
26. Assim tais condutas foram perpetradas contra, além de outras, com as seguintes ofendidas:
 MM (que ingressou na Fraternidade desde data não concretamente apurada até ao dia ../../2004);
 HH (que que ingressou na Fraternidade em 1990 com 15 anos de idade e aí permaneceu até ao dia ../../2015) – onde esteve durante 25 anos;
 GG (que que ingressou na Fraternidade em ../../2005 e saiu no dia ../../2015), onde esteve durante 10 anos, 7 meses e 25 dias;
 EE (que que ingressou na Fraternidade no dia ../../2004 com 20 anos de idade e saiu no dia ../../2015), onde esteve durante 10 anos, 9 meses e 17 dias;
 II (conhecida por BBB que que ingressou na Fraternidade em Agosto de 2004, com 15 anos de idade, e fugiu no dia 21 de Novembro de 2013), onde esteve durante 9 anos e 3 meses;
 LL (que que ingressou na Fraternidade no ano de 2012, com 19 anos de idade e saiu no dia 08 de Dezembro de 2013), onde esteve durante cerca de um ano;
 FF (que que ingressou na fraternidade em ../../2013, com 22 anos de idade, e saiu no dia ../../2015), onde esteve durante um ano e sete meses;
 KKK (que que ingressou na Fraternidade em Abril de 2005, com 16 anos de idade, e saiu no dia ../../2007), onde esteve durante um ano e oito meses;
 KK (que que ingressou na Fraternidade em Junho de 2008, com 14 anos de idade e saiu em ../../2009), onde esteve durante quase um ano;
27. Para prosseguir com os seus objetivos os arguidos, principalmente a arguida BB agrediam fisicamente as ofendidas, desferindo nas ofendidas bofetadas, murros, pontapés, puxões de cabelo, pancadas com enxadas, ancinho, ferros, mangueira, paus, vassouras, chinelos, sapatos e com um chicote com corda – designado como disciplina – obrigando-as, por vezes, a agredirem-se mutuamente com o referido chicote, mas sempre com o conhecimento e acordo dos demais arguidos.
28. No referido período temporal mencionado em 26), principalmente a arguida BB, com conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD impunham ainda castigos nas ofendidas que consistiam em:
 Proibição de tomarem o pequeno-almoço;
 Proibição de tomarem banho durante vários dias e até semanas;
 Proibição de beberem água durante todo o dia no verão quanto estavam a trabalhar ao sol durante várias horas
 Proibição de usarem roupa interior durante vários dias e mesmo semanas, factos que ocorreu por diversas vezes
 Obrigação de se despirem e de permanecerem nuas em frente umas das outras na capela da clausura
 Obrigação de se despirem e permanecerem deitadas nuas no jardim da instituição
 Obrigação de dormirem no chão durante várias noites e, por vezes, meses, na companhia de um cão, mesmo encontrando-se doentes
 Obrigação de permanecerem de joelhos com as mãos debaixo dos mesmos ou com os braços esticados em cruz ao lado do tronco durante várias horas;
 Obrigação de permanecerem fechadas numa determinada dependência
 Obrigação de se autoflagelarem com recurso ao referido chicote, muitas vezes em frente das restantes ofendidas
 Obrigação de andarem com os objetos que partiam junto de si, atados à cintura, durante todo o dia
 Obrigação de transmitirem recados a todas as demais ofendidas e que consistiam no que se tinham esquecido ou que haviam feito mal
 Obrigação de dormir com um saco de garrafas vazias a servir de almofada durante vários meses e de dormir com um saco de folhas de magnólia a servir de almofada durante 15 dias
 Obrigação de andar todo o dia com um saco plástico na cabeça a substituir o lenço
 Obrigação de andar um dia inteiro com dejetos de cão no bolso da bata
 Obrigação de jantar de joelhos no chão e com o prato em cima da mesa
 Obrigação de rezarem o terço às 03h00 da madrugada no interior do quarto de banho de joelhos e ao frio.
29. No referido período temporal mencionado em 26), em particular a Arguida BB e o arguido AA e pontualmente os demais arguidos, mas sempre com o conhecimento de todos, proferiam insultos e agressões verbais tais como:
 São um monte de carne
 São um monte de sexo
 São umas inúteis
 São um monte de esterco
 São umas porcas
 São umas mentirosas
 São um monte de merda
 São umas sujas
 Vocês não fazem falta nenhuma
 Vocês não têm educação nenhuma
 Vocês não têm família
 Caras de cú
 Filhas da puta
 A tua mãe é um monstro
 Só ficava satisfeita se um boi de cobrição vos fodesse
30. No período temporal aludido em 26, principalmente a arguida BB, mas sempre com o conhecimento e anuência dos demais arguidos AA, CC e DD:
 privaram as vítimas de cuidados médicos e medicamentosos, os quais praticamente não existiam, mesmo quando eram agredidas e ficavam com feridas sangrantes tinham que se tratar sozinhas e às escondidas, chegando mesmo a colocar terra para assim as estancarem;
 privavam as ofendidas de cuidados de higiene, apenas lhes permitindo um banho semanal, num período de 15 minutos para todas, a quem era permitido fazê-lo, sendo que muitas vezes os castigos passavam pela privação deste banho;
 privavam as ofendidas de alimentação, que, já era em pouca quantidade atenta a carga de trabalho e horas a que estavam sujeitas, sendo que muitos dos castigos passavam também pela privação da alimentação, estando as vítimas ainda sujeitas a dois dias semanais de jejum, às quartas e sextas;
 privavam as ofendidas das visitas aos seus familiares, visitas essas que apenas ocorriam nos dias de convívios mensais da instituição (segundo domingo de cada mês), alturas em que apenas podiam permanecer com os familiares que aí se deslocavam cerca de 30 minutos a 1h00 e quase sempre acompanhadas por uma das arguidas, sendo que as visitas fora destes dias não eram bem aceites e mesmo que solicitadas muitas vezes não ocorriam dando os arguidos justificações infundadas aos familiares, sendo que as deslocações à casa da família não eram permitidas e apenas ocorreram após a saída da ofendida II, em Novembro de 2015, por ter denunciado tal facto às entidades eclesiásticas;
 privavam as ofendidas de outros tipos de contacto com os familiares, não lhes sendo permitido o uso de telefone da instituição sem autorização expressa (sendo que se fossem apanhadas a usá-lo eram sujeitas a castigos físicos e verbais) e as cartas que escreviam eram sempre sujeitas a leitura prévia por parte da arguida BB;
 privavam as ofendidas de acesso a informação, não lhes sendo permitido ver televisão, nem sequer os noticiários, nunca lhes tendo sido ministrada qualquer informação eclesiástica ou académica adequada;
 privavam as ofendidas dos seus documentos pessoais e de identificação, sendo que os documentos de todas elas permaneceram sempre na posse dos arguidos, concretamente, da arguida BB e CC;
31. No que concerne ao plano espiritual os arguidos AA, BB, CC e DD, aproveitando-se da fé das ofendidas, apresentavam-lhes um Deus como alguém que castiga, oprime e envia para o inferno impondo, em consequência, um rigor espiritual opressivo sobre as mesmas para que elas, aterrorizadas, lhes devessem total obediência, tornando o seu plano mais eficaz.
32. Para as pressionar a permanecer na Fraternidade, a arguida BB, com o conhecimento e anuência de todos os demais arguidos, aos Domingos com recurso à leitura de uns livros, relatava passagens de pessoas que tinham saído de conventos e que passado pouco tempo tinham sido condenadas referindo que “tinham acontecido desgraças”.
33. E, através do identificado esquema, logravam os arguidos AA, BB, CC e DD impor às ofendidas jornadas diárias de trabalho que chegavam a atingir as 20 horas e que compreendiam a limpeza de toda a casa e divisões que compunham a propriedade do Centro Social, fazer as refeições, tratar de todos os jardins, cuidar dos animais, plantarem, podarem e abaterem árvores de grande porte, carregarem esteios, carregarem e racharem lenha, carregarem tratores de estrume, lixarem e envernizarem as madeiras, executarem pinturas exteriores, carregarem pedras, construírem muros, substituírem pedras da calçada, cortar o mato, queimar e apanhar folhas e fitas, apanhar pinhas, arrancar silvas, trabalhar na tipografia, imprimindo livros, revistas folhetos, calendários, posters, estampas e postais, tratar dos aviários, entre outras.
34. As tarefas que eram obrigadas a executar eram impostas às ofendidas, principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD de forma aleatória pelo período de uma semana de acordo com a conveniência dos arguidos e após trocavam de tarefas.
35. As ofendidas levantavam-se entre 06h30/6h45, acendiam as capelas e reuniam-se todas na Capela da Clausura, local onde rezavam o terço, depois o ofício litúrgico.
36. Depois, pelas 8h00 tomavam o pequeno-almoço e regressavam à Capela para a “adoração do evangelho” pelas 8h45 rezavam novamente o terço, assistiam à missa, realizavam a “Adoração do Santíssimo” até 12h30m.
37. Pelas 13h00 almoçavam e durante a tarde tinham que executar as tarefas que lhe tinham sido atribuídas.
38. Pelas 20h00 rezavam o ofício litúrgico e jantavam pelas 20h45 e após realizavam várias tarefas de limpeza na cozinha, lavandaria, casas-de-banho e capela.
39. Pelas 22h00 tinham que comparecer novamente na capela, onde voltavam a rezar e regressavam aos seus quartos, normalmente partilhados, tinham 15 minutos para se arranjar no único quarto de banho que lhes estava atribuído e tinham ainda que ler algum livro que lhes era imposto e deitavam-se pelas 23h00/23h30m.
40. Às sextas-feiras, dia de limpeza completa do jardim, ou quando existia uma revista para imprimir, de carácter mensal, sendo necessário três dias para o efeito, levantavam-se pelas 05h00, eliminavam algumas orações e trabalhavam seguido, parando apenas para as refeições.
41. Desde pelo menos ../../2004 até o dia ../../2015, foram uma vez ao médico de família e quando estavam doentes (com constipações ou dor de cabeça) apenas podiam tomar ben-u-ron ou Brufen que só lhes era fornecido pela arguida CC.
42. Em data não concretamente apurada mas situada no período em que as ofendidas permaneceram na instituição, o arguido AA, entre outras aleivosias, no período das refeições e no decursos das homilias, chamava-lhes “palermas e parvas”, “porcas”, “infiéis”, filhas da puta”, “monos” e dizia-lhes que tinha o Diabo no corpo.
43. Assim em relação à ofendida MM, esta permaneceu na Fraternidade durante pelo menos 20 anos até ../../2004, data em que se suicidou no interior das Instalações da Fraternidade.
44. Para além do trabalho exaustivo a que estava sujeita esta ofendida, imposto principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, por várias horas seguidas, era constantemente perseguida pela arguida BB, que lhe desferia empurrões, arrancava-lhe o lenço durante orações, dava-lhe pontapés nas pernas joelhos e bofetadas na cara.
45. Principalmente durante as refeições, MM era humilhada pelos arguidos BB e AA, com o conhecimento e anuência dos restantes arguidos, que lhe diziam “és uma porca, mentirosa, bêbeda, uma maluca da cabeça, um aborto, um tampão para a fraternidade, por tua causa as vocações não vêm para a nossa casa, tu tens de ser outra não podes continuar assim, és preguiçosa e escolhes todos os trabalhos, cara de cú, filha da puta, monte de carne”.
46. MM era constantemente chamada atenção pelos arguidos AA, BB, CC e DD em todos os lugares do “convento”, na cozinha, jardim, tipografia, capela, durante o Terço, a Eucaristia e, conforme já referido, durante as refeições.
47. Na Capela da Clausura durante a Adoração do Evangelho e na revisão de vida, a ofendida MM sofria constantes agressões físicas e verbais perpetradas principalmente pela arguida BB, mas com o conhecimento e anuência dos demais.
48. Em data não concretamente apurada, a ofendida MM ficou doente, com febre, permanecendo na cama.
49. Porém, a arguida BB, com o conhecimento e anuência dos demais arguidos, levou-lhe o almoço composto de excrementos de cão, que atirou para cima da cama e os lhe esfregou na cara e mandou-a ir lavar-se pois estava com o Diabo.
50. Na noite anterior ao falecimento de MM, na presença dos restantes arguidos, e como aquela olhou para a televisão, a arguida BB disse-lhe que não era permitido ver televisão, chamando-lhe: “desobediente, besta, não prestas para nada, és uma infiel já não sei o que hei-de fazer, porque não aprendes, és um mau exemplo para as mais novas e prejudicas a entrada no convento”.
51. Perante esta repreensão a ofendida MM pediu desculpa.
52. Após o jantar foram todos para a Capela da Clausura, local onde foram rezar o Ofício, e seguidamente a Revisão de Vida.
53. Esta oração consistia numa espécie de confissão perante todos, tendo a MM descrito o seu comportamento daquele dia, momento em que a arguida BB disse-lhe “Foste desobediente, infiel, és uma besta” e, em seguida, desferiu-lhe um pontapé, encontrando-se MM sentada no chão apoiada pelos joelhos e a arguida sentada numa cadeira.
54. Em consequência da conduta dos arguidos AA, BB, CC e DD, a ofendida MM ficou progressivamente num estado depressivo profundo, o que por sua determinação, no dia ../../2004, afogou-se num tanque existente no interior das instalações da arguida.
55. No que respeita à ofendida EE, as agressões físicas e verbais e bem assim o trabalho exaustivo imposto principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, por várias horas seguidas, iniciaram-se 4 meses após o seu ingresso na instituição, ou seja, desde Agosto de 2004 e prolongou-se até o dia ../../2015.
56. As agressões verbais, físicas e os castigos perpetrados impostos principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, contra EE eram praticamente diárias, tendo esta emagrecido 30 quilos em escassos meses.
57. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o ano de 2005/2006, no interior da “Capela da Clausura”, na presença da CC, a arguida BB desferiu na ofendida EE, que se encontrava ajoelhada, várias bofetadas na cara, o que lhe causou a perda temporária de audição, bem como pancadas com a bíblia na cabeça.
58. Simultaneamente, a arguida BB incentivou a arguida DD e obrigou a ofendida HH a bater na EE, ao que estas anuíram, desferindo-lhe murros nas costas.
59. Em seguida a arguida BB munida com um sapato desferiu-lhe várias pancadas nas nádegas e pontapés nas costas, braços, pernas e cabeça, causando-lhe dores físicas e um sangramento na boca.
60. Depois, a ofendida foi forçada pela arguida BB a dizer o que pensava de todas as restantes “irmãs”, ao mesmo tempo que a arguida lhe puxava os cabelos e lhe levantava a blusa e munida com o chicote desferiu-lhe várias pancadas e obrigou-a a repetir as suas expressões, o que a ofendida fez, apesar de não julgar as “irmãs” daquela forma.
61. Em consequência da conduta da arguida, a ofendida ficou com pisaduras, a sangrar e sofreu dores de cabeça, nas costas e no resto do corpo, sem que lhe fosse permitido pelos arguidos qualquer tipo de assistência médica ou administração de medicamentos.
62. Após, a arguida BB informou o arguido AA do sucedido, o qual avalizando a atuação da arguida BB, se dirigiu à ofendida e disse: “se alguém está fora do sítio, tem que se colocar no sítio, o tempo passa o tempo cura, o Santíssimo está dentro do Sacrário e precisa de quem o Ame”.
63. Em dia não concretamente apurado de Agosto do ano de 2007, a ofendida EE, juntamente com a GG, acompanhadas de um vizinho, foram obrigadas a trabalhar principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, cerca de 15 horas seguidas a rachar lenha, tendo estes apenas permitido às ofendidas parar para almoçar por breves instantes.
64. As ofendidas EE, GG, II e HH, em data não concretamente apurada mas situada nos períodos mencionados em 26), por determinação principalmente da arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, tiveram que dormir no chão em cima de um colchão com um canídeo que estava doente, o que perdurou durante meses, por vezes, apenas logravam dormir uma hora e não tinham qualquer compensação no dia seguinte, tendo que executar todas as tarefas que lhe tinham sido atribuídas.
65. Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2010, encontrando-se a ofendida EE a trabalhar junto das estufas, a arguida BB muniu-se de uma enxada desferindo-lhe uma pancada que a atingiu na face.
66. Em consequência de tal conduta, a ofendida sangrou da boca e ficou com uma cicatriz na parte interior da mesma, não lhe tendo sido permitido qualquer tipo de assistência médica ou administração de medicamentos.
67. Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2011, encontrando-se a ofendida EE à porta da entrada da cozinha, a arguida BB, munida com um ferro do cabo de um sacho, desferiu-lhe várias pancadas nas costas e pernas, causando-lhe dores, hematomas e equimoses.
68. Em data não concretamente apurada mas situada entre o ano de 2010/2011, a propósito de umas flores, encontrando-se as ofendidas EE e GG junto das mesmas, a arguida BB muniu-se com uma mangueira e com ela desferiu várias pancadas nas ofendidas, com a ponta da mangueira, na zona da anca, pernas e mãos, causando-lhes dores e diversos hematomas e equimoses.
69. Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2011, quando a ofendida EE encontrava-se na bouça, a arguida BB, muniu-se de uma pá e desferiu-lhe uma pancada nas costas, mais concretamente na omoplata esquerda, causando-lhe dores.
70. No período compreendido entre o ano de 2005 e até 2013, pelo menos por 10 vezes, quando a ofendida EE estava lavar os passeios, na dispensa, a lavar o chão da casa da madeira, a lavar o patamar, a arguida BB muniu-se de uma vassoura desferindo-lhe várias pancadas na cabeça, costas, pernas ao mesmo tempo que lhe ordenava “para acelerar o motor”.
71. Em consequência da conduta da arguida, a ofendida teve dores e pisaduras no corpo.
72. Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2011, encontrando-se a ofendida EE a preparar os sacos para levarem a reclusos, a arguida BB, munida com um pau, desferiu-lhe uma pancada na face, causando-lhe uma ferida no lábio superior, com sangramento, dores físicas e uma cicatriz na zona atingida.
73. Entre os anos de 2005 e 2013, encontrando-se a ofendida EE na cozinha a fazer limpeza e a preparar as refeições, por várias vezes, a arguida BB desferiu-lhe consecutivas bofetadas, com chinelos de sola grossa, atingindo-a, na cara, cabeça, costas, causando-lhe dores físicas e, por vezes, pisaduras na face.
74. Nos períodos em que as ofendidas EE, GG e HH permaneceram na instituição, foram, com uma frequência praticamente diária, agredidas ao longo dos anos pela arguida BB, que lhes puxava os cabelos até ao chão e raspava-lhes a cabeça no chão e nas paredes.
75. No dia 13 de Março de 2013, a arguida BB, por motivos fúteis, decidiu castigar a ofendida EE, trancando-a no interior de um quarto de banho composto por sanita e bidé, espaço completamente exíguo, durante 10 horas, sem qualquer tipo de alimentação.
76. Em data não concretamente apurada, mas situada entre os anos de 2011 a 2013, encontrando-se a ofendida EE junto de uma pequena construção tipo churrasqueira, a arguida BB muniu-se de uma vara e desferiu-lhe várias pancadas na cabeça e braços, causando-lhe dores, tendo-lhe afetado provisoriamente a visão.
77. Com frequência praticamente diária a arguida BB durante todo o tempo que a ofendida EE permaneceu na Fraternidade, desferiu-lhe bofetadas, murros na cara, costas e braços e obrigou-a a auto flagelar-se com o referido chicote.
78. Em consequência da conduta perpetrada pelos arguidos AA, BB, CC e DD, a ofendida EE sofreu sequelas permanentes traduzidas numa cicatriz obliqua e de forma irregular localizada na metade direita do maxilar superior, aproximadamente com 20 cm de comprimento, cicatriz vertical e de forma irregular localizada na linha média da mucosa da face posterior do lábio superior, joelho direito escuro, pisado e macerado, joelho esquerdo escuro, pisado e macerado.
79. A ofendida FF foi obrigada pelos arguidos AA, BB, CC e DD a permanecer na instituição que a convenceram de que tinha uma vocação e compeliram a redigir uma carta aos seus pais, segundo as orientações da arguida BB, a mencionar que estava a sentir uma vocação e que pretendia ficar.
80. A ofendida acabou por ingressar na Fraternidade no dia ../../2013 e abandonou-a, por sua iniciativa, no dia ../../2015.
81. No período em que permaneceu na Fraternidade foi obrigada principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, a trabalhar por várias horas seguidas, tendo-lhe sido fornecido pouca alimentação, tomava banho uma vez por semana, por vezes de água fria e não lhe era permitido ir ao médico, exceto ao dentista para fazer o controlo do seu aparelho fixo, não lhe foi permitido visitar os seus familiares, foi por várias vezes objeto dos insultos supra descritos e obrigada a autoflagelar-se.
82. A ofendida FF na sequência dos castigos que eram implementados, por vezes, só podia tomar banho de 15 em 15 dias.
83. No período em que permaneceu na instituição a arguida sofreu pressão psicológica diária pelos arguidos AA, BB, CC e DD, tendo sido obrigada a executar todas as tarefas e submeter-se às condições da instituição, pois os arguidos afirmavam que, caso não fizessem conforme ordenado, seria uma “Infiel a Deus”.
84. Após ../../2015, data em que a ofendida EE abandonou a Fraternidade, a FF foi agredida, pelo menos, duas vezes, uma na sala de jantar e outra na garagem pelo facto de ter falado ao mesmo tempo que a arguida BB, a qual lhe desferiu bofetadas na cara e nas nádegas, em ambas ocasiões.
85. No período em que permaneceu na instituição, não lhe foi permitido ver televisão fazer chamadas telefónicas e foi-lhe retido pela arguida CC, cerca de um ano antes de ter fugido, os seus documentos de identificação.
86. A ofendida KK, após algumas visitas, ingressou na Fraternidade, em Junho de 2008 e permaneceu até ao dia ../../2009, data em que foi expulsa da Instituição.
87. No período em que permaneceu na Fraternidade foi obrigada a trabalhar imposto principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, por várias horas seguidas, tendo-lhe sido fornecido pouca alimentação, tomava banho uma vez por semana, por vezes de água fria e não lhe era permitido ir ao médico, visitar os seus familiares e foi por várias vezes objeto dos insultos supra descritos.
88. Em Julho de 2008, quando um das outras ofendidas estava a limpar o corredor que dá acesso à tipografia, a arguida BB ordenou à KK que fosse à tipografia.
89. Por que a ofendida manchou o chão que estava a ser limpo, a arguida BB, munida com uma vassoura, desferiu-lhe uma pancada nas costas partindo a vassoura, ao mesmo tempo que lhe disse “É bem feito para aprenderes a fazer bem”.
90. Pouco tempo depois desta agressão, a arguida BB por entender que a ofendida era muito tímida obrigou-a a transmitir-lhe, antes de cada tarefa, o que ia fazer em seguida.
91. Nesse contexto e porque estava atrasada para uma oração, a ofendida limpou o corredor que dá acesso à cozinha sem antes o mencionar à arguida BB.
92. No final da oração, a ofendida pediu desculpa à arguida BB, porém, esta, sem nada o fizesse prever, desferiu-lhe cinco bofetadas em cada lado da face, causando-lhe dores.
93. No dia 08 de Dezembro de 2008, quando estava na cozinha, a arguida BB ordenou-lhe que cortasse um frango, porém, a ofendida KK com apenas 15 anos nunca o tinha feito.
94. Assim, a ofendida pegou numa faca para cortar o frango no entanto sempre que pegasse mal na faca ou fizesse um corte no sítio errado, a arguida BB, na presença da DD, desferia-lhe bofetadas, tendo-lhe desferido mais de 10 bofetadas na cara, causando-lhe dores.
95. Dias depois, a ofendida estava no exterior da casa a arranjar uma alface ou espinafre deixou cair uma folha ao chão, baixando-se para a apanhar.
96. No momento em que se estava a levantar, a arguida BB desferiu-lhe uma bofetada com as costas da mão, atingindo-a no nariz que de imediato começou a sangrar, tendo a arguida dito “Isso não é nada vai limpar o nariz”.
97. Para além das referidas agressões, no período em que permaneceu na instituição sofreu outras, com frequência praticamente diária, que lhe causou dores e humilhação.
98. A ofendida, em data não concretamente apurada, mas situada no período em que permaneceu na Fraternidade, foi obrigada a trabalhar principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, por várias horas seguidas de beber água durante todo o dia, foi obrigada a jantar de joelhos no chão e com o prato em cima da mesa, um vez por semana, e foi, por várias vezes, impedida de tomar o pequeno-almoço e dormir por duas noites no chão.
99. Em Março de 2009, numa das vezes que a ofendida estava a carregar estrume para o trator caiu e magoou-se no pulso da mão direita, porém, a arguida BB mandou-a continuar a trabalhar e só, posteriormente, foi levada a um “endireita” e durante todo esse tempo cerca de 4 semanas continuou a trabalhar, bem como quando foi visitada pelos seus pais foi obrigada a retirar as ligaduras e a esconder o pulso.
100. A ofendida padece de asma tendo-lhe sido sempre negado ir ao médico à exceção de uma vez que teve uma crise muito forte, porém, só ao fim de três dias.
101. A arguida BB obrigou-a ainda, assim como à ofendida EE, a carregar, à mão, um saco com folhas com cerca de 30 quilos até ao local onde devia ser depositado.
102. No período em que permaneceu na instituição foi obrigada a trabalhar principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, por várias horas seguidas, tendo-lhe sido fornecido pouca alimentação, tomava banho uma vez por semana, por vezes de água fria, não lhe foi permitido visitar os seus familiares, foi por várias vezes objeto dos insultos supra descritos, impedida de fazer e receber chamadas telefónicas, impedida de ver televisão e foram-lhe retirados os seus documentos de identificação.
103. A ofendida WW ingressou na Fraternidade com 15 anos de idade no ano de 1990 permanecendo até o dia ../../2015, tendo voltado a ingressar em ../../2016, onde ainda permanece.
104. À ofendida ao longo de tempo foram sendo atribuídas tarefas cada vez mais complexas e pesadas.
105. Em data não concretamente apurada, mas situada alguns meses após Agosto de 2004, foi obrigada pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos demais arguidos, a dormir no chão pelo menos durante cinco dias.
106. Durante todo o período que permaneceu na Fraternidade sofreu os castigos supra descritos, bem como tomava uma vez por semana banho, os contactos telefónicos eram esporádicos e trabalhava cerca de 15h00 diárias, incluindo os ritos espirituais que eram impostos.
107. No início da sua permanência na Fraternidade, a arguida BB, com conhecimento e anuência dos demais arguidos, desferia-lhe pancadas com vassouras, instrumentos de lavoura ou com mangueiras, ficando com hematomas e tendo mesmo sangrado da testa, numa dessas ocasiões.
108. Num determinado dia, a ofendida perdeu uma chave na relva, nessa sequência a arguida BB desferiu-lhe várias bofetadas e bateu-lhe com um chinelo.
109. Em dia não concretamente determinado, mas situado no período em que permaneceu na Fraternidade, encontrando-se no armazém do papel, a arguida BB esbofeteou-a várias vezes, causando-lhe sangramento do nariz, tendo-lhe sido negado qualquer tipo de assistência médica e medicamentosa.
110. Nos primeiros anos em que permaneceu na Fraternidade, por que alegadamente os visitantes olhavam para si, a arguida BB, com conhecimento e anuência dos demais arguidos, obrigou-a a deitar-se nua no jardim do convento e a arguida CC chegou a dizer-lhe: “só pensas em sexo” e desferiu-lhe quatro chapadas.
111. Com o passar dos anos, a ofendida tornou-se das mais velhas naquela instituição pelos que os castigos foram sendo mais amenizados.
112. Porém, durante todo o tempo que ali permaneceu foi objeto dos insultos supra descritos proferidos principalmente pelos arguidos AA, BB, mas também pontualmente pelas arguidas CC e DD.
113. A ofendida GG deu entrada na Fraternidade, com vinte anos de idade, no dia ../../2005 tendo ali permanecendo até ao dia ../../2015, tendo voltado a ingressar em ../../2016, tendo abandonado a Instituição definitivamente em 18 de Novembro de 2018.
114. Nessa altura a ofendida padecia de depressão facto que foi dado conhecimento pelos seus pais aos arguidos que asseveraram que iam cuidar dela.
115. No ano de 2006, a seguir ao período menstrual e passados alguns dias do mesmo, a ofendida teve várias perdas de sangue, queixando-se à arguida BB que falou com um naturista que arranjava medicamentos naturais para a Fraternidade e forneceu-lhe um frasco de medicamento denominado M45, que a ofendida tomou durante cerca de duas semanas.
116. Em Agosto de 2012 a ofendida sentiu um incómodo na zona do útero, intestinos e bexiga, o que lhe causava dores.
117. A ofendida relatou, por diversas vezes, à arguida BB os seus sintomas no entanto esta desvalorizava-as.
118. Em Maio de 2013, face às insistências da ofendida foi-lhe permitido dirigir-se ao centro de saúde de ... e, nessa sequência, uma outra na especialidade de genecologia no Hospital ..., porém, nada lhe foi detetado.
119. Em Agosto de 2014, por insistência dos seus pais e contra a vontade da arguida BB, foi agendado uma consulta num médico particular, tendo-lhe sido diagnosticado uma inflamação nos intestinos, bexiga e útero, bem como varizes pélvicas que lhe causavam dores.
120. Em finais de Outubro de 2014, mais uma vez por insistência dos seus pais, foi internada, por dois dias, na Casa de Saúde ..., no Porto, porém, quando regressou à instituição continuou com dores.
121. Em Junho de 2015, por que o seu quadro de saúde se agravou, a ofendida, após várias insistências deslocou-se novamente ao centro de saúde tendo tomado um antibiótico durante cerca de duas semanas.
122. Sempre que a ofendida se dirigiu a instituições de saúde foi acompanha pela arguida DD que não permitia que aquela pudesse contar o que se passava no interior da instituição, nem queixar-se verdadeiramente da sua patologia, controlando sempre o que relatava.
123. No período em que permaneceu na instituição foi obrigada principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, a trabalhar por várias horas seguidas, tendo-lhe sido fornecido pouca alimentação, tomava banho uma vez por semana, por vezes de água fria, não lhe foi permitido visitar os seus familiares, apenas por três vezes e sempre acompanhada por uma das arguidas, foi por várias vezes objeto dos insultos supra descritos, impedida de fazer e receber chamadas telefónicas, impedida de ver televisão e foram-lhe retirados os seus documentos de identificação.
124. Poucos meses após ../../2005, a arguida BB desferiu na ofendida, com frequência praticamente diárias, várias bofetadas, agressões essas que se foram agravando com tempo.
125. Assim, entre o ano de 2007/2008, encontrando-se a ofendida a lavar umas pedras à saída da cozinha salpicou algumas gotas de água para os pés da arguida BB.
126. A arguida, desagrada com o sucedido, muniu-se de uma vassoura e com a ponta metálica que suporta a piaçaba desferiu-lhe várias pancadas que a atingiram na cabeça, junto ao olho esquerdo, partindo o cabo, causando-lhe hematomas e dores.
127. No período compreendido entre os anos de 2007 a 2008, encontrando-se a ofendida na cozinha e após ter fatiado o pão, por entender que não fez corretamente, a arguida BB pegou na tábua de madeira e desferiu-lhe uma pancada nos braços, causando-lhe hematomas e dores.
128. Entre o ano de 2007/2008, por que a ofendida não compreendeu bem um recado da arguida BB, esta muniu-se de uma mangueira e, com a parte metálica, desferiu-lhe várias pancadas nos braços e pernas.
129. No período compreendido entre os anos de 2010 a 2011, quando a ofendida se atrasou a fazer uma tarefa, a arguida DD desferiu-lhe uma bofetada na face, causando-lhe dores.
130. Nesse mesmo período, a arguida DD, quando a ofendida se atrasou a fritar batatas, agrediu-a com vários socos na cabeça, causando-lhe dores.
131. Ato seguido, a arguida BB desferiu-lhe vários estalos, causando-lhe dores.
132. Entre o ano de 2011/2012, quando a GG encontrava-se na horta, a arguida BB muniu-se com uma estaca de jardim e desferiu-lhe várias pancadas no pescoço, pernas e braços, causando-lhe hematomas e dores.
133. No ano de 2011, a arguida BB, aproveitando-se da existência de rivalidades entre as ofendidas, ordenou às ofendidas EE, HH e II que agredissem GG com recurso ao chicote denominado de “Disciplina.
134. As ofendidas, contrariadas mas com receio da arguida BB desferiram na GG várias chicotadas no fundo das costas, causando-lhe hematomas e dores.
135. No ano de 2013, a arguida, por entender que a ofendida estava a calcar umas flores de violeta, muniu-se de uma mangueira e, com a parte metálica, desferiu-lhe várias pancadas atingindo-a principalmente no braço direito, causando-lhe hematomas e dores.
136. Nesse mesmo dia, a arguida munida com uma mangueira de maior calibre da que já tinha agredido anteriormente à ofendida, desferiu-lhe uma pancada na zona dos braços, causando-lhe hematomas e dores.
137. Em datas não concretamente apuradas, mas situadas entre os anos de 2010 e 2015, na zona da Capela da “Clausura”, a arguida BB desferiu-lhe várias chicotadas nas pernas.
138. No final do ano de 2013, quando a ofendida estava, juntamente com FF, junto a umas laranjeiras a limpar folhas, a arguida BB, por entender que não estava a fazer corretamente, muniu-se com um cabo de um ancinho agrediu-a atingindo-a nas pernas, causando-lhe dores.
139. No ano de 2014, no momento em que a ofendida estava juntamente com a arguida BB plantar relva, por entender que não estava a fazer bem, a arguida muniu-se com sacho e desferiu-lhe duas a três pancadas nos braços, causando-lhe dores.
140. No período em que a ofendida permaneceu na instituição, foi agredida fisicamente castigada e negada assistência médica e medicamentosa adequada, ao longo dos anos principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos restantes arguidos e insultada por todos os arguidos.
141. A ofendida II ingressou na Fraternidade em ../../2004, com 15 anos de idade, permanecendo até ao dia 21/22 de Novembro de 2013, altura em que encetou fuga durante a noite.
142. No período em que permaneceu na Fraternidade foi obrigada a trabalhar principalmente pela arguida BB com conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, por várias horas seguidas por várias horas seguidas, tendo-lhe sido fornecido pouca alimentação, tomava banho uma vez por semana, por vezes de água fria, não lhe foi permitido visitar os seus familiares, foi por várias vezes objeto dos insultos supra descritos, impedida de fazer e receber chamadas telefónicas, impedida de ver televisão e foram-lhe retirados os seus documentos de identificação.
143. Em dia não concretamente apurado do ano de 2005, no momento em que II estava a lavar com a varanda de uma casinha de madeira com uma vassoura e água tocou numa planta.
144. A arguida BB apercebendo-se do sucedido desferiu-lhe uma bofetada, causando-lhe dores.
145. No ano de 2007, quando estava na cozinha, a arguida BB, na presença da DD e com o posterior conhecimento da CC, ordenou-lhe que cortasse um frango, porém, a II, fruto da sua ainda tenra idade nunca o tinha feito.
146. Assim, a ofendida pegou numa faca para cortar o frango no entanto sempre que pegasse mal na faca ou fizesse um corte no sítio errado, a arguida desferia-lhe bofetadas, tendo-lhe desferido mais de 10 bofetadas na cara, entortando-lhe a haste dos óculos, pisando-lhe o olho esquerdo e causando-lhe dores.
147. No dia de Natal do ano de 2007, encontrando-se a arguida BB a virar umas postas de bacalhau chamou pela II que não foi de imediato ao seu encontro.
148. Por essa razão, a arguida BB desferiu-lhe pelo menos dois estalos na face, causando-lhe dores.
149. No ano de 2008, chegou ao conhecimento da arguida BB, por denúncia da arguida DD, que II se tinha queixado que nunca comia as alheiras que a sua mãe oferecia.
150. Por essa razão, no dia seguinte, a arguida BB chamou todas as “irmãs” à cozinha, exceto a arguida CC, e agrediu-a com diversas bofetadas na face e com um chinelo nas nádegas, causando-lhe dores.
151. No ano de 2012, dois dias antes do convívio mensal com os familiares, no interior da capela, a arguida BB munida com um chinelo desferiu-lhe com ele na cara da ofendida, provocando-lhe marcas na cara e dores, que a ofendida teve que justificar aos seus familiares como sendo uma alergia.
152. Em dia não concretamente apurado do ano de 2013, II, que estava, naquela semana, responsável pela cozinha, esqueceu-se de que tinha acabado a compota para o pequeno-almoço, facto que não relatou à arguida BB porque esta estava a ver televisão e não permitia que ninguém falasse.
153. No dia seguinte, II relatou tal facto à arguida BB que lhe desferiu quatro bofetadas na face e de seguida disse “e agora diz lá porque é que eu te bati”.
154. Em consequência da conduta da arguida, a ofendida sentiu dores.
155. Em 2013, numa altura em que a ofendida estava a lavar a roupa, no tanque, a arguida BB abeirou-se dela e desferiu-lhe vários estalos e questionou-a “não te disseram nada?” pois supostamente a ofendida deveria ter ido retirar flores da capela denominada “...”.
156. Entre o ano de 2008/2009, fruto do cansaço que sentia, II acabou por adormecer no interior de uma capela.
157. A arguida BB apercebendo-se do sucedido acordou-a e agrediu-a com estalos na face, causando-lhe dores.
158. Em data não concretamente apurada, mas situada no período mencionado em 26), por não ter levado uma saia à arguida BB para arrumar, esta obrigou-a a ir de joelhos desde a entrada principal da casa até ao portão, facto que lhe causou quistos nos joelhos.
159. Em data não concretamente apurada, mas situada no período em que permaneceu na instituição, II cortou dois dedos com uma serra no entanto não lhe foi permitido que desinfetasse a ferida e colocasse um curativo, obrigando a arguida BB a colocar terra na ferida para estancar o sangue.
160. Na semana anterior à sua fuga, a propósito de um saco de pães para dar às galinhas e de uma camisa do arguido, objetos que não estariam no sítio correto segundo a arguida BB, esta encontrando-se com a ofendida numa garagem nova, juntamente com a arguida DD, desferiu na ofendida vários estalos e, em seguida, muniu-se com uma esfregona, de cor ... com cabo metálico e agrediu-a no braço esquerdo, perna esquerda e nádegas, partindo a cabo da esfregona.
161. Simultaneamente, a arguida BB proferia as seguintes expressões “vais fugir como a puta da tua mãe, agora sai e arranja um homem que te parta o focinho, se quiseres sai também do convento”.
162. Em consequência de tal conduta, a ofendida sofreu hematomas e dores não lhe foi administrado qualquer medicamento.
163. No período em que a ofendida permaneceu na Fraternidade, foi agredida fisicamente e castigada, principalmente pela arguida BB com conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, com uma frequência praticamente diária, puxões de cabelo, com pancadas com vários objetos e foi objeto dos referidos insultos protagonizados por todos os arguidos.
164. A ofendida LL ingressou na instituição no dia ../../2012, com 19 anos de idade, e ali permaneceu até ao dia 08 de Dezembro de 2013, data em que foi expulsa da instituição.
165. Em data não concretamente apurada mas aludida em 26), queixando-se LL de que estava com dores de cabeça, a arguida BB chamou a EE, a II, a HH e a LLL que a rodearam a rezar ao mesmo tempo que a arguida lhe disse que estava com o diabo no corpo, atirou-lhe água benta e, em seguida, desferiu-lhe vários estalos na face, incentivando que as restantes também o fizessem.
166. Em data não concretamente apurada, mas situada pouco tempo antes de ter saído da Fraternidade, a ofendida misturou alguns livros inadvertidamente na sequência de estar cansada e com sono.
167. A arguida BB apercebendo-se do sucedido, no interior da tipografia, deu-lhe várias bofetadas, causando-lhe dores.
168. Em data não concretamente apurada mas situada no período em que a ofendida permaneceu na instituição, na zona do corredor do armário dos sapatos, a arguida BB agrediu a ofendida com vários estalos e, posteriormente chicoteou-a.
169. Em data não concretamente apurada mas situada no período em que a ofendida permaneceu na instituição, porque LL se esqueceu de levar o lixo a horas, na casinha que tem uma construção tipo churrasqueira, puxou-lhe com força uma orelha, causando-lhe dores.
170. Em data não concretamente apurada mas situada no período em que a ofendida permaneceu na instituição, na altura do inverno, a arguida, com recurso a uma mangueira, encharcou a ofendida que teve que permanecer durante todo o dia a roupa molhada.
171. Em data não concretamente apurada mas situada no período em que a ofendida permaneceu na instituição, na sequência de uma discussão com o arguido AA e a II, aquele disse-lhe “vou-te dar um murro que nunca mais vais esquecer, sua parva”.
172. Em seguida, o arguido AA, no interior da cozinha ordenou à ofendida que desse várias cambalhotas em frente das restantes ofendidas e arguidas, o provocava que ficasse desnudada, com o intuito de a humilhar.
173. Em data não concretamente apurada mas situada no período mencionado em 26), a arguida BB por várias vezes ordenou que LL se autoflagelasse 19 vezes de cada vez, por ser os anos que tinha.
174. No dia 07 de Dezembro de 2013, a FF terá inadvertidamente deixado cair um armário ao chão.
175. Porque LL a não auxiliou, a arguida BB, à noite, na cozinha, reuniu a EE, a LLL, a HH, a II, as arguidas CC e DD e ordenou que ofendida pedisse desculpas e que dissesse que tinha ciúmes da FF.
176. A LL recusou-se a fazê-lo, então a arguida HH por ordem da BB arrancou-lhe a roupa e desferiu-lhe bofetadas e chicoteou-a.
177. Em seguida, a arguida ordenou que a LL se autoflagelasse e, como a ofendida se recusou, ordenou que a ofendida HH o fizesse, a qual, com receio da arguida, desferiu-lhe várias chicotadas nas nádegas e costas ao mesmo tempo que as restantes a insultavam.
178. Em consequência das agressões perpetradas, LL sofreu hematomas e dores, o que determinou que saísse da instituição.
179. Em data não concretamente apurada mas situada no período em que a ofendida permaneceu na instituição, na sequência de uma tentativa de visita da sua mãe e irmão, a arguida BB obrigou a ofendida a redigir uma carta aos seus pais fazendo-a constar expressões tais como “não venham cá mais, não vos quero ver mais”, o que a ofendida fez por receio.
180. Em data não concretamente apurada mas situada no período referido em 26), o arguido AA durante a homilia chamou-lhe “parva, pateta e palerma”.
181. No período em que a ofendida permaneceu na instituição, foi agredida física e castigada principalmente pela arguida BB com conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, com uma frequência praticamente diária, com puxões de cabelo, com pancadas com vários objetos e foi objeto dos referidos insultos e castigos supra descritos, protagonizados por todos os arguidos.
182. Em relação à ofendida JJ a mesma ingressou na instituição em Abril de 2005, com 16 anos de idade, ali permanecendo até ao dia ../../2007, data em que fugiu da instituição.
183. No período em que aí permaneceu foi agredida fisicamente e castigada principalmente pela arguida BB com conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, com uma frequência praticamente diária, com puxões de cabelo, com pancadas com vários objetos e foi objeto dos referidos insultos protagonizados por todos os arguidos.
184. Em consequência da conduta dos arguidos, a ofendida JJ sofreu dores e pisaduras e passou a padecer de problemas psíquicos.
185. Todas as ofendidas, face à atuação conjugada dos arguidos ficavam totalmente subjugadas, pelo temor, às suas vontades quer pelas ofensas físicas e verbais e castigos de que eram vítimas quer pelas que presenciavam e bem assim pelo clima de terror e rigor espiritual que lhes era imposto.
186. Deste modo, os arguidos AA, BB, CC e DD, com as referidas condutas, logravam que as ofendidas executassem, por temor, todos os trabalhos necessários para o normal funcionamento da Fraternidade, incrementando o património do Centro Social, na modalidade de poupança de despesa, sem qualquer contrapartida material e espiritual, com uma completa relação de domínio sobre as ofendidas, que vivenciavam um permanente “regime de medo”, não tendo poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho.
187. Os arguidos AA, BB, CC e DD sujeitaram as ofendidas a trabalhos que eles não queriam executar, mediante a prática dos supra descritos insultos, agressões e castigos, como se tratassem de propriedade sua, com total desumanização das ofendidas e limitação da sua liberdade de movimentos.
188. As ofendidas viram-se coartadas na sua liberdade de autodeterminação, nomeadamente, impedidas de abandonar a Fraternidade ou em não proceder conforme lhes era ordenado pelos arguidos AA, BB, CC e DD face ao poder que estes tinham em ambas as instituições e com receio de retaliações dos arguidos.
189. Os arguidos AA, BB, CC e DD atuaram enquanto gerentes de facto e de direito da Fraternidade Missionária ... e do Centro Social de Apoio e Orientação ..., servindo-se do Carisma/Ideário da primeira, que dirigiam como queriam, com o objetivo de, à custa do trabalho das arguidas, incrementarem o património do Centro Social, na modalidade de poupança de despesas, atuando em termos de exprimir e vincular tal IPSS.
190. Agiram os arguidos em conjugação de esforços e vontades, de forma livre, voluntária e conscientemente bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por Lei.

2. b) FACTOS PROVADOS ORIUNDOS DOS PEDIDOS CÍVEIS

FACTOS RELATIVOS AO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL DA EE
191. A ofendida EE, aqui demandante, por ser pessoa de fé e pretender consagrar a sua vida a Cristo, integrou a Fraternidade Missionária ..., em 04/04/2004, aí tendo permanecido de forma ininterrupta até ../../2015, ou seja, durante 10 anos, 9 meses e 17 dias.
192. A Demandante, à data da entrada para a Instituição contava com 20 anos de idade.
193. Assim, sob o manto ou aparência de uma entidade religiosa capaz de proporcionar à demandante os seus anseios e realização espiritual, a fraternidade acolheu-a, ou melhor dito, “contratou-a” para, sob um clima de inaceitável e repudiável terror (físico e psíquico) executar diariamente tarefas e trabalhos cuja real e efetiva beneficiária sempre foi a Instituição aqui arguida “Centro Social de Apoio e Orientação ...”.
194. Tudo, ao longo de mais de 10 anos e de forma ininterrupta, se passou no interior as instalações da Instituição aqui arguida.
195. Durante o tempo em que a demandante passou na Instituição foi sujeita a um tratamento de dor, opressão, intimidação e violação da sua liberdade física e intelectual.
196. Por diversas ocasiões, de forma violenta e gratuita, foi a demandante agredida em várias partes do seu corpo com vários objetos, tais como: com um chicote (“Disciplina”), com uma enxada, com um cabo de ferro do sacho, com paus, com uma mangueira, com bofetadas e puxões de cabelo.
197. Tudo lhe causando sofrimento, dores intensas e pânico, sem qualquer possibilidade de tratamento médico adequado. Ficando, inclusive, a sangrar e com sequelas permanentes como resulta do relatório médico junto aos autos, tendo emagrecido cerca de 30 Kg.
198. Por inúmeras ocasiões, e tantas foram que a demandante não consegue concretizar, foi injuriada pelos arguidos com as expressões melhor descritas e identificadas na douta acusação pública,
199. Tudo lhe causando vergonha, humilhação, vexame e um forte abalo mental e psíquico.
200. Foi a demandante sujeita a castigos puramente medievais e abomináveis, tais como: flagelações e autoflagelações que, para além da enormíssima dor física, lhe causaram um sentimento de total submissão aos arguidos.
201. Para além do mais, foi também a demandante obrigada a dormir no chão, durante vários meses, na companhia de um canídeo doente, bem como, fechada numa casa de banho durante cerca de 10 horas consecutivas sem qualquer tipo de alimentação.
202. Como se não bastasse, a demandada trabalhava mais de 16 horas por dia, sendo que, por vezes, não lhe era, sequer, permitido beber água durante todo o dia, não lhe era permitido ver televisão, não lhe foi permitido qualquer contacto com a família durante mais de 9 anos, viu os seus documentos apreendidos.
203. Tudo numa inequívoca violação da dignificação da condição humana.
204. Quiçá mais grave do que as agressões e castigos físicos, foi a constante agressão e tortura psicológica infligida à demandante através da deturpação completa da doutrina cristã.
205. E foi assim durante, pelo menos, 10 anos!!!
206. Período em que a demandada foi manipulada e ameaçada psicologicamente pelos demandados, fazendo-a crer em castigos divinos, problemas e mortes de familiares.
207. Neste contexto de clausura e reclusão viveu diariamente a demandante numa completa sujeição aos caprichos e ordens dos arguidos.
208. Todos os arguidos sabiam e tinham perfeito conhecimento dos factos praticados contra a demandante, agindo todos quer por ação, quer por omissão.
209. A demandante para além de vivenciar e sentir os males a si infligidos pelos arguidos, presenciou, de igual modo, comportamentos de violência física e psíquica dirigida às demais ofendidas.
210. Circunstância que também se traduz em temor, medo e inquietação.
211. A demandante viveu durante anos a fio num completo calvário e sofrimento que jamais esquecerá e que se mantêm e manterão bem vivos na sua memória.
212. Viu a sua dignidade humana diminuída, viu a sua honra, consideração, bom nome e integridade física e psíquica irremediavelmente abaladas.
213. Jamais a ofendida apagará da sua memória as ofensas de que foi alvo.
214. Viu a demandante a sua liberdade e autodeterminação completamente limitadas pelos arguidos que, em comunhão de esforços e de forma consciente lhe impuseram num permanente regime de medo e terror.
215. Para além do que vem dito, e como resulta claro dos presentes autos, a demandante trabalhou diariamente, pelo menos, 16.00 horas.
216. E fê-lo a mando dos arguidos em claro e inequívoco proveito da Instituição aqui arguida.
217. Trabalhava a demandante todos os sete dias da semana, sem direito a qualquer remuneração, subsídio ou direito social.
218. De forma objetiva e clara a Instituição aqui arguida, mediante a imposição dos restantes arguidos que a representavam de facto e de direito, beneficiou do trabalho árduo da demandante durante mais de 10 anos.
219. E em condições absolutamente desumanas, que se traduziam muitas das vezes em escassa alimentação, subtração de água, agressões físicas e proibição de tomar banho.
220. Num absoluto estado de temor e terror a demandante foi obrigada, durante mais de 10 anos, a executar trabalhos cuja verdadeira beneficiária era a Instituição aqui arguida.
221. Tudo sem qualquer contrapartida monetária ou material.
222. Nunca a demandante teve a possibilidade de decidir ou escolher o modo e o tempo da prestação de trabalho pois, a tudo era obrigada fazer mediante insultos, agressões e castigos.
223. Como se deixou dito, durante 10 anos, 9 meses e 17 dias, a demandante trabalhou e exerceu tarefas diárias exigidas para a manutenção e conservação das instalações da Instituição e prossecução da sua atividade sem qualquer retribuição.
224. Concretamente: tratamento de jardins, plantar, podar e abater árvores de grande porte, cuidar dos animais, carregar esteiros, carregar lenha e rachá-la, carregar tratores de estrume, lixar e envernizar madeiras, executar pinturas, carregar pedras, construir muros, apanhar folhas e pinhas, arrancar silvas, tratar dos aviários e trabalhar na tipografia.
225. A Demandante trabalhou, pelo menos, 16.00 horas diárias, sem que alguma vez que lhe fosse pago qualquer salário, subsídio de Férias e de Natal, e sem que alguma vez tivesse gozado férias.
226. Nos termos supra referidos e melhor descritos na douta acusação pública, a Instituição, aqui arguida, beneficiou de mão de obra gratuita.
227. No caso concreto, e quanto à situação laboral da demandante, para além da mesma não ter tido qualquer poder de decisão sobre o número de horas de trabalho, nem qualquer decisão sobre o tipo de trabalho e o modo de o efetuar, não beneficiou de qualquer retribuição ou direito.
228. Durante mais de 10 anos a demandante debateu-se com uma nítida impossibilidade de mudar a sua condição, concretizada em ameaças, males à própria e á família, castigos, e sujeição absoluta a imposições dos arguidos.     
229. No caso dos autos a demandante durante mais de 10 anos viveu numa completa de relação de domínio perante os arguidos demandados e numa completa relação de medo e terror, ficando aquela num evidente estado de passividade e coartada de liberdade pessoal e de decisão.

FACTOS RELATIVOS AO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVEL DA OFENDIDA GG

230. A demandante deu entrada na Fraternidade Missionária ..., com sede na Rua ..., ..., ... no dia ../../2005, tendo aí permanecido até ao dia ../../2015, ou seja, durante 10 anos, 7 meses e 25 dias.
231. A demandante, quando entrou para a referida Instituição, tinha 20 anos de idade e, quando daí saiu, tinha 31 anos de idade.
232. Como consta da douta acusação pública, durante o referido período de tempo, a demandante foi obrigada a trabalhar por várias horas seguidas, teve acesso a pouca alimentação, tomava banho apenas uma vez por semana, por vezes de água fria, não podia visitar os seus familiares, foi impedida de fazer e receber chamadas telefónicas, impedida de ver televisão, foi objeto de insultos e foram-lhe retirados os seus documentos de identificação.  
233. No referido período de tempo, a demandante foi ainda agredida, insultada e castigada, com uma frequência praticamente diária, e foi-lhe negada assistência médica e medicamentosa adequada, nos termos melhor descritos na acusação e que aqui se dão por reproduzidos.
234. Os demandados, com a referida conduta, logravam que a demandante executasse, por temor, todos os trabalhos necessários para o normal funcionamento da Fraternidade, sem qualquer contrapartida material e espiritual que desejava, com uma completa relação de domínio sobre a mesma, que vivenciava um permanente regime de medo, não tendo poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho.
235. Os demandados sujeitaram a demandante a trabalhos que eles não queriam executar, mediante a prática de insultos, agressões e castigos melhor descritos na douta acusação pública, como se a demandante se tratasse de propriedade sua, com total desumanização da demandante e limitação da sua liberdade de movimentos e ações.
236. Humilhando-a constantemente e sujeitando-a a uma verdadeira tortura física e psicológica, incutindo-lhe medo em relação a Deus e à sua ira e o dever de obediência a tudo que os demandados lhe diziam e mandavam fazer.
237. A demandante, face à conduta dos demandados melhor descrita na douta acusação pública, ficou totalmente subjugada, pelo temor, às suas vontades, quer pelas ofensas físicas e verbais e castigos de que era vítima, quer pelas que presenciava em relação às demais ofendidas, e bem assim, pelo clima de terror e rigor espiritual que lhe era imposto, a si e às demais ofendidas.
238. A demandante viu-se coartada na sua liberdade de autodeterminação, nomeadamente em abandonar a Instituição ou em não proceder conforme lhe era ordenado pelos demandados, face ao poder que estes tinham na Instituição e com receio de retaliações dos demandados.
239. Em consequência da conduta dos demandados, a demandante sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais de que deve ser ressarcida.
240. Desde logo, em consequência das agressões e dos castigos físicos de que foi vítima, a denunciante sentiu dores, não só no momento das agressões, mas também nos dias que se seguiam e ao longo de mais de dez anos.
241. Com a agravante de que a demandante não podia socorrer-se de ajuda médica ou medicamentosa com vista a, pelo menos, atenuar as dores e hematomas resultantes das referidas lesões, por tal lhe ser expressamente vedado pelos demandados.
241. Por outro lado, disfarçou muitas vezes a dor para proteger a sua integridade física e psicológica e com tantas dores ao longo de tantos anos acabou por aprender a viver com a dor, suportando-a já muitas vezes sem queixume.
242. Até porque se assim não fizesse, bem sabia que as agressões seriam maiores.
243. Além das dores físicas, as aludidas lesões causaram ainda um profundo desgosto, vergonha, tristeza e revolta na demandante. 244. Com o seu comportamento, de absoluta coação e aniquilação da demandante, os denunciados visavam ainda humilhá-la, atingi-la na sua integridade física e diminuí-la à condição de uma mera coisa.
245. E conseguiram fazê-lo, na medida em que criaram na demandante, ao longo dos anos, sentimentos de baixa autoestima, ansiedade, medo e terror.
246. E determinando, necessariamente, uma diminuição de liberdade de deambulação e de autodeterminação da demandante.
247. Em consequência dessas agressões e a falta de cuidados médicos, a demandante ficou a padecer de vários problemas de saúde.
248. Com efeito, durante o período de tempo em que esteve na Instituição, a demandante não podia lavar os dentes após as refeições, tinha, muitas vezes, uma alimentação deficitária e não lhe era permitido consultar o dentista com regularidade.
249. Por via desses factos, os seus dentes estão com caries e outros problemas, que precisam de ser tratados.  
250. Desde que saiu da Instituição, a demandante tem vindo a realizar vários tratamentos dentários, tendo já gasto, até à presente data, a quantia de 1.020,00€.
251. De acordo com vários exames comuns e radiológicos que realizou, a demandante ficou a padecer de diversas moléstias corporais, as quais se encontram melhor descritas nos resultados de meios complementares de diagnóstico que realizou no período decorrido entre 03/12/2015 e 11/01/2019.
252. Todas as referidas enfermidades derivam, ou, pelo menos, foram agravadas pelas agressões, maus tratos e negação de acesso a medicação e tratamentos médicos por parte dos demandados em relação à demandante no período em que esteve na Instituição.
253. Quando a demandante entrou para a Instituição, sofria de depressão.
254. Face aos factos constantes da acusação, a demandante nunca ficou curada da depressão que sofria, a qual, acabou por se agravar.
255. Com efeito, o comportamento dos demandados causou na demandante um sofrimento profundo, pelo que esta passou a andar sempre triste, nervosa e ansiosa.
256. Os factos que vivenciou e o clima de medo e terror em que vivia também afetavam o seu sono, acordando muitas vezes durante a noite com pesadelos horríveis.
257. Perante as sujeições a que foi submetida pelos demandados, a demandante passou a viver com sentimentos de desesperança, culpa, inquietude, inutilidade e desamparo.
258. A demandante deixou de ter amor-próprio, limitava-se a viver de acordo com as imposições dos demandados e perdeu totalmente o sentido da vida.
259. A demandante também se sentiu profundamente humilhada e enganada, porquanto, quando decidiu entrar para a Instituição, fê-lo porque queria ser freira e entregar a sua vida a Deus, constatando agora que não foi validamente consagrada.
260. Tendo sido essa a convicção que os demandados intencionalmente lhe criaram e que determinou a sua entrada na Instituição.
261. Jamais tendo suposto ou imaginado sequer que a sua vida se tornaria num autêntico inferno e que lhe seria dado a conhecer um “Deus” castigador e tirânico.
262. Porém, no decurso do presente processo, veio a saber que, afinal, aos olhos da Igreja, não é freira, nem nunca viria a sê-lo junto daquela Instituição.  
263. A demandante sentiu-se enganada, traída e profundamente revoltada, o que aumentou o seu estado de desequilíbrio emocional e psicológico, pois sente que, afinal, não é nada, e que lhe roubaram mais de dez anos da sua vida.
264. A demandante sente que durante o período de tempo em que esteve na Instituição viveu um embuste e atualmente sente um vazio profundo no seu interior, ao ponto de a mesma ter perdido completamente a sua vocação religiosa.
265. Ainda hoje, e apesar de já não estar no interior da Instituição, a demandante acorda muitas vezes a meio da noite com pesadelos horríveis, que a fazem gritar e tremer de medo.
266. O mesmo sucedendo sempre que se lembra do que vivenciou, o que ocorre frequentemente.
267. Desde que abandonou a Instituição, a demandante teve que recorrer à ajuda de uma psicóloga, que lhe diagnosticou uma depressão profunda, e que a tem acompanhado desde então.
268. Por via da referida patologia clínica, foram prescritos à denunciante os seguintes medicamentos, que a mesma se encontra a administrar:
a) Ciclobenzaprina, 10 mg;
b) Sertralina, 100 mg;
c) Colecalciferol, 22400 U.I.
269. E que, face à gravidade da mesma, não se perspetiva uma alta clínica a médio prazo.
270. Na verdade, em consequência das condutas levadas a cabo pelos demandados sobre a demandante e as demais ofendidas, existem traumas de natureza psicológica que nunca mais irão ser superados pela demandante.
271. Após a sua saída da Instituição, em ../../2015, a demandante foi, por indicação das respetivas autoridades, acolhida no Centro de Acolhimento e Proteção a Vítimas de Tráfico de Seres Humanos, da Associação para o Planeamento da Família, onde permaneceu até ao dia 9 de Janeiro de 2016.
272. Durante esse período, a demandante foi acompanhada por profissionais qualificados, nomeadamente por psicólogos, que avaliaram e acompanharam o seu estado clínico, protestando-se juntar relatório de avaliação referente àquele período de tempo.
273. A demandante não podia visitar os seus familiares, designadamente os seus pais e irmãos com os quais tinha, até à data da sua entrada na Instituição, uma forte ligação afetiva.
274. A demandante vivia em pleno cárcere e apenas lhe foi permitido vir a casa ao fim de cerca de 10 anos, por se encontrar doente e por os seus pais, desesperadamente, terem pressionado a Instituição e encetado diligências que o permitissem.
275. Por outro lado, durante muitos anos, a demandante nunca pôde contactar telefonicamente com os seus familiares, pois tal não lhe era permitido pelos denunciados.
276. Apenas no ano de 2015, após a saída da ofendida II, que denunciou algumas práticas ocorridas no interior da Instituição, é que os demandados começaram a permitir que a demandante contactasse telefonicamente com os seus pais e irmãos.
277. A proibição de visitar e privar com a sua família trouxe-lhe um desgosto incalculável – nunca pôde participar em festas de família, aniversários, Natal ou passagens de ano, Páscoa e outros convívios, tal como sempre sucedera até à sua entrada na Instituição.
278. O facto de saber e sentir no seu âmago que também os seus familiares sofriam e padeciam pela sua ausência, deixava-a profundamente abalada, entristecida e amargurada.
279. Tanto mais que a demandante não conseguia confessar àqueles todo o seu sofrimento físico e emocional perante os castigos, insultos e demais desumanizações de que era vítima, por medo das represálias que os demandados apregoavam.
280. Com a sua conduta, os demandados feriram profundamente a integridade moral e física da demandante, submetendo-a a diversos atos de tortura, tratos cruéis, degradantes e desumanos, estuprando igualmente direitos constitucionalmente consagrados.
281. A demandante perdeu a sua dignidade como pessoa e como mulher, vivendo sob ordens, ameaças, insultos à sua pessoa e ao seu comportamento, coação e agressões, como se fosse uma escrava.
282. Sem nunca ter tido qualquer contrapartida monetária, moral ou espiritual.
283. Todos os episódios continuam bem presentes no espírito da demandante e ainda hoje sente medo e inquietação por toda a tortura física e psicológica vivenciada.
284. Os demandados com a sua cruel conduta magoaram a demandante no seu mais profundo ser, ferindo-a não só na sua integridade física, mas também na sua honra, moral e dignidade.
285. Deixando-lhe marcas profundas de que jamais se esquecerá.
286. Os atos cometidos, de forma concertada e em união de esforços, pelos demandados contra a demandante e demais ofendidas são altamente lesivos dos direitos humanos em geral e da dignidade da pessoa humana em particular.
287. Porquanto a demandante foi sujeita a uma instrumentalização degradante e humilhante da pessoa humana, vendo ainda profundamente ofendido o seu estatuto moral de pessoa humana, com sequelas que se perpetuarão no tempo.
288. De facto, todas estas circunstâncias criaram na demandante uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio social, psíquico e emocional.
289. Quando a demandante entrou na referida Instituição encontrava-se a estudar no Instituto Politécnico ... e do ..., onde frequentava o primeiro ano do curso de Fiscalidade, conforme certificado de matrícula.
290. Durante o período de tempo em que esteve na identificada Instituição, a demandante não auferiu qualquer retribuição ou qualquer outro tipo de rendimento.
291. Porém, a demandante trabalhava longas jornadas, que, muitas vezes, chegavam a atingir 15 a 20 horas diárias, executando árduas e diversas tarefas, muitas das quais exigiam destreza física muito além das suas capacidades, bem como acima das de qualquer homem médio. 
292. A demandante executava trabalhos ao longo de várias horas consecutivas, sem qualquer período de descanso.
293. Que, na maioria das vezes, chegavam a atingir mais do dobro de um horário normal de trabalho, ou seja, 8 horas diárias.
294. A demandante trabalhava todos os dias da semana, ou seja, de domingo a segunda, sem nunca ter beneficiado de qualquer dia de descanso semanal e anual, nem a qualquer período de lazer.
295. O qual, nunca foi alvo de qualquer contrapartida económica, nem sequer emocional ou espiritual.
296. A demandante era usada pelos demandados como se tratasse de um mero instrumento de trabalho, não assalariado, que tinha a capacidade de executar todo e qualquer tipo de tarefa.
297. Estando totalmente subjugada às ordens que lhe eram impostas pelos demandados e ainda sob a rígida orientação e “fiscalização” severa e “disciplinada” daqueles.
298. Os demandados estribavam-se numa falsa religiosidade para, no fundo, obterem a mão de obra escrava da demandante e das demais ofendidas. 
299. Ou seja, a referida Instituição, não visava “servir a Deus” mas sim servir os interesses pessoais dos demandados.
300. Quando abandonou a Instituição, a demandante teve de começar do zero, readaptando-se à realidade quotidiana de um cidadão comum.
301. Atualmente encontra-se a trabalhar como empregada doméstica, ao serviço de uma família, auferindo um salário equivalente ao ordenado mínimo nacional.
302. No entanto, antes de entrar na Instituição, a demandante tinha a expetativa de trabalhar como fiscalista e auferir um salário compatível com essas funções.
303. A demandante sente que perdeu dez anos da sua vida, ou melhor, que os demandados lhe roubaram esses anos de vida, durante os quais lhe foi vedada a possibilidade de se instruir, fazer um curso superior e preparar o seu futuro.
304. Com efeito, durante o referido período de tempo, a demandante trabalhou 365 dias por ano, nas circunstâncias supra descritas, sem auferir qualquer rendimento e fazer descontos para a Segurança Social, de forma a acautelar o seu direito à reforma.

FACTOS ORIUNDOS DO PEDIDO CÍVEL DA II
           
305. Os arguidos em conjugação de esforços e vontades, resolveram angariar jovens para exercer todas as tarefas diárias exigidas para a conservação e manutenção das instalações do Centro Social e continuação da actividade da Fraternidade, sem qualquer contrapartida e mediante a implementação de um clima de terror, utilizando-as como mera força de trabalho.
306. Os arguidos tinham como alvo jovens de raízes humildes, com poucas qualificações ou emocionalmente fragilizadas e com pretensões a integrarem uma comunidade espiritual de raiz católica, piadosas e tementes a Deus.
307. Sempre que jovens com o referido perfil visitavam as instalações da Fraternidade ou aí permaneciam por alguns dias para auxiliar em tarefas da mesma, em regime de voluntariado, os arguidos afirmavam que tinham sido escolhidas por Deus, convencendo-as que deviam escolher a vida religiosa, pois que caso negassem as suas vocações daí advinham castigos “divinos”, problemas familiares, mortes na família.
308. No interior das instalações os arguidos, perpetraram, diariamente, várias agressões físicas, injúrias, pressões psicológicas, tratamentos humilhantes, castigos, trabalhos pesados, escassez de alimentação, negação de cuidados médicos e medicamentosos e restringimento da liberdade sobre as jovens que angariavam e aí residentes.
309. A arguida BB, com conhecimento e anuência dos restantes arguidos que manifestavam o seu acordo, desferia nas ofendidas bofetadas, murros, pontapés, puxões de cabelo, pancadas com enxadas, ancinho, ferros, mangueira, paus, vassouras, chinelos, sapatos e com um chicote com corda – desginado como disciplina – obrigando-as, por vezes, a agredirem-se mutuamente com o referido chicote.
310. II (conhecida por BBB que que ingressou na instituição em Agosto de 2004, com 15 anos de idade, e fugiu no dia 21 de Novembro de 2013), tendo aí permanecido durante 9 aos e 3 meses.
311. A arguida BB com conhecimento e aquiescência dos demais, impunha ainda castigos nas ofendidas que consistiam em:
- Proibição de tomarem o pequeno-almoço;
- Proibição de tomarem banho durante vários dias e até semanas,
- Proibição de beberem água durante todo o dia no verão quanto estavam a trabalhar ao sol durante várias horas
- Proibição de usarem roupa interior durante vários dias e mesmo semanas, factos que ocorreu por diversas vezes
- Obrigação de se despirem e de permanecerem nuas em frente umas das outras na capela da clausura
- Obrigação de se despirem e permanecerem deitadas nuas no jardim da Instituição
- Obrigação de dormirem no chão durante várias noites e, por vezes, meses, na companhia de um cão, mesmo encontrando-se doentes
- Obrigação de permanecerem de joelhos com as mãos debaixo dos mesmos ou com os braços esticados em cruz ao lado do tronco durante várias horas;
- Obrigação de permanecerem fechadas numa determinada dependência
- Obrigação de se autoflagelarem com recurso ao referido chicote, muitas vezes em frente das restantes ofendidas
- Obrigação de andarem com os objectos que partiam junto de si, atados à cintura, durante todo o dia
- Obrigação de transmitirem recados a todas as demais ofendidas e que consistiam no que se tinham esquecido ou que haviam feito mal
- Obrigação de dormir com um saco de garrafas vazias a servir de almofada durante vários meses e de dormir com um saco de folhas de magnólia a server de almofada durante 15 dias
- Obrigação de andar todo o dia com um saco plástico na cabeça a substituir o Lenço
- Obrigação de andar um dia inteiro com dejectos de cão no bolso da bata
- Obrigação de jantar de joelhos no chão e com o prato em cima da mesa
- Obrigação de rezarem o terço às 03h00 da madrugada no interior do quarto de banho de joelhos e ao frio.
312. Bem como os arguidos ( especialmente a arguida MMM, o pdre AA e a arguida CC) proferiam insultos e agressões verbais tais como:
- São um monte de carne
- São um monte de sexo
- São umas inúteis
- São um monte de esterco
- São umas porcas
- São umas mentirosas
- São um monte de merda
- São umas sujas
- Vocês não fazem falta nenhuma
- Vocês não têm educação nenhuma
- Vocês não têm família
- Caras de cú
- Filhas da puta
- A tua mãe é um monstro
- Só ficava satisfeita se um boi de cobrição vos fodesse
313. Não obstante a tudo isto, ainda na vigência destes períodos a ofendida estava:
- privaram as vítimas de cuidados médicos e medicamentosos, os quais praticamente não existiam, mesmo quando eram agredidas e ficavam com feridas sangrantes tinham que se tratar sozinhas e às escondidas, chegando mesmo a colocar terra para assim as estancarem,
- privavam as ofendidas de cuidados de higiene, apenas lhes permitindo um banho semanal, num período de 15 minutos para todas, a quem era permitido fazê-lo, sendo que muitas vezes os castigos passavam pela privação deste banho;
- privavam as ofendidas de alimentação, que, já era em pouca quantidade atenta a carga de trabalho e horas a que estavam sujeitas, sendo que muitos dos castigos passavam também pela privação da alimentação, estando as vítimas ainda sujeitas a dois dias semanais de jejum, às quartas e sextas; privavam as ofendidas das visitas aos seus familiares, visitas essas que apenas ocorriam nos dias de convívios mensais da instituição (segundo domingo de cada mês), alturas em que apenas podiam permanecer com os familiares que aí se deslocavam cerca de 30 minutos a 1h00 e quase sempre acompanhadas por uma das arguidas, sendo que as visitas fora destes dias não eram bem aceites e mesmo que solicitadas muitas vezes não ocorriam dando os arguidos justificações infundadas aos familiares, sendo que as deslocações à casa da família não eram permitidas e apenas ocorreram após a saída da ofendida II, em Novembro de 2015, por ter denunciado tal facto às entidades eclesiásticas;
- privavam as ofendidas de outros tipos de contacto com os familiares, não lhes sendo permitido o uso de telefone da instituição sem autorização expressa (sendo que se fossem apanhadas a usá-lo eram sujeitas a castigos físicos e verbais) e as cartas que escreviam eram sempre sujeitas a leitura prévia por parte da arguida BB;
- privavam as ofendidas de acesso a informação, não lhes sendo permitido ver televisão, nem sequer os noticiários, nunca lhes tendo sido ministrada qualquer informação eclesiástica ou académica adequada; privavam as ofendidas dos seus documentos pessoais e de identificação, sendo que os documentos de todas elas permaneceram sempre na posse dos arguidos, concretamente, da arguida BB e CC;
314. Logravam os arguidos AA, BB, CC e DD impor às ofendidas jornadas diárias de trabalho que chegavam a atingir as 20 horas e que compreendiam a limpeza de toda a casa e divisões que compunham a propriedade da instituição, fazer as refeições, tratar de todos os jardins, cuidar dos animais, plantarem, podarem e abaterem árvores de grande porte, carregarem esteios, carregarem e racharem lenha, carregarem tractores de estrume, lixarem e envernizarem as madeiras, executarem pinturas exteriores, carregarem pedras, construírem muros, substituírem pedras da calçada, cortar o mato, queimar e apanhar folhas e fitas, apanhar pinhas, arrancar silvas, trabalhar na tipografia, imprimindo livros, revistas folhetos, calendários, posters, estampas e postais, tratar dos aviários, entre outras.
315. As tarefas que eram obrigadas a executar eram impostas pela arrguida BB, com conhecimento e aquiescência dos arguidos AA, CC e DD às ofendidas de forma aleatória pelo período de uma semana de acordo com a conveniência dos arguidos e após trocavam de tarefas.
316. A ofendida II e outras ofendidas, por determinação da arguida BB, com cohecimento e aquiescência dos arguidos AA, CC e DD, tiveram de dormir no chão em cima de um colchão com um canídeo que estava doente, o que perdurou durante meses, por vezes apenas logravam uma hora e não tinham qualquer compensação no dia seguinte, tendo de executar todas as tarefas que lhe tinham sido atribuidas.
317. A ofendida II ingressou na instituição em ../../2004, com 15 anos de idade, permanecendo até ao dia 21/22 de Novembro de 2013, altura em que encetou fuga durante a noite.
318. Além de tudo já mencionado,  no período em que permaneceu na instituição foi obrigada a trabalhar pela arguida BB com conhecimento e aquiescência dos arguidos AA, CC e DD por várias horas seguidas por várias horas seguidas, tendo-lhe sido fornecido pouca alimentação, tomava banho uma vez por semana, por vezes de água fria, não lhe foi permitido visitar os seus familiares, foi por várias vezes objecto dos insultos supra descritos, impedida de fazer e receber chamadas telefónicas, impedida de ver televisão e foram-lhe retirados os seus documentos de identificação.
319. Em dia não concretamente apurado do ano de 2005, no momento em que II estava a lavar com a varanda de uma casinha de madeira com uma vassoura e água tocou numa planta.
320. A arguida BB apercebendo-se do sucedido desferiu-lhe uma bofetada, causando-lhe dores.
321. No ano de 2007, quando estava na cozinha, a arguida BB ordenou-lhe que cortasse um frango, porém, a II, fruto da sua ainda tenra idade nunca o tinha feito.Assim, a ofendida pegou numa faca para cortar o frango no entanto sempre que pegasse mal na faca ou fizesse um corte no sítio errado, a arguida desferia-lhe bofetadas, tendo-lhe desferido mais de 10 bofetadas na cara, entortando-lhe a haste dos óculos, pisando-lhe o olho esquerdo e causando- lhe dores.
322. No dia de Natal do ano de 2007, encontrando-se a arguida BB a virar umas postas de bacalhau chamou pela II que não foi de imediato ao seu encontro.Por essa razão, a arguida BB desferiu-lhe vários estalos na face, causando-lhe dores.
323. No ano de 2008, chegou ao conhecimento da arguida BB que II se tinha queixado que nunca comia as alheiras que a sua mãe oferecia. Por essa razão, no dia seguinte, a arguida BB chamou todas as “irmãs” à cozinha, excepto a arguida CC, e agrediu-a com diversas bofetadas na face e com um chinelo nas nádegas, causando-lhe dores.
324. No ano de 2012, dois dias antes do convívio mensal com os familiares, no interior da capela, a arguida BB munida com um chinelo desferiu-lhe com ele na cara da ofendida, provocando-lhe marcas na cara e dores, que a ofendida teve que justificar aos seus familiares como sendo uma alergia.
325. Em dia não concretamente apurado do ano de 2013, II, que estava, naquela semana, responsável pela cozinha, esqueceu-se de que tinha acabado a compota para o pequeno-almoço, facto que não relatou a arguida BB porque esta estava a ver televisão e não permitia que ninguém falasse.No dia seguinte, II relatou tal facto à arguida BB que lhe desferiu quatro bofetadas na face e de seguida disse “ e agora diz lá porque é que eu te bati.”
326. Em 2013, numa altura em que a ofendida estava a lavar a roupa, no tanque, a arguida BB abeirou-se dela e desferiu-lhe vários estalos.
327. Em data não concretamente apurada, por não ter levado uma saia à arguida BB para arrumar, esta obrigou-a a ir de joelhos desde a entrada principal da casa até ao portão, facto que lhe causou quistos nos joelhos.
328. Em data não concretamente apurada, mas situada no período em que permaneceu na instituição, II cortou dois dedos com uma serra no entanto não lhe foi permitido que desinfectasse a ferida e colocasse um curativo, obrigando a arguida BB a colocar terra na ferida para estancar o sangue.
329. Na semana anterior à sua fuga, a propósito de um saco de pães para dar às galinhas e de uma camisa do arguido, objectos que não estariam no sítio correcto segundo a arguida BB, esta encontrando-se com a ofendida numa garagem nova, juntamente com a arguida DD, desferiu na ofendida vários estalos e, em seguida, muniu-se com uma esfregona, de cor ... com cabo metálico e agrediu-a no braço esquerdo, perna esquerda e nádegas, partindo a cabo da esfregona.
330. Simultaneamente, a arguida BB proferia as seguintes expressões “vais fugir como a puta da tua mãe, agora sai e arranja um homem que te parta o focinho, se quiseres sai também do convento”.
331. Em consequência de tal conduta, a ofendida sofreu hematomas e dores não lhe foi administrado qualquer medicamento.
332. No período em que a ofendida permaneceu na instituição, foi agredida física e verbalmente e castigada pelos arguidos AA, BB, CC e DD, com uma frequência praticamente diária, puxões de cabelo, com pancadas com vários objectos e foi objecto dos referidos insultos e castigos.
333. Todas as ofendidas face à conduta dos arguidos ficavam totalmente subjugadas, pelo temor, às suas vontades quer pelas ofensas fisicas e verbais e castigos de que eram vitimas quer pelo clima de terror e rigor espiritual que lhes era imposto.
334. Deste modo os arguidos, com as referidas condutas logravam que as ofendidas executassem, por temor, todos os trabalhos necessários para o normal funcionamento da instituição, sem qualquer contrapartida material e espiritual que desejavam, com uma completa relação de domínio sobre as ofendidas, que vivenciavam um permanente “regime de medo”, não tendo poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho.
335. Os arguidos AA, BB, CC e DD sujeitaram as ofendidas a trabalhos que eles não queriam executar, mediante a prática dos supra descritos insultos, agressões e castigos, como se tratassem de propriedade sua, com total desumanização das ofendidas e limitação da sua liberdade de movimentos.
336. As ofendidas viram-se coarctadas na sua liberdade de autodeterminação, nomeadamente, em abandonar a instituição ou em não proceder conforme lhes era ordenado pelos arguidos AA, BB, CC e DD face ao poder que estes tinham na instituição e com receio de retaliações dos arguidos.
337. A ofendida não teve qualquer poder de decisão sobre o número de horas de trabalho que tinha de prestar (chegou a trabalhar 18 horas diárias) e, por outro, não dispôs de qualquer parte da retribuição pelos serviços prestados.
338. Os arguidos apropriavam-se da mão de obra, sem dar qualquer remuneração devida às ofendidas, apenas lhes “pagando” com agressões, fome, medo, maus tratos, entre outros.
339. Acresce que, as ofendidas estavam supridas da sua liberdade pessoal uma vez que lhes tinham retirado a sua documentação, não podiam estar sozinhas com a Família para não contarem o que ocorria naquele espaço, não falavam ao telefone.
340. As ofendidas por vezes estavam de castigo e não tinham direito a servir-se da casa de banho para fazerem as suas necessidades, tendo de ir «ao jardim» e apenas podendo tomar banho numa vez por semana e se estivessem de castigo tomavam ao fim de 15 dias.
341. As ofendidas foram sujeitas a trabalhos forçados, como rachar lenha, abater árvores, limpar galinheiros, encher e carregar baldes de estrume, trabalhar na tipografia, plantar relva, cavar os terrenos, etc.
342. Foram tratadas de forma degradante e desumana.
343. A ofendida trabalhou todos os dias, de segunda-feira a domingo, cerca de 18horas diárias, sem gozar um dia de “folga”.
344. Os arguidos não pagaram à ofendida qualquer retribuição, nem horas extras, nem feriados, nem descontos para a segurança social, nem direito a remuneração a título de trabalho suplementar prestado em dia de descanso obrigatório e complementar, nem o direito ao pagamento de dois dias de descanso compensatório remunerado por cada semana, que não gozou, nem lhe foram pagos o valor da retribuição horária com acréscimos legais, devidos legalmente pela prestação do trabalho suplementar.
345. Também não lhe foram pagos o subsídio de férias e de Natal, durante a vigência deste período, de 9 anos e 3 meses de trabalho.
346. A assistente/ ofendida foi injuriada, maltratada, flagelada pelos arguidos.
347. Sentiu-se humilhada e vexada, sofrida, com dores, privada da sua liberdade, dos seus documentos, deprimida, sentimento de perda da dignidade pessoal e desrespeito de que foi vitima.
348. O bom-nome, a dignidade e a consideração da assistente foram severamente ofendidos pelos arguidos.
349. Atentaram contra a sua integridade física e psíquica, lesando a sua dignidade pessoal, fazendo-a temer pela sua integridade física, bem como a dos seus familiares.
350. Perante tais factos, a Ofendida sentiu-se bastante nervosa e ansiosa, tendo mesmo encetado a sua fuga num acto de desespero.
351. Sofreu a angústia e temor pela sua integridade física, bem como se sentiu aniquilada no seu desenvolvimento pessoal, nas suas relações sociais, bem como no seu desenvolvimento escolar e familiar.

FACTOS ORIUNDOS DO PEDIDO CÍVEL DA HH

352. A ofendida ingressou na instituição aos 15 anos de idade.
353. Visava então, apesar da pouca maturidade que tal idade comporta, prosseguir a vocação de se dedicar aos ensinamentos da Igreja católica, designadamente, ordenar-se freira.
354. A ofendida/demandada sofreu efetivamente as agressões, privações e humilhações descritas na douta acusação pública.
355. Da memória que vai retendo, pois muito do que lhe aconteceu acabou por ser traumático, provocando uma pequena amnésia dissociativa,  
356. Com tais comportamentos os arguidos provocaram dores físicas e severos danos psicológicos na ofendida.
357. A qual, juntamente com as outras, era impedida, mediante ameaças, de contar a quem quer que fosse, o sofrimento e a humilhação que foi obrigada a suportar.
358. É que, infelizmente, seja em razão da idade, seja em razão das origens humildes, a ofendida, durante muito tempo, foi convencida que tais agressões e humilhações eram “provas” que tinha de prestar para ser digna de uma vocação católica.
359. Pelo menos, tal era o que incessantemente lhe era incutido, designadamente e, mais vincadamente, pelos arguidos.
360. O terror e medo sentido pela ofendida constrangia-a a suportar, mês após mês, ano após ano, todas as agressões, insultos e humilhações perpetuadas pela arguida/demandada.
361. Os arguidos/demandados exerciam um “direito de propriedade” sobre a ofendida recorrendo a castigos ou a ameaças da sua prática.
362. Durante todo o descrito período a ofendida vivenciou uma verdadeira situação de desumanização e limitação da liberdade de movimentos.
363. Com os atos e comportamentos praticados pelos arguidos/demandados, melhor descritos na acusação pública, a ofendida viu ser-lhe destruída a dignidade e a personalidade humana.
364. Tratou-se, para além de todo o mais, de um verdadeiro “homicídio” moral, que comportou a liberdade de movimentos, dependência económica, sustento alimentar e demais necessidades básicas, que ficaram sob o domínio dos arguidos/demandados.
365. Com aqueles comportamentos, os arguidos/demandados reduziram a ofendida a um estado de passividade idêntica àqueles que vivem em cativeiro, a que acresciam os maus-tratos, a carência de alimentos, coação e ameaças.
366. A ofendida, além de enganada desde o início quanto à promessa de integrar uma comunidade espiritual pura, verdadeira e piedosa, de ser consagrada aos olhos da Igreja católica, viu-se depois privada de toda a dignidade humana, sem autonomia nem poder sobre a sua própria pessoa.
367. Aproveitando os arguidos a circunstância de aquela já se encontrar fragilizada pela própria condição humilde, pela jovem idade e o facto de estar longe da sua família.
368. A ofendida, juntamente com as demais ofendidas, temendo pela sua integridade física e vida, em geral, não apresentavam queixa às entidades policiais competentes, nem denunciavam a descrita situação.
369. Resignadamente, pelo medo e receio de poder vir a sofrer represálias por parte dos arguidos.
370. Eram privadas de água e comida, bem como da possibilidade de  realizarem a sua higiene.
371. Ou seja, e em resumo, a ofendida foi reduzida a uma coisa e colocada num estado de sujeição total.
372. As condutas dos arguidos/demandados levaram-na a temer pela sua integridade física e até pela sua vida, agindo com o propósito de a tolher e de a amedrontar, obstaculizando a sua liberdade de movimentos.
373. A Ofendida naquela altura, atendendo às condutas agressivas dos arguidos, temendo pela sua segurança e completamente em pânico, foi constrangida a suportar tais agressões.
374. Foram vinte e cinco anos – de 1990 a 2015 – de sofrimento, humilhações, vergonhas, desonras e agressões.
375. Tendo-se sentido a ofendida, por tudo isso, muito magoada e profundamente desrespeitada e humilhada.
376. Tal como suportou ao longo de vários dias, meses e anos, as dores das agressões – físicas e psicológicas - de que foi vitima.
377. De igual modo sentiu-se e sente-se a ofendida injustiçada e deveras angustiada.
378. Não descansa, nem repousa o suficiente, sendo que tais atos se repercutiram e ainda se repercutem, na sua vida pessoal.
379º Alterando assim o “modus vivendi” do própria ofendida, se comparado com o anterior à data da prática dos factos descritos.
380º O que necessariamente lhe causou e causa grande transtorno e frustração, constituindo causa adequada a abatimento e sofrimento psicológico.
381º Tanto mais que a ofendida é pessoa pacífica, cumpridora dos seus direitos e deveres enquanto cidadã, e bem vista na comunidade com que se relaciona, zelando e diligenciando por essa imagem no seu quotidiano.
382º  Perturbaram assim os Arguidos, o inalienável direito ao repouso e descanso que qualquer cidadão tem, e em particular, a ofendida e a sua família.

FACTOS ORIUNDOS DO PEDIDO CÍVEL DA JJ

383. A ofendida ingressou na institução no ano de 2012.
384. Na altura, quando ingressou na Fraternidade, seria por um curto periodo de tempo, nunca pensando que permaneceria por dois anos sensivelmente.
385. A ofendida ingressou na instituição no intuito de efetuar um retiro espiritual, nunca imaginando que iria passar por um inferno fisico, psiquico, espiritual, perpetuado por pessoas que se mostravam como sendo ligadas a Deus e à religião.
386. Quando chegou à Fraternidade, foi muito bem acolhida pelas supostas irmãs, que solicitaram à Ofendida lhe entregasse toda a documentação e viagens aéreas, alegando que todos os documentos ficariam protegidos aos pés de virgem Maria.
387. Realmente estes foram lá colocados no dia em que a Ofendida deu entrada na Fraternidade, mas sem que esta se tivesse apercebido, no dia seguinte desapareceram.
388. No primeiro dia em que entrou na Fraternidade foi levada para um quarto onde tinha todas as comodidades, levando-a a crer que seria ali que iria passar momentos de repouso e descanso.
389. No dia seguinte, a ofendida foi transferida para um outro quarto que era partilhado com outras raparigas.
390. A partir desse dia, a ofendida passou a sofrer maus tratos fisicos e psicológicos perpetrados pelos arguidos, sendo a arguida BB quem mais demonstrava “prazer” na aplicação dos mesmos.
391. A ofendida sofreu as seguintes ofensas, perpetradas principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuencia dos restantes arguidos que manifestavam o seu acordo, como bufetadas, murros, pontapés, puxões de cabelo, pancadas com enxadas, ancinho, ferros, mangueira, paus, vassouras, chinelos, sapatos e com um chicote com corda.
392. Os arguidos ao levarem a cabo estas agressões, faziam-no como sendo a aplicação de disciplina.
393. Obrigavam também estes a que as ofendidas se agredissem a elas próprias.
394. A arguida BB com conhecimento e aquiescência dos demais, impunha ainda castigos nas ofendidas que consistiam em:
- Proibição de tomarem o pequeno-almoço;
- Proibição de tomarem banho durante vários dias e até semanas,
- Proibição de beberem água durante todo o dia no verão quanto estavam a trabalhar ao sol durante várias horas
- Proibição de usarem roupa interior durante vários dias e mesmo semanas, factos que ocorreu por diversas vezes
- Obrigação de se despirem e de permanecerem nuas em frente umas das outras na capela da clausura
- Obrigação de se despirem e permanecerem deitadas nuas no jardim da Instituição
- Obrigação de dormirem no chão durante várias noites e, por vezes, meses, na companhia de um cão, mesmo encontrando-se doentes
-Obrigação de permanecerem de joelhos com as mãos debaixo dos mesmos ou com os braços esticados em cruz ao lado do tronco durante várias horas;
- Obrigação de permanecerem fechadas numa determinada dependência
- Obrigação de se autoflagelarem com recurso ao referido chicote, muitas vezes em frente das restantes ofendidas
- Obrigação de andarem com os objectos que partiam junto de si, atados à cintura, durante todo o dia
- Obrigação de transmitirem recados a todas as demais ofendidas e que consistiam no que se tinham esquecido ou que haviam feito mal
- Obrigação de dormir com um saco de garrafas vazias a servir de almofada durante vários meses e de dormir com um saco de folhas de magnólia a server de almofada durante 15 dias
- Obrigação de andar todo o dia com um saco plástico na cabeça a substituir o Lenço
- Obrigação de andar um dia inteiro com dejectos de cão no bolso da bata
- Obrigação de jantar de joelhos no chão e com o prato em cima da mesa
- Obrigação de rezarem o terço às 03h00 da madrugada no interior do quarto de banho de joelhos e ao frio.
395. Bem como os arguidos ( especialmente a arguida MMM, o pdre AA e a arguida CC) proferiam insultos e agressões verbais tais como:
- São um monte de carne
- São um monte de sexo
- São umas inúteis
- São um monte de esterco
- São umas porcas
- São umas mentirosas
- São um monte de merda
- São umas sujas
- Vocês não fazem falta nenhuma
- Vocês não têm educação nenhuma
- Vocês não têm família
- Caras de cú
- Filhas da puta
- A tua mãe é um monstro
- Só ficava satisfeita se um boi de cobrição vos fodesse
396. Não obstante a tudo isto, ainda na vigência destes períodos a ofendida estava:
- privaram as vítimas de cuidados médicos e medicamentosos, os quais praticamente não existiam, mesmo quando eram agredidas e ficavam com feridas sangrantes tinham que se tratar sozinhas e às escondidas, chegando mesmo a colocar terra para assim as estancarem,
- privavam as ofendidas de cuidados de higiene, apenas lhes permitindo um banho semanal, num período de 15 minutos para todas, a quem era permitido fazê-lo, sendo que muitas vezes os castigos passavam pela privação deste banho;
- privavam as ofendidas de alimentação, que, já era em pouca quantidade atenta a carga de trabalho e horas a que estavam sujeitas, sendo que muitos dos castigos passavam também pela privação da alimentação, estando as vítimas ainda sujeitas a dois dias semanais de jejum, às quartas e sextas; privavam as ofendidas das visitas aos seus familiares, visitas essas que apenas ocorriam nos dias de convívios mensais da instituição (segundo domingo de cada mês), alturas em que apenas podiam permanecer com os familiares que aí se deslocavam cerca de 30 minutos a 1h00 e quase sempre acompanhadas por uma das arguidas, sendo que as visitas fora destes dias não eram bem aceites e mesmo que solicitadas muitas vezes não ocorriam dando os arguidos justificações infundadas aos familiares, sendo que as deslocações à casa da família não eram permitidas e apenas ocorreram após a saída da ofendida II, em Novembro de 2015, por ter denunciado tal facto às entidades eclesiásticas;
- privavam as ofendidas de outros tipos de contacto com os familiares, não lhes sendo permitido o uso de telefone da instituição sem autorização expressa (sendo que se fossem apanhadas a usá-lo eram sujeitas a castigos físicos e verbais) e as cartas que escreviam eram sempre sujeitas a leitura prévia por parte da arguida BB;
- privavam as ofendidas de acesso a informação, não lhes sendo permitido ver televisão, nem sequer os noticiários, nunca lhes tendo sido ministrada qualquer informação eclesiástica ou académica adequada;
- privavam as ofendidas dos seus documentos pessoais e de identificação, sendo que os documentos de todas elas permaneceram sempre na posse dos arguidos, concretamente, da arguida BB e CC;
397. Sendo os arguidos os supostos representantes de Deus na terra, pelo menos era assim que se apresentavam, estes apresentavam um Deus completamente diferente  do que era hábito na religião cristã, um deus opressor, castigador, que a iria oprimir e que iria mandá-la para o inferno, caso esta não fizesse o que estes diziam.
398. Não bastando o terror perpetrado a ofendida BB, aos Domingos, com o conhecimento e anuencia dos demais, lia à ofendida um livro que relatava passagens de pessoas que tinham saido dos conventos e que passado pouco tempo tinham sido condenadas, referindo que tinham acontecido desgraças.
399. Desta forma, a ofendida ficava pririoneira dos arguidos e à mercê dos maus tratos destes, continuando os mesmos a impor à ofendida jornadas diárias de trabalho, que chegavam a atingir as 20 horas e que compreendiam a limpeza de toda a casa e divisões que compunham a propriedade da instituição, fazer as refeições, tratar de todos os jardins, cuidar dos animais, plantarem, podarem e abaterem árvores de grande porte, carregarem esteios, carregarem e racharem lenha, carregarem tractores de estrume, lixarem e envernizarem as madeiras, executarem pinturas exteriores, carregarem pedras, construírem muros, substituírem pedras da calçada, cortar o mato, queimar e apanhar folhas e fitas, apanhar pinhas, arrancar silvas, trabalhar na tipografia, imprimindo livros, revistas folhetos, calendários, posters, estampas e postais, tratar dos aviários, entre outras.
400. A arguida sofreu, no periodo que media entre Junho de 2005 e 6 de janeiro de 2007, agressões fisicas e verbais levadas a cabo pelos arguidos.
401. Essas agressões eram diárias, sendo a arguida BB quem mais as praticava, como por exemplo puxões de cabelo, pancadas com vários objetos, insultos, castigos com conhecimento e anuencia dos demais.
402. Devido a estes maus tratos a ofendida sofreu um depressão, tendo necessidade de ser internada na casa ..., pelo periodo de um mês e um dia.
403. Após esse tempo, esta teve alta, estando até à presente data a ser acompanhada por um psicólogo de nome Dr. NNN, que trabaha no Hospital ....
404. A arguida tem necessidade de tomar fármacos, de forma a minimizar os estragos que os arguidos causaram à sua vida e ao seu bom  nome.
405. A ofendida sofreu dores fisicas, enorme vergonha, humilhação, vexame, marcas psicologicas para a vida toda;
406. A ofendida é uma jovem, com duas filhas menores para criar e, mecê da atuação dos arguidos, ainda hoje a ofendida necessita de acompanhamento médico, medicamentoso para poder ter uma dia a dia normal.
407. A ofendida sempre foi uma pessoa de bm trato, apaziguadora, cama, incapaz de agredir verbal ou fisicamente  quem quer que fosse, no entanto sofreu no seu corpo e sua mente agressões barbaras, levadas a cabo por quem se fizia fiel a Deus.
408. Os arguidos agiram livre e conscietemente, com o manifesto propósito de molestar o corpo e mente da ofendida.

FACTOS RELATIVOS AO PEDIDO CÍVEL DE HERDEIROS DE MM

409. Conforme resulta dos autos, a infortunada MM faleceu no já longínquo dia ../../2004;
410. E falecida não deixou quaisquer descendentes, nem ascendentes, nem testamento ou qualquer outra disposição de vontade;
411. Tendo-lhe sucedido apenas os seus irmãos oras demandantes melhor supra identificados nos itens 1 a 9 do PIC;
412. E os seus sobrinhos melhor identificados nos respetivos itens 10 e 11, do PIC, filhos do seu irmão pré-falecido  OOO;
413. E os seus sobrinhos melhor identificados nos respetivos itens 13 e 14 do PIC, filhos da sua irmã PPP, entretanto, falecida, bem como o seu cunhado (viúvo desta última) supra identificado no item 12;
414. Ora, foi exclusivamente por razões estritamente religiosas, espirituais e de fé que a falecida MM procurou e permaneceu no seio da Fraternidade;
415. E acatou a orientação e as ordens e instruções de todos os arguidos aqui demandados;
416. Na verdade, não fora a sua estreita ligação à igreja católica e á Arquidiocese ... e a infortunada MM jamais se teria sujeitado a tão indigna humilhação, violência, privação e exploração;  
417. Sucede que, na sequência dos permanentes maltratos e humilhação de que foi vitima durante mais de 20 anos, a infortunada MM entrou progressivamente num estado de depressão profunda de tal gravidade que a levou a suicidar-se por afogamento num tanque existente no interior das instalações da instituição;
418. E não só sofreu durante os próprios atos as dores e o mal estar decorrentes das violentas e cobardes agressões que lhe foram infligidas pelos demandados,
419. Como teve, ainda, de suportar durante mais de 20 anos (até á sua morte) um permanente sentimento de indisposição, aborrecimento, subjugação, revolta e terror na sequência das brutais agressões de que era vitima por parte dos demandados e das suas ameaças constantes;
420. Bem como, pelo facto de ter visto permanentemente coartada a sua liberdade de autodeterminação e a exploração gratuita do seu trabalho;
421. Ora, para além de ter visto a sua imagem desrespeitada, o ora demandante sentiu-se ainda profundamente aterrorizada, chocada, desgostosa e revoltada pela forma violenta, injustificada, cobarde e desumana como os demandados a agrediram física, verbal e psicologicamente.
422. De tudo resultando, de forma permanente e continuada, grande medo, sofrimento, humilhação,  incómodos, preocupações, canseiras e arrelias que a falecida não teria tido se não fosse o comportamento gravemente ilícito dos demandados.
423. Com a agravante de que a infortunada MM ficou de tal forma traumatizada e aterrorizada que acabou por se suicidar para, dessa forma,  nunca mais vir a ser importunada e agredida pelos demandados;
424. Acresce que, os demandantes sofreram eles próprios um grande desgosto pelo que sucedeu à falecida, nomeadamente a sua morte,
425. E sentiram ainda um forte sentimento de culpa por nada terem feito para proteger aquele seu ente querido que ficou totalmente à mercê dos monstruosos caprichos dos demandados;
426. Por outro lado, durante os (pelo menos) 20 anos que a mesma permaneceu no seio da Fraternidade, os demandados impuseram à falecida MM jornada diárias de 20 horas de trabalho e que compreendiam a limpeza de todas as divisões que integram as instalações da instituição em causa, a confeção das refeições, o arranjo dos jardins, cuidar dos animais,
427. Bem como, todas as demais tarefas necessárias ao normal funcionamento e manutenção da dita instituição;
428. Jornada essas, que eram executadas durante 7 dias por semana, sem qualquer dia de descanso semanal, sem feriados e sem férias;   
429. Tendo todos os demandados, sem exceção, beneficiado da mão de obra que lhes foi gratuitamente prestada pela falecida MM e que eles próprios impuseram a esta;
430. Contudo, os demandados não pagaram à falecida MM um único escudo (nem um único cêntimo a partir 1/1/2002); 
431. Os demandados se demitiram conscientemente do seu dever de vigilância relativamente à instituição arguida (Centro Social de Apoio e Orientação ...);
432. E fizeram-no mesmo perante as numerosas e sucessivas queixas e denúncias recebidas quer por parte das próprias vitimas, quer dos seus familiares;
433. Nada tendo feito, em tempo útil, para impedir e/ou interromper os atos ilícitos dos demais demandados;
434. Por ter sido totalmente subjugada e privada da liberdade por parte dos arguidos;
***

2.c) FACTOS ORIUNDOS DOS RELATÓRIOS SOCIAIS

435. Do relatório social da arguida BB, de fls. 1732 e ss consta:
..., ..., onde a sua ascendência familiar se encontra enraizada, BB é proveniente de um numeroso agregado de inserção rural e modesta condição socioeconómica, sendo a primogénita de dez irmãos. O progenitor, operário numa fábrica de tapetes da localidade e coveiro da freguesia, foi o principal responsável pelos recursos económicos do agregado, dedicando-se também à manufatura de cestos, nos horários extralaborais. Com padrões de funcionamento familiar alicerçados em valores tradicionais, a organização doméstica e o acompanhamento educativo dos filhos eram domínios da responsabilidade materna que, em paralelo, realizava trabalhos de costura, contribuindo desta forma para os rendimentos familiares. Quanto ao nível de qualidade de vida e conforto económico é mencionada uma situação restritiva de austeridade.
No sistema de ensino, que refere ter frequentado até cerca dos 11 anos de idade, BB habilitou-se com os quatro anos de escolaridade obrigatória, à época. Diz ter concluído o 6º ano de escolaridade, já em idade adulta, sendo confusa e imprecisa a informação fornecida a este respeito, não sabendo indicar o momento nem o contexto.
A partir dos 11 anos de idade, interrompeu a escolarização e o seu quotidiano ficou mais circunscrito ao universo familiar e comunidade circunvizinha, coadjuvando a progenitora nas tarefas domésticas e na assistência aos irmãos.
Sendo o progenitor sacristão da paróquia local, a ligação de BB à igreja católica, surge na continuidade da pertença familiar e persistiu para lá da infância, enquadrando o seu processo de socialização. Integrou o grupo de jovens da paróquia, participando nas atividades organizadas nesse contexto, nomeadamente no grupo coral e no serviço de catequese.
BB sublinha a ligação privilegiada ao progenitor e apresenta uma imagem ideal e idolatrada da figura paterna. Afirma ter boas recordações da sua infância e juventude, assim como do seu quadro familiar de origem, aludindo ter sido exposta a práticas educativas, em que o castigo/agressão física era habitual, tanto no contexto familiar como escolar.
Tinha 21 anos de idade quando se autonomizou da família de origem, tendo então aderido à Fraternidade Missionária ..., na sequência da participação num “curso de orientação para a vida”, tal como é designado pela própria, tratando-se de jornadas nacionais ou “retiro” de divulgação desta associação de fiéis, junto de população jovem. Para BB, este foi um momento de revelação e descoberta da vocação pessoal para a vida religiosa e para a caridade.
Durante cerca de três anos permaneceu em Lisboa, em coabitação junto de outros elementos da associação, cujos rendimentos eram provenientes dos trabalhos prestados por cada um, habitualmente na realização de serviços domésticos, nomeadamente de limpeza, para particulares. Foi neste contexto que se estabeleceu e desenvolveu a ligação entre BB e os coarguidos, que a partir de dezembro de 1974 obtiveram alojamento numa habitação, situada no ... e cedida pela Diocese ....
Refira-se que a Fraternidade Missionária ... não foi reconhecida pela hierarquia da Igreja Católica e, como tal, nunca lhe foi atribuído o estatuto de congregação religiosa, sendo considerada uma associação de fiéis.
BB e coarguidos constituíram o Centro Social de Apoio e Orientação ... e foram os responsáveis e os gestores desta instituição particular de solidariedade social, em funcionamento há cerca de 30 anos, em ..., .... BB ocupava a terceira posição na hierarquia, conforme à ordem de entrada na associação de fiéis, ocupando-se sobretudo dos assuntos mais práticos da organização e funcionamento institucional.
O imóvel foi adquirido pela Fraternidade Missionária ..., representada pelos arguidos, e as diversas instalações foram progressivamente construídas, remodeladas e adaptadas pelos próprios arguidos, pelas utentes do Centro Social, com a colaboração regular de voluntários, exteriores à organização religiosa. Para além dos donativos, os rendimentos económicos eram provenientes dos trabalhos produzidos na tipografia, sendo referidas publicações de divulgação missionária e encomendas exteriores à organização. Dispunham ainda de meios próprios de subsistência, provenientes da produção hortícola e avícola para consumo interno.
O quotidiano dos residentes era organizado em função das exigências de trabalho, na limpeza e organização doméstica, na tipografia, na horta e aviário e nos jardins, sendo igualmente ritmado pelos diversos momentos de oração e rotinas de doutrinamento.
A instituição integrava uma população volúvel de adolescentes e jovens do género feminino, de nível etário e proveniência diversificados, habitualmente com baixos níveis de escolarização, algumas em situação de rotura ou disfuncionalidade familiar e de exclusão social, e possivelmente, em circunstâncias de indefinição pessoal ou de crise de identidade.
BB sempre manteve contactos regulares com a sua família de origem, que visitava habitualmente acompanhada por um dos coarguidos, recebendo igualmente visitas dos progenitores e irmãos no Centro Social.
Excluída do Centro Social, em novembro-2015, BB ficou desprovida de rendimentos próprios e de meios de subsistência. Regressou ao seu quadro sociofamiliar de origem, em ..., ... e passou a residir sozinha no endereço indicado nos autos, naquela que foi a morada de família, uma moradia de dois pisos, entretanto herdada por uma das suas irmãs.
BB coadjuvou esta irmã na prestação de cuidados e assistência à progenitora, que tinha então 90 anos de idade, sendo igualmente cuidadora de uma tia paterna, junto da qual passou a coabitar em agosto-2018, na sequência do óbito da progenitora. Entretanto, a tia faleceu em janeiro-2021 e a arguida permanece na habitação, herdada pelos primos e também situada na Rua ..., com o Número de Policia ...01.
Esta situação habitacional é transitória, tendo BB solicitado a atribuição de habitação camarária.
Dispõe agora de uma pensão de velhice, com uma prestação mensal na ordem dos 400 euros.
Apresenta problemas de saúde, do foro oncológico, diagnosticados há cerca de dois anos, e mantém acompanhamento clínico regular, no Instituto Português de Oncologia do Porto.
Na área de inserção habitacional, atual ou à data dos factos, a imagem social da arguida está associada à pertença familiar e à vocação e percurso religioso, sendo referida uma inserção ajustada, adequação nas interações pessoais e relações de vizinhança, isenta de conflitos ou perturbações. BB sente-se estimada e bem acolhida no seu quadro sociofamiliar de origem.
Com a notícia dos factos e a intervenção dos órgãos de polícia criminal no âmbito dos presentes autos, BB foi desde logo afastada das instalações do Centro Social, erigido como seu habitat durante cerca de 26 anos, resultando fraturados os vínculos e as condições de estabilidade conquistados. Foi também intimada pela hierarquia eclesial, para retirar o hábito de freira, confrontando-se com a perda das condições materiais de vida, do seu estatuto social e dos símbolos da sua identidade.
Considerando ter sido lesada na sua imagem e credibilidade pessoal, BB manifesta sentimentos de surpresa, mágoa e desgosto pessoal face ao seu estatuto de arguida, transparecendo o impacto emocional da situação jurídico-penal, cujo desfecho aguarda com ansiedade, não antecipando a hipótese de condenação.
A notícia do atual processo e da situação jurídico-penal constituiu uma surpresa, sendo encarado com incredulidade, na sua área de proveniência sociofamiliar, como no seu contexto habitacional, à data dos factos. BB continua a usufruir da retaguarda, confiança e solidariedade do seu quadro sociofamiliar, mantendo-se ligada à rede comunitária local, onde não foram identificadas atitudes de rejeição ou animosidade face à pessoa da arguida.
Proveniente de uma família numerosa, de modesta condição social e inserção rural, BB completou os quatro anos de escolarização obrigatória, de acordo com o sistema de ensino da época. Depois, e durante cerca de dez anos, o seu quotidiano ficou mais circunscrito ao universo familiar e comunidade circunvizinha, coadjuvando a progenitora nas tarefas domésticas e na assistência aos irmãos.
Transmitida pelos progenitores, a ligação à igreja católica foi determinante no seu percurso que, a partir dos 21 anos de idade, teve como enquadramento a associação de fiéis Fraternidade Missionária ... e o Centro Social de Apoio e Orientação ..., que constituiu e dirigiu, em colaboração com os coarguidos.
Com um percurso atípico, durante cerca de 44 anos, BB viveu em contexto protegido e retirado da sociedade organizada, em que, para além das rotinas de oração, lhe foram maioritariamente solicitadas aptidões manuais, de caráter indiferenciado e pendor doméstico e a sua experiência de trabalho nunca evoluiu para uma situação de emprego convencional ou formal.
Na sequência dos factos que estão na origem dos presentes autos, foi excluída do centro social e regressou ao seu quadro sociofamiliar de origem, confrontando-se com a perda das anteriores condições materiais de vida, do seu estatuto social e dos símbolos da sua identidade. Agora com 71 anos de idade, BB reside sozinha, está reformada e apresenta problemas de saúde do foro oncológico”.

436. Do relatório social da arguida CC, de fls. 1738 e ss, consta:
“CC é a terceira de quatro irmãs e aos dezoito meses de vida ficou órfã de mãe, que faleceu no parto da irmã mais nova. Neste contexto, uma tia paterna passou a integrar o agregado para apoiar o pai da arguida na prestação de cuidados às descendentes; à data, a irmã mais velha de CC tinha 6 anos de idade. Aproximadamente um ano depois, o pai contraiu matrimónio com uma tia materna da arguida e, segundo esta, a relação da tia/madrasta em relação às sobrinhas/enteadas não se pautava pelo afeto.
A arguida ingressou no sistema de ensino em idade própria que frequentou até à então 6ª classe, com o apoio económico do proprietário da quinta na qual o pai era feitor, sobretudo da 3ª à 5ª classe.
Frequentou e concluiu a 6ª classe no ..., no Porto.
Com cerca de 17 anos de idade CC, que já não integrava a família de origem pelo facto de ter ido estudar para o Porto e depois trabalhar em ..., participou num retiro espiritual dinamizado pelo Pe. AA, co-arguido no presente processo judicial. Regressou a casa por ser ainda menor de idade e, conjuntamente com algumas das participantes naquele retiro, aos 18/ 19 anos, foi para a ..., passando a colaborar com o arguido na organização de retiros, nomeadamente em ..., ....
Posteriormente arrendaram uma casa em Lisboa e após o 25 de abril de 1974 CC e a restante comunidade de fiéis católicas foram viver para ..., numa casa arrendada através do Arcebispado de ..., onde criaram uma tipografia cuja atividade ficou a cargo de CC. Cerca de sete anos depois, e segundo a própria, com o apoio de benfeitores, a “Fraternidade Missionária ...”, organização religiosa de que faz parte, adquiriu um terreno em ..., ... e, em 1985, fundou o Centro Social de Apoio e Orientação ....
Ao nível laboral CC começou a trabalhar aproximadamente aos 17 anos de idade, como professora da então 4ª classe, no Colégio ..., em ..., e posteriormente, quando permaneceu em Lisboa, foi 3ª Oficial no Ministério da Economia.
Há cerca de 45 anos a arguida começou a trabalhar como compositora na tipografia da congregação de fiéis a que pertence.
Desde aproximadamente há 30 anos a arguida tem problemas oncológicos, tendo sido sujeita a tratamentos de quimioterapia, que, entretanto, abandonou por considerar que eram fisicamente agressivos. No entanto mantém o acompanhamento médico e medicamentoso no Centro Hospitalar ..., no Porto.
À data dos factos, CC integrava a comunidade “Fraternidade Missionária ...”, contexto que mantém, sendo manifesto o sentimento de pertença àquela instituição e às atividades desenvolvidas pela mesma, designadamente as de cariz social e religioso junto de jovens e da população reclusa, que, com a vigência do presente processo judicial estão suspensas. A instituição está sedeada em ..., inserida num terreno de 4 hectares e dispõe de espaços residenciais e outros destinados a eventos religiosos. Aquela comunidade é constituída por mais três fiéis consagradas, uma delas co-arguida no presente processo, e o sacerdote, também co-arguido.
A arguida mantém contactos com a irmã mais nova, que a visita com alguma regularidade, sendo a relação de ambas descrita como de afeto e apoio mútuo.
A subsistência de CC e da comunidade religiosa a que pertence é assegurada pelos donativos, em dinheiro e géneros, dos benfeitores, da agricultura de subsistência praticada por alguns elementos da instituição e da atividade religiosa desenvolvida, designadamente a venda da revista mensal e livros que são compostos e impressos na tipografia da instituição.
CC, assim como a organização religiosa de que faz parte, goza de boa imagem no meio social de inserção. A arguida ocupa o tempo em tarefas relacionadas com a tipografia e em oração, comunitária e individual.
A presente situação juridico-penal não teve repercussões na imagem que CC tem na comunidade de inserção. Paralelamente, não se constituiu como constrangimento à manutenção do apoio que beneficia dos elementos da comunidade a que pertence e da família.
Em termos pessoais, a atual situação judicial, a primeira com que se confronta no seu percurso de vida, tem sido vivenciada com preocupação e tristeza, não só pelo contacto com o sistema de administração da justiça penal, mas também por dizer respeito à Obra que ajudou a construir e à qual tem dedicado a sua vida, e ter limitado a ação junto da população reclusa e dos jovens.
CC verbaliza sentido critico relativamente a atos de natureza idêntica aos que constam na acusação e reconhece em abstrato a sua ilicitude, bem como a existência de eventuais vítimas. Está disponível para aceitar a intervenção do sistema legal.
O percurso de vida de CC decorreu, sobretudo a partir da adolescência, em contextos associados à religião e atividades religiosas, com vivência em comunidade constituída por fiéis consagrados, relativamente à qual evidencia sentimento de pertença, identificando-se com as atividades desenvolvidas pela mesma.
A arguida mantém contacto com família de origem, fundamentalmente com uma irmã, registando há vários anos problemas de saúde, sendo alvo de acompanhamento médico.
CC projeta uma imagem social positiva, que não foi prejudicada pelo atual confronto judicial, face ao qual manifesta tristeza sobretudo por envolver a instituição à qual tem dedicado em exclusivo a sua vida.
Na eventualidade de CC ser condenada afigura-se-nos que a arguida deverá interiorizar o desvalor da conduta criminal, bem como os danos provocados nas vitimas e a necessidade do respeito por valores fundamentais como a liberdade pessoal.

437. Do Relatório social da arguida DD, de fls. 1725 e ss, consta:
“DD provém de uma família de parcos recursos económicos, constituída pelos progenitores, jornaleiros agrícolas e sete descendentes, sendo a arguida uma das descendentes mais novas. O pai faleceu quando a arguida tinha dois anos, acentuando-se a fragilidade económica do agregado. Não obstante as dificuldades, DD descreve a progenitora como uma figura importante no seu processo educativo, pautado pelos valores tradicionais e que conseguiu suprir a ausência da outra figura parental.  A dinâmica familiar foi descrita como positiva e de relacionamento adequado entre os diferentes membros.
Frequentou a escola em idade própria tendo concluído o 4º ano. O seu percurso é descrito como normativo e com um aproveitamento positivo, sem registo de retenções.
Quando terminou a escola, DD passou cerca de um ano na casa de uma tia viúva, ajudando-a e fazendo-lhe companhia, antes de começar a trabalhar como empregada doméstica. Depois de cinco anos nesta atividade, regressou à casa da mãe e começou a ajudar uma irmã, costureira de profissão. Neste início do seu trajeto laboral, as atividades desenvolvidas funcionaram num registo informal, sem vinculação contratual.
Durante a sua juventude, DD refere ligação a várias atividades e grupos ligados à Igreja Católica: catequese, Ação Católica, retiros para jovens. Após a sua participação num retiro realizado pelos coarguidos, AA e CC, DD tomou a decisão de acompanhar o trabalho por eles desenvolvido, tendo ingressado numa comunidade religiosa por aqueles criados. Esta comunidade teve a sua génese na ..., posteriormente após convite da Arquidiocese ..., esta associação fixou-se no ... em ... e finalmente em ..., ....
DD encontra-se nesta associação desde os 20 anos, desenvolvendo funções ligadas à gestão doméstica da comunidade e na atividade da tipografia.
DD vive numa comunidade de cariz religioso, designada como Fraternidade Missionária ..., há quase cinquenta anos, sendo evidente os vínculos de pertença da arguida à instituição e à obra desenvolvida pela mesma.
Esta comunidade é constituída presentemente por quatro leigas consagradas, nas quais se inclui a arguida. A instituição sedeada em ..., propriedade pertença da Fraternidade Missionária ..., é constituída por um edifício onde estão instalados os espaços que constituem a residência das leigas e do arguido AA, além de espaços destinados a celebrações religiosas e de apoio às atividades sociais.
Os fins prosseguidos pela Fraternidade Missionária, constituem para DD uma prioridade na sua vida. Para além das atividades de cariz religioso diárias, colabora nas diversas tarefas de gestão doméstica do espaço, na manutenção dos jardins exteriores, nas atividades desenvolvidas na tipografia ou nas atividades sociais que a associação desenvolvia, direcionadas para o apoio à população reclusa e para os jovens e que atualmente se encontram suspensas na sequência do presente processo.
A dinâmica da associação assente numa hierarquia, onde o fator idade assume importância, o que justificará a indicação de DD como representante legal da associação. Comparativamente às restantes arguidas, DD assumia sobretudo funções relacionadas com as tarefas de manutenção e conservação do espaço físico da associação, sendo caracterizada como uma pessoa humilde e submissa, focando-se sobretudo na dimensão mais espiritual e aceitando sem questionar as ordens e orientações que lhe eram dadas.
DD refere a existência de cinco irmãos do seu grupo familiar alargado: três irmãs que residem em freguesias próximas e dois irmãos que vivem no .... A arguida mantém contactos com estes familiares. A relação assenta em vínculos afetivos adequados, com base no suporte, cuidado e proteção recíprocos.
DD usufrui de uma pensão social de cerca de 210 euros, que é entregue à associação, sendo a instituição que assegura as necessidades de subsistência das quatro leigas. A instituição subsiste sobretudo com recurso a donativos de beneméritos, que continuam a apoiar a obra. As receitas da tipografia são canalizadas para novas publicações e para a divulgação dos objetivos e missão da obra.
DD refere algumas limitações de saúde que vão condicionando as suas rotinas na instituição, sobretudo aquelas que exigem maior esforço físico, designadamente algumas tarefas domésticas e no jardim. O sentido comunitário do grupo, proporciona-lhe uma maior proteção face às suas limitações, sendo maior a sua disponibilidade para a vivência espiritual.
Socialmente não foram recolhidas informações que indiciassem problemas na sua integração ou na relação com a comunidade.
DD identifica como negativo o impacto do presente processo nos fins prosseguidos pela instituição, limitando o apoio prestado aos reclusos e impedindo a intervenção junto de jovens.
Não sinaliza especial impacto a nível social, continuando a instituição a receber o apoio das pessoas que se identificam com os fins da instituição.
A arguida sente-se apoiada pela família, que se mostra preocupada com as repercussões do processo no estado emocional e físico daquela.
Manifesta, no abstrato, um discurso de censura e demonstra reconhecer a ilicitude de comportamentos como os descritos na acusação e perceciona de forma adequada vitimas e danos nestes comportamentos, mas demonstrou alguma dificuldade na compreensão da tipologia do crime (escravidão) pelo qual se encontra acusada.
Manifesta uma atitude de conformação com a existência do processo e com eventuais consequências que possam advir, não tanto para si, mas sobretudo com repercussões no funcionamento e existência da instituição.
DD apresenta um processo de socialização com um enquadramento familiar positivo.
Beneficia de uma rede de suporte constituído quer pelos membros da comunidade que integra, cujos fins e dinâmica refletem o sentido de realização da arguida numa vertente mais pessoal. De relevar também o apoio do grupo familiar de origem consubstanciado sobretudo em visitas à arguida na instituição
A arguida integra esta a instituição há cerca de 50 anos. A vivência da vida adulta de DD desenrolou-se sempre enquanto integrada na instituição, sendo o quotidiano direcionado exclusivamente para a realização das finalidades da mesma”.

438. Consta dos autos uma informação da DGRSP de fls. 1484, da qual resulta que o arguido AA faltou à entrevista agendada para 25/02/2021; bem como informação de fls. 1682, da qual resulta as razões pelas quais não foi possível a realização da entrevista ao arguido, ficando assim inviabilizada a realização do relatório social solicitado.

2. d) FACTOS ORIUNDOS DOS CERTIFICADOS DE REGISTO CRIMINAL

439. Do CRC do arguido Centro Social de Apoio e Orientação ... nada consta;
440. Do CRC da arguida BB Nada consta;
441. Do CRC do arguido AA nada consta;
442. Do CRC da arguida CC nada consta;
443. Do CRC da arguida DD nada consta;

2. e) FACTOS PROVADOS ORIUNDOS DAS CONTESTAÇÕES
444. A Fraternidade Missionária ... é que constituía verdadeiramente, o carisma e a atuação das Irmãs Missionárias.
445. Teve uma ação virada para a oração e vocacionada para os jovens, em especial para aqueles que se encontrassem detidos em todos os estabelecimentos prisionais do país.
446. Desde 1995, e ao longo de muitos anos, até Novembro de 2015, com visitas regulares ás cadeias, levou auxilio espiritual e material.
447. Desenvolveu trabalho reconhecido por muitos, pela Direção Geral dos Serviços Prisionais, bem como pela própria Diocese ..., a quem apresentava todas as suas publicações.
448. De realçar a carta de congratulação redigida pelo Prof. Doutor QQQ, datada de 22 de Setembro de 2003;
449. A casa da Fraternidade Missionária ... foi frequentada por ilustres Eminências da Igreja, de quem receberam a benção.”

Foi considerado como não provado (transcrição):
“450. Que os arguidos gerissem o Centro Social com total secretismo.”

O Tribunal a quo motivou a decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos (transcrição):
«O tribunal fundou a sua convicção, quanto aos factos provados e não provados, constantes da Pronúncia, na análise critica da prova pericial, documental, por declarações dos arguidos (BB e Representante do Centro Social) e testemunhal produzidas, iluminada pelas regras de experiencia comum.
Concretamente, quanto aos pontos 1º a 16º da factualidade provada, matéria atinente à natureza jurídica da Fraternidade Missionária ... e do Centro Social de Apoio e Orientação ..., bem como a confusão gerada por estas duas pessoas jurídicas de direito canónico, o tribunal louvou-se, na análise conjunta das provas documentais, por declarações dos arguidos e testemunhais.
Neste particular, em sede de prova documental, vejamos o que resulta dos autos:
Por decreto de 24 de Janeiro de 1978, emitido por D. PP, foi ereta a União das Irmãs Missionárias ..., tendo como denominação “Fraternidade Missionária ...”, com sede provisória no lugar e ... – cfr. fls. 59 do Anexo I.
A Fls. 56 a 58 do Anexo I, consta uma cópia desses Estatutos de 24 de Janeiro de 1978, dos quais avulta:
“ - art. 1º - É criada uma União das Irmãs Missionárias ... com o título ou denominação de Fraternidade Missionária ....
- art. 2º - A Fraternidade Missionária ... tem a sua sede provisória no lugar e ..., freguesia ... e Arciprestado de ...;
- Art. 3º - A Fraternidade Missionária ... é de natureza exclusivamente espiritual, sem fins lucrativos de qualquer espécie;
(…)
Art. 6º- Podem ser admitidas como membros ou irmãs da Fraternidade Missionária ..., jovens com um mínimo de 18 anos e que satisfaçam as condições exigidas, tanto nestes estatutos, como no regulamento interno da Fraternidade”.
Consta dos autos uma carta remetida pela arguida BB, dirigida à Arquidiocese ..., datada de 10/04/2014, a fls. 55 do Anexo I, solicitando a revisão dos Estatutos de 24 de Janeiro de 1978, da Fraternidade Missionária ... e respetiva aprovação.
Avulta ainda dos autos a Ata nº ..., datada de 22 de Maio de 2014, de fls. 54 do Anexo I, que documenta a Assembleia geral que reuniu na Fraternidade Missionária ... e aprovou a eleição dos corpos gerentes nos seguintes termos:
Assembleia Geral:
-Presidente: Irmã HH;
- Secretaria: irmã EE;
- 2º Secretária: Irmã GG;
Direção:
Presidente: Irmã CC;
Secretária: irmã BB;
Tesoureira: DD;
Órgão Assessor ( “Conselho de Assistência”)
Presidente: FFF – Advogada;
Vogais: GGG – TOC
ZZ – Oficial de Justiça,
Dos autos consta ainda uma carta remetida por CC, datada 3/06/2014, dirigida ao Arcebispo RRR, solicitando Provisão dos Corpos Gerentes da Fraternidade Missionária ... – cfr. fls. 60 do Anexo I;
Nesta senda, por Decreto datado de 3 de Junho de 2014, emitido pela competente Autoridade Eclesiástica Diocesana, foram aprovados os novos Estatutos da Fraternidade Missionária ..., proferido o despacho que os aprovou, bem como a Provisão dos corpos gerentes da Fraternidade Missionária ..., datada de 03/06/2014, bem como a Ata nº ..., datada de 7 de Novembro de 2014, da qual resulta a nomeação dos corpos gerentes para os próximos cinco anos - cfr. fls. 27, 28, 63 e 94 do Anexo I.
Consta ainda dos autos uma cópia dos novos Estatutos da Fraternidade Missionária ... e respetivo averbamento, de fls. 29 a 52 do Anexo I, bem como das Normas Gerais das Associações de Fiéis de fls. 421 e ss. e, ainda, de um Exemplar da publicação “... de 2005 de fls. 2364.
Dos Novos Estatutos da Fraternidade Missionária ..., aprovados em 3 de Junho de 2014, consta:
- art. 1º: “A Fraternidade Missionária ..., nasceu como União das Irmãs Missionárias ...-
- Art. 2º: A Fraternidade Missionária ... é uma Associação Pública de Fieis, ereta em pessoa jurídica canónica pela Autoridade competente, com Estatutos aprovados em 24 de Janeiro de 1978;
- Art. 3º: A Fraternidade Missionária ... tem a sua sede na Rua ..., ..., Arciprestado de ..., Arquidiocese ....
- Art. 4º: Os objetivos da Fraternidade Missionária ... são:
1. Consagrar-se totalmente, no ser e no ter, aos jovens como principal e fundamental meio de apostolado.
2. Dedicar-se a uma vida de piedade, intimidade e amizade com Deus, através da oração e testemunho de espirito, num carisma de fraternidade contemplativa na ação;
3. A salvação do Mundo Jovem pela conversão e orientação para cristo, ajudando a descobrir e viver a extraordinária riqueza da sua vocação cristã, em qualquer dos estados de vida ou perfeição cristã.
4. Consagrar-se a um verdadeiro movimento de conversão cristã dos jovens, desejando corresponder a um generoso primeiro passo, na sua consciente e cada vez mais crescente realização cristã, por uma vida apostólica incarnada e vivida no seu meio ambiente próprio, tanto familiar, como social, religioso e vocacional, através das suas atividades próprias.
5. Assumir a vida contemplativa como expressão máxima da consagração, tendo apenas como intenção fiel a salvação dos jovens;
6. Manter atividade própria e especifica: organização e realização de cursos especializados (cursos de conversão, cursos de orientação para a vida), convívios de oração, intimidades, Betânias, sessões culturais ou artísticas.
7. Realizar edições de carater formativo e informativo sem fins lucrativos;
8. Visitar todas s cadeias de Portugal, em espirito de missão evangelizadora, dando apoio aos mais carenciados sobretudo os jovens vitimas do flagelo da droga;
9. zelar pelo património da instituição;
Art. 14: Os membros dos corpos gerentes são responsáveis perante a lei eclesiástica e estatal, civil e criminalmente, pelas faltas ou irregularidade cometidas no exercício do mandato
(…)”
Consta ainda dos autos uma cópia do Cartão de identificação de pessoa coletiva religiosa, do qual resulta que foi atribuído à Fraternidade Missionária ..., um número de identificação de pessoa coletiva religiosa nº ...10; bem como uma declaração emitida pelo Vigário Geral, da Arquidiocese ..., Mons. Cón. Doutor SSS, datada de 26 de Setembro de 2000, da qual resulta que a Fraternidade Missionária ... está isenta de impostos face à Concordata – Cfr. fls. 85, anexo I.
Também consta dos autos uma credencial datada de 27 de Janeiro de 2015, emitida pelo Cónego Dr. RR, declarando que as ... e ... são pertença da Fraternidade Missionária ..., bem como um Relatório sobre a 13ª visita da Fraternidade a todos os estabelecimentos prisionais portugueses no período compreendido entre 18/10/2004 e 11/02/2005, entregue ao Sr. Diretor Geral dos Serviços Prisionais, bem como declarações emitidas por várias entidades sobre o trabalho desenvolvido por alguns dos arguidos junto de alguns estabelecimentos prisionais, a fls. de fls. 61, 73 e ss do Anexo I, e de fls. 2357 a 2360;
Ora, como se constata dos documentos atrás referidos, ainda enquanto União das Irmãs Missionárias ..., a Fraternidade Missionária ..., tinha criado uma Fundação, denominada Centro Social de Apoio e Orientação ....
Do processo completo da constituição e aprovação dos primeiros Estatutos do Centro Social de Apoio e Orientação ... avulta que, por Decreto de 22 de agosto de 1985 foram aprovados os primeiros Estatutos do Centro Social de Apoio e Orientação ..., com as alterações de 8 de Novembro de 1985, cujo teor resulta de fls. de fls. 901 verso do Apenso A, e ss e 98 e 143 a 145 do Anexo I.
Resulta do texto dos Estatutos originários de 22 de agosto de 1985, que:
“Art. 1 – O Centro Social de Apoio e Orientação ..., é uma fundação de solidariedade social, criada por iniciativa da União das Irmãs Missionárias ..., denominada “Fraternidade Missionária ...”. O Centro tem a sua sede em ..., ....
Art. 2 – O Centro Social de Apoio e Orientação ... tem por objetivos principais o apoio a adolescentes e jovens, apoio ás famílias, apoio à integração social e comunitária e a educação e formação profissional dos cidadãos, com espirito cristão. Como objetivos secundários, desenvolve atividades de orientação para pais, professores e demais responsáveis pela juventude, de formação destes responsáveis, através dos principais meios de comunicação social, como a imprensa, o cinema, o teatro e sessões culturais – poesia e musica.
(…)”.
Segundo resulta da informação prestada pela Direção Geral da Segurança Social, o Centro Social de Apoio e Orientação ... é uma instituição particular de solidariedade social, cujo registo foi efetuado provisoriamente nesta Direção-Geral em 14/09/1985, sob a inscrição nº ...5, a fls. 4 e 4 verso do Livro nº3 das Fundações de Solidariedade Social e convertido em definitivo em 05/12/1985 pelo averbamento nº1, à referida inscrição – cfr. fls. 945 e certidão de fls. 946 do Apenso A,
Consta dos autos, a fls. 120 do Anexo I, uma Ata de 10 de Janeiro de 2011, que documenta a reunião dos membros que compõe a Direção da Fraternidade Missionária ..., que procedeu à reeleição dos membros do Conselho de Administração do Centro Social de Apoio e Orientação ..., também como sede na Rua ..., em ..., ...;
Avulta dos autos uma Provisão datada de 16 de Março de 2011, que concedeu provisão aos corpos gerentes do Centro Social de Apoio e Orientação ..., fazendo parte da Direção: Presidente: AA; Secretária: BB; Tesoureira: CC;
Avulta dos autos uma carta remetida pelo Padre AA à Arquidiocese ... a solicitar a abertura do processo de revisão dos Estatutos do Centro Social de 1985, e respetiva aprovação de fls. 109 do Anexo I.
Consta ainda dos autos uma carta subscrita por CC dirigida à Arquidiocese ... a solicitar a Provisão de Corpos Gerentes;
Por seu turno, por Decreto de 25/11/2014 e despacho da mesma data, foram aprovados os novos Estatutos do Centro Social de Apoio e Orientação ..., tendo sido emitida a provisão de corpos gerentes que nomeia:
Direção:
Presidente: Irª CC;
Secretária: Irª BB;
Tesoureira:  Irª DD;
Conselho Fiscal:
Presidente: Dr. HHH;
Vogais: Eng. III;
                JJJ;
Órgão de Vigilância:
P.e AA.
Dos novos estatutos do Centro Social consta:
“- Art. 2 – O Centro Social de Apoio e Orientação ... é uma fundação ereta em pessoa jurídica canónica publica por decreto da autoridade competente, em 22 de agosto de 1985.
O Centro, segundo o D.L. nº 119/83, fica integrado na ordem civil como Instituição Particular de Solidariedade social (IPSS).
- (…)
- Art. 4 – O Centro Social de Apoio e Orientação ... em por objetivo o apoio:
- a adolescentes e jovens;
- às famílias;
- à integração social e comunitária;
- á educação e formação profissional dos cidadãos com espirito cristão.
Como objetivos secundários, o centro desenvolve atividades:
- de orientação para pais, professores e demais responsáveis pela juventude;
- de formação destes responsáveis através dos principais meios de comunicação social (imprensa, cinema, teatro, sessões culturais, poesia e musica).
No exercício destas atividades, o Centro terá sempre presente.
- o conceito unitário e global da pessoa humana e respeito pela sua dignidade;
- o aperfeiçoamento cultural, espiritual e moral de todos os participantes;
- o espirito de convivência e de solidariedade social como fator decisivo de trabalho comum, tendente à valorização integral dos indivíduos, das famílias e demais agrupamentos;
- que é um serviço da Igreja, devendo assim proporcionar, com respeito pela liberdade de consciência, formação cristã aos seus utentes e não permitir qualquer atividade de se oponha aos princípios cristãos.
- o centro procurará dar resposta a todas as forma de pobreza exercendo assim a sua finalidade sócio-caritativa. 
Art. 5 – Para a realização dos seus objetivos, o Centro Mantém uma atividade de tipografia sem fins lucrativos, que produz publicações para a atividade de evangelização do mundo juvenil.
Na medida em que a prática o aconselhe e os meios disponíveis o permitam, o Centro procurará exercer outras atividades de caracter sócio cultural, educativo, recreativo, de assistência, de saúde e de atendimento/acompanhamento social, e designadamente:
- a promoção do culto mariano, fomentando assim um verdadeiro Movimento  de Conversão Cristã dos Jovens;
- a organização e realização de cursos especializados (cursos d conversão, cursos de orientação para a vida), convívios, sessões culturais ou artísticas;
- evangelização dos presos nas cadeias.
(…)
Art. 17º - Os membros dos órgãos de gestão são responsáveis perante a lei eclesiástica e estatal, civil e criminal, pelas faltas ou irregularidades cometidas no exercício do mandato.
(…)”.
Avulta ainda dos autos que se encontra descrita na CRP ..., sob as descrições nº ...34 e ...66, a aquisição por parte do Centro Social de Apoio e Orientação ..., Fundação de Solidariedade Social, de dois terrenos rústicos respetivamente com a área de 30 700 m2 e 7200 m2, inexistindo quaisquer ónus registados sobre os aludidos imoveis e, que se encontram inscritos em nome do Centro Social de Apoio e Orientação ..., na respetiva matiz, a propriedade de três prédios rústicos ( nº 7, 206 e 208) sitos na freguesia ..., bem como o registo provisório da propriedade do artigo Urbano nº ...51, inscrito oficiosamente pelo serviço de Finanças por se encontrar omisso na matriz.
Ora, do acervo documental atrás referido e da comparação do conteúdo dos antigos e novos Estatutos da Fraternidade e do Centro Social, no que tange aos objetivos de cada um dos entes, constata-se que se trata de duas pessoas jurídicas de direito canónico distintas e autónomas, mas que só o Centro Social foi integrado na ordem jurídica civil como IPSS.
Por outro lado, como se verá, apesar do que consta nos estatutos, sobre os objetivos do Centro Social, resultou por exuberância de toda a prova produzida, que toda a atividade religiosa de culto e de evangelização, designadamente feita através de publicações periódicas e de visitas a estabelecimentos prisionais era desenvolvida pela Fraternidade e que o Centro Social terá sido criado pelos arguidos para ser o suporte jurídico da atividade económica levada a cabo pela Fraternidade Missionária ..., para ser recetor de fundos estatais relacionados com a atividade desenvolvida pela Fraternidade e para absorver o património gerado por esta.
Segundo esclareceu o representante do demandado, QQ, Notário da Curia Diocesana, Juiz dos Tribunais Eclesiásticos e responsável pelas Associações de Fieis e Fundações da Arquidiocese de ..., por volta do ano de 2011, o Exmo. Arcebispo incumbiu-o de entrar em contato com a Fraternidade e com o Centro Social para organizar os Estatutos destas instituições, nomear os respetivos corpos gerentes e despoletar a prestação de contas.
Segundo o declarante, quando a Igreja repara que a Instituição tem um certo impacto social, consubstanciado no facto de existir uma publicação religiosa e obras de evangelização relativas às visitas a estabelecimentos prisionais, entende que é preciso mudar o cariz destas pessoas jurídicas, que até então eram pessoas jurídicas de direito canónico, mas de natureza privada.
A partir de 2011, por indicação do Arcebispo, o declarante começou a intervir junto das identificadas instituições, reconhecendo que não foi fácil fazer com que os arguidos entendessem que eram igreja, que tinham de aprovar os Estatutos das instituições, nomear corpos gerentes e prestar contas da atividade económica desenvolvida.
Também o Exmo. Arcebispo Emérito de ..., Dom NN, que assumiu tais funções desde o ano de 1999, até há pouco tempo atrás, explica que visitou ..., quando fazia a visita pastoral à paroquia e, uma vez ou outra, a convite do arguido Padre AA.
Confirmou que pediu ao Padre QQ – especialista na elaboração dos Estatutos – para ir passando por ... e ir vendo como era a vida da Fraternidade.
Segundo explicaram o declarante e a testemunha identificadas, desde 1978 até 2014, a Fraternidade era apenas uma União das Irmãs Missionárias ..., figura prevista pelo Código Canónico de 1917.
Com a aprovação do Código Canónico de 1983, surgem as Associações de Fieis publicas e privadas, sendo que, quando têm atividades da responsabilidade da igreja, são consideradas Associações de Fieis de cariz publico, caso em que têm de ter estatutos aprovados, corpos gerentes e aprovação de contas.
Ora, até 2014, a Fraternidade Missionária ..., era uma União das Irmãs Missionárias ..., sem que estivesse definida a sua natureza (publica ou privada).
Com a aprovação dos Estatutos em 2014, passa a ser uma Associação de Fieis, de natureza publica, porque exercia atividade que implicava o culto, evangelização e publicações de cariz religioso.
Quer o Arcebispo de ..., quer o Padre QQ, reconhecem que todas estas atividades eram desenvolvidas pela Fraternidade, chegando mesmo NN a afirmar, que tudo era feito pela Fraternidade e que o Centro Social era “apenas uma muleta para fazer as obras sociais”, levadas a cabo pela Fraternidade, designadamente as visitas aos estabelecimentos prisionais que, por sinal, se inscrevem nos objetivos da Fraternidade.
Segundo declarou o Padre QQ, à luz dos respetivos estatutos, a Fraternidade tem como objetivo a formação espiritual, consubstanciada na publicação de uma revista de formação e informação espiritual, denominada “...” e atividades de culto, já o Centro Social, à luz dos respetivos estatutos, teria teoricamente um objetivo predominantemente social e caritativo, que seria desenvolvido designadamente através das visitas às cadeias.
Todavia, como resulta do acervo documental atrás referido, até mesmo esta atividade consubstanciada nas visitas dos arguidos a estabelecimentos prisionais era desenvolvida pela Fraternidade e inscreve-se num dos seus objetivos.
Veja-se o Relatório sobre a 13ª visita da Fraternidade a todos os estabelecimentos prisionais portugueses no período compreendido entre 18/10/2004 e 11/02/2005, bem como as declarações emitidas por várias entidades sobre o trabalho desenvolvido por alguns dos arguidos junto dos estabelecimentos prisionais (cfr. fls. 61, 73 do Anexo I, fls. 2357 a 2360), de onde resulta que já após a constituição do Centro Social era a Fraternidade quem desenvolvia esta iniciativa.
Para o declarante, a Fraternidade e o Centro Social são obras distintas, têm autonomia entre si, mas na pratica admite que elas se possam confundir, porque os corpos gerentes eram os mesmos, a sede era a mesma e os estatutos eram idênticos.
Segundo julga, embora a revista seja anterior à constituição do Centro Social e se inscrever num dos objetivos da Fraternidade Missionária ..., a realização de edições de caracter formativo e informativo, sem fins lucrativos, a atividade da revista, designadamente a aquisição de material e papel, com a criação do Centro Social, terão passado a ser efetuados em nome deste, o que reforça a ideia de que este ultimo foi criado com o fito de constituir um suporte jurídico da atividade económica da Fraternidade Missionária ....
Em jeito de conclusão, o declarante admite que, bem vistas as coisas, o Centro social tinha importância apenas para o património já que o património está todo registado em nome do Centro Social e terá sido criado por razões burocráticas, para suportar a atividade jurídica da Fraternidade Missionária, porque esta não estava registada civilmente, já o Centro Social era uma IPSS, registada civilmente como fundação.
Na mesma linha, a testemunha TTT, Cônego, Sacerdote, Chanceler da Diocese ..., que zela pelos arquivos e estatutos, sustentou que o Centro Social se limitava à prossecução de fins fiscais e tinha em vista a obtenção de apoios do Estado.
Ainda nesta linha, o Padre UUU, refere que, quando foi incumbido pelo Arcebispo de ... para acompanhar aquelas duas pessoas jurídicas de direito canónico, refere que perguntou aos arguidos porque existia o Centro Social e estes lhe disseram que este foi criado porque tinham a promessa de um apoio para financiar os muros da propriedade e constituíram a IPSS para ser recetora do financiamento para construção dos aludidos muros.
Também o Padre TT, que integrou a Comissão administrativa atrás referida, relatou que, quando ali se deslocaram, o Centro Social já estava instituído, mas não teria qualquer atividade, pois que havia sido criado com o exclusivo objetivo de angariação de fundos.
As próprias Assistentes reforçam esta ideia, pois que todas elas admitem que, quando ingressaram, mal conheciam a existência do Centro Social e que ingressaram para a Fraternidade Missionária ....
Constata-se, portanto, que embora exista autonomia formal das entidades, facto é que perante terceiros, é manifesta a existência de uma confusão entre estas duas entidades de direito canónico, potenciada pelo facto de serem os mesmos os corpos gerentes, a mesma sede e idênticos os respetivos estatutos, sendo certo que, segundo referem todas as testemunhas acima referidas, o Centro Social foi criado para ser o suporte jurídico da atividade da Fraternidade Missionária ..., para ser recetora de fundos e subsídios do Estado motivados pela atividade desenvolvida da Fraternidade e para titular todo o património gerado por esta.

Como vamos ver, a questão da natureza jurídica destas duas pessoas jurídicas de direito canónico (Fraternidade Missionária ... e Centro Social), entronca com a problemática da tutela da Igreja sobre estas instituições, tutela que naturalmente se reconduz ao plano canónico, mas que não se confunde nem afasta a lei do Estado.
Segundo o depoimento do declarante QQ, quer a Associação de Fieis quer o Centro Social, pelo menos desde 2014, são tutelados pela Arquidiocese, embora o agir destas entidades seja da responsabilidade exclusiva dos seus corpos gerentes. Ou seja, a gestão da casa, a admissão das jovens, eram da responsabilidade dos arguidos, admitindo que incumba à Diocese ... a função de tutela destas entidades.
De acordo com este depoimento, o Bispo tem a tutela das pessoas físicas e jurídicas erigidas por ele, tutela que é exercida através do órgão de vigilância, através do qual toma conhecimento de eventuais anomalias. É através do titular do órgão de vigilância que o Bispo vai sabendo o que se passa no interior das entidades.
No caso do Centro Social, o titular do órgão de vigilância era o arguido Padre AA, que tinha a obrigação de comunicar à Diocese as anomalias registadas.
Ora o titular do órgão de vigilância é uma pessoa que o Arcebispo nomeia, por indicação da Instituição, sendo certo que a pessoa nomeada é normalmente um Sacerdote e alguém do interior da instituição, o que se explica por causa da maior proximidade e maior conhecimento da realidade, embora reconheça que essa circunstancia pode pôr em causa a eficácia dessa função.
Entre os anos de 1978 até 2014, praticamente não houve contato entre a Fraternidade e a Diocese. Como estávamos no âmbito de uma União das Irmãs Missionárias ..., a chegar a uma Associação pública de Fiéis, com o objetivo de se tornar uma Ordem Religiosa, a tutela estava a ser gradualmente construída. Também relativamente ao Centro Social, entre 1985 e 2014, não havia qualquer contato com a Diocese e, nessa medida, também a tutela estava enfraquecida, tendo sido reforçada com a aprovação dos novos estatutos em 2014, seja da Fraternidade Missionária ..., seja do Centro Social.
Segundo explicou o declarante Padre QQ, depois dos Estatutos aprovados em 2014, se o Centro Social fosse extinto, por causa dos factos que vieram a publico, o património do Centro Social revertia para a Arquidiocese ... ou a favor de quem o Arcebispo o entendesse. Tal decisão é da competência do Arcebispo e pode ser tomada quando ocorram causas graves, como escândalo publico, suscetível de causar danos à imagem da Igreja.
Segundo explica o declarante, se a Igreja, aquando da publicação das noticias, tivesse decidido extinguir estes entes, o impacto social seria enorme, antecipando que a visão dos crentes seria negativa, porque dava a ideia que a Igreja teria transformado o Centro Social em pessoa jurídica canónica publica para se apropriar do avultado património do Centro Social. Aliás, segundo julga o Padre QQ, a resistência dos arguidos em aceitar a alteração de cariz publico do Cento social prendia-se justamente com o receio de perderem a titularidade dos bens e de passarem a estar constituídos na obrigação de prestar contas sobre a sua atividade económica.
Segundo explicaram os Padres QQ e UUU, apesar da Tutela, a Diocese não tem força coerciva e não pode impor seus comandos a não ser pela força da consciência, sendo certo que só quem está identificado pela fé cristã é que aceita com naturalidade esta regra.
Um exemplo da dificuldade dos arguidos em aceitar esta regra aparece refletido na correspondência trocada entre a arguida CC e Dom NN de 29/03/2016 e 2/04/2016, fls. 925 a 927 do Apenso A.
Dito isto, embora o agir destas entidades, designadamente quanto à gestão das vocações, fosse da responsabilidade dos seus corpos gerentes, a Diocese ... não pode eximir-se ao dever de exercer a tutela das duas pessoas jurídicas de direito canónico que erigiu.
E, segundo se julga, também não pode escudar-se na ineficácia do órgão de vigilância, porque embora sob a indicação das entidades que erigiu, foi a Diocese ... quem nomeou o titular desse órgão.
Aceita-se que a Diocese ... não tenha um corpo de Polícia ou de Inspetores, que lhe permita impor pela força os seus comandos. Mas, estranha-se que, já em 2011, numa altura em que a Igreja, no mínimo, já se tinha apercebido de praticas devocionais inadequadas levadas a cabo pela Fraternidade, se tenha apressado em atribuir à União das Irmãs Missionárias ... a condição de Associação publica de fiéis, sem ter exigido como contrapartida o abandono de tais praticas devocionais inadequadas.

Resulta dos autos, que a partir de 2014/2015, começou a chegar à Arquidiocese ..., avultada correspondência que dava conta dos castigos, agressões físicas e verbais perpetradas no seio da Fraternidade, conhecimento que surgiu através de avultada correspondência, designadamente:

- Carta remetida em 11 de setembro de 2014, pela ofendida LL ao D. NN, denunciando os maus tratos que vivenciou na instituição, cfr. fls. 1, do Anexo II;
- Cartas manuscritas de fls. 1380 a 1383 cuja autoria é atribuída a LL;
- Carta remetida, sem menção de data, pela ofendida KK, que constituí fls. 5 e ss do Anexo II, denunciando os maus tratos que vivenciou na instituição;
- Carta de fls. 152 a 156 que KK dirigiu ao Padre VVV, em Maio de 2014, por intermédio do CCC.
- Carta remetida pelos pais de II e pela própria II, em 10 de Março de 2014, ao D. NN, denunciando os maus tratos que vivenciou na instituição;
- Carta de 10 de Março de 2014, de fls. 492 a 496, escrita pela ofendida II, bem como carta de 13 de março de 2014, de fls. 503 e ss, escrita pelos pais da II, dirigidas a D. NN, na qualidade de Arcebispo de ..., na qual relatam alguns dos maus-tratos que aquela vivenciou na Fraternidade Missionária ...;
- Carta remetida por II ao Padre VVV em 20 de Janeiro de 2015, denunciando os maus tratos que vivenciou na instituição;
-Carta de 10 de Janeiro de 2015, de fls. 504 e ss, escrita pela ofendida II, dirigida ao Padre VVV, na qual relata alguns dos maus-tratos que aquela vivenciou na Fraternidade Missionária ...;
- Carta dirigida por EE ao Papa Francisco, de 29 de Julho de 2015, denunciando os maus tratos que vivenciou na instituição;
- Carta dirigida por EE, em 18 de Junho de 2015, ao D. WWW e resposta de 20 de Julho de 2015, denunciando os maus tratos que vivenciou na instituição;
- E-mail dirigido por EE, ao Padre SS, datado de 15/02/2015, denunciando os maus tratos que vivenciou na instituição;
- Carta remetida pela ofendida EE de fls. 5 a 30, datada de 13 de março, dirigida ao Padre VVV, responsável pelas congregações do Distrito ..., onde esta denuncia os maus-tratos que ela e outras colegas sofreram na Fraternidade;
- Carta remetida pela ofendida EE de fls. 31, dirigida, ao Padre VVV responsável pelas congregações do Distrito ..., onde esta comunica que, na sequência de uma autorização que lhe permitiu ir a casa visitar a família, que decidiu nunca mais voltar para a Fraternidade, atitude que terá levado a arguida CC a levar a GNR a casa da ofendida, supostamente para se certificar se aí teria permanecido voluntariamente e estribando-se numa ideia de Dom NN;
- Carta dirigida por EE, ao Padre SS datada de 28 de Fevereiro de 2015, denunciando os maus tratos que vivenciou na instituição;
- Emails de 17 de fevereiro e 11 de março remetidos pelo Padre SS à ofendida EE, de fls. 40 a 44, que consubstanciam respostas a missivas que esta lhe dirigiu denunciando os maus tratos que sofreu no interior da instituição.
- Carta dirigida por EE, ao D. XXX, denunciando os maus tratos que vivenciou na instituição;
- Carta remetida pela ofendida EE ao D. WWW, de 18 de Junho de 2015, a fls. 57 do apenso B, informando que já havia sido dado conhecimento dos factos ao Sr. Arcebispo de ..., sem quaisquer resultados, pedindo o contato do Papa Francisco.
- Carta remetida a 29 de Julho de 2015, pela EE, ao Papa Francisco, de fls. 58 a 60, sobre os maus tratos vividos n instituição e sobre a postura de alguns membros da Igreja.

 Uma das medidas adotadas pela Arquidiocese ..., logo que chegou ao seu conhecimento, relatos de maus tratos protagonizados no seio da Fraternidade, redundou na incumbência atribuída ao Padre UUU de acompanhar a Fraternidade.
Segundo explicou o padre UUU, pároco da Arquidiocese ..., o Arcebispo RRR incumbiu-o de acompanhar a Fraternidade em Março de 2015, antes da intervenção da P.J., com o objetivo de verificar a realidade e ajudar a Fraternidade a encontrar um lugar mais próprio dentro da cultura eclesial, porque o que ali se ensinava estava desadequado.
Quanto à forma como a Fraternidade vivencia o cristianismo – uma das razões que terá motivado a Intervenção da Igreja -, Dom NN reconhece no seu depoimento que se trata de uma vivencia mais conservadora, visto que, a título de exemplo, a Fraternidade organizava excursões a Medjugorje que a igreja não reconhecia.
Na mesma linha, o Padre QQ admite que não gostava da mentalidade conservadora da casa. Segundo o declarante, quando começaram a chegar ao conhecimento da Diocese as publicações efetuadas na Fraternidade, a Igreja logo então percebeu que havia elementos incompatíveis com a doutrina católica e ficou preocupada.
Já por volta de 2010/2011, o Arcebispo pediu que prestassem atenção a estas duas pessoas jurídicas, porque estavam a ter grande impacto junto da comunidade.  Nessa altura, ouviu falar em Revelações Privadas, na Vassula, nas excursões a Medjugorje e na Cruz do amor, tudo atos que a igreja reprova, mas que, segundo julga, continuam a ser praticados no seio da Fraternidade.
O Padre UUU refere que o Arcebispo o mandou acompanhar a Fraternidade, com um objetivo espiritual, por causa destas formas deturpadas de viver a fé, relatando que, uns meses antes, no Conselho Episcopal o tema passou a ser recorrente porque o Vigário tinha de acompanhar estas pessoas jurídicas de direito canónico e ouviu de forma mais constante o relato dessa vivência.
O padre UUU, no seu depoimento, apontou os seguintes desvios doutrinais:
- Na Fraternidade, o Padre AA celebra a Eucaristia de costas voltadas para o povo, vincando um tempo que não é já o nosso;
- A Fraternidade proíbe entrada de senhoras, designadamente nos dias de convívios, que trajem calças, o que é incompatível com a compreensão que a Igreja tem da mulher nos dias de hoje.
- A Vassula tem ensinamentos que não estão aprovados pela igreja e geram uma idiossincrasia, no que respeita à relação com a culpa e com o binómio inferno / pecado, que a igreja não aprova.
- A Fraternidade recitava o terço com textos das revelações privadas;
- A Igreja não aprova a forma como a Fraternidade entendia as bênçãos, associadas a crendices.
Já a nível de desvios disciplinares, o Padre UUU refere que a partir de 2014, o Vigário tinha iniciado uns diálogos com a Fraternidade para que as noviças pudessem ir a sua casa, visitar seus familiares, pois que se entende que, apesar de abraçarem a vida religiosa, não devem cortar a relação com a família, pois que há uma gratidão e alegria em estar com a família.
No contexto dessa intervenção, refere que foi lá celebrar a Eucaristia, já quando circulavam algumas cartas com relatos de maus tratos, falou com as noviças e passou a contatar com a vida daquelas pessoas, tendo questionado expressamente as noviças se os relatos das colegas dissidentes, correspondiam à verdade, ao que as mesmas responderam negativamente.
Na senda desta intervenção da Arquidiocese ..., o Padre UUU recorda-se de ter sido agendada uma reunião no seio da Fraternidade, com o objetivo de pôr termo a praticas devocionais inadequadas e que não se chegou a realizar, porque nesse mesmo dia uma das jovens (II) havia fugido do convento e as demais estavam alteradas.
Ou seja, ao que parece, apesar da Arquidiocese ... já ter conhecimento dos relatos dos maus tratos, esta intervenção solicitada ao Padre UUU teve em vista principalmente pôr termo a praticas devocionais inadequadas, supostamente levadas a cabo pela Fraternidade e não tanto averiguar da veracidade dos relatos.
Também sobre esta alegada preocupação da Arquidiocese relativa a este tipo de práticas, regista-se alguma ambivalência, pois que, segundo resultou do depoimento da testemunha YYY, que frequentava os convívios e cujas filhas ali passavam férias, chegou a ver num dos convívios da Fraternidade, o Bispo ..., Dom NN, que esteve presente numa das ocasiões em que esteve presente a Vassula.
Nessa medida, mal se compreende que o Arcebispo de ... participe em celebrações religiosas levadas a cabo pela Fraternidade, nas quais esteve presente a dita Vassula e onde terão sido expressas suas revelações privadas e, hipocritamente envie um emissário para pôr termo a essas praticas devocionais inadequadas, consubstanciadas designadamente nas revelações privadas nas quais participou e às quais emprestou crédito com a sua presença.
Seja como for, para além desta lamentável hipocrisia, não podemos deixar de censurar este modelo de intervenção que sempre estaria condenado ao insucesso, pois que, como saberá qualquer investigador amador, não é hábil questionar vitimas, sobre a ocorrência de castigos, agressões físicas e verbais, no ambiente em que se encontram presentes os alegados agressores.
Também não deixa de ser paradoxal que, quando a Arquidiocese ... tomou conhecimento dos relatos dos maus tratos – em 2014/2015 -, para além de nada ter feito em prol da proteção das vitimas, ainda tenha vindo a terreiro, através do seu Arcebispo, sustentar publicamente que as arguidas e Assistentes não são freiras, nem estão validamente consagradas, procurando por essa via, desresponsabilizar-se do escândalo publico relativamente ao qual, como vamos ver, está mais do que comprometida.
E, está mais do que comprometida, porque algumas das Noviças foram consagradas em cerimónias religiosas presididas pelo então Bispo Emérito, não sendo crível que este não tivesse a autorização expressa ou tácita do Bispo em exercício de funções.
Alias, pouco tempo antes de virem a publico os relatos de maus tratos, mas já depois da Arquidiocese ter pleno conhecimento dessas praticas devocionais, ditas inadequadas, já a Arquidiocese ... havia procurado reforçar a sua tutela sobre esses entes, através da revisão dos Estatutos da Fraternidade e do Centro Social, por causa do alegado “impacto social” que estavam a ter junto da comunidade.
Ou seja, como vamos ver, já depois da Igreja ter tomado conhecimento de praticas devocionais inadequadas, ainda assim procurou estreitar a ligação com os referidos entes, através do mecanismo de revisão dos estatutos, ao invés de se demarcar e exigir dos entes o necessário ajuste dessas práticas.

Outra das medidas adotadas pela Arquidiocese ..., na sequencia dos aludidos relatos, consubstanciou-se na expulsão de dois dos elementos mais diretamente comprometidos com a autoria desses maus tratos, de acordo com tais relatos.
Segundo os depoimentos das testemunhas Dom NN, Padre UUU e do declarante Padre QQ, a arguida BB aceitou sair da Fraternidade contrariada, acatando uma ordem/sugestão que lhe foi dada pelo Bispo. O padre UUU nega, contudo, que tenha dito à BB que tinha que ser internada.
Neste particular, a versão da arguida BB é a de que foi posta fora da instituição. Segundo relata, havia um sacerdote, enviado pelo Arcebispo – que identifica como tendo sido o Padre UUU-, que ia à Fraternidade fazer a confissão, numa altura em que já haviam cartas a circular. Pouco antes, o identificado Sacerdote questionou a arguida, perguntando-lhe: Você obedece? E, na sequência disse-lhe: “Tem de ser internada”. A arguida interrogou-o: “Porquê?”, tendo este respondido: “Porque está doente”!
Perante o inusitado desta ordem, a arguida pediu para convocar as irmãs e um médico. Nessa altura, o sacerdote exigiu: “A BB vai deixar de ser responsável”, ao que a arguida respondeu que, nessa parte, obedeceria porque é da competência do seu interlocutor, mas exigiu que tudo ocorresse na frente dos demais responsáveis pela Fraternidade. O sacerdote ainda lhe retorquiu: “Apesar de tudo admiro a sua frontalidade”, ao que a arguida respondeu: “Eu a si não o admiro” e a partir daí começou a ter mau ambiente na instituição.
Quando a Policia Judiciária fez inspeção judiciária e depois das arguidas CC e DD terem prestado declarações no M.P., foi-lhe dito pela arguida CC que daria jeito que saísse por dois ou três dias. A arguida acatou a ordem e regressou para junto da sua família e, passados dois dias, ligou e disseram-lhe que não poderia regressar, até porque estavam fora a LLL e HH e tinham a expetativa que estas regressassem.
Uns dias mais tarde voltou à Fraternidade e disseram-lhe: “Tens de sair, senão tiram-nos a casa”, altura em que agarrou em algumas das suas coisas e deixou aquela casa. Ainda ensaiou regressar lá novamente, mas constatou que as co-arguidas mudaram as fechaduras. Confirma que, mais tarde foram buscar o padre AA à Casa Episcopal de ..., para onde foi levado, sendo que ele e as duas arguidas ainda permanecem lá.
Quando foi instada pelo Padre UUU para ser internada e abrir mão das suas responsabilidades, sentiu que a obra estava a passar por uma provação, pareceu-lhe que quiseram criar um bode expiatório. Já depois de sair, perguntou ao Arcebispo, porque a expulsaram e obteve como resposta que, os responsáveis pela Fraternidade não a queriam lá. Nessa altura em que lhe foi pedido que saísse, o Padre AA disse-lhe: “pela obra humilha-te até ao fim”.
Seja como for, esta medida afigura-se incompreensível e paradoxal, pois que, das duas uma: ou o Arcebispo, depois do acompanhamento que solicitou ao Padre UUU e da informação que este ali colheu, atribuiu crédito aos relatos, caso em que tal medida poderia ser necessária, mas manifestamente insuficiente, ou não lhe atribuiu esse crédito, caso em que a adoção de tal medida se reconduz a um exercício de pura hipocrisia.
Como se percebe do teor destes depoimentos, a primeira preocupação da Arquidiocese, perante o relato dos maus-tratos, foi expurgar as “maçãs podres”, na expetativa de preservar a árvore inquinada.
Seja como for, o afastamento da Arguida BB e do arguido Padre AA acabou por se revelar uma intervenção estratégica da Igreja, com vista a permitir o retorno à Fraternidade das ofendidas HH e da GG, como veio, aliás, a suceder, sendo certo que o retorno destas noviças, já após a intervenção da P.J., é adequado a criar a aparência de que, com a saída daqueles dois elementos, o problema estaria sanado.
Para se compreender as razões do retorno à Instituição destas duas noviças, importa atentar no teor do depoimento da testemunha ZZZ - Coordenadora do Centro de Acolhimento e proteção às vitimas de tráficos de seres humanas -, que, em Novembro de 2015, acolheu as ofendidas GG e a HH, para dar assistência a estas vitimas de tráfico de seres humanos. Para além das sequelas físicas detetadas na GG, resultantes de um problema urinário não tratado, bem como problemas ao nível da saúde oral, a testemunha descreve o estado psicológico destas duas pessoas que estiveram em situação prolongada de exploração (15 e 25 anos, respetivaente). Explicou que as mesmas estavam muito submissas e incapazes de identificar o processo de vitimização de que eram alvo e fechadas a outra realidade, tinham um perfil muito ansioso e evidenciavam sintomas de perturbação de stress pós-traumático. Quando estiveram no centro de acolhimento – desde ../../2015 até ../../2016 -, foram objeto de um trabalho para integrar o seu processo de vitimização, que aconteceu em local protegido e acompanhado, período durante o qual receberam acompanhamento psicológico regular.
Numa fase inicial, as vitimas não estavam preparadas, tiveram dificuldade em aceitar ajuda, apoio e assistência, quase não contaram o que vivenciaram e só quando se sentiram seguras e começaram gradualmente a integrar o processo de vitimização é que começou a haver mais partilha e começaram a relatar situações de privação, mau trato, violência física a que eram sujeitas, explicando que eram agredidas com recurso a sacholas, vassouras, sofriam castigos e punições de cariz sexual, dormiam com almofadas com vidros, rezavam em cima de milho, sofriam privações e castigos associados a algo que supostamente não fizessem bem, suportadas numa ideia de um Deus castigador.
Elas acreditavam nesta doutrina, sentiam que tinham de ser punidas desta forma e, neste quadro foi mais difícil desmistificar. A LLL tinha problemas de saúde e achava que podia ficar pior se abandonasse a vocação. Relataram o medo, terror que fossem punidas pela providencia divina e era notório que eram vulneráveis a este tipo de coação. A LLL falou de uma hierarquia entre a GG e a HH, porque a primeira estava há menos tempo e teria de obedecer à segunda, mesmo a aceitação da oferta de ajuda, teve de partir da HH, que foi a primeira a dar a primeira resposta positiva.
A dado o momento, após um encontro com a CC, elas foram manifestando vontade de regressar à Fraternidade. A GG e a HH sentiam necessidade de continuar o seu projeto de vida ligado à religião, alegando que investiram muito na sua vocação. O centro de acolhimento empodera as pessoas para prosseguirem seus objetivos, elas acreditaram que as duas pessoas mais comprometidas com este maltrato (BB e Padre AA) tinham sido afastadas, o que lhes foi prometido pela CC e que, de futuro, todas poderiam gerir de forma igualitária, sem hierarquia, houve uma esperança que as coisas pudessem mudar, e começaram a desejar voltar ao local onde deram muito de si, mas protegidas e com outro fito. Elas regressaram com esta esperança.
A testemunha soube mais tarde pela LLL que regressou o padre AA, que a EE também tinha regressado e viria a saber que, mais tarde, a LLL afastou-se definitivamente da Instituição porque o estado de coisas, na perspetiva desta, manteve-se inalterado.
Dos autos avultam as cartas de fls. 675 e 676, remetidas pela HH e GG, dirigidas à titular do Inquérito, datadas de 13 de janeiro de 2016, informando o propósito de regressar à instituição em face da saída da BB e do Padre AA.
Registe-se neste particular, o inusitado “Parecer Jurídico”, emitido pelo Causídico HHH, que nos autos representou, até ao termo do julgamento, a arguida BB, do qual resulta além do mais que, tendo a Irmã BB sido afastada da Fraternidade Missionária ... no dia ../../2015 e, visto que, com o afastamento desta, deixa de existir “perigo judicial”, é o mesmo de opinião que as irmãs HH e LLL, se for vontade destas, podem voltar ao Convento a ..., pois estão reunidos todos os requisitos para a segurança destas, bem como não existe nenhum impedimento quer jurídico, quer de ordem religiosa – cfr. fls. 657.
Aliás, as Assistentes HH e LLL explicam, que depois da intervenção da P.J., perante a saída da BB e do Padre AA, pediram à Exma. Titular do Inquérito para regressar à Fraternidade e regressaram em Janeiro de 2016 e, nessa altura, o padre estava na casa Sacerdotal de ... e foi a arguida CC e a Assistente HH que o foram buscar, o que evidencia alguma insubordinação das arguidas à entidade que erigiu as pessoas jurídicas que representam.

Outra medida adotada pela Arquidiocese ... na sequencia do relato dos maus tratos, redundou na Provisão, datada de ../../2016, na qual Dom NN demitiu os órgãos sociais e nomeou, pelo período de um ano, uma comissão administrativa, já depois, da expulsão da arguida BB e do Padre AA.
Também o Padre QQ, na senda do que afirmou Dom NN declara que, quando em 2015, surge a problema, o Arcebispo nomeou uma comissão administrativa para a Fraternidade e Centro social, composta por algumas pessoas, o declarante e o padre UUU. A comissão nomeada nunca tomou posse, porque em Fevereiro, os membros nomeados dirigiram-se às instalações da Fraternidade e depararam-se no exterior, com umas dezenas de pessoas (em cujo grupo não estavam incluídos os arguidos) que os apedrejaram, insultaram e impediram de entrar nas instalações e de tomar posse.
Também a testemunha TT, que era pároco em ... (...), agora em ... e ..., declarou que fez parte da referida comissão administrativa, em finais de 2015, nomeada pelo D. NN, com a incumbência de se inteirar, juntamente com os demais membros, da situação vivida na Fraternidade, para ver o que se poderia fazer. Nunca chegaram a tomar posse, porque lhes foi vedado o acesso à instituição, tendo sido alvo de insultos verbais. O padre UU que fazia parte da comissão chegou a ser agredido. Segundo refere, a ideia era reorganizar. A comissão foi criada depois da situação vir a publico, na comunicação social, numa altura, em que já lá não estavam a BB nem o Padre AA.
Neste particular, resulta dos autos uma Provisão de 28 de Abril de 2016, lavrada por D. NN, Arcebispo RRR, que nomeia membros de uma Comissão de Acompanhamento e Discernimento para a Fraternidade Missionária ... e para o Centro Social de Apoio e Orientação ...; bem como uma declaração emitida em ../../2018, por D. NN, Arcebispo RRR, que reconhecendo que a Comissão não teve condições de concretizar a sua missão, nomeou de forma extraordinária e precária o Dr. Padre QQ e Padre AAAA, que ficaram encarregues de acompanhar a Fraternidade Missionária ... e o Centro Social de Apoio e Orientação ... até à resolução judicial do litigio nos tribunais civis, bem como o comunicado emitido pela Arquidiocese ... de fls. de fls. 448 e 930.
Como se constata esta intervenção veio a revelar-se completamente inoperante.

Segundo se julga, a única intervenção válida da Arquidiocese ..., consubstanciou-se na pressão exercida junto dos arguidos, para que a GG pudesse visitar seus familiares na casa destes, deslocando-se, sem a presença das arguidas, faculdade que até então sempre lhe foi vedada, intervenção essa traduzida na troca da seguinte correspondência.
- Carta remetida pelos pais da GG ao Padre D. XXX, de fls. 975 a 979, a reportar o estado de saúde da filha no interior da instituição.
- E-mails de 6 e 9 de fevereiro de 2015 e 16 de março, que consubstanciam as respostas do Padre VVV, sobre o direito da ofendida GG não mais voltar para a Fraternidade e sobre o teor da carta onde denunciava os maus tratos sofridos na instituição;
- Cartas remetidas pelo Padre VVV a fls. 988, 991, 993 a 997, 998 e 999, dirigidas aos pais de GG informando que escreveu uma carta à Fraternidade Missionária ..., pedindo que a GG visite a família sem a presença de outras irmãs e sobre a saúde da filha.
- Carta de 8 de Janeiro de 2015, remetida pelo Padre VVV, dirigida ao Padre AA, de fls. 62 do Anexo I, sobre as visitas da EE e LLL às suas famílias, bem como sobre outros aspetos relatados em denuncias das demandantes.
- Carta remetida pela Arquidiocese ... ao Padre AA, datada de 29 de abril de 2015, manifestando incomodo por não ter sido comunicada à Arquidiocese, a não deslocação da GG a casa, sugerindo novas datas para essa deslocação se concretizar – fls. 26 do Anexo I;
- Carta datada de 1 de Junho de 2015, remetida pela Ilustre mandatária dos pais da ofendida GG, dirigida à Arquidiocese ..., pugnando para que diligencie junto da Fraternidade Missionária ... para que seja autorizada a deslocação da filha a casa, por período não inferior a 15 dias, para que a mesma possa tratar de assuntos relativos à sua saúde – cfr. fls. 23  24 do Anexo I.
- Carta remetida pelo Con. AAAA, dirigida à Ilustre Mandatária dos pais de GG sobre as deslocações desta a casa da família – fls. 55 e 56 do apenso B;
Esta intervenção acabou por não ter grande efeito porque, por carta dirigida pela GG à Diocese ..., dotada de 11/05/2015, esta informou as razões pelas quais não pretendia ir a casa, tendo o próprio Padre UUU, nas declarações que prestou em fase de inquérito a fls. 509 a 512, reproduzidas em audiência, admitido que estava convencido que a LLL não teria querido ir a casa por medo de represálias.

Em suma, apesar dos inúmeros relatos de maus tratos protagonizados pelas noviças que haviam abandonado o “convento”, constata-se que a Intervenção da Diocese de ..., nunca priorizou nas suas intervenções, a proteção das vitimas (seja, as que ainda aí permaneciam, seja as que haviam encetado fuga), designadamente orientando-as para outras congregações, tendo-se quedado na sua intervenção pelo aspeto burocrático, consubstanciado na revisão dos estatutos daqueles dois entes jurídicos, no pedido de intervenção ao Padre UUU, para pôr termo a práticas devocionais inadequadas, na constituição de uma comissão administrativa e na medida cosmética consubstanciada na expulsão de dois elementos alegadamente mais comprometidos com esses maus tratos.
Todas as Assistentes, nos seus depoimentos, evidenciaram a falta de apoio que sentiram por banda da Arquidiocese ....
É, aliás, sintomático o que declarou a Assistente EE que referiu que, na sequencia da denúncia que efetuou junto dos órgãos eclesiásticos, chegou a ser recebida pelo BBBB e ouviu este dizer ao Dom NN que estivesse descansado porque eram apenas três senhoras humildes, o que evidencia que a Diocese ..., nunca se preocupou nem priorizou as vitimas, tendo direcionado o seu foco para questões burocráticas, ou melhor, patrimoniais, como mais adiante se verá.
Também a Assistente II refere que os pais fizeram queixas às autoridades judiciárias e ao Arcebispo de ... e foram ao encontro do Arcebispo em 2014. Também ela própria escreveu uma carta ao Dom NN e, quando regressou da ... foi recebida por um Bispo Auxiliar, XXX, que ouviu a sua versão, mas nunca agiu, nem sentiu qualquer apoio da Arquidiocese ..., embora tenha sido a partir dai que as jovens começaram a ir a casa.
Não deixa de ser sintomático do descaso que o Arcebispo atribuiu a este tipo de relatos, o facto de, no seu depoimento evidenciar desconhecer por completo o que resultou da conversa entre a Assistente II e o Arcebispo Auxiliar.
Na verdade, no seu depoimento, o mesmo reconhece que recebeu uma carta da II e dos progenitores, a agendar um encontro quando aquela se deslocasse a Portugal, data em que estaria de férias, razão pela qual calcula que a mesma tenha sido ouvida pelo seu substituto.
Ora, o facto de não se ter sequer preocupado em saber, quando regressou de ferias, junto do seu Substituto, o que resultou desse encontro, é bem sintomático do descaso que atribuiu ao assunto.
Aliás, no decurso do julgamento, foi notório que a preocupação da Diocese ... com a revisão dos Estatutos daqueles dois entes jurídicos, em particular do Centro Social, foi claramente motivada pela constatação de que este ente era titular de um avultado património, cujo valor ascende a mais de cinco milhões de Euros, momento a partir do qual o Exmo. Arcebispo se passou a preocupar com aquilo que foi designado por “impacto junto da comunidade”.
Perante essa constatação, a Arquidiocese consciencializou que só transformando o Centro Social num ente jurídico de cariz publico é que a Igreja podia ter o controle sobre a atividade económica daquele ente, através da prestação de contas e ter poder sobre os bens titulados pelo mesmo, poder esse que, em casos graves, conforme foi explicado, incluí o poder de extinção do ente, com a consequente reversão dos bens para a titularidade da Igreja.
Só assim se compreende que, apesar de saber da existência de práticas devocionais inadequadas, a prioridade da Arquidiocese ... tenha sido a revisão dos estatutos do Centro Social, revisão que lhe dava acesso à prestação de contas e, perante a noticia dos maus tratos, a Arquidiocese chegou mesmo a ponderar a extinção do Centro Social, que teria como consequência a reversão dos bens a favor da Arquidiocese e que, só não o fez, porque tinha consciência de que essa postura lhe iria ser censurada, tanto mais que já estava pendente a investigação judicial e era expetável que viessem a ser deduzidos pedidos cíveis pelas Assistentes, como efetivamente foram.

Quanto ao segmento do ponto 16º da factualidade provada, que alude ao Secretismo, o Padre QQ sustentou que, embora dentro da igreja católica existam vários tipos de espiritualidade, facto é que a espiritualidade presente nas obras da Fraternidade tem um cariz tradicional e ligada a uma parte espiritual mais fechada. Temos na Igreja católica, algumas devoções aprovadas a nível oficial, designadamente a devoção CCCC, reconhecida e aprovada pela igreja Católica e, por outro lado, a devoção de Medjugorje, não aprovada nem recomendada pela Igreja.
Quer dizer, a Fraternidade tem uma espiritualidade que funciona à margem da Igreja Católica, que não é conforme ao que a Igreja defende. Existem também conteúdos que a Fraternidade preconiza e que não eram aceites pela igreja católica, designadamente na parte em que esta aceitava como válidas uma serie de visões ou revelações privadas que a igreja recusa, bem como na parte relativa à forma como ali se celebra a capela da casa (o padre celebra a igreja de costas voltadas para o publico), postura que a Igreja entende que consubstancia uma forma mais tradicional de encarar a espiritualidade. Por outro lado, a Fraternidade aceita e preconiza uma visão de Deus mais castigador, exigente, rigoroso e não de um Deus Misericordioso, na linha do que preconiza a Igreja.
O declarante reconhece que haveria coisas que teriam de mudar para que a Fraternidade pudesse vir a ser uma Ordem Religiosa, estranhando este Tribunal que não tenham sido exigidas essas mudanças e esses ajustes, já aquando da conversão da União das Irmãs Missionárias ... em Associação Publica de Fieis e com a alteração dos Estatutos do Centro Social.
Também o Padre SS, relatou que discordava que as raparigas não pudessem usar calças e que a confissão tivesse de ser feita em grupo, pois que esse modelo de confissão violava o segredo de confissão.
Na mesma senda, o Padre TT, que também integrava a comissão nomeada pelo Arcebispo, reconheceu que na Fraternidade haviam regras rígidas, referindo a título de exemplo, o facto das senhoras não poderem usar calças, além de que usavam na Fraternidade uma linguagem milenarista, própria do fim dos tempos.
Ora, apesar de tais praticas não serem formalmente aprovadas pela Igreja Católica, ainda assim não podemos falar de secretismo, até porque, essas praticas eram divulgadas nas publicações periódicas da Fraternidade, nos convívios e cerimónias abertas ao exterior, nas quais algumas entidades eclesiásticas foram participando e, por isso, tais práticas nada têm de secretas.
De resto, consta dos autos uma carta datada de ../../2015, dirigida pelo Pe. UU ao Exmo. Arcebispo, D. NN, pedindo uma tomada de posição sobre praticas associadas à Fraternidade Missionária ..., relacionadas com a presença nas celebrações da Fraternidade Missionária ... de uma Vassula ligada às aparições de Medjugorje, sendo certo que, como vimos, o Arcebispo esteve presente numa dessas celebrações em que esteve presente a dita Vassula.
Nessa medida, foi levada a factualidade não provada – ponto 450º- o segmento da pronuncia onde se refere que os arguidos geriam o Centro Social com total secretismo.

Quanto ao ponto 17º da factualidade assente – relativo à condição de Freiras das noviças e das próprias arguidas -, segundo o representante do Centro Social, Padre QQ, na sua perspetiva, as arguidas não são freiras, mas podem assumir o nome de Irmãs, porque os membros de uma Confraria ou de uma Irmandade podem assumir votos, embora estes apenas sejam válidos internamente, porque o processo de consagração é um processo ao qual o Bispo tem de dar o seu aval.
A arguida BB, refere que, nos estatutos da Fraternidade de 1978, se alude ao ritual de consagração (votos internos). Internamente, houve celebrações para as noviças tomarem hábitos. As mais velhas tomaram hábito em Fátima. Na Fraternidade, a EE, LLL e II receberam o hábito em cerimonia presidida pelo Padre DDDD e o Dom PP deu habito a outras duas religiosas (WW e WW).
Ouvida em julgamento, a Assistente EE, referiu que, em 2012, ficou consagrada com os votos perpétuos dados pelo Sr. Padre AA.
A Assistente GG também refere que recebeu o hábito em 8/12/2012, no mesmo dia da EE, sendo certo que a família da EE não foi convidada, só assistiram os pais da declarante.
Também a Assistente II, declara que recebeu o hábito em Março de 2011 e estava convencida que ficara consagrada com os votos dados pelo Padre AA. Só quando estava cá fora, é que consultou um sacerdote que lhe disse que a Fraternidade não era reconhecida pela Igreja e só então descobriu que não era freira.
A Assistente HH refere que o Bispo Emérito da ocasião, Dom PP deu-lhe o habito em 8/09/1999, a ela e à WW. Estiveram presentes na cerimónia mais de 100 pessoas e 30 sacerdotes. Por isso, considera-se consagrada. Infelizmente, quando estes factos foram divulgados na comunicação social, os senhores padres de ... começaram a dizer que não são freiras, mas quando entrou nada disto lhe foi explicado.
Não obstante esta convicção das noviças e da própria arguida, na perspetiva do Padre QQ, estes atos não são atos de consagração que a igreja considere. Segundo explica, uma coisa é a convicção pessoal de cada um e, nesta medida, as arguidas e Assistentes podem ter feito a consagração em Fraternidade, mas a Igreja não se responsabiliza nem reconhece validade a estes atos. A nível de devoção pessoal podem receber o hábito, podem ser Irmãs de uma Fraternidade, podem fazer a consagração em Fraternidade, mas são atos pelos quais a Igreja não se responsabiliza nem reconhece, o que significa que oficialmente não são atos de consagração que a Igreja considere.
Por outro lado, não concebe que as noviças tenham sido consagradas, porque a nível oficial o Arcebispo não participou nessas celebrações. Na sua perspetiva, o Dom PP não poderá ter presidido a nenhuma cerimónia em nome do Bispo, pois teria de ter a concordância do Arcebispo para presidir à cerimónia dos votos. Também o Padre AA pode dar os votos desde que tenha autorização oficial, mas nunca tal autorização foi pedida e concedida pela Arquidiocese. Quando um Arcebispo Emérito se desloca a uma União das Irmãs Missionárias ... e celebra uma Eucaristia - trata-se de um ato de comunhão com os Fiéis – e quando instituí duas jovens e lhes dá votos, tem de requerer autorização ao sucessor.
Quem assistiu àquela cerimónia e quem a viveu não assistiu a mais do que uma celebração religiosa. Não há atas a documentar esses atos religiosos. A celebração em que a pessoa se compromete com um conjunto de votos: - Pobreza, Castidade e Obediência – exige constituições que a Fraternidade e o Centro nunca tiveram. Todavia, nada as impede de usar uma indumentária e se intitularem como Irmãs porque são uma Irmandade. Os arguidos sabiam que não tinham sido eretos enquanto ordem religiosa. Aliás, se a arguida BB fosse freira teria de passar um processo de exclaustração, o que não sucedeu justamente porque não tem os votos oficiais.
Já quanto às noviças, o declarante desconhece se sabiam desta “fragilidade” e concebe que certamente não saberiam se aquelas instituições eram pessoas jurídicas canónicas publicas ou privadas, nem das diferenças de regimes entre ambas.
Numa linha de entendimento diferente, VV, que foi Arcebispo de Évora, agora Arcebispo Emérito, declarou conhecer os arguidos, desde os anos 70. Foi Arcebispo de Évora durante 10 anos e todos os anos, os arguidos o visitavam, por ocasião em que o padre AA dava volta a Portugal, para visitar os estabelecimentos prisionais, distribuindo publicações pelos reclusos que imprimiam na tipografia, que tinham um sentido humanista, algumas de caracter religioso.
O que mais apreciava era o facto do padre AA ter o zelo pastoral de visitar os 51 estabelecimentos prisionais que existem em todo Portugal. Nunca lhe perguntou se o Arcebispo de ... estava a par daquela intervenção, porque partiu do principio que estando o mesmo integrado na Diocese ... – apesar de estar incardinado na Diocese ... e ... - e tendo criado a Fraternidade teria certamente a aprovação do antecessor deste, enquanto Associação de Fieis. As arguidas usavam e usam um hábito próprio de pessoas consagradas na Igreja (freiras). As congregações que existem dentro da igreja, algumas multiseculares, umas são aprovadas pela Santa Sé e outras pelo Arcebispo da Diocese, mas todas tiveram de percorrer um longo caminho até essa aprovação. Podem haver institutos seculares e congregações: os primeiros não estão obrigados à vida em comunidade e as ultimas sim, mas todos podem ter votos. Relativamente a estas instituições, a autoridade principal é o Bispo que pode delegar em terceiro para aceitar os votos, no caso, o Padre AA, enquanto fundador, desde que o faça em comunhão com o Bispo da Diocese. Na sua perspetiva, um Arcebispo Emérito, com outro em funções, pode presidir a uma cerimónia de votos, se o efetivo assim o entender. Se não tiver o consentimento do outro o ato é nulo. Conheceu o Dom PP, que era Arcebispo Emérito e acha que este não iria presidir a uma cerimónia de votos sem o consentimento do Bispo em funções.
Esta instituição está no principio, tem o seu fundador e o Bispo que a aprova. Se der provas, a Santa Sé também pode vir a aprovar. Até chegar a esse ponto, já foi uma União das Irmãs Missionárias ... e agora é uma Associação pública de Fiéis, têm vida comunitária e podem ter votos. Temos o embrião de uma vida de consagração. Esta instituição sempre teve os Estatutos aprovados pelo Bispo .... Antes era União das Irmãs Missionárias ..., agora é uma Associação publica de Fiéis.
Na sua perspetiva, se as noviças fizeram votos perante o fundador ou perante o Bispo Emérito, com autorização do Bispo em funções, são consagradas.  Refere a identificada testemunha que, Dom NN disse publicamente nas televisões que as irmãs não eram consagradas. Mas a consagração não depende do Bispo. Há pessoas leigas que vivem sua vida normal e são consagradas. Elas não são uma Ordem Religiosa. Quanto a serem consagradas não pode afirmar, porque não sabe se o D. PP e o Padre AA estavam implicitamente mandatados e autorizados pelo Bispo, Dom NN (em funções) para presidir àquelas cerimónias (votos). Se Dom NN sabia dos atos e não se opôs, implicitamente concordou com a realização dos mesmos.
Perante estas versões contraditórias, o tribunal convenceu-se apenas que as arguidas e noviças não tinham votos reconhecidos pela Igreja, embora não deixe de estranhar que a Igreja tenha compactuado ativamente com esta ambiguidade e que só perante o escândalo publico, se tenha vindo publicamente demarcar dos entes que erigiu, negando a condição de freiras daquelas noviças, quando é certo que duas delas tomaram votos em cerimónias presididas por uma Alta Autoridade Eclesiástica ligada à Arquidiocese ... ( Dom ..., Bispo Emérito de ...) e outras três, em cerimónias presididas pelo fundador da Obra ( Padre AA), sendo de estranhar que Dom. PP tivesse presidido a uma cerimónia desta envergadura à revelia do seu sucessor.
Aliás, o Tribunal não deixa de lamentar, a posição esquizofrénica que a Arquidiocese vem assumindo nestes autos, porque se é certo que assume que tem a tutela daqueles dois entes ( pelo menos, depois e 2014), ao ponto de ter aventado a hipótese da sua extinção, com a consequente reversão dos bens para a Igreja, facto é que nunca se preocupou com a lesão das expetativas destas jovens, que entraram na Fraternidade convictas da sua vocação religiosa e que naturalmente almejavam a sua válida consagração.

Sobre a forma como estavam distribuídas as tarefas no seio da Fraternidade – matéria que integra os pontos 18º e 19º -, a arguida BB, explicou como nasceu a obra e refere que o Padre AA foi o fundador da obra, as mais velhas nasceram de cursos que o Padre fez à Juventude “Cursos Dominique”, no âmbito dos quais havia muitos jovens a trata-lo como “Pai”. A arguida CC foi a primeira que se entregou, tratava da tipografia, da parte financeira e das relações com o exterior; a arguida DD era uma irmã que auxiliava nas tarefas, tinha um especial jeito para cozinhar e a declarante dirigia as tarefas internas da casa e assegurava a orientação vocacional das “consagradas”. Tinham todas o mesmo espirito, viviam uma vida em Fraternidade.
Também segundo o depoimento das Assistentes EE, HH, II, LLL, JJ, FF e KK, o arguido Padre AA era o fundador, as arguidas deviam-lhe obediência. A arguida CC tinha a seu cargo a gestão financeira, tipografia, cadeias e tudo o que envolvesse contato com o exterior. Já a arguida BB tinha a seu cargo a gestão interna da casa e das vocações, a arguida DD era praticamente como elas, tratava da cozinha, animais, embora não sofresse agressões nem castigos. A demandante KK, quanto à divisão de tarefas, refere que, quem designava os trabalhos era a BB, foi ela quem lhe deu a ordem sabática. A DD estava no mesmo patamar que as noviças, ajudava na cozinha, mas não sofria castigos nem agressões. A CC exercia a sua função de escritório, o padre presidia à eucaristia, não conviviam diretamente com eles, o que não significa que não soubessem o que ali se passava.
Em face destes depoimentos, o tribunal convenceu-se que as tarefas estavam divididas conforme descrito nos pontos 18º e 19º.

Quanto ao ponto 20º da factualidade provada – no segmento em que se alude à existência de um plano entre os arguidos que passava pela angariação de jovens, com o objetivo de através de um clima de terror, explorar o resultado da sua prestação de trabalho - a arguida BB enjeita que as jovens fossem angariadas, referindo que quando estas senhoras chegaram à obra, esta já existia. As obreiras foram as arguidas, as noviças gostaram do ambiente e quiseram ficar, os arguidos nunca andaram atrás de ninguém, nem angariavam ninguém. A arguida limitava-se a falar da obra com entusiasmo, junto delas, incentivando-as: “Não quereis seguir?”.
Todavia, as Assistentes e outras noviças que for ali passaram dão nota de técnicas usadas pelos arguidos, direcionadas precisamente para essa angariação.
A testemunha OO, que fez o Curso Dominique e ingressou na Fraternidade em ../../1974, onde permaneceu até ../../1988, quando esta tinha a sua sede no ..., explica que estudava magistério, reconheceram-lhe vocação e o Padre AA, a CC e a BB, pressionaram-na e forçaram-na a entrar na Fraternidade, a pretexto de que, se não entrasse, não a recebiam no magistério e que se não fosse naquela altura já não a recebiam, admitindo que teve medo de ser infiel a Deus e aceitou.
Também a Assistente II, refere que a BB abria um dos livros à sorte e começava a ler um segmento da leitura no qual Jesus alegadamente dizia: “Chamei-te” e, ao ouvir aquelas palavras, o Assistente julgou ter começado a sentir a vocação religiosa e decidiu que queria ficar.
A Assistente LLL refere que sentiu pressão da Irmã HH e mais tarde percebeu que tinham que angariar jovens e começou a ser insultada por não incentivar as vocações. Estava infeliz, perdeu o animo pelo estudo e lá a convenceram da suposta vocação.
A Assistente JJ, refere que, logo que ali chegou, a BB disse-lhe: “tu foste chamada, tens vocação” e foi praticamente forçada a ficar e, logo no primeiro dia ficou sem documentos, apesar de ter comprado viagem de regresso à Madeira, agendada precisamente para o dia do seu aniversário.
Na mesma linha, a demandante FF, declarou que entrou 21 Out 2013 e que, quando ficou a dormir na instituição, antes de decidir ficar, os arguidos foram dizendo que tinha vocação, que Deus a chamava e antes de ir ter com os pais, a BB disse que devia ficar e ficou. Eram lidos livros que elas publicavam, alguns deles de Santos e, aos domingos, a BB dizia: “Jesus fala” e abria o livro à sorte e lia “Fica comigo” e a declarante interpretava como sendo um chamamento divino. Os pais foram-se embora e ficou por mais uns dias. Nesses dias foi convencida a ficar lá, que tinha vocação, ia lendo passagens de livros a dizer que Deus estava a chamar, foi ficando e convenceram-na a ficar.
Perante estes depoimentos, o tribunal convenceu-se que as jovens eram literalmente angariadas e que essa angariação fazia parte integrante do plano estabelecido pelos arguidos.

Ainda sobre o ponto 20º, 33º e 34º - respeitante à utilização da força de trabalho das jovens para incrementar o património do Centro Social, na modalidade de poupança de despesas – resultou dos depoimentos das Assistentes que, apesar de, a partir de 2002, terem passado a contar com algum apoio do YY, todos os dias, no jardim e, mais tarde, em 2015, também com o apoio da mulher EEEE, facto é que o trabalho que estas eram forçadas a executar, foi decisivo  na manutenção e conservação das instalações do Centro Social. O Sr. FFFF e o CCC (eletricista) eram também trabalhadores remunerados, mas para além destes colaboradores, todas faziam trabalhos pesados nos jardins, bouça e no exterior.
Em matéria de trabalho desenvolvido, a testemunha EEEE, declarou que trabalhou na fraternidade e fez a limpeza das capelas, bouça e jardim. Foi para lá em 2015, como efetiva, mas trabalhava desde 2004, aos sábados, feriados, noites de verão. O marido começou em 2004, como efetivo, antes já trabalhava aos feriados e sábados desde 2002. Terminou em setembro de 2018 e o marido no fim do ano, na sequencia de um acidente. Explicou que as noviças faziam de tudo, barriam, abatiam arvores, cavavam terra, carregavam estrume, carregavam lenha. O horário da testemunha era das 8h às 18h, mas quando lá chegava, as noviças já estavam a trabalhar cá fora e quando se iam embora, elas continuavam esses árduos trabalhos. Elas queixavam-se que trabalhavam até às 3 h da madrugada na tipografia.
A testemunha YY, marido da testemunha anterior, fez trabalhos de jardineiro, tinha um horário de trabalho, trabalhava das 8h até às 12h e das 14h até18h. Só executava trabalhos no exterior e conheceu lá as noviças, porque andavam todos juntos a trabalhar. Refere que, quando saiam, pelas 18 horas, elas continuavam a trabalhar e quando chegava elas já estavam a trabalhar. Elas comentavam que ainda trabalhavam lá dentro de casa.
A declarante HH refere que, durante 10 anos trabalhou fora, só em 2004, substituiu a MM no escritório, mas também ia para fora quando a BB decidia. Quando havia um livro para fazer, admite que trabalhassem 13 ou 14 horas seguidas, mas não era sempre (cfr. declarações prestadas a 19/11/2015, linha 171, reproduzidas em audiência).
Também a Assistente GG refere que chegou a trabalhar 20 horas ou mais, que se levantavam às 4 da manha para queimar lixo, trabalhar na bouça e no jardim e para rachar lenha. Ela e a EE tinham que colocar lenha em cima do trator. Mas, pelo menos 10, 12, 14 horas era o normal.
  Em suma, o tribunal convenceu-se que os arguidos engendraram um plano que passava pela angariação de jovens com um determinado perfil, para as convencerem a ingressar na Fraternidade, a pretexto de que teriam sido brindadas com um chamamento Divino e que teriam vocação religiosa, para através da instalação de um clima de medo e  de terror, as convencerem a executar longas e pesadas jornadas de trabalho e assim incrementarem o património do Centro Social, na modalidade de poupança de despesas, pois que, não fosse o trabalho das Assistentes, teriam de suportar os custos da contratação, em regime de permanência, de meia dúzia de trabalhadores, que implicava custos que acabaram por ser poupados.

Já quanto ao perfil das jovens – matéria que integra o ponto 21º -, refere a arguida BB que, para os arguidos, o perfil nunca foi importante, o que relevava era a entrega. Todavia, relata que uma das acolhidas era uma rapariga da Madeira, a JJ, que dormia debaixo da ponte, fugia à família, envolveu-se com pais de família, fez vida com pessoas casadas, era uma moça desfeita, não teria ainda 20 anos quando veio para a Fraternidade, sentia-se presa e acolheram a rapariga.
A outro propósito, quando a arguida BB descreve a GG, refere que, quando veio para a Instituição, era muito triste, não falava, era difícil, muito fechada. Também afirmou que a ofendida tinha dois problemas: por um lado, havia uma tia, irmã da mãe que se havia suicidado e ela tinha aquele desgosto dentro dela e, por outro lado, ela era a única rapariga e os irmãos quase todos rapazes e teria sido alvo de abusos protagonizados pelos irmãos e estaria deprimida.
Também sobre a II, a arguida BB refere-se à mãe da mesma em termos desprimorosos, quando alude à saída da mãe de um convento em que chegou a estar integrada.
Sobre a LL, a arguida BB diz que foi amiga dela e nada fez para a prejudicar, mas que ela tinha uma vida triste, os pais tinham-se separado, batiam-lhe muito, havia relatos que o pai se “servia dela”.
Ora, como se constata, a própria arguida acabou por reconhecer, com estes relatos que, pelo menos algumas das “consagradas” teriam esse perfil comum: raízes humildes, oriundas de famílias desestruturadas, algumas alvo de abusos do pai ou dos irmãos, poucas qualificações académicas ou emocionalmente fragilizadas.

Quanto ao doutrinamento que fazia parte integrante do plano traçado pelos arguidos – matéria que integra os pontos 22º e 23º, 31º e 32º  - a arguida BB admite que pode ter sido lida alguma literatura escrita por fundadores de obras religiosas e até mesmo a bíblia da qual resultava que, quem abandonasse as suas vocações sofreria consequências, como castigos divinos, problemas familiares, mortes na família, pois que, segundo a arguida “Deus é serio e temos de viver a vida condizente”, mas ao mesmo tempo acrescenta que “é um Deus que perdoa e é misericordioso”.
Ora, como certamente não ignora a arguida BB e os demais arguidos, a ser verdade que Deus é Misericordioso como apregoa e como se acredita que seja, não é crível que quisesse arrastar almas contrariadas para suportar uma vocação religiosa, para atender a um pretenso chamamento divino, só com o receio de não sofrer consequências negativas nas suas vidas terrenas, mal se concebendo, além do mais que, um Deus Misericordioso use de retaliações desse jaez. Isto para significar que os arguidos bem sabem que que o discurso com o qual brindavam as noviças, redunda na invocação em vão do nome de Deus, mas que serve o propósito de explorar a fé das Assistentes e de melhor as sujeitar à relação de domínio dos arguidos.
Neste particular, sobre o doutrinamento, a Assistente II refere que conheceu a Fraternidade por intermédio dos pais que frequentavam a casa desde há alguns anos atrás, em 1999, tinha ido com os pais a um encontro e em agosto de 2004 foi lá passar férias.
A BB aos domingos, brindava-as com umas leituras de ..., que falava da vocação religiosa e das consequências sofridas por quem enjeitava a vocação. Os arguidos, em especial a BB, liam um livro de ..., que falava de uma visão de uma jovem que viu outra jovem a ir para o inferno porque era demasiado acarinhada pela família. Os exemplos serviam para retardar a sua decisão de sair mais cedo. Ainda hoje quando os pais estão doentes, a declarante sente-se culpada, por causa da doutrina que absorveu. Quando fugiu da instituição, tinha medo de ser apanhada, porque sempre a BB lhe dizia: “se saíres daqui vais para o inferno, a tua família vai ser condenada”.
Também a Assistente HH aludiu às leituras de Domingo, feitas pela BB, com recurso às identificadas literaturas: ... e ..., das quais resultava que, se deixassem a vocação seriam castigadas.
Também a demandante KK refere que a BB, todos os domingos lia um livro que falava de pessoas que abandonaram a instituição: todos elas acabaram em miséria e a família acabava com problemas. Acreditava que a família estava bem por causa dela lá estar e não saiu antes, com medo que a justiça divina, tal como lhes era apresentada, recaísse sobre ela. Quando saiu em Maio ficou dentro de casa até Setembro, com receio do que as pessoas iam pensar e sobretudo com o trauma do que a BB disse, tendo recebido apoio de psicólogos e psiquiatras.
Perante todos estes depoimentos, o tribunal não teve qualquer duvida que era feito este doutrinamento e que ele fazia parte do plano engendrado pelos arguidos.
Também quanto ao ponto 24º - que tem que ver com as agressões físicas, verbais e castigos ali implementados pelos arguidos, para a concretização do dito plano - a arguida BB admite que, por vezes, se podiam aborrecer e dizer algumas palavras menos acertadas pelas quais pede perdão e que em tempos chegou a dar umas chapadas, explicando essa sua atuação com a educação que recebeu da sua progenitora: “também apanhei da minha mãe e ela amava-me e eu também as amava e ainda as amo”.
Neste particular foi relevante o depoimento da identificada testemunha OO – que ingressou na instituição em ../../1974 e aí permaneceu até ../../1988 -, que refere que começou a ser vitima de agressão física e psicológica, dois ou três anos depois de ter entrado. A dado momento, a declarante começou a ver que entrava uma e saia outra, achou que não tinha futuro, ficou triste e quem ficasse triste estava com o demónio e era espancada, tendo começado a ser vitima de agressão física e psicológica. O Padre AA e a CC batiam muito, mais tarde começou a BB a bater e era muito cruel. Quando dizia que queria ir embora era agredida. Relata que um dia disse que ia embora e apanhou o dia todo, da CC, BB e do padre AA, ao mesmo tempo que a insultavam. A declarante foi a 14ª a sair desde que entrou, quem saia apanhava muito e também lhe imputavam má fama, que as impedia de entrar noutras congregações. A arguida CC disse que preferia vê-las sair mortas que vivas. Houve um dia que estava decidida a ir embora. Tentou sair à noite com elas a verem, mas insultaram-na, todos os arguidos, com palavras muito feias: “Filha da puta, monte de merda, inútil, infiel”.
Muitas que saíram antes dela, já tinham falado com outras congregações, mas estas pediam informações ao Padre AA e este dava más informações e não conseguiam entrar. A declarante foi a primeira a sair de cara levantada e sem más informações. Quem lhe deu força foi o Cônego GGGG. Um dia chovia, havia água no chão, não viu, escorregou, tinha plantas, partiu um dedo em uma raminha da planta; ralharam-lhe tanto pela planta e não se importaram com o dedo, tendo aproveitado esse episódio para decidir: “hoje mesmo saio desta casa”. Nesse dia saiu mas levou uma coça com as cordas, todos os arguidos lhe bateram até a deixar negra, mas saiu e não mais regressou. Só esteve um mês em casa e entrou noutra congregação.
Deste depoimento retira-se que, nos primórdios da criação da obra, quando esta ainda funcionava no ..., já eram praticadas agressões físicas, verbais e que os arguidos AA e CC batiam muito, sendo de concluir que esta estranha forma de “correção fraterna” foi idealizada e implementada por estes dois arguidos e, só mais tarde aprofundada pela BB, com laivos de grande crueldade.
Peante estes depoimentos, o Tribunal convenceu-se que esses maus tratos traduzidos em agressões físicas, verbais, castigos e privações, faziam parte integrante do plano estabelecido pelos arguidos, como forma de implementar o clima de medo e temor e subjugar as ofendidas ao seu domínio.

A arguida confirma os períodos de permanência das jovens na Fraternidade, referidos no ponto 26º, apesar de já não estar na Fraternidade desde ../../2015, referindo que tem a ideia de que a HH e a EE ainda lá estão, que a II, JJ fugiram e que a LL e KK foram expulsas. A EEE aproveitou uma saída a casa dos pais para não mais regressar e a GG, já depois de ter regressado à instituição, terá saído definitivamente.
Neste particular, al matéria teve assento na factualidade provada em face do depoimento da arguida e das Assistentes.

Sobre o ponto 27º - designadamente sobre a autoria das agressões físicas e dos castigos -, a maioria das Assistentes, com exceção da HH, referem que a mão principal era da BB, mas ao que parece, nem sempre terá sido assim.
A testemunha MM, que fez parte da Fraternidade, desde 1968 até Out de 1973, numa altura em que esta funcionou na ... e Lisboa, sob a responsabilidade do Padre AA, como diretor espiritual e numa altura em que estavam presentes a CC e outras noviças (a HHHH, a IIII, a FF e a JJJJ), pois que a BB só ingressou em 1971 e a DD também ingressou mais tarde, numa altura em que já funcionava em Lisboa, refere expressamente que nessa altura, não havia maus tratos.
Já o mesmo não se diga, quando a Fraternidade começou a funcionar no .... Sobre este período, foi determinante o depoimento da testemunha OO, que explica que ingressou na Fraternidade desde ../../1974 até ../../1988, quando esta ainda funcionava no ... e refere que começou a ser vitima de agressão física e psicológica, dois ou três anos depois de ter entrado. O Padre AA e CC batiam muito, mais tarde começou a BB a bater e era muito cruel.
Deste depoimento resulta que, quando a obra da Fraternidade começou a ter lugar no ..., o Padre AA e a arguida CC batiam muito, para desmotivar saídas da Instituição e, por isso, já usavam os castigos e agressões físicas, para manter as jovens subjugadas à sua vontade e tolhidas na sua liberdade de auto-determinação.
Estes depoimentos entroncam com o que disseram as Assistentes que foram referindo que a CC teve dois cancros e que, na sequência desses problemas de saúde teria amaciado, mas tempos houve em que também fazia uso desses métodos repressivos.
Ora, todas as Assistentes - com a exceção daquelas que ainda permanecem na Fraternidade e que coabitam com os arguidos AA, CC e DD -, vão sustentando que os arguidos tinham conhecimento dos castigos, privações e exploração laboral que ali eram concretizadas, especialmente pela BB e apoiavam. A arguida CC dizia: “é bem feita” e, por vezes, em andamento ainda dizia: “filhas da puta”. Todas referem que, nem pensavam em desabafar em confissão ao padre AA porque ele apoiava incondicionalmente as condutas da arguida BB. Nas confissões, o padre dizia: “Sê uma igual à BB”, o que é bem revelador da sintonia existente entre os dois.
Já a Assistente HH não esconde que, quando ingressou na Fraternidade, quem a cativou foi a arguida CC, por causa do coração grande, que via a forma como a CC era tratada pela BB, pelo que considera não lhe adiantaria nada tentar impedir a BB, mas que a CC auxiliava às escondidas, concretizando que a CC chegou a levar-lhes comida às escondidas, porque não tinha tanto poder. A BB chegou a dizer: “não me digas que foi aquela filha da puta que vos deu de comer”. Se a CC dissesse alguma coisa à BB, ela ainda faria pior. Quando não bebiam água, as noviças viravam o copo para baixo para não terem de explicar à CC, senão ela diria: “tu não bebes?” e iriam sofrer represálias da BB. Já o padre AA acredita na BB. Quanto à irmã DD, refere a declarante que esta viu algumas vezes a BB a agredir; a CC e o padre não sabe. Por aquilo que via, sabia que a CC não podia fazer nada, porque via o trato que a BB dispensava à CC. Por exemplo, a CC dizia: “a revista está pronta a imprimir”, mas era a BB que decidia quem e quando seria imprimida. Já o Padre AA, acredita que não teria recetividade para as ouvir, porque ele acreditaria na BB e, por vezes dizia que quando as coisas não estavam bem tinham de ser colocados no sítio, mas acredita que se soubesse de alguns castigos não estaria de acordo.
O depoimento prestado pela Assistente EE, numa perspetiva mais moderada, inscreve-se nesta mesma linha de proteção dos arguidos AA, CC e DD.
Ora, para efeitos do crédito a atribuir a estas Assistentes, não podemos olvidar que, já depois da intervenção da policia judiciária, a HH e a GG escreveram à Titular do Inquérito a pedir para regressar ao convento e a EE que havia saído, retornou à Instituição, precisamente porque a BB e o Padre AA já lá não estavam, acabando a HH ( juntamente com a arguida CC), por ir recolher o Padre AA e levá-lo novamente para a Instituição, onde ainda coabitam, com exceção da GG que entretanto saiu definitivamente.
Percebe-se, por isso, que as Assistentes HH e, de forma mais mitigada a EE, procuraram sempre preservar ao longo dos seus depoimentos, a arguida CC e até mesmo a arguida DD e o padre AA, referindo que o Padre AA é um distraído, que a DD via os castigos, mas não podia fazer nada e que a CC não se terá apercebido. Nunca viram a DD a ser agredida, mas sabem que isso já aconteceu em momentos anteriores, mas ouviram a BB a insultá-la e a menosprezá-la. Acham que as demais arguidas não podiam fazer nada porque não tinham poder sobre a BB. Já o padre dava sempre guarida à BB, porque ela o manipulava.
Veja-se, que a testemunha KKKK refere que, quer a HH, quer a GG, tinham uma adoração forte pela CC, a qual tinha um forte ascendente sobre elas, tinham necessidade de a tratar bem, seria uma mãe que cuida, mas ralha e pode bater. Elas falaram em agressões protagonizadas pela irmã CC, mas banalizam a chapada e sapatada. Tinham uma relação de maior carinho por ela, entendendo que faria isso para o bem delas.
Por tudo isto, neste particular, o tribunal não atribuiu credibilidade ao depoimento das Assistente HH e EE, no segmento em que procuraram preservar a arguida CC, DD e o Padre AA, porque estas Assistentes mantêm-se na Fraternidade Missionária ..., onde permanecem os identificados arguidos, havendo relatos, designadamente da EE, que evidenciam que a arguida CC teria dado à HH algum estatuto no seio da Fraternidade, tendo esta passado a assumir alguma liderança e a replicar alguns dos comportamentos opressores que antes foram primordialmente praticados pela arguida BB.
Sobre o comprometimento dos demais arguidos com a conduta repressiva primordialmente protagonizada pela BB, importa relembrar que, na génese da obra, segundo relatou a testemunha OO, o padre AA e a Arguida CC batiam muito e só mais tarde esse papel foi endossado à arguida BB, o que significa que eles estão comprometidos com esse modelo de “correção fraterna”, eles próprios já o implementaram e sempre fez parte do plano engendrado pelos arguidos.
Aliás, como disse a arguida BB, todos os arguidos viviam em Fraternidade e o espirito era o mesmo.
Mesmo nos tempos mais recentes, depois dos problemas de saúde da arguida CC, apesar dos castigos e agressões físicas serem primordialmente implementados pela BB, segundo relataram as Assistentes, os demais arguidos chegaram a bater e a insultar.
Relatou a II um episodio em que, a EE confessou-se e, segundo as regras impostas pela BB, antes tinham de dizer à BB o que iam dizer em confissão, o que a EE não terá feito, a BB ficou incomodada, e disse para ir ao Padre dizer o que não falara antes. O Padre teve conhecimento e na hora da homilia atacou a EE, dizendo-lhe: “és porca, infiel, vais acabar como a infiel da MM no tanque”, ela pediu desculpa ao padre, levou duas bofetadas do padre AA e este disse-lhe que já saiu o Diabo!
Também relatou que o arguido padre AA também lhe quis bater e chamou-lhe “filha da puta”, porque abriu a porta a duas funcionárias dos correios que vinham buscar uns pudins e vinham com calças, e o padre perguntou: “quem foi o Diabo que deixou entrar estes dois homens?”. Chamou-lhe: “ filha da puta, infiel, não és daqui, imagina que tivesses aqui um bispo e não te justifiques”. No dia seguinte não lhe deu a comunhão na missa.
Relatou a Assistente GG que, porque a EE não maltratava a família, foi posta de castigo por não odiar a família e o Padre AA foi à biblioteca insultá-la e esbofeteou-a pelo corredor fora por não odiar a família. Ele elogiava a BB por bater com força, o que bem evidencia que comunga com esses modelos de educação.
A testemunha OO, refere que, já no tempo dela, por não ter aceite bater noutra colega, adormeceu e acordou com o Padre AA à bofetada que até jorrou sangue.
Referiram as Assistentes que o Padre AA aproveitava a homilia para as insultar e quando a BB fazia queixa delas ao padre, este ainda mais as insultava.
Em face do exposto, o tribunal não teve duvidas que o Padre AA foi quem idealizou a obra, era a única pessoa que a BB respeitava, ela até lhe chamava “Pai”, tendo sido ele uma das pessoas que idealizou e chegou a implementar este modelo de “correção fraterna”, o qual fazia parte do plano de angariação e exploração laboral destas jovens.
Ademais, foi o Padre AA quem, à revelia da BB, expulsou da Instituição LL e LLLL, o que evidencia que o mesmo tinha poder de decisão até mesmo sobre as vocações, ao ponto de impor a expulsão de uma das preferidas da BB (LL).
Sobre o comprometimento da arguida CC, referem as Assistentes que a CC deu duas ou três chapadas na HH, mas antes do cancro 2012/2013, tendo depois emendado a mão. Também terá agredido a II e terá batido na HH porque a BB, CC e DD tinham ciúmes da HH.
Já quanto a insultos, nem os problemas de saúde a acalmaram.
Segundo referem, a arguida CC dizia frequentemente: “onde estão as filhas da puta”? A arguida CC insultava a Assistente GG por ter excesso de peso. As arguidas CC e a BB sempre atacaram a Assistente HH porque achavam que esta cativava os homens, condição que já não estaria ao alcance delas. Ouviram a arguida CC dizer à BB: “estamos a ficar velhas, ninguém olha para nós!” Relatam que uns calceteiros foram contratados para fazer uns trabalhos e quando foram recolher um cartão, um deles, dirigindo-se à HH disse: “Bom dia”, o que motivou que a CC a censurasse dizendo que se havia rido para o homem, acrescentando: “só pensas em sexo” e desferiu-lhe quatro chapadas.
Recordam um episódio ocorrido no dia do convívio, na altura do ofertório em que a CC não atentou que o microfone estava ligado e disse: “filhas da puta”. A própria arguida CC chegou a dizer-lhes que era bem-feita que levassem no focinho da arguida BB porque eram desobedientes.
A Assistente II relatou ainda um episódio que terá ocorrido na revisão de vida. Segundo refere houve um momento que a BB estava ausente e era a CC que assumia a responsabilidade pela revisão de vida. Houve uma torradeira que se avariou e a II levou com as culpas; na revisão de vida a II foi obrigada a declarar que tinha pena de ter estragado a torradeira (apesar de, segundo ela, não a ter estragado), procurou justificar-se, a CC chamou-lhe “mentirosa, cobarde”. Não lhe bateu mas estava pronta para isso. Foi aí que, segundo a II, esta teve o primeiro ataque de pânico e a partir dai vem tendo vários.
Em face destes depoimentos, o Tribunal convenceu-se que a arguida CC que, aliás, foi a primeira a converter-se à obra idealizada pelo Padre AA, antes dos dois cancros de que padeceu, não se coibia de agredir e insultar as noviças e que atualmente, apesar de estar mais amaciada, de vez em quando, ainda dá a sua natureza, brindando as noviças com algumas agressões físicas e sobretudo com agressões verbais.

No que respeita à arguida DD, as próprias Assistentes vão referindo que a mesma tinha um papel semelhante ao delas, que seria um “soldado raso”, mas vão dizendo que, pelo menos nos tempos mais recentes, ela não sofria castigos nem agressões.
Neste particular, a testemunha MMMM, irmã da arguida DD, que frequenta a Fraternidade há 50 anos, frequentou os cursos Dominique e os convívios, refere que a irmã ingressou na instituição, quando esta ainda funcionava em Lisboa, esteve lá 2 anos e depois veio para o .... Diz que, quando a BB estava perto das noviças notava que elas ficavam agitadas, porque ela não hesitava em destratá-las. Ela própria, ouviu destratar a irmã: “és uma palerma”. Relata um episódio em que a irmã fez uma operação à coluna, colocou dois parafusos na coluna, passados três meses de ser operada, a BB tinha saído e a irmã disse vai embora porque não posso falar mais, tenho de varrer esta praça, nem que seja a rasto. Noutra ocasião, a irmã tinha sido operada a uma vista, foi ao Porto, vinha com a parte da cara tapada e, quando chegou a arguida BB disse: “Ai que aparato!” e a irmã nem reagiu. Relatou ainda que disseram à BB que havia recomendação do médico para a irmã não cozinhar porque o médico não queria que recebesse o vapor da comida e a BB disse: “a comida está à tua espera”, já a CC mandou-a para a cama. No dia seguinte fez a comida, infecionou o olho e teve de voltar ao hospital. A testemunha disse à irmã: “se não estás bem anda-te embora” e ela disse: “aqui é que é o meu lugar”. A irmã era um soldado raso, preferia fazer o trabalho que mandar.
Não obstante este relato da irmã da arguida DD, facto é que as Assistentes também viram a DD a agredir a EE na capela da clausura. Outras vezes estava ao lado, via as agressões da BB e não fazia nada para as estancar.
Também resultou desses depoimentos que a DD era muitas vezes usada pela BB e CC para controlar “as infiéis”, designadamente nos convívios, nas deslocações ao médico e aos centros de saúde, quando começaram a visitar os familiares em casa e, em geral, durante as refeições, jantava com elas, com esse objetivo e, não raras vezes, acusava-as à CC e BB, embora reconheçam que não era costume agredir verbalmente.
Perante o exposto, não subsistem duvidas de que os arguidos Padre AA, CC e DD, sabiam o que a arguida BB aplicava aqueles castigos, privações e agressões porque presenciaram algumas agressões, alguns castigos e viam os trabalhos pesados que desenvolviam diariamente no seio da Fraternidade. Por outro lado, viam muitas vezes, as marcas no corpo, porque almoçavam juntos. Uma das Assistentes refere que se chegou a confessar com o olho negro e o padre não perguntar nada. Além do mais, em alguns casos, quando sabiam das agressões, ainda reforçavam a legitimidade de quem agredia.
Ademais, todos alinhavam por aquele discurso do Deus castigador, e, por vezes, eles próprios, usavam esse discurso para agredir e insultar, dando mostras de haver ali uma homogeneidade de conceção sobre o que deve ser a “correção fraterna”. De resto, como disse a BB, todos os arguidos viviam em Fraternidade e partilhavam o mesmo espirito.
De lembrar também que, por vezes a arguida BB fechava as noviças num espaço exíguo (o que aconteceu designadamente com EE) e mandava-as libertar, quando os arguidos Padre AA, CC e DD, regressavam da visita aos estabelecimentos prisionais, o que bem evidencia que estes arguidos tinham algum poder sobre a BB, ao contrário do que foi sustentado pelas Assistentes HH e EE.
De resto, como bem refere a arguida BB, viviam todos em Fraternidade, não sendo crível que estas ocorrências regulares não fossem praticadas com total conhecimento e aquiescência de todos os arguidos.

Quanto ao ponto 28º, atinente aos castigos que eram implementados, a arguida BB sustenta que:
- não havia proibição de tomar pequeno almoço, nem sempre o tomavam à hora de costume mas tomavam mais tarde;
- é certo que não tomavam banho completo, de chuveiro, todos os dias; ela própria não toma banho todos os dias, mas lavavam-se diariamente.
- nunca ficaram proibidas de comer ou beber água. No entanto, acrescenta que “podemos oferecer sacrifícios a Deus e que há uma mensagem de Nossa Senhora que pode jejum – pão e água – duas vezes por semana”, não esclarecendo se estes sacrifícios, em nome de Deus ou de Nossa Senhora – eram impostos às Noviças ou se elas aderiram aos mesmos voluntariamente.
- não sabe se não usavam roupa interior, mas nunca foram proibidas de a usar.
- quanto à imposição de se despirem, admite que, no verão as noviças tomavam banho num tanque, mas não era nuas, seria em fato de banho ou em combinação e também nunca ficarem nuas no jardim;
- quanto a dormir com o cão, foi a irmã DD que se sacrificou por causa do cão, as outras não, acrescentando que “não tinham bondade para isso”.
- quanto à obrigação de ficar de joelhos, refere que há uma forma de rezar o terço com as mãos em cruz e com as mãos debaixo dos joelhos, mas se não se aguentavam não eram forçadas.
- nunca ficavam fechadas;
- quanto à obrigação de se autoflagelarem, refere que sempre houve a disciplina de vida, existia o chicote, mas nega que elas fizessem isso, ou que isso lhes fosse imposto, acrescentando que “elas não tinham garra nem generosidade para isso”. Havia lá quem fizesse isso, das irmãs mais velhas, mas não se sabia.
- nega a imposição da obrigação de andar objetos;
- quanto à obrigação de transmitir recados, explica que a mesma foi imposta por causa do espirito de mentira que se instalou, porque desapareciam objetos e não se sabia quem tinha sido, a pessoa via outra pessoa a ser incriminada e não se acusava e dai que se abrigava a repetir perante os demais o que haviam feito de errado;
- nega que tenha imposto a obrigação de dormir com saco de garrafas a servir de almofada, a obrigação de andar com dejetos de cão;
- quanto a andar com um saco na cabeça, apenas admite que, por vezes faziam teatros;
- não se lembra de impor a obrigação de jantar de joelhos no chão e, quanto a rezar o terço às 03h00, diz que sugeria e que ela própria o fazia, mas não era de joelhos nem ao frio;
Sobre este segmento da factualidade, as ofendidas EE, HH, II, GG, JJ, FF e KK, confirmam que diariamente lavavam as partes intimas, mas só ao sábado tomavam o banho completo, que por vezes lhes era retirado o banho em jeito de castigo, sendo que algumas chegaram a ficar sem banho completo mais de 15 dias. Eram 15 minutos o banho completo, para todas e, por vezes, com água fria. Elas aproveitavam a água no final do banho para o jardim.
Sobre a proibição de tomarem o pequeno almoço ou de beberem água durante todo o dia, as Assistentes relatam que rezavam até as 9h30 e depois iam ao pequeno almoço; a irmã que estivesse à cozinha tinha de avisar quando faltasse o que meter no meio do pão, senão comiam o pão simples. Quem se atrasasse ficava sem pequeno almoço. O pequeno almoço era tomado em 5/10 minutos. Confirmam que chegaram a ficar sem beber 8 ou 15 dias em pleno verão.
As Assistentes também explicaram que havia um cão que ficou doente em 2009, chegaram a dormir no chão, rotativamente. A vez da BB nunca chegava.
Também referem que eram obrigadas a rezar terços com as mãos debaixo dos joelhos, todos os dias à noite, durante 30 minutos e com os braços em cruz.
As Assistentes HH e a GG lembram-se de não puderem usar cuecas, nem usar meias. Relativamente à roupa interior, refere a HH que a II foi fazer uma arrumação e encontrou cuecas sujas escondidas e a II mostrou à BB que perguntou quem tinha sido e ninguém se acusou. Ficaram todos sem roupa interior menos a II. Mais a tarde, a II aprendeu a lição por acusar as outras. A roupa interior era partilhada e quando não servisse à CC passava para elas.
A GG foi humilhada e obrigada a permanecer nua ( quando estavam na adoração do Evangelho), porque as arguidas BB e a CC pegavam com a LLL por questões sexuais, apelidando-a: “monte de carne e sexo”,  perguntavam-lhes se eram virgens, se tinham tido namorados e a LLL falou da vida sexual dela e a BB chamava-lhe “mamalhuda” e à conta dessas histórias, para a humilhar e alegadamente para a libertar do demónio, mandou-a despir-se, na presença da arguida DD e do Santíssimo Sacramento.
Também relatam que a EE ficou fechada um dia inteiro na casa de banho, ficou de pé desde das 9 da manhã até 18 h, quando o Papa Francisco foi eleito. Não estavam em casa a CC, DD e o Padre AA porque tinham ido numa peregrinação e quando a CC ligou a dizer que estava a chegar, a arguida BB mandou abrir a porta.
Este episódio, segundo se julga, é bem elucidativo do respeito que a arguida BB tinha pelos demais, em especial Padre AA e CC, ao arrepio do que sustentaram as Assistentes HH e de forma mais moderada, EE, que pretenderam transmitir a ideia de que os demais arguidos não teriam qualquer poder para estancar as invetivas da BB, o que não convenceu o tribunal.
Quanto ao chicote, as arguidas BB e CC, diziam: “pegas na disciplina e chicoteias-te o número de vezes quantos os anos que tens”. A HH e a II, foram obrigadas a chicotearam a EE ou a LLL, na capela, diante do Sacrário. Aos arguidos nunca os viram a usar a disciplina. Sempre que se autoflagelaram foram obrigadas pela BB, ordem que ela dava a todas, muitas vezes, em jeito de castigo. O chicote – ou, a disciplina - estava pousada na capela, por traz do sacrário.
Relataram que a LLL partiu uma caneca e a BB obrigou-a a colocar os cacos em cima da cama. A EE chegou a andar com um saco com ela, tinham que dizer entre elas, “só para te lembrar que sou porca, fui desobediente” e tinham de dormir com um saco de garrafas e de folhas. A EE teve de usar um saco de plástico na cabeça, teve de usar dejetos e cão no interior de um bolso da bata.
A EE ou a LLL tiveram de jantar com os joelhos no chão; a EE e LLL terão rezado o terço de madrugada e até deram falta dela.
Referem que a BB obrigava a relatar umas às outras o que se tinham esquecido ou feito mal. Varias vezes, tiveram de confessar aquilo que não fizeram.  A LLL e EE eram as principais vitimas, segundo elas próprias, porque não alinhavam em fazer a “correção fraterna”, referindo-se ao ato de bater às colegas, por imposição da BB.
Em face do conjunto da prova produzida, o tribunal convenceu-se que todos estes castigos impostos às Ofendidas, eram parte integrante do plano traçado pelos arguidos, sendo por isso, implementados pela arguida BB, mas com o conhecimento e aquiescência dos demais.

Relativamente ao ponto 29º, atinentes aos insultos e agressões verbais, a arguida BB nega, no essencial, a sua verbalização.
No entanto, quanto à verbalização da expressão “são um monte de carne”, a arguida BB refere que uma delas – a II- dizia que a mãe era uma filha da puta e ela questionava-a porque tratava assim a mãe, ao que aquela respondia que a mãe foi para um convento, saiu e casou com o pai sem o conhecer. Quando a II, segundo a arguida, andava embrulhava com um homem dentro do convento, a arguida admite que lhe possa ter dito: “sabes que estás a ser igual à tua mãe”!
Nega a verbalização das expressões: “São um monte de sexo”; “São umas inúteis”, embora admita implicitamente que possa ter dito “São um monte de esterco” e “São umas porcas”, “São umas mentirosas”, porque segundo refere, às vezes eram mentirosas e sujas, já que tiravam as cuecas e meias sujas e colocavam na roupa lavada. Admite que num momento desses fosse capaz de verbalizar esse tipo de insultos. Nega tudo o mais no que a insultos respeita.
Neste particular, a Assistente EE confirma cada um dos insultos ditos em 29º, referindo que, quase todos eles eram verbalizados em particular pelos arguidos BB e Padre AA. Os insultos do Padre eram proferidos à mesa da refeição, ao almoço e na missa. A irmã BB dizia ao Padre AA que elas eram desobedientes e à mesa dizia-lhe: “elas põe-me tola”!
Também a Assistente JJ, atribuí à BB e ao Padre AA a verbalização da maioria das expressões “São um monte de carne”, “Inúteis”, “monte de esterco”. Também as expressões, “Porcas”, “Mentirosas”, “não fazem falta nenhuma”, “não têm educação nenhuma” eram dirigidas as todas as colegas e eram verbalizadas pelos dois arguidos e às vezes pela CC; As expressões “Monte de merda” e “sujas” eram verbalizadas sobretudo pela BB e dirigida à EE, LLL e HH. A expressão “Caras de cu” era dirigida à GG pela BB e pelo Padre AA. A expressão: “a tua mãe é um monstro” foi verbalizada pela BB à EE, visto que a BB tinha problemas com a mãe desta.
A Assistente II, sobre os insultos, a que se refere o ponto 29º, sustenta que a expressão “São um monte de carne” era dirigida a todas e era verbalizada pelo Padre AA, BB e CC; A expressão “São um monte de sexo” era verbalizada pela BB e CC contra a HH e pelo Padre AA nas homilias; A expressão: “sois umas inúteis” era verbalizada pelos quatro, tal como as  expressões “são um monte de esterco”, “são umas porcas”; “sóis umas mentirosas”; “sóis um monte de merda”; “sóis umas sujas”, “vocês não têm educação nenhuma”. Já a expressão: “vocês não fazem falta nenhuma” era verbalizada apenas pelo Padre AA, pela CC e pela BB; tal como a expressão “vocês não tem família”; “filhas da puta”. Já as expressões “caras de cu” e “só ficava satisfeita se um boi de cobrição vos fodesse”, eram apenas verbalizadas pela BB e CC e a expressão “a tua mãe é um monstro” terá sido apenas verbalizada pela BB.
Para explicar o contexto em que tais insultos eram proferidos, exemplificou, dizendo que, antes de irem para a capela, existia um bloco que era utilizada por elas para escreverem as faltas do dia, onde tinham de escrever que foram porcas, desobedientes, não podiam dizer que os arguidos lhes haviam batido, porque isso era afirmar o orgulho. Um dia a BB viu que nada tinham escrito e aplicou-lhes um castigo, embora já não se recorde qual o castigo aplicado. “Chamou-lhes desobedientes, filhas da puta, são monstros, só prestais para comer e dormir”.
Sobre os insultos, a Assistente HH refere que as expressões: “monte de carne”, “monte de sexo”, “monte de esterco”, “a tua mãe é um monstro”, “só ficava satisfeita se um boi de cobrição vos cobrisse”, eram exclusivamente verbalizadas pela arguida BB e especialmente dirigidas à EE. Já as expressões: “são umas inúteis”, “monte de merda e sujas”, “vocês não fazem falta nenhuma”, “não têm família”, “caras de cu” e “filhas da puta”, eram expressões verbalizadas pela BB e Padre AA.
Em matéria de insultos, a Assistente LLL, refere que as expressões: “monte de carne”, “monte de esterco”, eram exclusivamente protagonizadas pela BB; As expressões: “monte de sexo”, “inúteis”, “mentirosas”, “monte de merda”, “sujas”, “não fazem falta nenhuma”, “não tenho educação nenhuma”, “não têm família”, “caras de cu”, “filhas da puta”, eram verbalizadas pela BB e Padre AA, sendo que, este último insulto, também era verbalizado pela CC. A CC com a cancro nunca mais insultou. A CC com o microfone ligado, chegou a dizer: “onde estão aquelas filhas da puta?” E depois emendou-se.
Neste particular, a demandante EEE, refere que ouviu a BB chamar “Monte de carne”. Assistiu a alguns insultos verbais, a BB implicava mais com a EE, tinha uma forma agressiva de falar, atribuía-lhe tarefas mais pesadas.
Em matéria de insultos, a demandante KK refere que todos os insultos “Monte carne” e “Monte de sexo” eram verbalizados pela BB e eram dirigidos a ela e às colegas.
Como se vê, no essencial a verbalização destes insultos ia sendo dirigida indistintamente a todas as noviças e era protagonizada essencialmente pela arguida BB e Padre AA, alguns deles, também pela arguida CC e, em qualquer caso, sempre com o conhecimento de todos os arguidos, também se registando neste particular, uma tendência para que as Assistentes que ainda permanecem na instituição, em especial a HH e EE, protegerem os arguidos com os quais ainda coabitam.

No que tange ao ponto 30º -, respeitante às privações a que alegadamente sujeitavam as noviças -, a arguida BB nega a privação de cuidados médicos, a privação de cuidados de higiene pois que não corresponde à verdade que só lhes fosse permitido um banho semanal, com a duração de 15 minutos para todas, admitindo embora que só tomassem banho completo uma vez na semana, todas elas, salvo se saíssem, mas que todos os dias se lavavam. Essa medida surgiu a partir do desgoverno delas, que ficavam muito tempo debaixo do chuveiro, mas nunca constituiu um castigo.
Não corresponde à verdade que fossem privadas de alimentação, o que, segundo a arguida, até se infere do peso delas, visto que algumas eram bem gordas. É certo, que havia dois dias de jejum, mas não era imposto porque “não tinham generosidade para o fazer”. O que sucedia muitas vezes é que teriam de comer algo que não lhes apetecesse tanto e renunciar ao que mais lhes apetecia.
Quanto à alegada privação de visitas aos familiares, explica a arguida que constava das regras da Fraternidade que a ida às famílias seria sempre em Fraternidade; também a declarante quase nunca foi a casa da família e quando foi, foi sempre acompanhada. As famílias das Noviças podiam telefonar a perguntar se lá podiam ir em determinado dia; na prática, iam muitas vezes, fora do Domingo; a duração da visita era conforme a missão de cada uma; normalmente ficavam com a família, mais de uma hora; por vezes comiam com a família; podiam ficar a sós porque a família crescia com a união, a ida a casa é que tinha de ser em fraternidade. Para fundamentar essa posição, ilustra com o segmento bíblico, quando Jesus terá dito: “ides 2 ou 3, quando dois ou três estiverem em meu nome, eu estou no meio de vós”.
Quanto à privação de outros contatos, refere que as noviças podiam escrever as cartas que quisessem aos seus familiares; mas acrescenta: “se fossem simpáticas liam as cartas”, esclarecendo que não exigia, mas apreciava que elas o fizessem, porque considera que, num contexto familiar destes, não deve haver privacidade.
Quanto à privação de acesso à informação, admite que na Fraternidade não viam televisão ou excecionalmente toda a gente via; aos domingos e dias de festas viam um filme.
Não concede que privasse as ofendidas dos seus documentos pessoais, pois que todos os documentos pessoais das Assistentes eram colocados num lugar conhecido das Assistentes e a prova disso é que quando a FF saiu de lá, pediu à mãe para ir buscar os documentos e disse à mãe onde estavam os documentos.
Sobre essa matéria, sobre a privação de alimentação, todas as Assistentes admitem que tinham a dispensa cheia, até porque muita gente fazia doações, mas não havia autorização para pegar nas coisas, pois era entendido como infidelidade, desobediência e falta de espirito. Os pais da II traziam muitas alheiras, mas elas não tinham acesso a elas. Havia um senhor que oferecia baldes de bifes, chegaram a comer nos primeiros dias, mas depois nunca mais tiveram acesso aos mesmos, porque eram levados para os familiares dos arguidos, porque o carro da DD ia sempre carregado com comida.
Nas refeições, quando estavam de castigo era só sopa. A demandante KK refere que foi obrigada a comer sardinhas ao pequeno almoço, porque não as comeu ao jantar. Também havia castigos que redundavam na imposição do jejum (sexta-feira). Tirando os castigos, na hora das refeições, tinham a travessa em cima da mesa, mas como tinham de comer em 5 minutos, praticamente tinham de engolir a comida e não podiam tocar na carne e peixe porque a BB dizia que era gula e, por isso, praticamente a comida era à base de massa e arroz.
A BB dizia que não precisavam de comer para alimentar a carne, tendo chegado a dizer: “não comes mais” e a hora do almoço era sempre uma tortura. À noite jantavam sozinhas na cozinha, aqueciam comida do almoço e se a BB não estivesse presente comiam mais um pouco. Enquanto esteve na instituição, a Assistente EE emagreceu 30 kg, só no primeiro mês emagreceu 10 kgs.
Inicialmente almoçavam juntos e jantavam juntos, depois a CC, a BB e o Padre começaram a jantar na sala da televisão, alegadamente para o padre se esquecer das dores. Havia refeições diferenciadas para as mais novas e para os arguidos BB, CC, Padre. Eles comiam comida fresca, cozinhada no dia, elas comiam os restos de refeições anteriores; eles comiam peixe, verduras e elas comiam essencialmente massa e arroz e mesmo assim não comiam a quantidade suficiente, atendendo às longas e pesadas jornadas de trabalho. Elas comiam na cozinha e eles na sala (só às vezes, quando almoçavam fora é que almoçavam juntos). A cozinha, ao contrário da sala, não tinha televisão.
Neste particular, a Assistente II refere que, uma altura os pais deram tremoços e era preciso mudar a água, esqueceu-se e para castigo tiveram de comer os tremoços até acabarem. Outra vez havia umas batatas para as galinhas e comeram ao lanche essas batatas cozidas porque a BB as encontrou no sitio errado. Ainda sobre a privação de comida, enfatizaram que, no primeiro ano almoçavam todos juntos, mas depois, com a chegada da GG passaram a almoçar os três e as noviças faziam parte do outro grupo. Ao meio dia o almoço era igual para todos, se houvesse restos teriam de comer, já ao jantar era diferente: as mais novas teriam de comer o que sobrava do almoço, aos arguidos era servida comida confecionada de fresco. Havia outras limitações: os arguidos eram os primeiros a ser servidos; depois as noviças não tinham direito de explorar a travessa; tinham que servir o que estava virado para o lado. A BB controlava os pratos e um dia repreendeu a HH e disse: “Já chega”.
Relataram que, uma vez a BB chegou mesmo a tirar o frango do prato de uma delas e deu-o à arguida DD. Outra vez, uma das Assistentes, tirou um fígado, as arguidas descobriram que ela tinha o bife do padre e foi repreendida porque não era para ela. Nessa altura chamaram-lhe “gulosa, egoísta…”. As noviças não podiam pôr a mesa quando o padre estivesse na sala, porque ele queria ver as noticias tranquilo. Tinham de servir o jantar pelas 8h30. Ao abrirem a porta da sala, tinham de entrar sem olhar para a televisão, pois segundo a BB estavam a entrar na cidade de Samaritanos. Só aos domingos podiam todas ver um filme escolhido pelos arguidos. Por vezes era proibido falar, relatando que uma vez faltava compota e a II falou ao ouvido da BB e esta não lhe deu resposta, após o que a BB se levantou e deu-lhe dois estalos e começou a dizer que era desobediente. A BB também controlava a água. Só estavam à vontade quando não estava a BB. Chegaram a estar dias sem beber nada; mexiam em água a lavar os dentes e não podiam beber. Por vezes eram castigos coletivos e outras vezes individuais. Havia irmãs, designadamente a GG, a ficar 15 sem beber e a trabalhar, bastava ser supostamente desobediente ou infiel. A demandante KK relata que ela e a EE esqueceram-se de desligar o poço e ficaram 15 dias em agosto sem beber água. Não se atreviam a violar o castigo por medo que a BB castigasse mais.

No que respeita à privação de cuidados de higiene, reiteram as Assistentes que só tinham direito a banho completo uma vez por semana, durante a semana lavavam-se intimamente numa bacia, durante 15 minutos, para todas e muitas vezes com água fria e que só as arguidas tinham acesso à água quente. Uma vez a II e a EE levaram água quente, foram insultadas e obrigadas a deitar fora. A BB tomava banho de banheira quando quisesse. A DD era como elas, mas podia usar água quente, a CC e o Padre tomavam banho quando quisessem. A Assistente JJ relata que, a título de castigo, ficavam muitas vezes sem lavar dentes e iam para a cama com os pés pretos. Assim, após as longas e penosas jornadas de trabalho, depois de transpirarem bastante, não podiam fazer a depilação, não podiam tomar banho completo, ao longo da semana limitavam-se a lavar os pés na mangueira e à noite lavavam as partes intimas, pelo que era inevitável cheirarem mal. E, para cúmulo, depois eram brindadas com insultos do tipo: “monte de esterco”.

Quanto à privação de visitas a familiares, referem as Assistentes que não era permitido ir a casa. Só em 2013/2014, após a saída da II e na sequência de cartas que dirigiu ao Arcebispo de ... é que foi permitido. Nas leituras de Domingo, a BB advertia para os castigos divinos se fossem infiéis à Fraternidade, se os familiares incentivassem à infidelidade e que não podiam ser apegados à família e não podiam sequer manifestar afeto pelos familiares. Os familiares iam visitá-las nos dias de convívio, em alguns casos foi negada a entrada de algumas famílias a propósito de que estavam em meditação profunda. Quando era permitido o contato, nunca estavam a sós com a família, eram sempre controladas (normalmente era a DD quem fazia esse controle). As noviças podiam estar com os familiares, mas não podiam falar porque eram consideradas desobedientes e sofriam represálias.
Uma das principais vitimas desta privação foi a Assistente EE porque a dado momento os arguidos criaram uma implicância com a família desta Assistente. Explica a II que os pais iam à Fraternidade uma vez por mês, no dia do convívio mensal e não podiam estar à vontade o tempo que quisessem, no início almoçava com os pais, mas três anos depois foram impedidas sob a desculpa deque se distraiam com a família, porque acediam ao mundo exterior. Se a mãe viesse falar estava sempre alguém a tomar conta dela, não podiam falar o que se passava ali porque as conversas eram fiscalizadas. Ainda sobre a privação de contato com familiares, a Assistente EE refere que os familiares vinham à Fraternidade no 2º domingo de cada vez e estavam com elas no final do convívio, mas sempre acompanhados pelas arguidas CC, DD e outras. Ficou 15 anos sem ver a mãe e depois que a MM faleceu, a mãe quis saber o que se passava com ela e a partir daí dificultaram-lhe a entrada na Fraternidade. Todos impediam o acesso da mãe, diziam que a família procedia mal com a casa e a vida dela piorou a partir daí. Escreveu cartas à mãe, que eram ditadas pela BB, ou seja, a BB ditava previamente o conteúdo que pretendia que escrevesse e fiscalizava. A mãe sabia que estava oprimida e sabia que algo não estava bem. A mãe foi lá, ficou fora da porta, deixou de a ver e ao telefone não era permitido falarem.
Também eram privadas de outros contatos com seus familiares, pois as chamadas telefónicas eram inexistentes. Não podiam estar à vontade ao telefone com a família, eram controladas. Só ao domingo podiam ver televisão, mas era sempre o mesmo filme escolhido por eles. Eles viam diariamente televisão e quando elas iam levar a comida à sala e se ajoelhavam para colocar a travessa não podiam olhar para a televisão, mesmo enquanto serviam a jantar, sob pena de sofrerem represálias. A Assistente II referiu que tinham que pedir autorização para ligar aos pais (só era autorizada a ligar ao pai e mãe nos aniversários), haviam telemóveis só para quem fosse às compras ou ao correio, mas havia sempre controlo. Não podiam falar ao telefone com privacidade, porque se alguma das arguidas levantasse o auscultador no escritório, ouvia a conversa. A CC chegou a levantar o telefone e disse: “desliga”. Tinham de pedir para escrever cartas e a BB tinha que ler a carta, que era sujeita à sua censura. Houve uma jovem que pretendia escrever à mãe para os convidar para a tomada de hábito e a BB obrigou-a escrever outra carta a dizer: “és uma merda, não vales nada”. A família da LL queria tirar a filha dali de dentro e a LL teve de escrever uma carta com um conteúdo definido pela BB.
Sobre a privação de documentos, as assistentes referem que quando lá chegavam entregavam documentos, que não eram renovados, só usavam quando fosse necessário, mas tinham que devolver. Quando iam votar, diziam em quem iam votar e tinham que devolver o cartão. A Assistente JJ esclareceu que quando fugiu de lá teve de viajar para a Madeira com uma autorização do SEF, por estar privada de documentos.
Também referem a privação de cuidados médicos e medicamentosos. A demandante KK nunca precisou do médico, tinha aparelho ortodôntico e levavam-na ao dentista delas, sempre acompanhada. Refere que tem asma, teve uma crise e esperou uma semana e deram-lhe um frasco de mel e só no final é que a levaram ao posto médico; também caiu no trator, fraturou o pulso e só no final do dia a levaram ao endireita e, como era próximo de um convívio, obrigaram-na a tirar as ligaduras.
A Assistente JJ, confirma que chegou a precisar de ir ao dentista e só quando ficou com a cara inchada a levaram. Neste particular, a assistente II, sobre a privação de cuidados médicos, refere que, uma vez estava a usar o agrafador e o dedo escorregou e magoou o dedo, a BB fez o curativo a sangue frio, precisava de pontos e não foi ao hospital. Também refere que ficou doente em 2011, teve febre, a CC medicou-a com primperan, tendo tido uma reação extrapiramidal, porque os olhos viraram para cima. Estava a cozinhar e fazer o almoço, não conseguia ver nada, a certa altura como a arguida DD viu que não estava capaz, após alguma resistência da BB, foi levada ao Hospital ... e foi reencaminhada para o Hospital ..., onde foi detetado que tal reação foi o efeito de sobredosagem do Primperan. No Hospital foi forçada a dizer que se auto medicou, para excluir a responsabilidade das arguidas.
A testemunha OO, que ingressou na Fraternidade desde ../../1974, onde permaneceu até ../../1988, no ..., explicou que, já no tempo dela, quem deixasse cair o leite fora, dormia no chão 15 dias, ficava nua na frente de todas, quando a vissem triste, mandavam-na pôr-se nua. As agressões eram pontapés, com as mãos e com umas cordas dobradas 4 vezes; não conheceu a “disciplina”. Ficavam com marcas e mandavam-nas para a cama, nunca foram ao hospital.
Neste particular, o tribunal louvou-se ainda no depoimento da testemunha EEEE, que refere alguns desabafos de algumas noviças (EE e LLL) que, por vezes diziam: “já vamos levar castigo”. Elas chegaram a dizer que passavam fome, razão pela qual a testemunha ajudou-as algumas vezes, levando pataniscas, moelas, bolos e elas comiam às escondidas. Já depois da saída da BB, chegou a ver a LLL, marcada em 2018 e com a fita da bata arrebentada e disse que foi a HH que lhe fez isso, o que indicia que está tudo na mesma.
Perante a versão coerente e coincidente dos depoimentos das Assistentes e testemunhas acabadas de referir, o tribunal deu como provado esse ponto da factualidade, convencendo-se que estas privações, faziam parte integrante do plano e que apesar de serem implementadas principalmente pela arguida BB, eram levadas a cabo com o conhecimento e a anuência dos demais.

Quanto à duração das jornadas de trabalho e natureza dos trabalhos que eram impostos às noviças – matéria que integra os pontos 33º e 34º -, a arguida BB, em jeito autista, responde com uma interrogação: “será que as pessoas estavam lá para se sentarem?” E acrescenta: é certo que trabalhavam um bocadinho, mas a declarante tomava a dianteira, pois que se a declarante descansasse um bocadinho “esse tipo de gente sentava-se”.
A Assistente II diz que chegavam a trabalhar durante 20 horas nas madeiras, pinturas exteriores, carregavam pedras, construíram muros, canteiros, fez com a BB a substituição das pedras e ainda tratavam da revista, “...”. Refere que entrou para lá com 15 anos, impediram-na de estudar e diziam que ali a escola era outra. Nesse particular, a Assistente II enfatiza que a BB não trabalhava e era proibido descansar: quando iam no trator, tinham de ir à frente do trator, abrir o portão para o trator sair, tinham de chegar ao destino ao mesmo tempo que o trator para o descarregar e andavam a pé cerca de 1 km. Se algo caísse ao chão, tinham que apanhar do chão, a BB punha o trator em andamento e elas tinham de andar a pé, com o peso da lenha, atrás do trator em andamento.
Relatou um episódio que considera paradigmático da maldade e crueldade da arguida BB: uma vez um tronco caiu abaixo do trator, a declarante pediu à BB para parar, ela fez que não ouviu e continuou com o trator em andamento, forçando a Assistente a ter de pegar no tronco sozinha e coloca-lo em cima do trator em andamento. Outra vez, estava a chover, ela e a EE tinham o saco cheio de eucalipto, a BB queria ir à bouça, tinha chegado das piscinas e quando chegou queria o trator carregado e não tinham conseguido, porque pediram para chamar o jardineiro, mas este foi-se embora: tiveram de levar o saco das folhas, muito pesado, ao longo de 1 km a pé e quando chegaram a BB ainda lhes ralhou, já nem sabe se lhes bateu, chamando-lhes: “preguiçosas”, “sóis o demónio”, “não estais no espírito”.
A Assistente LLL diz que excediam as 14 horas, quando queimavam lenhas das podas e não havia compensações.
Nessa medida, o tribunal convenceu-se que as longas jornadas de trabalho, faziam parte integrante do plano traçado pelos arguidos, que excecionalmente podiam atingir 20 horas de trabalho, mas normalmente não eram inferiores a 14 horas, para além de se ter convencido de que as noviças faziam os trabalhos aí descritos.

Quanto ao roteiro espiritual diário – matéria que integra os pontos 35º a 40 – a arguida BB, no essencial, admite essa matéria, embora sustente que não corresponde inteiramente à verdade o que resulta do ponto 39º, porque quando se estabelecia um tempo é porque tinha havido algo que não estava bem. Não é verdade o que se afirma no ponto 40º.
A Assistente EE confirma o figurino da jornada de trabalho que lhes era imposto pelos arguidos. Neste particular a Assistente II foi bastante impressiva relatando que acordavam pelas 6h30 ( por vezes mais cedo), iam abrir as capelas, na capela da clausura rezavam o terço e o oficio litúrgico, pelas 8h tomavam o pequeno almoço, na cozinha, em cinco minutos de pé (só a BB e a CC se sentavam, às vezes levavam pequeno almoço à cama da BB ou CC) e não podiam fazer barulho, sob pena de serem repreendidas, após o que voltavam para a capela da clausura até 8h45 onde faziam a adoração do Evangelho, depois iam para a capela grande, rezavam o terço na missa e a Adoração do Santíssimo até 10 h, depois iam fazer as camas, após o que a BB e CC definiam as tarefas ( Jardim, tipografia ou correio). Cada meia hora iam revezadamente rezar e depois seguiam para trabalhos. Pelas 12h recebiam a Bênção do Santíssimo e almoçavam pelas 12h30.
Depois iam à capela da Clausula onde faziam a oração do abandono, após o que seguiam para as tarefas: limpar folhas, barrer as matas, trabalhar na bouça. Pelas 17 horas tinham o lanche, lanchavam em 5 minutos (pão e fruta), sendo que a sexta feira era dia de jejum, após o que continuavam a trabalhar, por vezes era em simultâneo. Com a pressa chegou a esquecer-se do pão no bolso.  Pelas 20h tinham o oficio ( no verão era às 17 horas) regavam e pelas 20h30 iam jantar. Após as refeições, lavavam a louça em 30 minutos, quem estivesse encarregada dos animais, tratava deles, quem estivesse encarregada das casas de banho, tratava disso, a responsável pela capela preparava a missa para o dia seguinte.
Relata que chegou a ouvir raspanete do Padre AA, numa altura em que era a responsável por fechar as janelas por dentro, porque se esqueceu de as fechar e ficou de castigo. Depois iam para a capela por volta das 10 horas, por vezes, iam orar mais cedo, a título de castigo; não podiam fazer barulho com a louça, não podiam partir nenhuma peça de loiça. Rezavam o oficio e depois era a revisão de vida que consistia em fazer um resumo do dia a nível espiritual.
Quanto ao ponto 41º - sobre a prestação de cuidados médicos – a arguida BB refere que, quando era preciso ir ao médico a ninguém foi negado, sendo certo que também tinham médicos amigos que as consultavam, versão que não se mostrou credível, atento o que atrás se mostra referido sobre a privação de cuidados médicos.
Sobre esta factualidade a Assistente EE confirma a sua ocorrência, confirmando que chegou a precisar de ir o médico e não foi, sendo que, muitas vezes, pediam ben-u-ron ou brufen à CC.
Face ao teor dos aludidos depoimentos e ao que referiram outras Assistentes a propósito da privação de cuidados médicos, nos termos atrás exarados, o tribunal convenceu-se da sua ocorrência.

Relativamente ao ponto 42º, que respeita a alguns insultos protagonizados pelo Padre AA, a arguida BB refere que, para as arguidas o arguido era um pai, ajudou-as imenso, mesmo sendo exigente, admitindo que, para “o morno ele era forte”, fazia atividades com jovens e admite que usasse essa linguagem: “palermas e parvas”, com o intuito de os abanar, acrescentando que ela nunca se ofendeu com a verdade, o que parece sugerir que, segundo a arguida, o Padre AA proferiria aquelas expressões – que configuram juízos de valor altamente desprimorosos - mas que estariam justificados, por serem verdadeiros e por terem apenas em vista abanar alguns jovens mais “mornos”.
Todavia, com já se viu a propósito da autoria das agressões, insultos e castigos, o tribunal convenceu-se que o Padre AA dirigiu essas expressões a várias noviças, designadamente à LL e que esses insultos se inscreviam no aludido plano traçado pelos arguidos para concretizarem a relação de domínio sobre as ofendidas.

No tocante ao segmento da factualidade atinente à falecida MM – cfr. pontos 43 a 54 – o tribunal louvou-se na prova documental junta aos autos principais, designadamente:
- auto de noticia de fls. 1, datado de 29 de Agosto de 2004, do qual resulta que nessa data, compareceu no posto da GNR de ..., a arguida CC, dando conhecimento que desconhecia o paradeiro de uma das irmãs, MM, desde as 03h00 desse dia, tendo a mesma ainda naquele posto ficado a saber, após contatar o convento, que a mesma tinha sido encontrada por II e EE, já cadáver dentro de um tanque.
- auto de apreensão de fls. 5, relativos a 3 pequenos papeis, escritos pela vitima, dando indicações acerca dos procedimentos a ter com uma máquina com a qual trabalhava, e um outro papel que informava onde se encontrava, concretamente:
· Papel que diz “Irmãs estou cá dentro”;
· Papel que diz: “Chapas 724x615 Revelador EP36”
· Papel que diz: “Cantchui novo não temos nenhum pedir Sr. NNNN;
· Papel que diz: “Óleo para máquina equivalente a 150 tem que ser um óleo bastante grosso o que temos aqui é fraco e muito fino”.
· Embalagem de SERTRLINA AFTER 50MG, que contém 40 comprimidos
- certificado de óbito da vitima MM, que assinala como causa de morte “indeterminada”.
- auto de arrolamento de bens do cadáver fls. 26, do qua consta uma aliança de metal amarelo, entregue à arguida CC;
- auto de reconhecimento do cadáver de fls. 36, do qual resulta que o cadáver foi reconhecido pelas testemunhas OOOO, taxista e CCC, eletricista;
- Relatório de perícia tanatológica, realizado pelo Gabinete Médico-Legal de ..., de fls. 37 e ss, do qual resulta que “em face dos resultados necrópsicos, a morte de MM foi devida a asfixia por submersão”. Consta ainda que os resultados necrópsicos em nada contrariam a hipótese de suicídio;
- auto de exame e avaliação de objetos de fls. 62 e auto de destruição de fls. 70, relativo a uma (1) embalagem de Sertralina Alter 50 mg, de 60 comprimidos, revestidos MG, já utilizada, contendo no seu interior 40 comprimidos, à qual não se atribui qualquer valor comercial.
- Requerimento subscrito por PPPP, um dos irmãos da cidadã falecida, datado de ../../2016, de fls. 100, que deu origem à reabertura do inquérito a 14/03/2016, a fls. 117;
Neste particular, a arguida BB nega o que consta dos pontos 44º a 46º, admitindo quanto ao ponto 47º, a pratica consubstanciada na “revisão de vida”, na qual relatavam como viveram o dia, negando, contudo, as agressões.  Não se lembra da factualidade constante do ponto 48º, negando a narrativa constante do ponto 49º atinente aos excrementos de cão. No entanto, referiu: “estou a ver a pessoa que disse isso. Acho que foi a HH que disse isto”, aludindo a um dia em que a MM resistiu em ir ao médico, e a HH gozou-a no médico, mal se percebendo a conexão entre o episódio que relata e o facto narrado na acusação/pronuncia.
Não se lembra de ter afirmado o que se relata no ponto 50º, 51º, confirmando o relatado no ponto 52º, negando o que se afirma nos pontos 53º e 54º.
Quanto às razões que podem estar na génese do suicídio, refere que os pais fizeram 50 anos e foram lá em família; faleceu um irmão dela que estava em ..., foram lá, e a MM soube que o irmão se matou. Isto ocorreu meses antes dela se suicidar. Após essa data, ela nunca mais foi igual. Mais tarde, apareceu a família na Fraternidade, a querem levá-la para casa para ela cuidar da mãe e ela sentiu-se pressionada. Ela foi uma escrava da família, mas estava feliz na instituição.
Em jeito de desabafo, remata: “ultimamente ela já não rendia” – expressão espontânea que deixa antever a finalidade da angariação destas jovens -, ficou ali muitos anos, mas o estado depressivo dela nada tem que ver com os maus tratos.
Sobre a factualidade atinente à falecida MM, a Assistente EE refere que a MM tinha 55 anos, era baixa, mas tinha força. Só conviveu com ela durante 4 meses, assistiu a maus tratos da BB e Padre AA, durante as refeições e no decurso dos trabalhos.
A declarante refere que ela trabalhava na máquina da impressão e a depoente trabalhava na montagem. A BB achava que ela era preguiçosa, o que na sua perspetiva era injusto. Sentia que a MM tinha medo porque a BB lhe exigia muito ao nível intelectual, era um trabalho de responsabilidade e era alvo da repreensão da BB. Ela cozinhava bem e também trabalhava habitualmente no jardim. Ela estava lá há 28 anos. Foi a declarante e a II que encontraram o cadáver. Quando entrou para a Fraternidade percebeu que a BB, com a MM tinha prazer em humilha-la, nessa altura era a mais humilhada. Foi sepultada em ..., porque apesar de ter sido dito à família, esta não quis que fosse para a terra dela. Nunca viu a MM embriagada e desconhecia que tivesse o vício do café. Só soube que tinha acompanhamento psiquiátrico, depois de ter falecido. Mesmo depois do suicídio, ouviu chamar-lhe “infiel”, até mesmo pelo Padre AA. A BB insultava-a, apelidando-a de “suja, porca, preguiçosa, que era bêbeda, maluca da cabeça, um aborto”. O Padre AA dizia que era um “tampão para as vocações, um mau exemplo”. 
Sobre os pontos 50º a 54º, refere que, na noite em que a colega faleceu, na revisão de vida, a BB deu-lhe um pontapé na perna, porque a MM admitiu que olhara para a televisão, nesse dia à noite. Os arguidos comiam numa sala à parte, onde viam televisão e noticias e as noviças comiam na cozinha, sem acesso a televisão. Ao que parece, a MM foi levar o tabuleiro aos arguidos e terá olhado para a televisão.
Sobre o ponto 54º, a Assistente EE, considera que a MM terá sido moralmente muito humilhada e que os maus tratos da BB a levaram ao suicídio. Teve conhecimento que era a mais velha de 12 ou 14 irmãos, oriunda de família humilde e tinha um irmão que se terá suicidado antes da MM. Foi encontrada morta num tanque. Ouviu a BB e Padre AA dizerem que tinha sido uma infiel, afirmando que se ela fez o que fez (suicídio) é porque não tinha capacidade para estar onde estava. A BB não suportava falar do assunto da MM, várias vezes lhes diziam “façam de conta que não sabem de nada”. Soube pela HH que os irmãos queriam que fosse tratar dos pais e ela pediu à BB para não a deixar ir, mas não sabe se a HH viu ou ouviu contar. Quando se suicidou, deixou um papel a dizer: “Estou cá dentro”.
Neste particular a II só sabe o que a HH contou: Foi ela e a EE que a encontraram morta no fundo do tanque. Viram a BB e o Padre AA e disseram que tinham encontrado o corpo da MM (já a CC tinha ido à PJ), e estes disseram que “andava possuída pelo diabo, já sabiam que ia acabar mal”. O Funeral da MM teve lugar em ..., foi sepultada no cemitério de ..., nunca fizeram uma missa por alma dela e estavam impedidas de falar da irmã MM. Nunca percebeu porque não se podia falar da morte dela. Foi tudo abafado.
Sobre a factualidade atinente à MM, II refere ainda que tinha entrado recentemente e não fazia parte da revisão de vida, pelo que só sabe o que ali se passou através da EE. No seu parecer, o que motivou o suicídio foi o desespero, tanto pelo mau trato físico como moral que sofreu, porque também ela teve momentos em que perdeu a vontade de viver. A BB contou que os irmãos foram à Fraternidade com o intuito de a buscar para a MM ir cuidar da mãe e a MM não tinha reação e por conta disso a MM sofreu injurias e foi agredida porque alegadamente não defendeu a Fraternidade.
A Assistente HH, por ser das mais antigas, refere que conheceu bem a MM, sabe que andava em consultas psiquiátricas em ... e chegou a ir com ela. Nunca presenciou nada de anormal, nunca conheceu ninguém da família a não ser os pais. Em janeiro/Fevereiro foram lá três irmãos pedir para a levar dali para cuidar dos pais mas ouvia-a dizer que não queria ir. Quando a via aflita, a MM dizia-lhe que tivesse paciência e que iria passar. A BB destratava-a um pouco, chegou a ouvir chamar-lhe “bêbeda”. Confirmou o que se refere no ponto 45º, ouviu esses nomes e quando passou para o lugar dela também os ouviu. Foram todas procura-la e não encontraram. No amanhecer, viram um papel – irmãs eu estou cá dentro – foram novamente procurar. A CC e a DD foram à policia e ligaram aos pais dela. Neste período, a EE e II encontraram-na no tanque. Mais tarde – porque consideram que atentar contra a vida é um pecado – o padre AA e a BB diziam que tinha sido uma “infiel”.
Sobre os pontos 50º a 54º, tomou conhecimento porque na revisão de vida a MM relatou a história da televisão. Para si foi uma surpresa quando ela se suicidou.
A Assistente GG, sobre a MM refere que não a conheceu, que quando ingressou na instituição o assunto era tabu. O padre dizia à declarante: “és orgulhosa e ainda te vai acontecer como à outra”, referindo-se à MM. Perguntou à BB o que se tinha passado com a MM e levou resposta torta. Soube do suicídio pela II. O padre disse: “já está enfiada em 4 tábuas e ainda se fala”. Nunca rezaram pela alma dela, facto que surpreendia a declarante.
A demandante KK não conheceu a MM.
A testemunha OO conheceu a MM que ainda lá ficou quando ela saiu. Segundo a testemunha a MM era muito querida, discreta e trabalhadora e também foi muito maltratada.
O demandante PPPP, irmão da MM, que é autor de uma exposição datada de janeiro de 2016, que deu origem à reabertura do processo, esclareceu que a MM era a mais velha, de um conjunto de muitos irmãos e que a visitou duas vezes na Fraternidade, ainda no .... Havia um irmão, OOO, advogado, que morreu em 2003, em ..., negando que se tenha tratado de suicídio, explicando que, o que soube é que não se sabe de que morreu. A Instituição falou com a família para a MM ser sepultada na terra Natal e eles entenderam que devia ser sepultada em ..., para preservar os pais que ainda eram vivos.
A demandante QQQQ, irmã da falecida MM, explicou que a irmã desde que ingressou na instituição nunca ia a casa e a demandante visitou-a duas ou três vezes. Só a viu no funeral do irmão em 2003 e um outro dia, algum tempo antes, quando os pais fizeram 50 anos de casados. Na Páscoa do ano de 2004, a testemunha, o irmão RRRR e a irmã, foram visitar a MM para ver se ela podia tomar conta dos pais e quase não os deixaram falar, porque estava sempre uma irmã presente (ou era a BB ou a CC) e, perceberam que a MM não respondia, pediram para dar uma volta com ela, ela aí abriu-se um pouco, ficaram com a sensação que tinha medo de falar; de repente perceberam que a arguida BB vinha atrás deles a ouvir a conversa e a reforçar que não podia ir. Já quando a MM foi a casa dos pais por ocasião da morte do irmão, já a declarante se havia apercebido que não respondia, já então exigiu que fosse a MM a responder e as arguidas não gostaram do que disse. Nessa ocasião, a arguida BB puxou-a de repente, dizendo que ela não podia ir tomar conta dos pais. A freira disse: “vão-se embora porque só vieram trazer maus fluidos”. A MM escrevia à família, mas a ideia que tinham era que a irmã não escrevia o que queria porque havia uma diferença de conteúdo. Houve um ano que ela não escreveu no dia de anos do pai e ela nunca se esquecia. Viu-a com nódoas quando ela foi a casa, mas ela dava justificações para essas marcas. Quando foi a ... não viu nódoas, mas ela trazia as mãos ásperas, cheias de calos e dizia que tinha muito trabalho. Quando souberam do suicídio, esconderam isso aos pais que ainda eram vivos, para os preservar. Antes da MM ir para a Fraternidade, ela trabalhou em ... numa casa da congregação onde a declarante trabalha (Ordem ...) e depois esteve no Porto e em casa a cuidar dos irmãos mais novos. Naquele dia, sentiu que a irmã chegou quase a ceder.
A demandante SSSS, irmã da falecida MM, refere que visitava a irmã frequentemente no ... e em ..., com os pais e com o marido e filhos, no Natal, Páscoa e Verão. Quando foram lá na páscoa de 2004, a BB disse que fossem embora que levavam “Maus fluidos”, puxou o braço da MM e afastou-a. Ela escrevia no aniversário dos irmãos e desde que foi para ali deixou de haver cartas; Quando esteve em casa dos pais, no funeral no irmão, ela quis ir à casa de banho, na casa dos pais, e a BB levou-a até à porta da casa de banho, parecia sedada, a BB é que falava no lugar dela e a QQQQ até a repreendeu. A declarante foi ao funeral da irmã, nenhuma das arguidas deu os sentimentos a si ou aos pais e os documentos foram remetidos numa carta dirigida aos pais. Não tiveram conhecimento dos votos da irmã e não foram convocados para assistir à cerimónia.
A Assistente TTTT, irmã e afilhada da MM, referiu que era muito mais nova, que a visitou duas vezes: uma no ..., outra em ... (antes da Pascoa, 4 anos antes, por volta de 2000). A irmã desde pequena tinha vontade de ser freira, mas a mãe precisava dela para tomar conta dos irmãos, mas a mãe dizia que, quando fosse maior, poderia ir para o convento. A irmã foi primeiro para outro convento, a mãe foi busca-la a ... e, quando já era maior foi para o .... A MM nunca ia a casa dos pais, só lá esteve quando faleceu o irmão Zé, mas foi acompanhada da BB, CC e do taxista. Não conseguiam ter uma conversa particular, porque até na casa de banho ia acompanhada pela BB. A BB respondia pela irmã e acharam que estava com medicação. Diz que ficou sepultada em ..., porque não tinham jazigo na terra Natal. O pai e mãe partiram sem saber do sofrimento dela e que se suicidou.
UUUU, irmão mais velho da MM, era o mais velho a seguir à MM, referiu que a irmã sempre teve a ambição de ser freira, os pais disseram que quando fosse adulta poderia seguir seu caminho espiritual. Esteve no Porto a servir durante 2 anos e dali foi para o .... Antes da sua morte, foram vários irmãos a ..., na Pascoa, convencidos que a iam trazer, mas veio uma das irmãs, CC ou BB que, ao saberem o motivo da visita, azedaram. Nem sabe se a irmã celebrou ou não votos.
VVVV, demandante, sobrinha da MM, filha da PPP, falecida em 2019, tem 33 anos, refere que, quando faleceu a tia, tinha 16 anos, chegou a escrever-lhe uma carta em 1988, à qual ela respondeu, mas nunca a foi visitar, só a viu quando esta foi à comemoração dos 50 anos de casado dos avós (pais da MM). Foi ao funeral da tia MM, soube que tinha sido encontrada num tanque, que foi um suicídio e sabe que os avós foram preservados.
Perante o teor dos documentos e o conjunto destas declarações e depoimentos, o tribunal convenceu-se de que se provaram os factos ditos em 43º a 53º.
Ora, assente que a mesma era sistematicamente agredida e humilhada pelos arguidos – agressões e humilhações que, aliás, não cessaram com a sua morte – é inelutável reconhecer que essas agressões e humilhações tenham contribuído decisivamente para o profundo estado depressivo em que a mesma estava comprovadamente mergulhada e que esse estado depressivo a tenha conduzido ao suicídio. Admitimos, porém, que a morte anterior do irmão, cujos contornos seriam para si ambíguos e a pressão exercida pela família no sentido da mesma renunciar à sua vocação religiosa para cuidar dos progenitores, conjugada com o facto dos arguidos não lhe darem margem de escolha, também sejam fatores que possam ter concorrido para o agravamento desse estado depressivo que, por sua vez conduziu ao suicídio.

***
No que respeita à factualidade atinente à EE – cfr. pontos 55º a 78º - o tribunal louvou-se no teor do relatório de perícia de avaliação de dano corporal, do qual resultam as seguintes sequelas relacionáveis com o evento:
“- Face: cicatriz oblíqua e de forma irregular, localizada na metade direita do maxilar superior, aproximadamente com 20 m de comprimento. Cicatriz vertical e de forma irregular, localizada na linha média na mucosa da face posterior do lábio superior.
- Membro inferior direito: joelho escuro e pisado, macerado;
- Membro inferior esquerdo:  joelho escuro e pisado, macerado”.
Ai se concluiu: “(…) 2. No entanto pode referir que as sequelas apresentadas são compatíveis com a ação de instrumentos como aqueles que foram descritos pela examinada, nomeadamente os instrumentos de natureza corto-contundente que provocaram as lesões que determinaram as sequelas descritas”.
Quanto a este segmento da factualidade, a arguida BB declara que a ofendida EE foi lá num dia de oração com umas tias, vivia num contexto pobre, não tinha pai, a irmã regia a família, era espirita e a ofendida sofreu com ela. Já quando estava na Fraternidade, recorda-se de ter lá ido uma tia que a queria levar embora e a EE não quisesse.
Quanto aos castigos que alegadamente protagonizava, que conduziram ao seu emagrecimento de 30 quilos em escassos meses – matéria relativa ao ponto 56º -, a arguida considera que a mesma ficou bem mais jeitosa, pois que antes só comia bolos, “era um monte de …” – não tendo terminado a frase, porque se terá apercebido que ia confessar um segmento do ilícito que lhe é imputado -, pesava 120 kgs, depois, ficou normal porque começou a comer melhor.
O que se relata nos pontos 57º a 63º, 65º a 77º, não corresponde à verdade, sendo que, quanto ao ponto 64º, nega que as mesmas fossem obrigadas a dormir com o cão, pois que não gostavam de animais e não gostavam de ver alguém cuidar deles. Sobre o ponto 70º, atinente ao episódio da vassoura, diz que não aceita isso, acrescentando: “Eu amei, vivi com amor” e quanto ao ponto 78º, referente às sequelas permanentes de que a vitima ficou a padecer, a arguida refere que a ofendida quando chegou à Fraternidade falou de problemas desse género, mas trouxe-os de casa.
Já a Assistente EE – cujo depoimento também deverá ser analisado com alguma parcimónia, atendendo a que ainda se mantém na Fraternidade -, pronunciando-se sobre os maus tratos que ela própria sofreu – cfr. pontos 55º a 78º -, declarou que se lembra do primeiro castigo que lhe foi aplicado pela BB, em 2005/2006, que muito a marcou e que se traduziu numa coça que apanhou na capela da clausura, protagonizada pela BB, que lhe bateu com um chinelo, deu-lhe murros, puxou-lhe os cabelos, desferiu bofetadas na cara, costas e pernas, pancadas com a bíblia, que lhe causaram perda temporária de audição. Segundo a Assistente, quando ocorreu o episódio dito no ponto 57º, os arguidos Padre AA e CC, chegaram a aparecer, porque gritava muito, mas quando chegaram já a agressão se havia consumado.
Simultaneamente, deu-lhe com um chicote e incitou as irmãs DD e HH a bater-lhe, ao que estas anuíram, desferindo murros nas costas, ao mesmo tempo que afirmavam: “Vocês são umas lorpas”.
Confirmou o episódio do sapato (cfr. ponto 59º), após o que a BB a obrigou a dizer o que pensava das restantes irmãs e lhe bateu com a disciplina (cfr. ponto 60º), causando-lhe um sangramento na boca. Segundo julga, a BB queria que se virassem umas contra as outras, ordenando-lhe: “Agora diz o que pensas delas!” A declarante teve de inventar. A arguida levantou-lhe os cabelos e a blusa e deu-lhe com o chicote.
No que respeita ao ponto 61º, refere que a CC nunca negou assistência médica, a irmã DD não mandava, já sabia que não podia pedir, mas a BB não permitiu qualquer assistência médica na sequencia dos ferimentos que lhe causou.
Confirmou o ponto 62º, referindo que, uma das vezes, quando a BB já tinha acabado de bater mas ainda eram visíveis os vestígios da agressão, apareceram o padre AA e a irmã CC e aquele perguntou: “o que se passa?” Ao que a BB respondeu: “era uma irmã que não estava no sitio”, altura em que ele disse: “se alguém está fora do sítio, tem que se colocar no sítio, o tempo passa e o tempo cura, o Santíssimo está dentro do Sacrário e precisa de quem o ame”. Estavam presentes, além da declarante, as arguidas BB e DD e as Assistentes HH, II e LLL.
Relativamente ao ponto 63º, explica que, em agosto de 2007, tinham pinheiros e era preciso deitá-los abaixo e rachar a lenha, havia um senhor que vinha de fora ajudá-los; a declarante e a LLL estavam mais no jardim e foi-lhes dito para ajudarem o senhor; teriam de ajudar das 7h às 23 h, só com intervalo para almoço, o senhor rachava e elas faziam os montes.
Confirmou o ponto 64º, no que respeita ao episódio do canídeo que tinha um cancro terminal e tinham de o ajudar por causa das chagas. A BB determinou que a declarante, a II, LLL e HH rodassem, em termos de dormirem com o cão, no chão em cima de um colchão, ou seja, o canídeo dormia num colchão e elas dormiam ao lado, a DD já chegou a dormir com um cão, a BB já dormiu com um cão, mas nessa altura a declarante tinha sido operada às costas e o problema era isso ser imposto e não haver compensações, com a possibilidade de dormir noutra altura.
Confirmou os pontos 65º e 66º, que respeita ao episódio ocorrido no ano de 2010, esclarecendo que a declarante e a BB estavam a plantar estufas, a declarante fez algo errado e a BB deu-lhe com a parte de trás da enxada, acima do lábio, sangrou, causando-lhe cicatriz que ainda hoje tem, não tendo tido direito a assistência médica.
Confirmou o ponto 67º, relativo ao episódio ocorrido em 2011, na cozinha, em que a BB lhe deu com um sacho que estava em cima do muro, desferindo pancadas nas costas e pernas, provocando dores, equimoses que demoraram a curar.
Relatou o episódio dito em 68º, explicando que ela e a GG estavam a lavar as pedras do passeio e porque alegadamente não andavam com a rapidez que a arguida BB queria, ela bateu-lhes com a ponta da mangueira, na anca, pernas e mãos, causando-lhes hematomas e equimoses.
Quanto ao ponto 69º, confirma que, por volta de 2011, estava numa bouça a encher terra para trazer para as plantas, deixou cair um pouco de terra nos pés da BB, ela pegou na pá e desferiu-lhe uma pancada nas costas, no omoplata esquerdo, causando-lhe dores.
Relatou o que se descreve no ponto 70º, explicando que, entre os anos de 2005 e 2013, estava a lavar os passeios e porque a BB achava que era lenta, deu-lhe muitas vezes com a vassoura, atingindo a cabeça, costas e pernas.
O episódio relatado no ponto 72º, ocorrido no ano de 2011 marcou-a particularmente. Esclarece que ela, a II e a BB estavam a preparar os sacos para levarem aos reclusos, era inverno, foi pôr lenha na tipografia, tinham o técnico da guilhotina ali presente e a lenha ficou encostada ao vidro. A BB disse: “esta lenha está mal”, a declarante tentou pô-la no sitio, mas não conseguiu, altura em que a BB pegou num pau e deu-lhe com força no lábio, provocando sangramento. De seguida, disse: “desculpa se te magoei”, para o Técnico não ver e pediu que fosse limpar o sangue. A declarante foi ter com a HH e com a LLL e elas viram o buraco e ficaram horrorizadas. Hoje, por causa dessa agressão, não tem sensibilidade no lábio superior.
Quanto ao episódio relatado no ponto 73º, ocorrido entre os anos de 2005 e 2013, por diversas vezes, quando a declarante se encontrava na cozinha a preparar as refeições, a BB dava-lhe com chinelos de sola grossa; a cozinha era uma tarefa complicada, tinha horas para cumprir, a declarante afligia-se e não conseguia ser ágil, a BB passava pela cozinha por volta das 12h, se a visse atrasada, ela batia.
No que se refere ao ponto 74º, refere a declarante que, quer ela, quer a GG, quer a HH foram agredidas com muita frequência pela BB. A II entrou 4 meses depois e já conhecia a Fraternidade desde os 10 anos (tinha 15) e tinha grande afinidade com o padre e com as irmãs e notava que, no principio foi muito preservada, embora mais tarde, com a chegada da LL, também passou a ser perseguida e esta, por sua vez, mais preservada.
Quanto ao ponto 75º, confirma que foi trancada no interior de um quarto de banho pequeno, sem janela, com sanita e vide, no dia que o Papa Francisco foi eleito – 13 de Março de 2013 -, aproveitando-se da ausência do Padre AA e da CC, nas deslocações às cadeias. Recorda-se que estava a colocar uns livros na tipografia e a BB disse-lhe que ia ficar presa; a mando da BB, a HH prendeu-a depois das 9h e abriu-lhe a porta pelas 18 horas, porque os arguidos estavam a regressar das cadeias.
Recorda o episódio dito em 76º, relatando que, nessa altura, estava à cozinha e recorda-se que o almoço estava atrasado, estava a fritar peixe na churrasqueira e estava a atrasar o almoço, e a BB veio ter com ela, havia um balde de lenha, onde estavam umas varas e começou a bater-lhe com as varas na cabeça, braços, ficou com hematomas, tendo-lhe afetando provisoriamente a visão. Nessa altura pediu a Jesus: “Ajuda-me!”; e a BB disse que ela tinha o Diabo. Quando trouxe o peixe, ninguém se apercebeu do que se passou na churrasqueira porque usava lenço.
No que respeita ao ponto 77º, referiu que todos os dias no final da missa, a arguida BB ia à capela e desferia o numero de chicotadas conforme a idade que cada uma das noviças tinha, dizendo que era para mortificar a carne.
No que respeita ao ponto 78º, o Tribunal pôde percecionar a cicatriz que a Assistente ostenta no maxilar superior, com as caraterísticas aí referidas.
A Assistente JJ, embora não se recorde de pormenores, referiu que a BB era especialmente dura com a EE e com a GG.        
Sobre o que se passou com a EE, a Assistente II relatou, sobre o ponto 57º que, no interior da capela da clausura, a EE levou muita bofetada, levou com sapatadas nas nádegas e com o evangelho na cabeça, a CC viu e nada fez para estancar as agressões.
A Assistente II, relata ainda um episódio na linha do que vem referido a propósito dos pontos 60º a 62º - que, numa das vezes, a EE confessou-se, mas antes tinha de dizer à BB o que ia dizer em confissão e ela não disse à BB e falou de uma passagem na sua vida e disse à BB que se sentia leve, a BB ficou incomodada, e disse para ir ao Padre dizer o que não falara antes. O Padre teve conhecimento e na hora da homilia atacou a EE, dizendo-lhe: “és porca, infiel, vais acabar como a infiel da MM no tanque”, ela pediu desculpa ao padre, levou duas bofetadas do padre AA e este disse-lhe que já saiu o Diabo. Não podiam dizer em confissão ao Padre AA o que se tinha passado com a BB porque sabiam que não iam ser ouvidas. Alias, em plena confissão chegou a dizer-lhes: “se vêm falar da vossa irmã escusais de vir…”. O padre AA era o fundador e todas as arguidas lhe deviam obediência, pelo que, se o padre ordenasse que parasse com aquelas atuações, a BB certamente pararia. Também a demandante KK relata que até na própria confissão o Padre AA contava à BB, o que aconteceu com a EE e/ou LLL.
Quanto ao ponto 69º, sobre o que se passou com a EE na bouça, refere que estava presente e viu a arguida a dar-lhe com a pá. A EE estava a tirar estrume com uma pá, a BB não estava contente e deu-lhe com a pá nas costas, não se recordando deste episódio.
Quanto ao que se relata no ponto 75º, confirma que a EE foi trancada no interior de um quarto porque, segundo a BB, estava com o diabo. Não assistiu ao episódio relatado em 76º, mas viu marcas da agressão, confirmando ainda os pontos 77º e 78º.
Sobre esta ofendida, a Assistente HH refere que assistiu ao episódio relatado em 57º.
Confirma o que vem narrado no ponto 58º, pois que foram forçadas a bater à EE.  Sentia-se violentada. A EE e LLL apanharam e sentiam que, algumas delas o fariam por prazer, principalmente a II, que durante muitos anos foi privilegiada.  A EE esteve 6 meses na cozinha, seria raro o dia que não apanhasse. Recorda uma cena em que a EE ficou com o lábio rasgado.
Sobre o ponto 60º, diz que a BB terá dito que estava a julgar as irmãs e obrigava-a a confessar; Sobre o ponto 62º referiu não saber. Mas recorda que, uma das vezes, o padre chegou e disse: “o que se passa aqui?” e a BB respondeu: “está tudo resolvido”. Nada sabe sobre os pontos 65º a 68º e 76º. Sobre o ponto 73º refere que presenciou várias vezes.
Sobre o que se passou com a EE, a GG confirma os pontos ditos em 57º e 57º, referiu que a BB na capela de clausura deu-lhe várias bofetadas e incentivou a DD e a HH baterem na EE. Também confirmou o episódio dito em 60º, que envolveu bofetadas e agressões com o chicote protagonizadas pela arguida BB. Sobre o ponto 62º, refere que na sequencia do episodio dito em 60º, o Padre ouviu barulho, como estava na hora da capela grande, o padre soube o que se passou e incentivou. Confirmou os episódios ditos em 65º, 67º, 68º, 69º, 72º, 73º, 75. Quanto ao ponto 76º, que ocorreu na churrasqueira, diz que não assistiu mas a EE contou.
A demandante KK, sobre a EE, relata que numa hora de oração, no fim de ler o evangelho, a EE estava a agradecer e começaram a BB e a CC a bater com murros e sapatadas e se as colegas não dissessem nada à EE, do género “estás suja”, também eram culpadas e por isso foram obrigadas a dizer. Ela ficou toda pisada. Acusaram a EE e a ela de serem lésbicas por se se ajudarem uma à outra. As duas foram obrigadas a carregar um monte de sarapilheira, com folhas molhadas, numa subida.
Sobre esta factualidade, em face do conjunto da prova produzida, o tribunal convenceu-se que os factos ocorreram nos exatos termos em que constam da acusação, louvando-se em particular no depoimento isento da Assistente II, quer quanto ao ponto 57º, convencendo-se que, pelo menos, a CC estava presente, quer quanto ao ponto 62º, pois que resultou do seu depoimento que o Padre AA também desferiu duas bofetadas, e quanto ao ponto 64º, que a HH também integrou o rol das noviças que foram forçadas a dormir com o canídeo.
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No que respeita à FF – matéria descrita nos pontos 79º a 85º -, a arguida BB explica que, a ofendida ia lá com os pais, desde pequenina, cresceu com elas, achou graça à obra e disse: “vou-me entregar”. Quando foi para lá teria cerca de 20 anos. Nunca conheceu o contexto familiar dela. No que respeita ao facto de alegadamente a ter compelido a redigir uma carta, a arguida assume uma posição ambígua, dizendo que se limitou a fazer o que gostava que fizessem a ela, ou seja, perante a constatação da arguida de que tinha vocação e que intentava ficar na Fraternidade, disse-lhe: “Escreve aos teus pais; se sentes fala”, mas afirma que a mesma mantinha a liberdade para dizer o que entendesse.
Nega que lhe tenha dito o que se refere no ponto 83º, designadamente que, se não fizesse as tarefas conforme ordenado seria uma “infiel a Deus”, pois ela estava há pouco tempo, não era preciso estar a ameaçar. Ela gostou de estar lá, mas foi visitar a família e decidiu ficar.
Quanto à questão que lhe terem sido retirados os documentos – matéria tratada no ponto 85º -, nega terminantemente, evidenciando que quando ela saiu, pediu à mãe que fosse à Fraternidade buscar os documentos e disse-lhe onde estavam os mesmos.
A demandante FF, declarou que entrou em 21 Out 2013, conheceu a instituição porque uma vizinha levou os pais e a testemunha aos convívios mensais e começaram a ir assiduamente. Já tinha passado lá alguns dias e antes de ingressar tinham um convívio em Lisboa, foi convidada e foi. Quando regressaram, ficou a dormir na instituição, foram dizendo que tinha vocação, que Deus a chamava e antes de ir ter com os pais, a BB disse que devia ficar e ficou. Não ficou a viver logo com elas na instituição. Ficou noutra casa, acompanhada de algumas delas, casa que ficava no mesmo edifício. Só entrou dentro da casa quando decidiu permanecer definitivamente na instituição. Eram lidos livros que os arguidos publicavam, alguns deles de Santos e, aos domingos, a BB dizia: “Jesus fala” e abria o livro à sorte e lia “Fica comigo” e, perante estas palavras cuja autoria era atribuída a Jesus, a declarante interpretava que se tratava de um chamamento. Os pais foram-se embora e ficou por mais uns dias. Nesses dias foi convencida a ficar lá, que tinha vocação, ia vendo passagens de livros a dizer que Deus estava a chamar, foi ficando e convenceram-na a ficar. Estava a estudar e tinha de cancelar a matricula da escola. Redigiu uma carta aos pais, escrita com a orientação da BB a dizer que queria lá ficar, seguir a vocação e abandonar a escola, e a BB disse-lhe o que deveria escrever. Sentiu-se pressionada por ela e deveriam ter-lhe dado mais tempo e a possibilidade de conversar os pais, mas a BB não quis que chamasse os pais. Até ../../2015, combinaram que poderia ir a casa, foi com a DD e depois trouxe-a a DD. Ela ia com intenção de voltar, mas já não voltou por imposição dos pais. Na verdade, não queria voltar, mas tinha medo das consequências. Reconhece que sempre foi protegida e nunca batiam muito à sua frente, porque foi a ultima a entrar e queriam que lá ficasse.  Não presenciou muita coisa. No período em que lá esteve, foram embora a II e a EE.
Depois de sair da Fraternidade, nos primeiros anos foi difícil, ficou fechada em casa da irmã, teve ajuda de um psiquiatra. Era o medo de que a encontrassem, tinha medo que não compreendessem a sua saída e medo de sofrer consequências divinas. Pelo que soube, a EE quando saiu, encontrou os pais da declarante e contou o que tinha acontecido a ela, o ambiente que ali se vivia e os pais não gostaram de saber. Ainda hoje é solteira, vive com os pais e está a trabalhar. Tem 30 anos, nasceu em 1990. Arrependeu-se de ter abandonado a escola. Quando entrou tinha acabado a licenciatura em enfermagem e estava inscrita num curso de pós-graduação. Era a única com carta de condução e elas nunca permitiram que conduzisse.
A declarante refere-se sempre a “elas”, embora responsabilize mais a arguida BB. Segundo refere, a CC era mais doente, estava mais por casa, resguardada, responsável pelo correio e redigia o texto da revista. O Sr. padre ficava mais no quarto dele; via-o a passear cá fora, ficava a ler no quarto, à noite ia com a BB e CC ver televisão e nem almoçavam com elas. A DD ajudava em algumas tarefas, principalmente na cozinha, tratava da roupa. Eles não estavam presentes quando aconteciam algumas coisas, mas não sabe se a BB lhes contava. Quando foi agredida pela BB, esta fazia pressão e a declarante tinha muito medo que os outros soubessem, porque talvez os outros lhe dessem razão.
No que respeita ao uso da “disciplina” que estava na capela da clausura, atrás do altar, no chão, refere que esse chicote era utilizado como castigo, só por imposição da BB. Quando pegavam na disciplina, tinham de lhe dar um beijo e depois usavam, autopuniam-se para se desapegarem da carne, segundo a BB. Só se recorda de elas usarem para se autoflagelarem e não para bater nas outras. Por sua iniciativa não sentia necessidade de usar a disciplina.
Foi duas vezes agredida, antes de sair e quando a EE saiu: na garagem, levou uma chapada por falar aquando da BB e, na sala de jantar, confirmando a factualidade a ela referente.
Quanto a esta ofendida, a Assistente EE, explicou que ela entrou em 2013 e conviveu com ela até 2015. Não assistiu a nenhum mau trato físico. Era doce, gostavam dela, era um pouco resguardada, talvez por ser enfermeira e pelo estatuto. Mas, psicologicamente era maltratada pela BB, pois esta queria que ela acusasse as colegas, queria que fizesse algo e ela não conseguia e, por isso, sofria represálias. Em finais de 2014 começou a ser pressionada. Por vezes, ela própria desabafava: “Eu quero ser fiel mas não sei se consigo”, a BB percebia que estava indecisa, e dizia “faz o que te digo”. Ouviu a BB dizer que era “infiel a Deus”.
Quanto a esta ofendida, a Assistente II declara que, quando fugiu da instituição, a FF estava há um mês, pelo que apenas assistiu a raspanetes, mas não se recorda de agressões.
Sobre esta ofendida, a Assistente HH diz que a ofendida entrou numa altura em que muita coisa tinha sucedido, mas nunca foi agredida. Foi pressionada pelo padre AA, BB e DD a ficar na instituição. Talvez tenha ficado sem banho. Os pais dela iam à Fraternidade, nos dias de convívio. A FF foi aos anos do pai e ficou em casa. Chegou a ter vontade de ir embora, porque lhe incomodava ter de acusar as colegas. Assistiu a uma pressão para não se ir embora. Quanto ao ponto 84º, diz que não sabe. A II tinha ido embora há pouco tempo. Sabe que a FF era enfermeira e a BB não a queria perder. Sobre esta ofendida, refere que nunca assistiu a insultos nem castigos. A FF aproveitou uma ida a casa e não regressou.
Ora, neste particular, emboras as colegas não se recordem das poucas agressões de que foi alvo, tanto mais que esta Assistente beneficiou de alguma proteção, atento o seu estatuto profissional, facto é que o depoimento da Assistente é esclarecedor e não merece duvidas sobre a ocorrência de toda a factualidade a ela respeitante.
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No que respeita à ofendida KK – matéria que integra os pontos 86º a 102º -, a arguida BB nega o que se afirma 87º, 88º, 89º, 91º, 92º, 95º a 101º.
Quanto ao ponto 90º, sobre a timidez da ofendida a arguida refere: “Era tímida, mas ficou grávida muito nova, com 16 anos”, negando que a tivesse obrigado a transmitir-lhe antecipadamente o que ia fazer.
Quanto ao episódio do frango – matéria que integra o ponto 93º -, nega que tal tenha acontecido, dizendo que ensinava a partir frango e que a ofendida não sabia nada.
Quanto ao ponto 102º, explica que não se via televisão por principio e que, salvo algumas exceções, nunca trabalhavam muito tempo seguido, sendo certo que, quando iam para a Fraternidade, elas viam trabalhar e sabiam que era para aquilo, sendo-lhes concedido um período experimental.
A demandante KK, refere que ingressou na instituição de Junho de 2008 e aí permaneceu até Maio de 2009, quando teria 14 anos, através de uma amiga da mãe que frequentava os convívios, ela também foi, gostou do espirito, começou a passar fins de semana numa casa ao lado, quando acabaram as aulas em Junho e decidiu ficar.
 Foi-lhe aplicado um castigo, porque desenhou uma cruz no chão da capela e não assumiu a autoria do feito e sofreu um castigo – rezar o terço com as mãos debaixo dos joelhos. Saiu em Maio, em jeito de ordem sabática, ou seja, vinha a casa passar um tempo e pensar no que queria fazer e se quisesse poderia regressar. Optou por não regressar. Tentaram contatá-la. disseram-lhe que teria vocação, mas já era catequista e retomou a escola.
Como ela estava há 15 dias, era tímida e não falava com as irmãs e a arguida BB disse que antes de fazer cada tarefa tinha de falar com ela, estava atrasada e lembra-se de ir junto dela e pedir desculpa e levou cinco estalos de cada lado. Quando passava os fins de semana não via nada disso. Outra vez, passou num corredor acabado de limpar e a BB desferiu-lhe com um pau de vassoura nas costas, limpou, mas a arguida obrigou-a a limpar mais vezes.
Em Dezembro, estava na cozinha e a BB pediu para cortar um frango e cada vez que posicionava a faca de forma errada, a BB dava-lhe um estalo, levou 8 ou 9 estalos. Outra vez, veio deitar o lixo, deixou cair uma folha da alface, levou um estalo e ficou com o nariz a sangrar.
Estava no 8º ano e foi para o convento, parou de estudar e quando regressou a casa retomou os estudos, mudando de escola.
Confirmou que, tal como as colegas, era visada em insultos, castigos, privação de banhos, alimentação e sobrecarregada com trabalhos.
Quanto à “Disciplina”, viu-as a usar a disciplina, a titulo de castigo, mas nunca sofreu esse castigo. Na sua perspetiva, privilegiada não havia ninguém, todas eram tratadas por igual. Neste momento está gravida. Nunca mais foi contatada pelos arguidos.
Escreveu uma carta ao Bispo (cfr. carta de fls. 151, apenso A) e ao padre VVV. A ideia era dar conhecimento à Igreja do que ali se passava para outras jovens não passarem o mesmo que passou.
Durante o tempo em que permaneceu na Fraternidade nunca foi a casa. Quando saiu, saiu de vez. Os portões estavam abertos. Saiu por ordem sabática, não foi expulsa. Os documentos ficaram com a BB, não teve acesso aos documentos, as arguidas enviaram os documentos pelo correio.
Relativamente a esta ofendida, a Assistente EE declarou esteve com ela cerca de um ano, pois que ela foi expulsa da Fraternidade em ../../2009, porque apareceu uma cruz no chão da capela, toda a gente perguntou e ninguém assumiu a autoria e colocaram uma vela no local a pensar que teria sido um milagre. A declarante e a LLL acharam que foi ela, porque tinha aspirado a capela antes. Por ter mentido, o Padre AA expulsou-a contra a vontade da BB.
No que respeita ao ponto 93º - relativa ao episódio do frango -, refere que a ofendida estava a cortar o frango e a BB deu-lhe muitas bofetadas. Assistiu a este episódio.
Quanto ao ponto 98º, refere que a ofendida trabalhava muito na limpeza dos jardins e terra e ficava dias e semanas sem beber água; teriam de recorrer à fruta para suprir a falta de água. Era castigo. Aconteceu com a declarante comer de joelhos no chão, mas com a KK não se recorda.
No que respeita ao ponto 99º, a declarante EE relatou que a ofendida estava a carregar baldes de estrume e deu um mau jeito ao pulso, foi dizer a BB, ela disse: “é fitas, mete um atilho e continua a trabalhar”, mas acrescentou que teria de tirar o fio se os pais viessem. Confirma os pontos 100º, 101º, 102º.
Sobre esta ofendida, a Assistente II declarou que conviveu cerca de um ano com ela. Soube do episódio dito em 79º e assistiu ao episódio dito em 93º, 94º, pois que estava de passagem e viu-a a levar estalos com a DD ao lado e nada fez.  Sobre o ponto 99º, recorda da ofendida sentir dores no pulso, porque caiu do trator e quando os pais dela vieram visitá-la, a BB obrigou-a a tirar as ligaduras. Sobre o episódio dito em 100º, a propósito da asma, confirma que a ofendida não recebeu qualquer tratamento, lembra-se de ter tido uma crise e não ter ido ao médico.
Sobre esta ofendida, a HH refere que viu a BB a dar-lhe com a vassoura. Esta por duas vezes a meteu ao barulho. Chegou a dizer que tinha sido ela a partir e chegou a ser injustamente castigada. A II entrou num momento difícil quando a MM tinha aqueles problemas depressivos. A II era a menina de ouro e provocava ciúme.
Confirmou o relatado no ponto 90º, não estava presente quando ocorreram os episódios ditos em 90º e 91º, ouviu contar pela LLL e EE o episódio dito em 99º e refere que, a propósito da asma chegou a ir ao hospital, quando teve uma crise.
Refere que ela foi expulsa, porque foi posta de castigo e fez uma cruz na carpete e no dia seguinte alguém viu e pensou que era um milagre, pois que ninguém se acusou. A EE percebeu que a cruz voltou a aparecer na semana em que a KK estava à capela e desconfiou. A CC e padre AA expulsaram-na. Ela não queria ir embora. Ela terá dito à EE ou LLL que quem fez a cruz seria alguém especial.
Sobre esta ofendida, a Assistente GG, confirma que a BB partiu-lhe a vassoura na tipografia, chegou a comer de joelhos, a mãe dela foi ajudar e ela deu uma palavra à mãe e foi agredida pela BB na capela. Recorda-se do episódio do frango que aconteceu a ela e com a II. Recorda-se que a ofendida sofria de asma, magoou-se no pulso e só a levaram ao endireita.
Sobre esta ofendida, o tribunal considerou provados todos os factos da acusação, sendo certo que se convenceu que o episódio narrado no ponto 94º, ocorreu na presença da arguida DD, em face do relato isento da testemunha II.
De notar que, segundo as Assistentes esta ofendida terá sido expulsa pelo Padre AA e pela CC, contra a vontade da BB, o que é bem sintomático de que, estes dois arguidos tinham poder e ascendente sobre a BB e, em ultima análise também interferiam com as vocações.
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Relativamente à ofendida WW – matéria que integra os pontos 103º a 112º – o tribunal ateve-se:
- Relatório psicossocial elaborado pela Associação para o Planeamento da Família, enquanto organização especializada na assistência a pessoas vitimas de tráfico de seres humanos, relativo ao acolhimento das utentes HH e GG entre ../../2015 e ../../2016, do qual resulta, além do mais “(…) Em ambas as vitimas há ainda a realçar uma ausência inicial de consciência do processo de vitimização, uma vez que nenhuma das vitimas foi capaz de se identificar enquanto tal. No seu discurso havia referencia a sentimentos de culpa associados à condição em que se encontravam e, ao mesmo tempo, a uma ligação emocional à Fraternidade que as tinha acolhido durante tantos anos e que, devido ao seu caso, estava em risco de fechar. (…). (…) Efetivamente a ligação a esta Fraternidade era de tal forma significativa que, não obstante o trabalho de empoderamento realizado no período de acolhimento em CAP, após a sua autonomização em Janeiro de 2016, posteriormente a um período em que viveram com as respetivas famílias, ambas regressaram à referida Fraternidade, assim que tiveram a informação de que os arguidos em concreto haviam sido afastados. Atualmente apenas a irmã HH se mantém na Fraternidade uma vez que a irmã GG optou por abandonar aquela comunidade por sentir que muito do seu funcionamento ainda se mantinha nomeadamente no que respeita a trabalho intensivo e alguns dos maus tratos”.
A arguida BB refere que a Assistente ainda continua lá, negando tudo quanto a propósito lhe é imputado.
A Assistente HH, relata que entrou na Fraternidade em Setembro de 1990, com 15 anos de idade, esteve fora desde ../../2015 até ../../2016, tendo regressado ao convento nessa data e ainda aí permanece. A mãe já conhecia e começou a frequentar com 6 anos, ia lá passar fins de semana, quando a Fraternidade ainda estava no ... e depois continuou em .... A certa altura sentiu que Deus a chamava. Quando entrou estavam lá a CC, DD, BB, Padre AA, MM, OO e WWWW. A pessoa que mais a cativou foi a CC, mas quando lá passava uns dias era a BB.
Sobre o ponto 108º, recorda-se que apanhou uma coça muito grande com o chinelo, relatando que, uma vez perdeu a chave, não sabia onde a tinha perdido, era de noite e não a encontrou e então levou uma coça de chinelo e com a mão, ficou toda pisada;
Sobre o ponto 109º refere que era das mais velhas do grupo e o armazém do papel, tinha coisas desarruadas e a BB chegou, no dia de convívio, e deu-lhe várias bofetadas e como entrou o CCC, ela mandou-a desligar a luz para não se ver sangue no chão. Mas o CCC viu o sangue e terá percebido. Foi assistida pela EE.
Quanto ao ponto 110º, confirma que era uma mulher bonita e bem disposta e isso fez confusão à BB. Ela mandou-a despir na presença da WW (...). A DD estava presente. Tudo isto teve o objetivo de a humilhar.
Sobre o que se passou com esta ofendida, a Assistente EE refere que a HH ingressou em 1990, e esteve com ela desde 2004 até agora, pois que, ainda lá estão ambas. Confirma que a BB bateu-lhe com a mangueira, também sofreu castigos do banho, privações de beber água, comida, etc. Às terças e sextas-feiras, a arguida BB fazia natação e ficavam com a tarde livre, sem a presença dela, altura em que a HH ia à dispensa, sem autorização da BB, e dava comida a todas. Confirmou os pontos 105º, 106º e 107º.
Quanto ao ponto 109º, recorda-se que, num domingo, estavam a preparar o convívio, a BB bateu-lhe e a HH estava com sangue no nariz e viu sangue no chão, mas não viu a agressão;
No que respeita ao ponto 110º, a declarante confirma que a HH tinha olhos verdes, era bonita, simpática, iam lá homens e olhavam para ela, a BB não suportava porque achava que a HH tinha culpa porque se fazia a eles.
O episódio da nudez, não será do tempo dela, mas soube-o pela própria HH. A HH é a mais velha na idade e na permanência na instituição, era a mais castigada no inicio e depois passou a trabalhar na tipografia com a CC e foi mais poupada.
No que respeita ao ponto 112º, refere que, uns dos insultos que a BB lhe dirigia era: “monte de carne”, porque os homens olhavam para ela. O padre AA também lhe disse: “não vales nada, não prestas para nada”.
A Assistente II confirma o referido no ponto 105º.
Sobre o ponto 107º, a Assistente II recorda-se que um dia a BB bateu-lhe com a ponta em aço da mangueira, atingindo-a na testa e ficou a sangrar.
Quanto ao ponto 110º, relatou que a arguida CC também bateu na HH porque a BB, CC e DD tinham ciúmes da HH. A CC e a BB sempre atacaram a HH quanto a questões de sexo, porque achavam que esta cativava os homens, condição que já não estaria ao alcance delas. Ouviu a CC a dizer à BB: “estamos a ficar velhas, ninguém olha para nós!” Relata que uns calceteiros foram contratados e foram buscar um cartão e ao descerem, um deles, dirigindo-se à HH disse “Bom dia”; quando a HH chegou ao escritório, a CC disse-lhe que se havia rido para o homem, acrescentando: “só pensas em sexo” e desferiu-lhe quatro chapadas.
Sobre esta ofendida, a LLL refere que trabalhava na tipografia e a BB batia-lhe muito, recordando do episódio em que, no armazém, lhe rebentou o nariz.
A demandante KK, refere que quanto à HH recorda-se pouca coisa, porque era uma das mais velhas, não viu castigos de monta, viu apenas estalos, verbalizar insultos, viu ser castigada com privação de banhos e de beber água.
Sobre esta ofendida, o tribunal deu como provados os factos contantes da acusação, com a nuance, quanto ao ponto 110º que a arguida DD estava presente, como a própria Assistente reconhece e que a CC, a esse propósito lhe chegou a dizer: “ só pensas em sexo” e desferiu-lhe quatro chapadas, estribando-se o tribunal no depoimento isento de II e quanto ao ponto 112º, que os insultos eram protagonizados pelos três arguidos, excluindo a DD, em face do que resultou dos depoimentos de EE e II.
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Relativamente à ofendida GG – matéria que integra os pontos 113º a 140º -  o tribunal ateve-se, ao teor dos seguintes documentos.
- Relatório de fls. 750, com a enumeração dos tratamentos efetuados à demandante;
- Atestado de doença de fls. 751;
- Resultado de meios complementares de diagnóstico de fls. 753 a 758;
-Prescrição de medicação prolongada de fls. 759;
- Cópia integral do processo clinico de GG, na Casa de Saúde ....
- Declaração da Casa de Saúde ... de fls. 985, declaração de internamento e relatório clinico de fls. 986 e 987.
- Certidão de Nascimento de GG de fls. 1466 verso, da qual resulta que a mesma nasceu em ../../1984;
- Relatório psicossocial elaborado pela Associação para o Planeamento da Família, enquanto organização especializada na assistência a pessoas vitimas de tráfico de seres humanos, relativo ao acolhimento das utentes HH e GG entre ../../2015 e ../../2016, do qual resulta, além do mais “(…) Em ambas as vitimas há ainda a realçar uma ausência inicial de consciência do processo de vitimização, uma vez que nenhuma das vitimas foi capaz de se identificar enquanto tal. No seu discurso havia referencia a sentimentos de culpa associados à condição em que se encontravam e, ao mesmo tempo, a uma ligação emocional à Fraternidade que as tinha acolhido durante tantos anos e que, devido ao seu caso, estava em risco de fechar. (…). (…) Efetivamente a ligação a esta Fraternidade era de tal forma significativa que, não obstante o trabalho de empoderamento realizado no período de acolhimento em CAP, após a sua autonomização em Janeiro de 2016, posteriormente a um período em que viveram com as respetivas famílias, ambas regressaram à referida Fraternidade, assim que tiveram a informação de que os arguidos em concreto haviam sido afastados. Atualmente apenas a irmã HH se mantém na Fraternidade uma vez que a irmã GG optou por abandonar aquela comunidade por sentir que muito do seu funcionamento ainda se mantinha nomeadamente no que respeita a trabalho intensivo e alguns dos maus tratos”.
Refere que a mesma era muito triste, não falava, era difícil, muito fechada. Ela foi dizendo que a ofendida tinha dois problemas: uma irmã da mãe suicidou-se e tinha aquilo dentro dela, e, por outro lado, os irmãos eram quase todos rapazes e ela era a única rapariga e havia abusos protagonizados pelos irmãos e, por isso, estaria deprimida.
Relativamente ao ponto 115º, não se lembra das alegadas perdas de sangue, mas se esteve doente foi tratada como qualquer irmão. Não se recorda do medicamento M45 e, quanto aos pontos 116º e 117º, refere que ela esteve internada na Casa de Saúde ..., confirmando o referido no ponto 118º.
Relativamente ao ponto 119º, refere que todos os domingos, quando tinham os convívios, estavam a ser incomodados pela família da ofendida, que dizia que a LLL estava doente e que o M.P., era entidade laica e que ia estar dentro de tudo e haveria de destruir a obra. Os familiares quiseram leva-la a outros centros de saúde e ela foi, porque queriam ver se se calavam a família.
Posteriormente levaram lá uma senhora que se dizia amiga da família e era advogada, ocasião em que levaram gravadores e fomentaram uma discussão. Confirma que, para calar a família, a GG foi levada ao médico particular, onde foi diagnosticado um problema de saúde e que foi tratada, admitindo que, se não fosse a pressão não tinha ido ao médico. Quanto ao ponto 120º, confirma que a ofendida foi levada para a Casa de Saúde ..., por iniciativa da instituição, porque queriam fazer ver aos pais que a queriam tratar, não se recordando da matéria relativa ao ponto 121º.
Relativamente ao facto da ofendida GG ir sempre acompanhada, quando se dirigia a instituições de saúde – cfr. ponto 112º -, confirma que era verdade que ia sempre com alguém porque era principio da Fraternidade; não era com o objetivo de controlar. Quanto à matéria dita no ponto 123º, refere que trabalhavam com entusiasmo, tinham o dia dividido, o máximo que trabalhavam seria 4 horas seguidas; davam muito comer; no verão o banho era de água fria, no jardim, mas isto não é nenhuma novidade. Quando entraram no convento, as ofendidas assumiram três regras: obediência, pobreza e castidade. Sabiam que não podiam visitar a família sempre que quisessem, podiam fazer chamadas se pedissem, mas havia obediência, havia liberdade de estar a sós com a família; quanto aos documentos eram retirados e colocados num local, mas quem quisesse podia recolhê-los, o que faziam, quando necessário.
Nega o que se refere nos pontos 124 a 132º, 134º a 140º, embora se recorde que a LLL, com os nervos, partiu uma vassoura. Quanto ao ponto 133º refere que as ofendidas tiveram uma fase de ciúme entre elas e quiseram culpar a arguida, recordando-se, por exemplo, que a HH era má para a II. A LLL disse que se tiver acesso a um tribunal dirá que eram mal tratadas e que a BBB foi tratada de forma diferente. Tinha pena porque o ciúme é horrível.
A Assistente GG, sobre os pontos 113º e 114º, declarou que entrou em ../../2005, com 20 anos de idade e saiu em 24 de Março de 2015, reentrou e saiu definitivamente em 18 de Novembro de 2018. A ideia de lá passar uns dias veio da tia religiosa que já lá tinha estado, depois gostou do ambiente, não gostava de estudar e, incentivada pela irmã HH, acedeu. Nesse período foi uma fachada, nunca imaginou agressões, sentiu pressão da irmã HH, mais tarde percebeu que tinham que angariar jovens, chegou a ser insultada por não incentivar as vocações. Estava infeliz, perdeu o animo pelo estudo e os arguidos convenceram-na da vocação religiosa. O pai estava preocupado, sentia tristeza e desanimo, mas insistiu e pediu que tratassem bem de si e a arguida BB comprometeu-se.
Quanto aos pontos 115º a 122º, explicou que, no ano de 2006 havia perdas de sangue e a BB ignorou e deu-lhe um remédio para a menopausa. Explicou que, em 2012, sentiu um incomodo na zona da bexiga e falou à BB e ela ignorou e só em 2013 foi ao médico ginecologista. Nada foi detetado. Mais tarde por pressão dos pais – a II já tinha saído e tinha dito aos pais as razões da sua fuga – e a CC incentivou a ir ao médico. Foi ao médico particular e fez ecografia, que concluiu pela existência de varizes pélvicas no útero; depois começou a ter perdas de sangue devido a esforço físico e uma inflamação no intestino. Foi internada na Casa de Saúde ... mas as duas ( BB e CC) foram ao hospital dizer que eram conflitos de família. Disseram que a família não tinha de se intrometer na vocação. Foi ao Centro de Saúde em ... e tomou antibiótico, mas nada resolveu.
Quanto à agressão mais forte que sofreu – a descrita no ponto 125º - , ocorreu quando estavam a lavar o passeio ( o que fazia todos os sábados), a BB andava com a mangueira, a declarante andava com a vassoura e caíram umas pingas nos pés, a BB com o ferro da vassoura bateu no osso perto das fontes, com muita força, ficou com o olho negro. Estava com uma colega.
No que respeita ao ponto 127º, relata que, na cozinha, estava a fatiar o pão e ela achava que estava torto; deu-lhe com a tábua do pão nos ossos dos braços.
Quanto ao ponto 128º, refere que, quando era preciso dar um recado, a BB dizia o que tinha a dizer, depressa e de costas, e, mesmo que a declarante, pedisse para repetir uma segunda vez, ela não confirmava de propósito para a poder castigar, e neste contexto deu-lhe com a mangueira nas pernas e braços, várias pancadas e ficou negra. Ela bateu-lhe com a peça com a mangueira mais grossa. Não se podia mexer nem queixar porque levava mais. À tarde, tocou numas flores e bateu-lhe outra vez. Com a força da pancada cortou o braço, ficou a sangrar e teve de atender uma pessoa à porta, era mesmo para humilhar. Ela mandava dizer aos calceteiros que as colegas eram desobedientes e porcas.
Sobre os pontos 129º a 130º relata que num jantar, a DD deu-lhe uma bofetada incentivada pela BB. Noutro dia, há uma situação em que estava a fritar batatas, tinha de arrumar a banca, atrasou-se e a DD deu-lhe meia dúzia de socos. A DD relata à BB e a BB deu-lhe inúmeras bofetadas porque incomodou a DD. A par da DD começou por ser a II, depois a LL e depois a FF, incumbidas de fiscalizar as infiéis, em cujo grupo estava incluída.
A maior coça que sofreu ocorreu na horta – cfr. ponto 132º – explicando que a BB mandou-a à horta e começou a implicar, dizendo-lhe que era infiel, desobediente, um monte de orgulho.  A EE vem da tipografia e a BB queixa-se que a declarante estava sem falar com ela; pega numa estaca afiada na ponta, e começa a bater nos braços, pernas, pescoço, acabando por partir a estaca. Isto ocorreu na presença da EE. A declarante segurou a estaca e ainda ficou pior, insultou-a: “Diabo, infiel”, atirou-a pelos cabelos ao chão e mandou a EE ir buscar água benta.
Relativamente ao ponto 133º, confirma que as colegas foram incitadas pela arguida BB para a agredir com chicote. A arguida chamava-lhe “correção fraterna” e diz que era o espirito da obra. A declarante não batia nas outras, chegou a fingir que batia na EE. Imensas vezes, na revisão de vida, foi vitima do chicote. Tinham de falar do arrependimento e a BB voltava à carga. A II chegou a ser aliada, batia com mais força para magoar. A HH e EE batiam devagar. Ficou com talos durante meses. Veio a LL e a II foi prejudicada. A LL não tinha jeito para bater, mas tinha jeito para inventar mentiras e intrigas. Quando veio a FF, acabou-se o período de graça da LL.  Na Capela da Clausura, a BB dizia que foram desobedientes e mandou toda a gente usar a disciplina. Quando chegou a vez dela, foi a BB e ela escolhia onde doe-se mais. Deu-lhe imensas chicoteadas. Ela batia até ficar satisfeita.
Relativamente ao ponto 138º, refere que, em 2013, estavam a apanhar as folhas e apanhou uma folha doutra natureza a BB deu-lhe com um ancinho. A FF viu.
No ponto 139º descreve-se aquela que foi, talvez a ultima agressão grave, explicando que estava exausta de trabalhar e a BB deu-lhe com o sacho nos braços. Disse que estava farta e, aos berros chamou-lhe “desobediente e infiel”. Ela tinha uma força bruta; para trabalhar era doente, ela não fazia nada. Era tal a brutalidade que lhe cortou parte dos lábios. Deus é que lhe dava força para resistir.
A Assistente explicou que, ao contrário dos arguidos cujos aniversários eram festejados, as Assistentes não estavam autorizadas a fazer festas de aniversário porque não eram gente. Um dia o CCC trouxe um bolo e a BB disse que “o devia colocar no cu”. A BB controlava as confissões, por forma a só obter a confissão de quem e do que queria.
A Assistente EE, sobre GG refere que entrou em ../../2005 e estiveram juntas em 2015, altura em que a GG saiu, regressando em 2016, para sair definitivamente em 2018, porque não estava emocionalmente em condições. Confirmou o ponto 114º, e quanto ao ponto 115º, refere que a ofendida teve perdas de sangue, não tinha menstruação regular ou tinha muita ou pouca, o que aconteceu devido a um medicamento natural (M45), que lhe foi dado pela BB, mas que era vocacionado para a menopausa e que lhe provocou essas alterações hormonais. Confirmou todos os pontos 115º a 129º. Quanto ao ponto 130º não estava presente, não viu, mas a DD também lhe bateu, desferindo-lhe murros e estalos.
Quanto ao ponto 132º, recorda a coça que a BB lhe deu nas estufas, com uma estaca bem grossa, com a qual a arguida lhe bateu muitas vezes (cerca de 10 vezes), nos braços, pernas e no pescoço, tendo chegado a pensar que a LLL fosse morrer, ao mesmo tempo que dizia “Estás com Diabo, vou buscar água benta” e quando chegou a atirar água benta e parou de lhe bater. A LLL ficou toda pisada. A BB chamava-lhe “mono” e quando chegou junto delas, dizia “Estou à beira de um mono que não fala”. A marca no pescoço era visível, mas ninguém quis perguntar o que se tinha passado.
No que respeita ao ponto 133º, referiu que, em relação à II e LL sabiam que eram protegidas, até um determinado momento. A BB gostava de as colocar umas contra as outras. A II vestiu o habito primeiro que a declarante, o que foi feito pela BB com o objetivo de as colocar em crise. Chegavam a ter de bater umas às outas, mas eram obrigadas, não queriam ter de fazer isso. A LLL dizia que abaixo da coluna doía menos e a declarante dava devagar, mas a BB dava a valer. Não assistiu ao relatado nos pontos 135º a 137º.
Assistiu ao relatado no ponto 138º, pois que, à distancia já estava a ver a BB a dar-lhe com um ancinho e a ofendida disse que lhe estava a bater por algo que não tinha dito. Tinham de dizer todos os dias o que fizeram de mal, ela não terá dito o que tinha feito. A ofendida chegou a ter 10 recados e não tinha coragem de dizer um. Quanto ao ponto 139º, referiu que não sabe, mas aconteceu consigo. Quanto aos insultos – cfr. ponto 140º -, refere que quem os verbalizava era a BB e Padre AA, as outras arguidas não.
A Assistente JJ, embora não se recorde de pormenores, referiu que a BB era especialmente dura com a EE e GG.
A Assistente II, sobre esta ofendida declarou que a GG levou muita porrada, que um dia tinha ido com a CC a um funeral e chegou e ela disse não me toques e contou que a BB lhe bateu por todo o lado numa estufa. Estava toda negra e não teve assistência medica.
Sobre o ponto 115º, confirmou as perdas de sangue e que a BB lhe deu um medicamento natural adequado para as mulheres em menopausa e começou a ter efeitos perversos. A ofendida queixou-se à BB e ela disse: “é sinal que está viva”, mais tarde foi a uma consulta, por insistência dos pais, acabando por a levar ao médico para calar a família, mas confirmando o que se refere no ponto 122º, no segmento em que se afirma que era sempre acompanhada da DD.
Sobre o episódio dito em 125º, a Assistente II esclarece que assistiu. Estava a esfregar as escadas, e a LLL sem querer, direcionou a água para os pés da MMM, esta tirou a vassoura da piaçava e deu-lha na cabeça, pisando-lhe o olho. Quanto ao episódio dito em 127º, recorda-se e era comentado. Quanto ao episódio dito em 128º, relativo à mangueira, diz que não assistiu, mas ouviu comentar e viu marcas. O padre AA não simpatizava com a LLL porque desafinava a cantar e dizia que esta “tinha o diabo, que era um mono, uma palerma”.
Quanto à situação relativa ao ponto 132º, que ocorreu na horta, a Assistente não assistiu à agressão mas viu o estado dela quando chegou com a CC, oriundas de um funeral.
O ponto 133º foi confirmado pela II, que admitiu que, ela, a HH e a EE foram obrigadas a bater na LLL com a disciplina. O uso da disciplina era feito na capela, tinham de se autoflagelar com o conhecimento de todos.
Também se recorda do episódio relativo ao ponto 135º, não se recordando da demais factualidade.
Sobre esta ofendida a Assistente HH refere que conviveu muitos anos com a LLL e que esta andava muito com a EE. Quando entrou para a Fraternidade já ia com o esgotamento. Era trabalhadora e boa rapariga.
Sobre os pontos 115º a 122º, refere que ela chegou a ter um problema de saúde que nunca foi levado a sério. Perdia sangue e ninguém levou a coisa a sério, pois que a BB propôs um medicamento natural - M45- que era adequado para a menopausa. A CC levou-a ao Dr. XXXX que descobriu que tinha varizes pélvicas e foi-lhe prescrito um tratamento. Não assistiu ao episodio dito em 126º.
Assistiu ao relatado no ponto 127º, pois que ela não partiu bem o pão e a BB deu-lhe com a tábua do pão. Ouviu contar o que se relata nos pontos 128º a 130º. Quanto ao ponto 132º, não assistiu mas ouviu relatar e a irmã CC não estava em casa. Viu a LLL pisada na cara e braços, os outros arguidos não viram as lesões. Confirma o ponto 133º, referindo que a LLL dizia que sentiu que a II deu com mais força.
Não assistiu ao que se relata nos pontos 135º, 136º, 138º e 139º, tendo assistido ao relatado no ponto 137º e foram muitas vezes, confirmando o relatado no ponto 140º.
A demandante KK, sobre a GG, recorda que esta andou nua, porque a BB decidiu, era castigo, deu-lhe bofetadas, bateu-lhe com paus de vassoura e com mangueiras.
Sobre esta Assistente, com base nas declarações dela e das demais colegas, o tribunal deu como provada toda a factualidade vertida na acusação/pronuncia.
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Relativamente à ofendida II – matéria constante dos pontos 141º a 163º  – o tribunal ateve-se o teor da seguinte prova documental e pericial:
- Declaração médica de fls. 506;
- Relatório de perícia de avaliação de dano corporal de fls. 521 e ss, do qual resulta que a demandada não apresenta lesões ou sequelas.
A Arguida BB refere que a II ( a quem chamavam “BBB”) fugiu durante a noite. Era nova, terá começado a namorar com um rapaz, no convento. A BBB era querida no início, chegou a ter um prémio da Fraternidade no inicio, porque foi a ... com elas. Ela ia às compras sozinha, fazia o que queria, levava o telemóvel.
Nega o que se afirma nos pontos 142º a 144º, reafirmando que terá dado algumas chapadas, ter-lhe-à faltado a paciência, falava alto, mas era por amor e, quanto aos pontos 145º e 146º, refere que isso não aconteceu, ensinava as lides da casa, a cortar frango, mas não batia. Neste particular, refere que circulou na internet um filme terrível, com a canção Dominique, que retrata a vida num convento e explora o episódio do frango que, na sua perspetiva terá inspirado a narrativa das ofendidas.
É igualmente falso o alegado nos pontos 157º a 158º, confirmando que, por vezes adormecia, mas não a condena por isso, embora registe com perplexidade que “nunca adormecesse a ver televisão”.
Quanto ao ponto 159º, diz que essa pratica de colocar terra nas feridas para estancar hemorragias, era exercida na terra da ofendida, mas a arguida nunca diria para colocar terra nessas circunstancias.
Nega a factualidade constante dos pontos 160º a 163º, reafirmando que nunca lhe disse o que se afirma no ponto 161º, admitindo que, no período que antecedeu a fuga, ela tinha atitudes esquisitas (não obedecia, desenrascava-se), mas nunca lhe dirigiu estas palavras. Não sabe porque fugiu.
A Assistente II confirmou o período em que esteve na Fraternidade e admitiu que inicialmente sentiu que a CC, o Padre e a BB lhe davam um estatuto de preferência, pois que, por vezes, para gerar ciúme nas colegas, chamavam-lhe “BBB” e diziam que não era orgulhosa e que nunca desobedecia. Nessa altura, sentia-se posta de parte pelas colegas.
Quanto à sua fuga, esclareceu que depois de ter sido agredida na garagem com a esfregona, ficou muito deprimida e chegou à conclusão que não aguentava mais e, uma semana depois, estava na tipografia e estava o CCC e puxou por ela e ela desabafou e mostrou como estava pisada e ele ofereceu-se para a ajudar. Depois falou com a D. YYYY, amiga que a levava e trazia de ... e numa das idas, depois da coça, desabafou e deixou-a chocada. Houve um convívio, falou com uma das irmãs e contou-lhe. Na semana seguinte, a YYYY marcou encontro na garagem do seu apartamento e ela, o marido e o CCC propuseram-se levá-la a casa dos pais. Para a fuga confiou mais no CCC. Chegou o dia 21 ou 22 de Novembro de 2013, nesse dia estava encarregada de fechar as janelas, pegou num telemóvel e levou-o na bata, fechou as janelas, escondeu-se nas camélias e ligou ao CCC (tinha o numero decorado) e disse-lhe: “vou embora hoje”.
Tinha noção da hora por causa do sino e quando tinha de ir para a capela, como a EE estava a dormir no chão, não podia acender a luz (castigo), a EE não a viu a tirar a roupa, deitou-se e não dormiu, esperou que tivesse toda a gente adormecido, levantou-se, tinha preparado um saco onde tinha o BI., umas cartas, pegou numa manta e saiu pela porta das traseiras e acabou de se vestir no jardim e desceu pela praça abaixo e encontrou-se com o CCC, conforme combinado.
Ainda hoje tem pesadelos de noite, que a BB lhe está a bater e que as outras a impedem de fugir. Após a fuga, teve acompanhamento psicológico no centro hospitalar em ZZZZ, fez ressonância magnética aos joelhos – pag 508 a 601 - e sentia medo sempre que a mãe tinha algum problema de saúde. A BB ligou para o telemóvel do pai a perguntar pela “BBB” e teve o topete de lhe perguntar: “foi você que a mandou ir embora como a puta da mãe dela” e ainda disse ao pai que a “vida lhe vai correr mal”.
Quanto ao episódio relatado nos pontos 143º e 144º, relata que, em 2005, estava a esfregar com a vassoura a varanda e, sem querer, o cabo da vassoura tocou numa planta e só sentiu o estalo da BB na cara. Este terá sido o seu primeiro estalo.
Quanto ao episódio do frango – cfr. pontos 145 e 146º - explica que era o dia dela de estar à cozinha e estava a preparar um frango com a DD. Era muito nova, não sabia cozinhar e era preciso cortar um frango do campo e não usava a faca no sítio certo. Nessa ocasião, a BB chega e vê-a naqueles preparos e deu-lhe tantos estalos ( mais de 10), que ficou com as hastes dos óculos tortas e o olho pisado. A BB chamava-lhe: “lorpa, imbecil” enquanto lhe dava os estalos. A ofendida acabou por massacrar o frango enquanto a BB lhe continuava a bater. A dada altura pousou a faca e levou estalos, bateu-lhe com a cabeça na chaminé e ficou com o olho pisado. A DD assistiu a esta agressão e nada disse. A declarante apanhou uma “carga de lenha” e a CC soube porque na revisão de vida viu o olho pisado e perguntou-lhe e a declarante disse-lhe o que se havia passado. A CC disse: “bem feita que apanhes no focinho, és desobediente”. Também o padre chegou a dizer numa missa que autorizava que espetasse com a cabeça na parede porque a desobediência é oriunda do diabo.
Relatou o episódio referido no ponto 147º, ocorrido no dia de Natal. Explica que a BB chamou por ela, não respondeu logo e, ao chegar ao pé da BB, esta desferiu dois estalos e disse: “ és uma infiel, orgulhosa, tens o diabo em ti”. Nesse ano, relembra a Assistente que passou um natal horrível. Aliás, nesses períodos de festa havia sempre mais tensão. Eles diziam que, no Carnaval é quando os jovens pecam mais e elas teriam de purgar esses pecados. Se chorasse era proibido, porque significava que estava a afirmar o orgulho. Quando os pais vinham ao convívio, não podia chorar. Uma vez os três disseram-lhe: “a tua família somos nós, tens que esquecer a família”, por isso tinha de chorar às escondidas e tinha de ignorar a família. Já as arguidas iam a casa da família quando queriam.
Confirmou na integra o episódio das alheiras – cfr. ponto 149º e 159º - explicando que a mãe dela levava alheiras e nunca lhes era dado a comer, facto que comentou com a HH, a quem evidenciou estranheza por a mãe trazer alheiras e nunca lhes ser servido aquelo que a mãe levava e desabafou relativamente ao ambiente que ali se vivia, nunca pensando que a HH contasse à DD. Como esse desabafo chegou ao conhecimento da BB, no dia seguinte ao desabafo, a BB chamou todas as irmãs à cozinha – exceto a CC - e começou a dizer-lhe: “queres ir embora vai, então não comes a alheira da tua mãezinha?” e levantou-lhe a saia e bateu-lhe com chinelo nas nádegas e deu-lhe várias lambadas na cara e foi obrigada a pedir desculpa. Acha que a HH teria ciúmes e vingou-se.
Confirmou também o episódio ocorrido no interior da capela – cfr. pontos 151º  – explicando que, não sabia fazer a adoração do Evangelho e a BB regia à oração, mas as orações da BB consistiam sempre em insulta-las: “Sois uns monte de pecado, sexo,  meu Deus, metei estas desobedientes no inferno, vão ser levadas pelo fogo quando vier a vossa justiça divina”. Como a ofendida nunca pediu desculpa, a oração não agradou à BB, esta interrompeu para a injuriar e bateu-lhe com o chinelo, desferiu-lhe bofetadas, de tal ordem que ficou com a cara inchada e em jeito de castigo disse. “Ficas de pé”. No dia seguinte quando foram lá os pais, teve de lhes dizer que era alergia, com medo que os pais fossem tirar satisfações e ainda lhe batesse mais.
Relativamente aos pontos 152º e 153º, refere que, no ano 2013, era a semana dela na cozinha, a compota acabou e como não podia ir à sala da televisão não disse nada à BB; no dia seguinte, foi dizer ao ouvido da BB que a compota estava em falta, esta não respondeu e levantou-se e deu-lhe pelo menos duas bofetadas, admitindo que lhe tenha dito o que ali se refere.
Também confirmou o ponto 155º, relatando que em 2013, estava a lavar roupa no tanque, uma colega tinha-lhe dado um recado da BB e ela esqueceu-se e a BB veio e bateu-lhe com chapadas na cara.
Também confirma o ponto 156º, declarando que, em 2008/2009, fruto do cansaço, adormeceu no interior da capela: era meia hora de oração em frente ao Santíssimo, tinham livros para ler e revista mensal e estava a meia luz, sentou-se um pouco e adormeceu. A BB tocou-lhe no braço, chamou-a fora da capela e desferiu-lhe uns estalos na cara e a ofendida ainda lhe pediu desculpa, informando que estava cansada.
No que respeita ao ponto 158º, explicou que tinha sido encarregue pela BB de levar uma saia que estava na sala de costura, ao noviciado, mas a ofendida deu prioridade a outra tarefa porque se esqueceu da saia e dias depois a BB encontrou a saia no mesmo sitio, chamou-lhe desobediente e obrigou-a a ir de joelhos durante 500 metros para levar a saia, causando-lhe quistos nos joelhos. O piso era calçada, estava a chover e as dores que lhe causou foram tais que ainda hoje não se pode pôr de joelhos.
Quanto ao ponto 159º refere que estava em cima de um cedro, a cortar uns galhos, tinha vertigens e como é canhota, tal condição impedia-a de trabalhar com a mão esquerda, razão pela qual acidentalmente a serra raspou nos dedos, começou a sangrar e continuou a cortar o ramo. Quando acabou de cortar o ramo, disse à BB e ela disse para colocar terra, não tendo sido sequer autorizada a desinfetar a ferida.
No que tange aos pontos 160º e 161º, refere que, na semana anterior à sua fuga, foi dar de comer às galinhas e havia o saco do pão duro, foi à garagem nova, começou a preparar o pão seco, a BB e DD chegaram e a BB deu-lhe estalos, porque alegadamente se havia esquecido de uma camisa do Padre AA e também houve uma ocorrência com a LL, a BB dizia-lhe: “Dizias que ela tinha o Diabo!”
A arguida bateu-lhe com as mãos, com o cabo da esfregona, a declarante estava com uma bata e encostou-se à garagem, a porta estava fechada e continuou a apanhar até o cabo se partir. Dizia-lhe: “Agora vai-te embora” e ainda tratou mal a mãe dela, apelidando-a de “puta”, dizendo que tinha estado num convento e decidiu sair, instigando a t: “Agora sai como saiu a puta da tua mãe”, sendo certo que a mãe não fugiu do convento, saiu por outros motivos pessoais. Ainda acrescentou: “Gostas de mandar leis à LL e fazes pior que ela”.
Refere que, apesar da LL ser beneficiada, tinha pena dela. Confirmou que, em consequência da agressão sofreu pisaduras no braço esquerdo e coxa esquerda e não se pôde tratar.
Referiu que o padre AA também lhe quis bater e chamou-lhe “filha da puta”, porque abriu a porta a duas funcionárias dos correios que vinham buscar uns pudins e vinham com calças, e o padre perguntou: “quem foi o Diabo que deixou entrar estes dois homens?”, ao mesmo tempo que lhe dirigiu insultos, chamando-lhe: “ filha da puta, infiel, não és daqui, imagina que tivesses aqui um bispo e não te justifiques”. No dia seguinte não lhe deu a comunhão na missa.
Quanto à ofendida II, a Assistente EE confirma que a mesma entrou para o convento em agosto de 2004 e esteve com ela até 2013, altura em que saiu. Em 2013 quando entrou a LL, que ocupou o lugar da II, esta começou a ser mais castigada. A partir de 2013 começou a trabalhar muito no jardim; antes trabalhava com a irmã CC no escritório e era poupada nos trabalhos pesados do exterior. Foi o CCC que a ajudou a ir embora. Ela chegou a dizer às colegas: “vamos embora?”. Uma vez disse à BB que ia embora e levou uma coça, o que valia para todas. Confirmou os pontos 142º a 144º. Quanto ao ponto 145º, refere que estava presente, mas quando chegou já a II tinha levado bofetadas, mas ainda assistiu a algumas. A ofendida chorava e como usava óculos, estes entortaram. Relativamente aos pontos 147º e 148º, não viu nem ouviu contar.
No que respeita ao ponto 149º, explica que a II é de ..., os pais traziam alheiras para todas, mas ela nunca as comia, tendo assistido ao que se relata no ponto 150º, esclarecendo que não estavam presentes a CC nem o Padre AA, estando apenas a DD e a BB. Insiste que a irmã DD era igual a elas e tinha medo da BB, era chefe da cozinha e ensinava as outras. Chegou a ver a BB a bater na DD.
Não se recorda do episódio relatado em 151º, tendo assistido ao que é referido em 152º a 154º e o episódio dito em 155º, soube pela II.
Assistiu ao relatado nos pontos 156º a 158º, referindo que o ultimo aconteceu porque a II um dia se esqueceu de fechar as janelas e sofreu esse castigo, não tendo assistido ao relatado no ponto 159º, mas corresponde a um procedimento habitual da BB.
Quanto ao ponto 160º, diz que foi a ultima coça que a ofendida sofreu antes da fuga, não assistiu porque estava no arquivo. A II tinha as veias salientes, óculos partidos e dizia que não podia mais. Dormia com ela no mesmo quarto, em camas separadas e esta tinha dores só a vestir-se. A irmã DD estava presente. Partiu-lhe duas vassouras no corpo. A HH foi à garagem e a BB disse: “sai senão acontece-te o mesmo”. Quanto ao ponto 161º, refere que a BB dizia muitas vezes, mas nesse dia não sabe. A II já tinha dito que não queria continuar e levou uma coça na cozinha. Confirma o ponto 162º e quanto ao 163º, diz que a II só foi castigada física e verbalmente pela BB.
Sobre esta ofendida, a Assistente HHque ao longo do seu depoimento evidencia sempre um ressentimento pela II, que não pareceu ser reciproco - declarou que não viu o episódio dito em 143º e 147º. No que respeita ao ponto 146º refere que a II estava a partir frango e como tinha estado várias vezes com a DD na cozinha, e no momento de fazer não soube, deu-lhe mais que uma bofetada, entortou-lhe os óculos. Quanto ao ponto 149º, refere que a II terá dito isso em desabafo a alguém que disse a BB que lhe deu vários estalos. A intenção da DD terá sido a de garantir que lhe eram dadas as alheiras. Não se recorda dos pontos 151º, 155º, 156º, 158º, 159º. Quanto ao ponto 153º, refere que, quando entrou a LL a II começou a sentir na pele a vida das outras.
Sobre o poto 160º, respeitante ao dia da coça grande que antecedeu a fuga, refere que, quando entrou ela já tinha sido agredida, chorava e viu que estava desobstinada. Quando lá chegou a BB disse: “ou sais ou faço-te o mesmo”. Dois ou três dias depois – 21 de Novembro – foi embora. A II dormia com a EE e esta apercebeu-se que se tinha ido embora, ligou para o CCC, pois que sabiam que tinham uma aproximação com ele e este disse que não sabia de nada. Ficaram admirados de ter feito como fez, porque ela tinha medo de tudo. Julga que o desespero era muito. Ela tinha desabafado com a EE e LLL. A CC ficou triste, já a BB soube pela DD e ficou feliz porque, segundo ela, “o demónio tinha ido embora”.
Sobre a II, a Assistente GG refere que, na fase final levou muito. Na garagem, viu-a pisada, a BB partiu-lhe a vassoura; assistiu ao episódio das bofetadas por causa do frango, e a vários insultos.
Sobre a II, refere a demandante KK, que se apercebeu dela dormir no chão, de levar estalos, sofrer privações de água, comida, levar com mangueiras e com o cabo da vassoura.
Em face das declarações da Assistente e das suas colegas, o Tribunal deu como provada toda a factualidade da acusação/pronuncia, sendo certo que se convenceu que o episódio dito em 145º, ocorreu na presença da DD e com o conhecimento posterior da CC; quanto ao ponto 148º, que a BB lhe desferiu, pelo menos, dois estalos, quanto ao ponto 160º, que a arguida DD Assistiu e, quanto ao ponto 163º, que no período em que permaneceu na Fraternidade, a Assistente II foi fisicamente agredida pela BB, com o conhecimento dos demais e que foi objeto de insultos protagonizados pela BB, CC e Padre AA, tendo-lhe este ultimo, dirigido as seguintes palavras: “filha da puta, infiel”, factos estes que resultaram demostrados em face das declarações da própria II.
***
No que respeita à ofendida LL – matéria que integra os pontos – 164º a 181º –  arguida BB diz que se recorda da saída dela. Foi amiga dela e nada fez para a prejudicar, ela tinha uma vida triste, os pais tinham-se separado, batiam-lhe muito, havia relatos que o pai se servia dela. Ela escrevia cartas dirigidas à arguida a chamar-lhe “mãe”, refere que era muito esperta, mas tinha ciúmes das outras, não se dava bem com as colegas, porque lia muito e, foi praticamente convidada a sair.
Quanto ao ponto 166º, refere que, se há pessoa a quem não bateu foi a esta ofendida porque esteve pouco tempo, negando a factualidade constante dos pontos 167º a 171º; já quanto ao ponto 172º, diz que, por vezes faziam cambalhotas, a titulo de brincadeira, mas é mentira que ficasse desnudada.
Quanto ao ponto 173º, nega que tivesse ordenado que se autoflagelasse, pois que, segundo a arguida “não valia a pena”. Acredita que a autoflagelação pode ter efeitos benéficos, mas “aquelas pessoas não tinham elevação espiritual, para ter uma atitude dessas, pois que para isso precisamos de ter estofo e elas não tinham esse arcaboiço”.
Quanto aos pontos 174º e 175º, diz que não tem presente esse episódio, mas se notasse que havia ciúme, podia exigir que pedisse desculpa, pois se ela própria sentisse ciúme pedia desculpa, sendo falsa a demais factualidade dita em 176º a 178º. Nega que a tenha obrigado a escrever uma carta aos pais com os dizeres ditos em 179º, até porque sabia que a mãe era difícil e seria mau para ela, negando a factualidade dita em 180º e 181º.
Relativamente à LL, a Assistente EE confirmou que a mesma entrou em 2012, saiu em 8 de Dezembro de 2013, porque mentia muito e acabou por ser expulsa. Confirma o relatado no ponto 165º, mas refere que a BB não lhe bateu; disse que estava com o Diabo no corpo, a LL ria-se, mas ninguém bateu. Não assistiu aos episódios relatados nos pontos 166º a 169º. Confirma os pontos 180º e 171º. Quanto ao ponto 172º, o Padre AA disse-lhe “tens de mudar” e a BB mandou-a dar cambalhotas, mas não ficou nua. Confirma os pontos 173º a 175º.
Confirma o ponto 176º, referindo que quem a chicoteou foi a irmã HH, por ordem da BB, confirmando os pontos 177º, 178º e 180º, não se recordando do 179º. Mantém que, quanto a esta ofendida, castigos físicos só a BB os protagonizou.
Sobre esta ofendida, a Assistente II, confirma que LL também se autoflagelava a mando de todos os arguidos, a pretexto de que estava com o Diabo e obrigaram-na a fazer uma cambalhota, no chão, dizendo-lhe que não tinha o espirito Dominique, que tinha o Diabo no corpo, que era orgulhosa e, por força da cambalhota, a saia levantava-se e ficava desnudada. A LL também desafinava a cantar e o pior castigo que era implementado pelo Padre AA era não dar a comunhão.
Refere que tem ideia do episódio dito em 165º, estavam todas à volta da LL e a BB lançou água benta para tirar o Diabo que supostamente estaria nela. Não se recorda do episodio narrado no ponto 169º e, quanto ao referido em 170º, lembra-se apenas de ver a LL molhada. Confirma aqueles dizeres que o Padre AA dirigiu à LL, referidos no ponto 171º, confirmando ainda a ordem de autoflagelação dito em 173º.
Sobre esta ofendida, a Assistente HH refere que a LL foi um problema grande e começou a causar problemas à II, porque passou a ser a preferida. Vinha de um meio complicado, a mãe dela não estava em casa. Também foi expulsa pelo Padre AA e, neste caso, a BB não teve hipótese de a proteger.
Relativamente ao ponto 165º, relata um episódio que envolveu a elaboração de uma lista feita pela LL e pela HH, confirmando o que aí se refere, muito embora refira que a BB não a agrediu. Não assistiu aos episódios ditos em 168º, 169º, 170º, 171º. Confirmou o episódio dito em 172º, relativo às cambalhotas, confirmando também a ordem de autoflagelação que lhe foi imposta pela BB. Segundo refere a LL sentia ciúmes da FF, razão pela qual terão ocorrido os episódios ditos em 174º a 178º, desconhecendo o ponto 179º e confirmando o ponto 180º, embora acrescente, em auxilio do Padre AA: “A LL não era normal”.
Sobre a LL, a Assistente LLL refere que a BB pouco lhe tocava mas incentivava as outras a bater. Só lhe deu uma chapada e torceu-lhe a orelha.
Sobre o ponto 172º, diz que andava triste e pegavam com ela e humilhavam-na. A BB mandou autoflagelar-se e a HH exemplificou. Sobre o ponto 175º sabe que a BB ralhou com ela. Sobre o ponto 180º, confirma que o Padre na homília a insultou.
Perante a análise critica destes depoimentos – sempre atribuindo menor relevo probatório ao depoimento da HH, na parte em que procura sempre preservar os arguidos com os quais ainda coabita – o tribunal deu como provada toda a factualidade constante da acusação/pronuncia, apenas esclarecendo que os episódios ditos em 168º e 169º foram protagonizados pela arguida BB e, quanto ao ponto 176º, quem a chicoteou foi a HH por ordem da BB.
Também neste caso, o facto desta ofendida ter sido expulsa pelo padre AA, contra a vontade da BB que, aliás, a protegia, é um indicador de que o Padre AA, enquanto fundador da obra, tinha um grande ascendente sobre a BB e podia interferir, como interferiu com as vocações.
***
Por fim, quanto à JJ – matéria constante dos pontos 182º a 184º - a arguida BB diz que esta ofendida não passou lá para ir para o convento; foi ali para arejar, porque dormia debaixo da ponte. O Padre gostava de musica e ela tinha um problema de desafinamento e o arguido conseguiu que ficasse menor; tinha os dentes maltratados e no período em que lá esteve trataram-lhe os dentes, negando tudo o mais que lhes é imputado.
Sobre esta matéria, a Assistente JJ declara que, entrou em Abril de 2005, com 16 anos de idade e ali esteve até Jan 2007, durante o período de 1 ano e nove meses; As irmãs CC, BB e Padre AA estiveram na Madeira a visitar os presos, altura em que se conheceram e a convidaram a participar num retiro e conhecer a Fraternidade. Um dia decidiu ir, mas comprou viagem de ida e volta, com o intuito de regressar e acabou por ser forçada a ficar.
Antes de ir, tinha tido uma desavença com a mãe porque quis deixar de estudar e, nessa ocasião, vivia com a patroa e trabalhava num bar. No principio, gostou de estar na Fraternidade, porque foi bem recebida, havia bom ambiente. Quando entrou, estavam as arguidas, WW, EE, LLL, II e depois entrou outra colega cujo nome não se recorda. Logo que ali chegou, a BB disse-lhe: “Tu foste chamada, tens vocação” e foi praticamente forçada a ficar e, logo no primeiro dia ficou sem documentos. A ideia sempre foi regressar no dia do seu aniversário, razão pela qual tinha comprado bilhete de regresso.
Durante a estadia, foi ouvindo umas histórias das quais resultava que, quando abandonavam as suas vocações, sofriam castigos divinos na família. Ia em busca de paz, mas não encontrou paz, porque faltava amor, respeito e compreensão.
Em matéria de insultos – matéria que integra o ponto 183º - refere que a irmã BB apelidava-a de “nojenta”, “preguiçosa”, dizia-lhe que “não prestava, não sabia fazer nada”. A BB reportava tudo ao Padre e à irmã CC e esta incentivava a BB a castigar. A CC não implementava castigos nem chamava nomes, mas incentivava a BB. Diariamente era maltratada, com a verbalização de insultos “sois uma merda”, “tontas” e eram brindadas com puxões de cabelo, chapadas e a BB batia-lhes com objetos.
Em matéria de castigos, a que alude o ponto 183º, refere que quase todos os dias, a BB, ditava as regras, à noite falavam todos e os outros concordavam, mas ela implementava. Também ela foi brindada com alguns castigos, designadamente:
- obrigação de rezar com as mãos debaixo dos joelhos ou com os braços em cruz;
- quando partia algum objeto tinha de andar com ele atado;
- à noite tinham de dizer o que fizeram errado e pedir desculpa;
Explica que, após estar três dias e três noites a pensar, decidiu fugir, no dia 6 de Outubro de 2007, durante o dia, pelo parque de estacionamento, atravessando a serra, sem dinheiro. A declarante tinha consultas no dentista onde havia um bar que era de um tio da AAAAA, que tinha fugido antes dela, tendo sido a mãe da AAAAA quem a ajudou. Levou-a para casa, foi com ela  a ..., ao SEF, para poder viajar; a mãe da AAAAA pagou a passagem e ficou em casa dela um mês e tal. Estava longe de casa e não conhecia ninguém, ali era cada uma por si, tinha medo de dizer que queria ir embora, porque tinha medo de levar uma coça e não podia viajar sem documentos e sem dinheiro. Por outro lado, não tinha confiança em ninguém, falava mais com a II, a LLL e a EE, pois com os mais velhos não podia falar. Os primeiros dias que lá passou ficava sozinha no quarto, sabia que não podia ir muito longe, se fosse à policia corria o risco de ninguém acreditar nela, pois era venezuelana e estava ilegal. Saiu porque não suportava estar ali, preferia morrer a estar ali, mas receava ser apanhada e trazida de volta. Perdeu a liberdade e autoconfiança. Não cofiava em ninguém, pois quem lhe garantia que não fossem dizer aos arguidos e ainda ser pior. Só Deus a tirou dali, qualquer uma delas tinha medo. Elas falam muito do amor mas não sabem amar.
Tentou o suicídio em Outubro do mesmo ano. Se alguém da família era acometida de uma gripe logo pensava que era culpada. Passou anos sem conseguir falar disso, esteve numa casa de saúde e a psicóloga quando falava disso não conseguia relembrar. Está traumatizada.
Sobre a JJ, referiu a II que eram muito próximas e gostavam uma da outra. Diz que ela foi à Fraternidade com o fito de conhecer a casa, convidaram-na para vir ao convento, não tinha ideia de ficar, mas ficou logo sem documentos e impedida de regressar.
A JJ no dia 25 de dezembro levou um estalo à porta da garagem velha, dado pela BB, porque era dia de natal. Quando a JJ fugiu a BB disse à declarante: “ vai ver ao poço”. Não soube e sofreu com a saída da JJ. A BB chamou-lhe “porca e badalhoca”. Saiu à procura da JJ para a trazer de volta. Sabe que a ofendida ficou proibida de usar cuecas durante 15 dias, quando as mudava tinha de mostrar. Isto porque a BB encontrou umas cuecas muito sujas e perguntou de quem eram e ficou a saber que eram da JJ, daí a aplicação do castigo. Refere que as cuecas eram partilhadas pelas quatro e ainda com a DD.
Recorda-se de um dia, estar com a II a esfregar o quintal e a BB lhe ter dado com a mangueira, porque parou para descansar.  As agressões com chapadas, puxões de cabelo e agressões com objetos, protagonizadas pela BB eram quase diárias e direcionadas para todas elas indistintamente. A mãe era agricultura e ela era destacada para o jardim, diariamente de manha à noite e no verão era pior, descrevendo a sua pesada jornada de trabalho de 15 ou 16 horas diárias. Quem lhe dava ordens era a BB, nunca foi agredida pelos outros. Foi forçada a rezar com os braços em cruz em jeito de castigo, outras vezes ela dizia que não tinham estofo;         
Sobre esta ofendida, a EE confirma o período de permanência e recorda-se da BB lhe ter batido no dia de Natal. Confirmou a factualidade a ela referente.
Sobre esta ofendida, a Assistente HH declarou que se recorda que a mesma ia com a LLL e esqueceu-se de um guarda chuva e a BB ralhou. Recorda-se que ficaram sem roupa interior, porque a JJ tinha tido um problema na juventude, foi violada e, por isso, escondia as cuecas sujas e a EE encontrou-as e avisou-a. Foi encontrado um balde, a II mostrou à BB e quando a BB chamou a JJ esta já tinha fugido. Da instituição fugiram três: JJ, II, OO; duas saíram:  EEE e, mais recentemente, LLL e duas foram expulsas: LL e KK. Em geral, a JJ sofreu todos os castigos, privações e maus tratos que sofreram as demais.
Sabe que os arguidos foram às cadeias da Madeira e a JJ veio com eles. Nunca falou da intenção de regressar à Madeira. A EE é que lhe contou a violação de que foi alvo. A JJ não terá tido coragem para o dizer.
Sobre a JJ, a Assistente GG confirma que ela entrou, a BB sobrecarregava-a bem, insultava-a. Sabe que a ideia era ela ficar uns dias, tinha comprado a passagem de regresso e não foi autorizada a regressar. A BB chamou-as à garagem, deu-lhe chapadas. Pegava muito por causa da roupa interior. Ela tinha vergonha e escondia-as e a BB pegava com ela.
Em face das declarações da própria Assistente e das suas colegas, o tribunal deu como provada toda a matéria vertida na acusação/pronuncia, com o esclarecimento de que terá ingressado na Instituição em Abril de 2005 e que saiu em ../../2007, data em que fugiu da instituição.

Quanto aos pontos 185º a 190º, o tribunal convenceu-se que, face às agressões físicas, verbais, castigos e privações que sofriam e que viam as colegas sofrer, as ofendidas sentiram-se totalmente subjugadas ao domínio dos arguidos, pois que esses atos eram impostos a estas jovens, que eram pessoas tementes a Deus, que ingressaram na Fraternidade, por estarem convictas da sua vocação religiosa, atos esses que eram acompanhados de um doutrinamento que levava as visadas a tolerar esses castigos, por supostamente serem praticados em nome de Deus e se sentirem infiéis e merecedoras daquelas punições.
O tribunal também se convenceu que esse temor imposto às ofendidas, tinha em vista lograr que as mesmas executassem todos os trabalhos necessários ao normal funcionamento da obra, sem qualquer contrapartida material ou até mesmo espiritual, incrementando assim o património (avultado) do Centro Social, na modalidade de poupança de despesas.
Esse temor que lhes era imposto com esse fito, gerava uma completa relação de domínio sobre as ofendidas, pois que estas não podiam definir o tempo e modo da sua prestação de trabalho, ficando sujeitas à tirania dos arguidos, que definiam as tarefas a ser atribuídas a cada uma delas, com o conhecimento e aprovação dos demais arguidos.
Estranha-se, aliás, que algumas das testemunhas ligadas à Igreja, tenham sustentado implicitamente que seria legitima esta exigência de prestação gratuita de trabalho, a pretexto de que as ofendidas fizeram voto de pobreza, pois que são essas mesmas testemunhas que consideram que as ofendidas (e as próprias arguidas) nem sequer eram freiras e que os votos que tomaram, não são válidos à luz da Igreja Católica.
Ora, se os votos que fizeram não são válidos e se as ofendidas não são freiras, é de presumir que jamais aceitariam trabalhar gratuitamente em trabalhos tão árduos e em tão longas jornadas de trabalho, naquelas condições precárias (sem comida suficiente, sem água, sem condições de higiene), se soubessem que o projeto de vida que abraçaram, afinal, era um embuste.
Seja como for, é evidente que a formula usada pelos arguidos para sujeitar as ofendidas a trabalhos que elas não queriam executar – mediante a pratica de agressões físicas, insultos verbais, privações e castigos – redundam na total desumanização das ofendidas e no cerceamento da sua liberdade de movimentos e de ação.
Essa ausência de liberdade de autodeterminação, era notória, no que respeita à decisão de ingressar e de permanecer na instituição, pois que algumas delas, foram praticamente forçadas a ingressar (JJ), outras foram aliciadas com pretensos chamamentos divinos e, para garantir a sua manutenção contrariada na instituição, foram objeto de doutrinamentos com literaturas segundo as quais o abandono da pretensa vocação religiosa teria consequências divinas gravosas, tais como maldições familiares,  o qual tinha a sua eficácia garantida, pois que as jovens que aí ingressavam, para além do seu perfil débil eram, por natureza, tementes a Deus e foram previamente convencidas de uma vocação religiosa que, bem vistas as coisas, estará por demonstrar.
Este embuste, consubstanciado no aproveitamento do carisma/Ideário da Fraternidade, enquanto entidade religiosa, subordinada à tutela da Igreja católica, reforça a censura dos atos, pois que, tal circunstancia coloca as vitimas numa situação especialmente difícil, em termos de comunicação perante terceiros da desumanização de que estavam a ser alvo, pois ninguém acredita que sejam praticados crimes tão hediondos, por pessoas que se dizem e que atuam como se fossem representantes de Deus na terra.
Resultou do conjunto da prova documental e testemunhal, que os arguidos eram os gerentes de facto e de direito, quer da Fraternidade, quer do Centro Social, que estas duas entidades se confundiam, pois que têm os mesmos corpos gerentes, a mesma sede e estatutos semelhantes, mas que na prática o ultimo foi criado para ser o suporte jurídico da atividade da primeira e ser recetor de fundos estatais e que os arguidos instrumentalizaram o carisma/ideário da Fraternidade para engrossar os cabedais do Centro Social, que, nesta altura ostenta um património avultado de mais de cinco milhões de euros.
Por fim, ainda que exista uma diferença de grau quanto ao comportamento dos arguidos, não há duvidas de que, na génese da obra, no tempo da testemunha OO, era o arguido e a arguida CC quem mais agredia e insultava, o que significa que eles são os mentores dessa lógica de repressão, exploração e desumanização das jovens angariadas para a Fraternidade.
Só com a degradação do estado de saúde da arguida CC é que a arguida BB chamou a si esse lamentável protagonismo e teve ocasião de escancarar a sua sexualidade reprimida, os seus maus fígados, a sua perversidade e crueldade.
Veja-se que a arguida BB, até mesmo no seu depoimento revelou a sua natureza, pois que, em vários segmentos, aproveitou o ensejo para apoucar, humilhar, diabolizar as ofendidas, referindo-se a elas como “essas criaturas”, “esse tipo de gente”, afirmando que não tinham bondade, garra, generosidade suficientes para a prática de atos nobres, tais como, dormir com o cão, fazer uso da disciplina, praticar o jejum. Em relação à falecida MM, deixou escapar que “ultimamente não rendia”, o que bem reforça a ideia de que as jovens eram angariadas para serem postas a render, ou seja, para serem exploradas quanto ao resultado da sua prestação de trabalho.
Pouco ou nenhum relevo tiveram os depoimentos das seguintes testemunhas:
- BBBBB, que trabalhou nos aviários desde 2009, que se situam em frente à Fraternidade, que fez umas obras em frente ao portão da Fraternidade e uns pequenos trabalhos para a Fraternidade, em regime de voluntariado, tendo conhecido as noviças porque estas levavam-lhes lanche, admitindo que ficou uma amizade com as arguidas porque a CC é a madrinha da filha e a DD é a madrinha do filho.
- CCCCC, que trabalhava numa loja na baixa do Porto, a Fraternidade tinha um aquário pequeno de água sagada e água doce, ia lá fazer trocas de água, testes, posicionamento dos animais, limpeza dos filtros. Quem lhe ligava era BB, agora é a irmã HH, nunca ia de surpresa. Quando ouviu alguns relatos, não ficou admirado porque a BB transmitia tensão, chegou-lhe a desligar o telefone e a exigir que tinha que ir, ameaçando que “Deus castiga”!, mas as noviças nunca lhe confidenciaram nada, nem viu marcas de agressões.    
- III, fez parte da equipa de Projetistas e fez um trabalho de legalização de documentos.
- DDDDD, participou na construção da obra 1984/85, chegou a lá ir reparar umas avarias em 1995/1998 e, era benemérito.
- EEE, participava nos convívios mensais e nos grupos de jovens, que passavam as férias, entre 2005 e 2011. Conheceu as arguidas e as noviças e nunca se apercebeu de qualquer comportamento inadequado.
- EEEEE, contatou com a Fraternidade, porque durante 3 anos, participou com a mãe nos convívios, ia passar temporadas nas férias. Havia uma irmã que dormia com elas, estavam mais tempo com a HH. Ouviu chamar “burras”, admite que possa ter ouvido outros insultos mas atenta a idade, não tinha consciência da gravidade ou ilicitude. Quanto a agressões acha que presenciou um episodio da BB a alguém quando estavam no jardim. Diz que a irmã terá sido aliciada a ficar, mas não ficou.
- FFFFF, por intermédio de uma cunhada, começou a assistir aos convívios há cerca de 11 anos, estabeleceu contato com a arguida CC, tinha alguma proximidade com a HH, mas notava-se que estavam oprimidas e que não tinham liberdade de conversar com as visitas.
Ora, tratando-se de outsiders, pessoas que visitavam a Fraternidade, é normal que não percecionassem as agressões verbais, físicas, castigos e privações, pois que é das regras de experiencia comum que tais atos não fossem protagonizados na frente destas pessoas, pelo que nada se pode retirar do facto de alegadamente não se terem apercebido de comportamentos inadequados praticados pelos arguidos.

Em suma, o Tribunal convenceu-se que todos os arguidos agiram em conjugação de esforços, idealizando a obra e seu carisma e a instrumentalização que dela viriam a fazer, angariando as jovens ( designadamente através de cursos Dominique ministrados pelo Padre AA, de convívios e publicações periódicas, a cargo da CC), fazendo o competente doutrinamento das mesmas, para garantir o seu ingresso e permanência na Fraternidade e, melhor implementar a relação de domínio sobre as mesmas, por via da instauração de um clima de medo e de terror, perpetrado através de agressões físicas, verbais, privações e castigos, levando a que as ofendidas se sujeitassem a trabalhos pesados e longas jornadas de trabalho, assim explorando a sua força gratuita de trabalho ( a que estas se sujeitavam, convencidas da legitimidade dessa exigência por causa do voto de pobreza que fizeram que, afinal não é válido), e incrementando o património do Centro Social, entidade que foi criada para ser o suporte jurídico da atividade da Fraternidade e para absorver todo o património gerado pelo carisma desta.

Quanto aos factos atinentes ao PIC de EE – matéria que integra os pontos 191º a 229º -, o tribunal louvou a sua convicção, no teor das declarações da própria Assistente EE, das demais Assistentes demandantes que ingressaram na Fraternidade, da testemunha GGGGG e ainda, no teor do Relatório de perícia de avaliação de dano corporal, do qual resultam as seguintes sequelas relacionáveis com o evento:
“- Face: cicatriz oblíqua e de forma irregular, localizada na metade direita do maxilar superior, aproximadamente com 20 m de comprimento. Cicatriz vertical e de forma irregular, localizada na linha média na mucosa da face posterior do lábio superior.
- Membro inferior direito: joelho escuro e pisado, macerado;
- Membro inferior esquerdo:  joelho escuro e pisado, macerado”.
Ai se concluiu: “(…) 2. No entanto pode referir que as sequelas apresentadas são compatíveis com a ação de instrumentos como aqueles que foram descritos pela examinada, nomeadamente os instrumentos de natureza corto-contundente que provocaram as lesões que determinaram as sequelas descritas”.
Perante o conjunto de toda a prova, o tribunal convenceu-se da ocorrência de todos os factos levados à factualidade provada.

Quanto aos factos relativos ao PIC de GG – matéria que integra os pontos 230º a 304º -, além das declarações da própria Assistente e das demais Assistentes, o tribunal louvou-se ainda nos seguintes meios de prova:
- Relatório de fls. 750, com a enumeração dos tratamentos efetuados à demandante;
- Atestado de doença de fls. 751;
- Resultado de meios complementares de diagnóstico de radiologia de fls. 753 a 758;
-Prescrição de medicação prolongada de fls. 759;
- Cópia integral do processo clinico de GG, na Casa de Saúde ....
- Declaração da Casa de Saúde ... de fls. 985, declaração de internamento e relatório clinico de fls. 986 e 987.
- Certidão de Nascimento de GG de fls. 1466 verso, da qual resulta que a mesma nasceu em ../../1984;
- Relatório psicossocial elaborado pela Associação para o Planeamento da Família, enquanto organização especializada na assistência a pessoas vitimas de tráfico de seres humanos, relativo ao acolhimento das utentes HH e GG entre ../../2015 e ../../2016, do qual resulta, além do mais “(…) Em ambas as vitimas há ainda a realçar uma ausência inicial de consciência do processo de vitimização, uma vez que nenhuma das vitimas foi capaz de se identificar enquanto tal. No seu discurso havia referencia a sentimentos de culpa associados à condição em que se encontravam e, ao mesmo tempo, a uma ligação emocional à Fraternidade que as tinha acolhido durante tantos anos e que, devido ao seu caso, estava em risco de fechar. (…). (…) Efetivamente a ligação a esta Fraternidade era de tal forma significativa que, não obstante o trabalho de empoderamento realizado no período de acolhimento em CAP, após a sua autonomização em Janeiro de 2016, posteriormente a um período em que viveram com as respetivas famílias, ambas regressaram à referida Fraternidade, assim que tiveram a informação de que os arguidos em concreto haviam sido afastados. Atualmente apenas a irmã HH se mantém na Fraternidade uma vez que a irmã GG optou por abandonar aquela comunidade por sentir que muito do seu funcionamento ainda se mantinha nomeadamente no que respeita a trabalho intensivo e alguns dos maus tratos”.
Ateve-se ainda o tribunal ao teor do depoimento da testemunha HHHHH, pai da GG, que relatou que a filha esteve 9 anos sem ir a casa, explicando que esteve presente na Ordenação dela, Cerimónia presidida pelo arguido Padre AA, que a declarou esposa de cristo, pelo que sempre esteve convencido que a filha era religiosa, tal como a própria filha, que se sentem agora enganados, até porque lá no próprio convento existia a menção a “Clausura”.
Nos princípios, em março de 2015, foi a um convívio e o padre AA disse: as novas levam cada bofetão e durante a semana foi perguntar se ele batia e ela disse que não, porque ainda não tinha levado. Chegou a ver pisaduras nas pernas. Chegou a tentar visitar a filha, sem êxito, porque as arguidas arranjavam uma desculpa para não os receberem dizendo que a filha não podia atender porque estava em oração.
Depois da II sair, ele próprio foi a casa da II, soube o estado de saúde da filha, dos castigos, privações, maus tratos físicos e verbais que a filha ali sofria e passaram a insistir junto da Arquidiocese para ser autorizada a deslocação da filha a casa. Chegou a receber uma carta da filha a dizer que não queria ir a casa, mas mais tarde soube que a filha foi instrumentalizada.
Depois da II sair, chegou a contar ao padre UUU e ele perguntou: “você também não batia nos seus filhos?” O padre recebeu uma carta e ainda o desafiou para ir para tribunal. Falou com o padre VVV e ele não ajudou nada. Só depois da saída da Natália, com a pressão que fizeram junto do Arcebispo, a LLL foi a casa ... dias, mas vieram busca-la mais cedo. Durante a estadia ela contou que tudo aquilo era verdade, mas a HH ligava à LLL para lhe fazer a cabeça. Quando ela decidiu regressar, o declarante levou-a, o que não significa que concordasse. A EE voltou mais tarde, a filha saiu definitivamente e a EE ficou até hoje.
A filha esteve um ano em casa, sem receber qualquer pensão da segurança social. Fez tratamento aos dentes, mas não sabe quanto gastou. Também a levou ao psicólogo, tomou vitaminas. Ela inda hoje fica revoltada. Ela agora ganha o salário mínimo nacional, tratando de idosos; ela estudava direito e economia e tinha a matricula feita.
Estribou-se ainda o tribunal no depoimento da testemunha IIIII, irmão da GG, que explicou que integram uma família de 4 irmãos. Quando a irmã foi para o convento tinha 15/16 anos; mensalmente ia visitá-la com o pai ou mãe ou até sozinho. Ela já teria vocação religiosa, ele próprio andou no seminário. Ela estudava fiscalidade no ..., tinha repetido algumas disciplinas e estava no 2º ano, com cadeiras em atraso; estava abatida e emocionalmente fragilizada. Acha que estaria com uma depressão. Como pessoa era alegre, viva, brincalhona; hoje é abatida e mais sofrida. Saiu voluntariamente da instituição, foi ele que a foi buscar. Quando a foi buscar ela vinha com infeções do trato urinário, ruturas no braço, dentes com caries; teve de colocar 4 facetas e foi ele que pagou 600,00 euros. A irmã disse-lhe que nunca a levavam ao médico, nem ao centro de saúde. Ela aparecia com pisaduras nas pernas e com dores, dizia que se aleijou a trabalhar, mas tentava esconder. Antes da irmã entrar para o convento, passou uma semana de férias, mas tinha um horário diferente, tomava pequeno almoço cá fora. Recorda-se de ver a BB com o apito na boca e via as noviças de gatas a andar a toda a velocidade: “Sim mãezinha”.  A irmã nunca veio a casa, nem mesmo ao casamento do irmão, ao funeral do avô, a pretexto de que era um convento de clausura.
Após saber o que ocorreria lá dentro, foi lá e disse à irmã: “conheci a II” e ela ficou quase a chorar, a HH disse-lhe: “vais ter que dizer a nossa mãe”, a irmã foi lá trás, juntamente com as demais (BB, DD, CC) vieram ao molho e naquele dia soltaram os cães e passaram a insultar a II dizendo que ela roubou o que quis e ainda andava a dizer mal delas; a DD disse que lhe roubou a saúde. Quando veio a casa passou a ser medicamente acompanhada pela família, foi-lhe diagnosticada uma cistite de repetição cronica por não ter sido tratada durante muito tempo. Ela toma medicação, é seguida por uma psicóloga em ..., faz medicação diária e em SOS. Atualmente após ter abandonado definitivamente a Fraternidade, a irmã toma conta de dois idosos autónomos, faz-lhes de comer e companhia e ganha o ordenado mínimo nacional. Primeiro esteve a tratar-se durante 3 ou 4 anos e só depois começou a trabalhar. Soube que a irmã tinha estado internada na casa da ... juntamente com a DD que foi quem a acompanhou. Confrontada a testemunha com a certidão de matricula de fls. 1605 verso do processo principal, diz que apenas esteve inscrita no 1º ano.
A irmã saiu duas vezes: uma com a PJ e outra por sua iniciativa. A PJ foi lá a ../../2015 e a irmã foi recolhida numa casa de abrigo, encontraram-se num local estratégico, mais de duas vezes; mas a irmã sentia que queria aquela vocação, tinha vontade de regressar e regressou. Mais tarde, saiu por sua iniciativa definitivamente, porque afinal as coisas mantinham-se na mesma.
Perante o conjunto de toda a prova, o tribunal considera que os factos relativos ao pedido cível de GG se provaram, por exuberância.

Quanto aos factos relativos ao PIC de II – matéria que integra os pontos 305º a 351 -, para além das declarações da Assistente II, das demais Assistentes, bem como das testemunhas CCC e YYYY, já acima referenciadas, o tribunal louvou-se ainda no teor dos seguintes meios de prova:
- Declaração médica de fls. 506;
- Relatório de perícia de avaliação de dano corporal de fls. 521 e ss, do qual resulta que a demandada não apresenta lesões ou sequelas.
- Ressonância magnética aos joelhos – pag 508 a 601.
Perante o conjunto de toda a prova, o tribunal convenceu-se da ocorrência de todos os factos relativos ao pedido cível da II, razão pela qual foram levados à factualidade provada.

Quanto aos factos atinentes ao PIC da Assistente HH – matéria que integra os pontos 352º a 382º -, o tribunal louvou-se, além do mais, no depoimento da testemunha XX, mãe da Assistente HH, que explica que a filha entrou para o convento com 15 anos. Fez lá um curso, ficou muito amiga deles, embora na altura eles morassem em Lisboa, e não havia grandes contatos. Quando vieram morar para o ..., tinha a HH 7 anos, foram visitá-los e a filha quis ficar. Era a testemunha que fazia os hábitos delas e fez o habito da filha, sem remuneração. A filha tomou o habito com a WW, em cerimónia presidida pelo Dom PP, com a participação de cerca de 30 padres. Ela não ia a casa, mas iam lá quando queriam. A CC teve um cancro de mama e do intestino. Um dia a filha ligou e disse: “mãe estou no Porto com a policia, viemos (eu e a LLL) para prestar declarações, mas estou bem”, mais tarde a filha quis regressar, era de maior idade, respeitaram a decisão dela. Quem lá estava era a CC e a DD. Nunca percebeu nada, sempre achou que as que saiam é porque não tinham vocação. Falou alguma coisa com a filha, que lhe admitiu que ficou fechada num quarto de banho a dormir sem roupa. Sabia pela CC que muitas coisas eram verdade, porque ela e a CC mantém uma relação de amizade. Diz que a CC lhe admitiu que se apercebia que havia limitações de comida e até as ajudava, dando-lhes comida às escondidas.
Perante o conjunto de toda a prova, os factos alegados tiveram assento na factualidade provada.

Quanto aos factos relativos ao PIC da JJ – matéria que integra os pontos 383º a 408º -, bem como do PIC formulado pelos herdeiros de MM – matéria que integra os pontos 409º a 434º -, o tribunal louvou-se nas mesmas provas que fundaram a convicção do tribunal quanto aos factos da acusação/pronuncia, relativos a estas ofendidas.

Sobre a factualidade alegada nas contestações dos arguidos, atinente à intervenção dos arguidos Padre AA, CC e DD junto dos estabelecimentos prisionais – matéria que integra os pontos 444º a 449º -, louvou-se o tribunal nos seguintes documentos:
- relatório sobre a 13ª visita da Fraternidade a todos os estabelecimentos prisionais portugueses no período compreendido entre 18/10/2004 e 11/02/2005, entregue ao Sr. Diretor Geral dos Serviços Prisionais:
- declaração de 22 de Setembro de 2003, emitida pelo Prof. Doutor QQQ, de fls. 2357, elogiando o trabalho da Fraternidade junto dos reclusos;
- declaração de fls. 2358, emitida por JJJJJ, que realça o espirito de missão da Fraternidade;
- agradecimento da Diretora Geral dos Serviços prisionais, a propósito da 17ª visita aos estabelecimentos prisionais, de fls. 2359;
- missiva subscrita por KKKKK dirigida à CC, agradecendo a visita aos reclusos e alguns donativos.
Ateve-se ainda o tribunal ao teor dos seguintes depoimentos:
LLLLL, que tinha uma carrinha, que disponibilizava gratuitamente para levar o padre AA e CC quando iam às prisões. Também fazia camisolas e fatos de treino para levar aos presos e levavam produtos higiénicos. Relata que a irmã CC chegou a oferecer uns óculos e umas próteses a um dos reclusos. A irmã BB ia de vez em quando mas quando ia ele nem gostava, porque ela chegou a dizer: “estamos a perder tempo; quem os fez que os ature”.
MMMMM, subdiretor geral dos serviços prisionais, conhecia o padre AA e a irmã CC, admite que uma terceira pessoa os acompanhasse não sabe se era DD ou a BB, em dois momentos diferenciados, em visitas aos estabelecimentos prisionais que, enquanto diretor autorizava. Além de trazerem a palavra de Deus aos reclusos, também faziam ofertas de santinhos e artigos de primeira necessidade (mas não era esse o enfoque essencial). No feminino havia muita adesão à visita da irmã CC; os homens eram menos participativos. As visitas mantiveram uma regularidade no tempo e foram suspensas até a situação ser clarificada.
NNNNN, Diretor de estabelecimento prisional, diretor geral dos serviços prisionais, que refere que recebeu um dia o padre AA e as irmãs que lhe pediram para ser recebidos. Associa a Fraternidade a uma congregação em ... onde chegou a ser convidado e esteve presente num dia de festa, talvez em homenagem ao padre AA, em que estava presente o Arcebispo de ..., Dom NN. Sabe que visitavam muitos estabelecimentos prisionais. A informação que tinha era positiva e nunca teve qualquer referencia negativa; os reclusos acediam a esse contato voluntariamente, seria uma ajuda de cariz espiritual e havia dádivas de tabaco.
JJJJJ, foi Diretor Geral dos Serviços prisionais entre 1994 e 2001 e entre 2016 e 2019. Teve contato com a Fraternidade Missionária ... porque quando foi Diretor Geral, pediram audiências para relatar o que andavam a fazer e oferecer livros sobre relatos dos presos contactados.  Tinham 49 estabelecimentos prisionais e, por isso, fazia mais sentido que a autorização fosse genérica. Teve contato pessoal com estas pessoas, que se apresentaram ao novo Diretor Geral. Recorda-se do Padre AA e da CC e havia outra pessoa mais baixa cujo nome se não recorda. Tratava-se de uma obra inscrita numa dupla atividade: ministério da igreja católica e a outra de solidariedade social; no inicio exerciam as duas atividades, entregavam cigarros, bens alimentares ou bíblias; numa segunda fase, vieram pedir para voltar à atividade e a testemunha manteve a suspensão.
OOOOO, comissário prisional, responsável pela corporação de guardas prisionais no EP ..., conheceu pessoalmente a arguida CC e Padre AA, porque estes anualmente, nas festividades (Pascoa, Natal) deslocavam-se ao EP, confirmando que os reclusos ficavam agradados porque tinham presentes, roupas interiores, fatos de treino, calçado, esferográficas. Havia uma componente religiosa e também entregavam panfletos e livros de cariz religioso, cruxifixos, terços, bíblias, sendo uma intervenção com impacto. A partir de determinada altura parou por determinação superior e os reclusos questionaram. Era um serviço de voluntariado importante para os reclusos e havia organização. Os arguidos eram acessíveis e de bom trato.
PPPPP, atualmente é comissário prisional do estabelecimento prisional ..., também esteve em Coimbra, ..., EMP01..., ..., confirmando que quase todos os anos, uma vez por ano, no mês de dezembro, os arguidos costumavam conferenciar com os reclusos. Tem estas funções há 35 anos. Desde 1991, em ... eles já frequentavam o estabelecimento prisional. Falou muitas vezes com os arguidos Padre AA, CC e DD. Pediu para patrocinar dois pares de óculos, higiene, roupa (casacos, meias), calçado, foram milhares de peças. Atualmente eles estão suspensos quanto a essa atividade, mas continuam a levar donativos aos reclusos e a testemunha a pedir. Relata um episódio em que um recluso ia para outro país e não tinha saco nem roupas frescas e foi a irmã CC que trouxe tudo. A cadeia é um espaço fechado e quando chegavam era um dia diferente, além da prenda, faziam uma oração religiosa e muita gente aderia.
Estes depoimentos foram esclarecedores sobre o trabalho meritório que os arguidos Padre AA, CC e DD desenvolveram junto dos estabelecimentos prisionais, sejam ao nível da evangelização dos reclusos, transmitindo-lhes uma mensagem de esperança, seja a nível caritativo, procurando suprir algumas das suas necessidades prioritárias.
Quanto à condição pessoal dos arguidos – matéria que integra os pontos 435º a 437º -, ateve-se o tribunal ao teor dos seguintes Relatórios sociais:
- Relatório Social de fls. 1725 a 1729 (arguida DD);
- Relatório Social de fls. 1732 a 1736 (arguida BB);
- Relatório Social de fls. 1738 a 1740 (CC);
Quanto ao arguido AA, consta dos autos uma informação da DGRSP de fls. 1484, da qual resulta que o arguido AA faltou à entrevista agendada para 25/02/2021; bem como informação de fls. 1682, da qual resulta as razões pelas quais não foi possível a realização da entrevista ao arguido, ficando assim inviabilizada a realização do relatório social solicitado.

Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos – matéria que integra os pontos 439 a 443º -, ateve-se o tribunal ao teor dos CRCs de fls. 1402 a 1406.»
*

III.2 – Quanto à análise das sobreditas questões concretas suscitadas pelos arguidos/demandados cíveis nos respetivos recursos:

III.2.1 – Nulidades do acórdão recorrido arguidas pelos recorrentes/ arguidos CC, AA e DD:

III.2.1.1 – Da invocada nulidade prevista no art. 379º, nº1, alínea b) do CPP, por referência ao disposto no art. 358º do mesmo Código: 

Neste conspecto, alegam os arguidos/recorrentes CC e AA, em súmula [conclusões 61ª, 99º e 181º a 190º]:
- A parte do Facto Provado em 33.º - “e através do identificado esquema”, e bem assim o trecho do facto Provado em 34.º - “com o conhecimento e anuência dos arguidos”, não constam da Acusação Pública, nem integram o Despacho de alteração não substancial dos factos, proferido na Sessão de Julgamento de 24/06/2022, razão pela qual ora se suscita a nulidade do Acordão, devendo, em face disso, serem consideradas como não escritas, porque está violado o princípio da vinculação temática, pois é a Acusação que define o objecto do processo, mesmo quando se trata de uma alteração não substancial, nos termos do art.º 358.º n.º 1, e art.º 378.º, n.º 1 b), ambos do C.P.Penal, porquanto estes factos são muito importantes pois imputam aos aqui Recorrentes, à excepção da BB, e do Centro Social, a prática daqueles mesmo factos;
- Para que o arguido AA possa ser condenando como co-autor, torna-se essencial que a este se possam imputar os resultados à conduta, pois que a co-autoria exige o preenchimento dos requisitos de acordo prévio e de realização conjunta, sem os quais inexiste co-autoria. E tal não sucede à luz de teoria da conexão do risco, nem de qualquer das teorias explanadas na motivação;
- Relativamente ao arguido AA, nem sequer se mostra preenchido o elemento intelectual do conceito do dolo-do-tipo, dado que este dolo é definido como o conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo, pelo que, nunca poderia o arguido ter-se colocado contra o Direito ou mostrar atitude de indiferença, pois que tal só pode suceder quando se conhece a realidade externa;
- Nem se diga que ao arguido incumbia conhecê-la, porquanto o acórdão lhe imputa os crimes sempre a título de acção e nunca de omissão impura ou imprópria do artº 10º nº1 e nº2 do CP. O mero equacionamento dos crimes por omissão impura violaria a estrutura tendencialmente acusatória do nosso processo penal, imposta pelo artigo 32º nº 5 da CRP, dado que nunca tal foi aflorado na acusação, pelo que os arguidos nunca poderiam ter-se defendido em relação a tais imputações, por inexistentes, nem nunca o tribunal lançou mão dos mecanismos a que aludem os artigos 358.º e 359.º do CPP;
- Assim, estamos perante uma nulidade de sentença do artº 379.º nº 1, al. b) do CPP.
- O Facto Provado em 42.º não consta da Acusação Pública, e não consta do Despacho proferido na audiência de 24/06/2022, onde foi comunicada aos arguidos algumas alterações não substancial dos factos, estado por isso ferido de nulidade, devendo considerar-se como não escrito.
Por seu turno, alegou a recorrente DD [conclusão 14ª]:
- O Facto Provado em 20.º, onde se lê: “em conjugação de esforços e vontades, idealizaram um esquema, um embuste que redundava em servir-se do Carisma/Ideário da Fraternidade,” não consta como facto da Acusação nem do Despacho de Alteração Não Substancial dos factos, sendo, por isso, nula, devendo considerar-se como não escrita.

Analisando.

Preceitua o art. 358º do CPP:
“1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3. O disposto no nº1 é correspondente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”
O conceito de «alteração substancial dos factos» é conferido pela alínea f) do art. 1º do CPP: “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.”

Estatui o art. 359º do CPP:
“1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.”
Por seu turno, estipula o art. 379º, nº1, al. b), do CPP:
“1 - É nula a sentença:
(…)
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358º e 359º.”
Conforme se expende sumariamente no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2007, proferido no Processo nº 07P024, relatado pelo Exmo. Conselheiro Henriques Gaspar, disponível em www.dgsi.pt:
«XI. «Alteração substancial dos factos» significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa. É este o sentido da definição constante do art. 1.°, n.º 1, al. f), do CPP para «alteração substancial dos factos», que se apresenta, assim, como um conceito normativamente formatado: «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».
XII. A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
XIII. «Alteração não substancial» constitui, diversamente, uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância
para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal. A alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.»

As disposições constantes dos preditos preceitos legais assumem-se como um imperativo do princípio do contraditório e da salvaguarda de uma defesa eficaz por parte do arguido.
Como ressuma do disposto no citado artigo 358º do CPP, a necessidade de prévia comunicação da alteração factual ou da subsunção jurídica dos factos, posto que exista face ao conteúdo do libelo acusatório ou da pronúncia, só ocorre quando tal alteração assuma relevância para a decisão da causa e, para se evitar uma decisão-surpresa, haja carência de conceder ao arguido a possibilidade de apresentar nova defesa relativamente a matéria de facto ou de direito com que até então não podia razoavelmente contar. Ou seja, é imprescindível que: a) haja aditamento, exclusão ou modificação de factos descritos na acusação ou na pronúncia; b) tal alteração seja jurídicopenalmente pertinente, o que sucede quando possa influir na determinação da pena, modificar a tipicidade do crime imputado, conduzir à alteração do bem jurídico protegido ou for distinto o juízo de valoração social; c) se verifique que a comunicação da alteração se impõe para salvaguarda das garantias de defesa do arguido, isto é, para que o seu direito de defesa não seja afectado com a modificação factual ou da qualificação jurídica, o que não sucederá, por exemplo, quando a alteração derive de factos alegados pela defesa.
Por conseguinte, «[c]asos existem ainda em que não se está quer perante uma «alteração substancial de factos», quer perante uma «alteração não substancial de factos», que são os casos em que o tribunal se limita a pormenorizar ou a concretizar os factos que já constam da acusação» - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.06.2006, Processo 659/06-1, relator Exmo. Desembargador Tomé Branco, disponível em www.dgsi.pt.
De igual modo, não tem de ser comunicada ao arguido a alteração que gere a imputação de um crime menos grave do que o da acusação ou da pronúncia em virtude de redução da matéria de facto na sentença, desde que essa redução não constituía uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, isto é, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação – neste sentido, por todos, Conselheiro Oliveira Mendes, in “Código de Processo Penal Comentado”, António Henriques Gaspar e outros, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, anot. 3 ao art. 358º, pág. 1103; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.11.2005, CJSTJ, III, 205; acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 18.04.2007, Processo nº 0711082, relator Exmo. Desembargador Joaquim Gomes, de 08.07.2015, Processo nº 1133/13.9PHMTS.P1, relator Exmo. Desembargador José Carreto, e de 09.12.2015, Processo nº 260/12.4PJPRT.P1, relator Desembargador Nuno Ribeiro Coelho, todos disponíveis em www.dgsi.pt; acórdão do Tribunal Constitucional nº 330/97, publicado no Diário da República, Série II, de 03 de julho de 1997.
Volvendo ao caso vertente.
Entre outros, foram dados como provados no acórdão recorrido os seguintes factos:
“20. Assim, os arguidos AA, BB, CC e DD, desde a constituição da IPSS e da Fraternidade, em conjugação de esforços e vontades, idealizaram um esquema, um embuste que redundava em servirem-se do Carisma/Ideário da Fraternidade, para angariar jovens tementes a Deus e convencidas da sua vocação religiosa, para forçar estas a exercerem contrariadas, todas as tarefas diárias exigidas para a conservação e manutenção das instalações propriedade do Centro Social, sem qualquer contrapartida financeira, mediante a implementação de um clima de terror, que lhes foi coartando, ao longo do tempo, qualquer capacidade de reação, utilizando-as como mera força de trabalho e, por essa via, beneficiando patrimonialmente o Centro Social, na modalidade de poupança de despesas.
[…]
33. E, através do identificado esquema, logravam os arguidos AA, BB, CC e DD impor às ofendidas jornadas diárias de trabalho que chegavam a atingir as 20 horas e que compreendiam a limpeza de toda a casa e divisões que compunham a propriedade do Centro Social, fazer as refeições, tratar de todos os jardins, cuidar dos animais, plantarem, podarem e abaterem árvores de grande porte, carregarem esteios, carregarem e racharem lenha, carregarem tratores de estrume, lixarem e envernizarem as madeiras, executarem pinturas exteriores, carregarem pedras, construírem muros, substituírem pedras da calçada, cortar o mato, queimar e apanhar folhas e fitas, apanhar pinhas, arrancar silvas, trabalhar na tipografia, imprimindo livros, revistas folhetos, calendários, posters, estampas e postais, tratar dos aviários, entre outras.
34. As tarefas que eram obrigadas a executar eram impostas às ofendidas, principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD de forma aleatória pelo período de uma semana de acordo com a conveniência dos arguidos e após trocavam de tarefas.
[…]
42. Em data não concretamente apurada mas situada no período em que as ofendidas permaneceram na instituição, o arguido AA, entre outras aleivosias, no período das refeições e no decursos das homilias, chamava-lhes “palermas e parvas”, “porcas”, “infiéis”, filhas da puta”, “monos” e dizia-lhes que tinha o Diabo no corpo.” (sublinhados nossos)
A factualidade constante dos pontos 33 e 34 mostra-se conexionada com as alegações operadas nos artigos 23 e 24 da acusação/pronúncia, nos seguintes termos:
“23. E, assim, logravam os arguidos AA, BB, CC e DD impor às ofendidas jornadas diárias de trabalho que chegavam a atingir as 20 horas e que compreendiam a limpeza de toda a casa e divisões que compunham a propriedade da instituição, fazer as refeições, tratar de todos os jardins, cuidar dos animais, plantarem, podarem e abaterem árvores de grande porte, carregarem esteios, carregarem e racharem lenha, carregarem tractores de estrume, lixarem e envernizarem as madeiras, executarem pinturas exteriores, carregarem pedras, construírem muros, substituírem pedras da calçada, cortar o mato, queimar e apanhar folhas e fitas, apanhar pinhas, arrancar silvas, trabalhar na tipografia, imprimindo livros, revistas folhetos, calendários, posters, estampas e postais, tratar dos aviários, entre outras.
24. As tarefas que eram obrigadas a executar eram impostas pelos arguidos AA, BB, CC e DD às ofendidas de forma aleatória pelo período de uma semana de acordo com a conveniência dos arguidos e após trocavam de tarefas.”
Cotejando a matéria de facto alegada no libelo acusatório nos mencionados pontos com a que veio, nessa parte, a ser dada como provada, constata-se que a expressão “E, assim” que iniciava o facto vertido no ponto 23 da acusação, foi substituída no ponto 33 da factualidade provada pela expressão “E, através do identificado esquema”, mantendo-se o mais alegado; por outro lado, no que tange aos agentes que determinavam/atribuíam a execução das tarefas às ofendidas, matéria vertida no artigo 24º da acusação e no ponto 34 dos factos provados, verifica-se que ocorre no acórdão uma alteração do facto descrito na acusação. Assim, enquanto na acusação constava que as tarefas que as ofendidas eram obrigadas a executar (especificadas no artigo 23º) eram impostas por todos os arguidos (pessoas singulares), na decisão final passou a constar que era principalmente a arguida BB quem impunha às ofendidas a execução dessas tarefas, ainda que com o conhecimento e anuência dos arguidos.
As referidas alterações não foram comunicadas à defesa dos arguidos, não integrando o elenco de alterações não substanciais de factos constantes do despacho proferido pelo Tribunal a quo em 22.06.2022, oralmente ditado para a ata [referência ...09].
No que tange à modificação de redação atinente à matéria do ponto 33 dos factos provados por referência ao ponto 23º da acusação, julgamos que a mesma não consubstancia uma verdadeira “alteração de factos” para efeito de aplicação do disposto no art. 358º, nº1, do CPP, dispensando-se, pois, a prévia comunicação dessa modificação à defesa.
Na verdade, neste conspecto, o Tribunal recorrido limitou-se a recorrer a outras palavras para concretizar, rectius, enfatizar, a asserção acusatória de que foi por causa do esquema, do embuste por eles criado, identificado e explicado nos precedentes artigos 20º a 23º da acusação, que os arguidos conseguiram impor às ofendidas prolongadas jornadas de trabalho, que chegavam a atingir as 20 horas e incluíam as tarefas laborais descritas no artigo 24 da mesma peça processual.
É esse o significado percetível da expressão «E, assim» utilizada no libelo acusatório, correspondente a “nessa decorrência” ou “por via dessas condutas dos arguidos”.
Tanto mais que o Tribunal recorrido operou alterações factuais profundas, ainda que não substanciais, ao invocado na acusação e que passaram a integrar o ponto 20 dos factos provados, que, oportuna e convenientemente, comunicou aos arguidos por intermédio do despacho ditado para a ata no dia 22.06.2022, e que, conjuntamente com o demais já alegado nos artigos 21º a 23º, consubstanciam matéria de facto tendente a integrar factualmente o dito «esquema» de atuação dos arguidos, ainda que não o apelidasse ou qualificasse especificamente como tal.
Donde, a adjectivação como “esquema” no ponto 33 dos factos provados do plano comumemente estabelecido e executado pelos arguidos, como descrito na acusação, mais não é de que a utilização de uma diversa e até despicienda fórmula linguística caracterizadora do plano ou acordo gizado e concretizado pelos arguidos.                              
Diga-se, a propósito e na sequência do sobredito, que também não assiste razão à recorrente DD quando objeta que a decisão final não podia ter considerado a factualidade que veio a ser aditada no ponto 20 dos factos provados, no segmento «(…) em conjugação de esforços e vontades, idealizaram um esquema, um embuste que redundava em servirem-se do Carisma/Ideário da Fraternidade (…)», em virtude de tais factos não constarem da acusação nem do despacho de alteração não substancial dos factos comunicado à defesa, sendo, por isso, nula.
Desde logo, parte da aludida factualidade não assume caráter inovador face ao alegado na acusação/pronúncia, pelo que não teria de ser comunicada à defesa.
A expressão «em conjugação de esforços e vontades», bem como outras asserções equivalentes, já constavam de outras passagens do libelo acusatório, constantes designadamente dos artigos 11º (“em conjugação de esforços e vontades”), 12º (“conforme previamente por todos gizado”), 14º (“em conjugação de esforços e vontades, individualmente e em conjunto”) e 17º, referente às agressões perpetradas pelos arguidos sobre as ofendidas (“principalmente da arguida BB, com conhecimento e anuência dos restantes arguidos que manifestavam o seu acordo”).  
Quanto à alusão a “esquema” e “embuste”, entendido este como logro ou ardil, reitera-se o acima expendido sobre a desnecessidade da comunicação à defesa destas concretas expressões, porquanto, frisa-se, as mesmas mais não são do que uma distinta forma de caracterizar o modo de atuação adotado pelos arguidos na sequência e em conformidade com o plano por todos engendrado, sendo que essa forma de execução e acordo já surgiam cabalmente descritos na acusação.
Ademais, a referência ao aproveitamento pelos arguidos «do Carisma/Ideário da Fraternidade» para “enganarem” as ofendidas foi comunicada à defesa dos arguidos, como legalmente impunha o disposto no art. 358º, nº1, do CPP. Assim, consta da ata de audiência de julgamento em que foi proferido o despacho de comunicação de alteração não substancial de factos [referência ...09/fls. 2416-2419]: «[…] o tribunal convenceu-se de que os arguidos serviram-se do Carisma/Ideário da Fraternidade Missionária ..., para angariar jovens tementes a Deus e convencidas da sua vocação religiosa, para forçar estas a exercerem contrariadas, todas as tarefas diárias exigidas para a conservação e manutenção das instalações propriedade do Centro Social, sem qualquer contrapartida financeira, mediante a implementação de um clima de terror, que lhes foi coartando, ao longo do tempo, qualquer capacidade de reação, utilizando-as como mera força de trabalho e, por essa via, beneficiando patrimonialmente o Centro Social, na modalidade de poupança de despesas- sublinhado nosso
    Quanto ao mais.
A mesma desnecessidade de comunicação à defesa se evidencia no que tange à modificação factual constante do ponto 34 dos factos provados, incidente sobre a matéria de facto alegada no artigo 24 da acusação/pronúncia.
Foi originariamente alegado no libelo acusatório que todos os arguidos (pessoas singulares) imposeram às ofendidas as tarefas que eram obrigadas a executar, ou seja, sem distinção qualitativa e/ou quantitativa entre eles no que respeita ao tipo de funções que atribuíam, a quem e ao número de vezes que assim procederam.
Donde, a alteração factual decorrente da redação constante do ponto 34 dos factos provados apresenta-se como um minus face à sobredita primitiva alegação, porquanto passa-se a atribuir maior preponderância à arguida BB, embora somente quanto à frequência com que ela impunha as arrazoadas tarefas às ofendidas, assaz superior às ocasiões em que eram os demais arguidos (cada um deles) a ditar às ofendidas que executassem tais trabalhos.
Em conformidade, decorre desta alteração que não foram todos os arguidos que impuseram sempre às ofendidas a execução das tarefas, mas antes que, consoante as ocasiões, foi um deles que executou tal ação, mormente (na maioria das vezes) a arguida BB, ainda que constantemente com o conhecimento e aquiescência dos demais.
Ora, como é sobejamente sabido, a comparticipação criminosa por atuação em coautoria (art. 26º do Código Penal), implicando o estabelecimento, expresso ou tácito, de um acordo entre todos os agentes, o comungar de intenções com vista ao atingimento de um desiderato comum, não pressupõe a obrigatoriedade de cada um dos agentes executar todos os atos típicos, em espécie e número.
Destarte, a alteração de factos a que o Tribunal recorrido procedeu não contende com a responsabilização penal dos arguidos, no sentido de que não afecta, de modo juridicamente relevante, a descrição da conduta típica legal por cada um deles assumida e, outrossim, o grau de ilicitude e/ou culpa associado à atuação de cada um dos comparticipantes.
O Tribunal a quo estava, pois, dispensado de comunicar esta modificação de factos à defesa dos arguidos.
De igual modo, entendemos que a matéria de facto vertida no ponto 42 dos factos provados não encerra factualidade relevante inovadora face à que foi alegada na acusação/pronúncia.
Assim, os vitupérios “porcas” e “filhas da puta” dirigidos pelos arguidos (todos) às ofendidas, durante o período em que cada uma destas permaneceram na instituição, já constavam do artigo 19º da acusação; os impropérios “palermas” e “parvas” naquele contexto proferidos pelo arguido AA encontravam-se descritos nesses exatos termos no artigo 32º da acusação.
Acresce que, no despacho judicial proferido no dia 22.06.2022, que comunicou aos arguidos alterações não substanciais de factos descritos na acusação/pronúncia, na parte referida ao artigo 102º da acusação, atinente à ofendida WW, o Tribunal a quo imputa aos arguidos BB, CC e AA a prolação dos insultos “supra descritos”, e, por conseguinte, os que são elencados nos artigos 40º e 43º (“infiéis”) e 39º, no segmento em que surge a asserção de que dizia à ofendida que “tinha o diabo no corpo”.             
A única expressão vertida no ponto 42 dos factos provados que não constava do libelo acusatório é “monos”.
Todavia, salvo melhor opinião, julgamos que a expressão “mono”, proferida no concreto contexto sub judice, não possui carga injuriosa suficiente para consubstanciar um ataque à honra ou consideração das ofendidas penalmente tutelado.
O nome “mono” apresenta os seguintes potenciais significados: desgracioso, feio, sensaborão, bisonho, molengão ou preguiçoso. É a seguinte a definição constante do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, II Volume, 2001, pág. 2515: “1. Que é relativo a macaco. 2. Que é feio, sem graça, apalermado. 3. Que é molengão, tem pouca iniciativa, pouco dinamismo (É um mono! Não se levanta do sofá!). 4. Que é ou está tristonho, sensaborão ou macambúzio.”   
No caso, afastamos liminarmente o significado “macaco/a” por considerarmos que o mesmo é desajustado no contexto em que a palavra teria sido proferida pelo arguido AA; antes consideramos que foi utilizada na acepção de pessoas preguiçosas, molengonas, apalermadas ou, eventualmente, feias.
Donde, tal linguagem pode ser retratada como desdenhativa, descortês, quicá gosseira, boçal, mas não objetivamente, de modo suficiente e adequado, atentatória do núcleo essencial dos referidos direitos de personalidade das vítimas, ou seja, o direito ao bom nome e reputação.
Destarte, também quanto a esta argumentação o douto recurso soçobra.  
Concluindo: o acórdão recorrido não padece da nulidade prevista no art. 379º, nº1, alínea b), do CPP, por referência ao art. 358º do mesmo diploma legal.

III.2.1.2 - Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia relativamente à existência de consentimento relevante das ofendidas (cf. art. 379º, nº1, c), do CPP):

Neste segmento, alegam os arguidos/recorrentes CC/AA e DD, em súmula [conclusões 202ª a 216ª, 232ª e 233ª e 70ª a 84ª, 100ª e 101ª, respetivamente]:
- Para estarmos perante um crime de escravidão, mister se torna que, sem ou contra a vontade do ou dos titulares dos bens jurídico-penais, sendo estes disponíveis, não violando os “bons costumes” e obedecendo aos demais requisitos do art. 38.º do CP, inexista qualquer tipo de consentimento – expresso, tácito ou por actos concludentes – que exclua a tipicidade da conduta.
- Em várias congregações religiosas também catolicamente erectas, bem como em prelaturas pessoais de Sua Santidade o Papa, como o Opus Dei, as mortificações e os castigos corporais fazem parte do modo de vivência dos ensinamentos católicos – concorde-se ou não com eles, mas tendo de ser respeitado por via do art. 41.º da CRP –, ponto é, naturalmente, que com o consentimento do titular do bem jurídico, a que se associam períodos de oração em condições físicas difíceis ou de jejum de comida e/ou bebida.
- As ofendidas, expressa ou tacitamente, consentiram na factualidade descrita no acórdão a quo, sendo que se acham verificados todos os requisitos exigidos pelo art. 38.º do CP: eram maiores de 16 anos e estavam em condições de entender e querer o alcance e sentido do consentimento, estamos em face de bens jurídicos livremente disponíveis pelo próprio – integridade física e honra – e, em face do quadro descrito, não há ofensa aos “bons costumes”.
- Dúvidas inexistem quanto ao cariz disponível da integridade física, bastando compulsar o art. 149.º, n.º 1, do CP. O mesmo se diga quanto à honra, bastando pensar que os tipos legais p. e p. pelos artigos 180.º, ss., do CP são, por regra (art. 188.º do CP) crimes particulares, o que é uma claríssima nota distintiva da sua disponibilidade, por mais se exigir ao ofendido.
- O preenchimento do conceito de “bons costumes”, sendo de ius aequum, é sempre mais complexo, mas vem sendo defendido na doutrina que o n.º 2 do art. 149.º do CP deve iluminar os demais bens jurídicos para além da integridade física a que directamente se aplica.
- “Os motivos e os fins do agente” foram sempre no sentido de fazer com que as ofendidas interiorizassem as regras da Fraternidade, da congregação e da Igreja Católica, tendo-se já visto que alguns sectores da mesma, provavelmente mais conservadores, usam castigos físicos e ofensas à honra como forma de interiorização dos ensinamentos da fé que professam.
- Em momento algum houve qualquer intenção dos arguidos de diminuir as ofendidas à condição de objectos, de escravas, de as quantificar, mas somente – o que acontece em qualquer instituição como esta que, na prática, funcionava para as ofendidas como um convento – a de as preparar para serem irmãs plenas e cumpridoras das regras da congregação.
- Os “meios empregados” podem ter sido, aqui e além, um pouco desproporcionados em relação aos objectivos atrás transcritos, mas de modo algum importaram a coisificação das ofendidas, dado que não há sequelas graves do prisma da integridade física ou mesmo da honra.
- O aresto recorrido padece da nulidade de sentença a que alude a al. c) do n.º 1 do art. 379.º do CP, pois que em momento algum o tribunal recorrido se pronunciou sobre a existência de consentimento relevante, válido e eficaz, como o devia fazer, tratando-se como se trata de um tipo justificador que, oficiosamente, o tribunal deve analisar.

Vejamos:   

Prescreve o art. 379º, nº1, alínea c), do CPP, na parte que ora releva:
“1 - É nula a sentença:
[…]
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)”.
Como reiteradamente tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça, a omissão de pronúncia a que se reporta o sobredito preceito legal significa, essencialmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões correspondem àquelas que os sujeitos processuais interessados colocam à apreciação do tribunal, concernentes ao objeto processual – excetuando aquelas cuja decisão se mostre prejudicada pela solução dada a outra(s) – e bem assim às que, na falta de alegação, sejam de conhecimento oficioso. Por outro lado, a pronúncia cuja omissão determina a nulidade da sentença é referida ao concreto objeto ou tema que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões arrazoados.[5]
Os arguidos/recorrentes fundam a sua alegação na circunstância de o coletivo de juízes não se ter pronunciado sobre a eventual existência de consentimento válido e eficaz das ofendidas para serem sujeitas às atuações perpetradas pelos arguidos, alegadamente violadoras da sua liberdade de movimentação, integridade física, honra e consideração, bem jurídicos de natureza pessoal que são prescindíveis pelo seu titular, caso não ocorra ofensa dos bons costumes e se verifiquem os demais requisitos vertidos no artigo 38º do Código Penal, como sucede no caso em apreço. Defendem que tal consentimento exclui a tipicidade da conduta, pelo que o Tribunal a quo se devia ter pronunciado sobre tal questão.

Estatui o art. 38º do Código Penal:
“1 - Além dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes.
2 - O consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido, e pode ser livremente revogado até à execução do facto.
3 - O consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 16 anos e possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta.
4 - Se o consentimento não for conhecido do agente, este é punível com a pena aplicável à tentativa.”

Flui do art. 39º, nº1, do CP, que “ao consentimento efectivo é equiparado o consentimento presumido”. O normativo do nº2 fornece a respetiva definição: “Há consentimento presumido quando a situação em que o agente actua permitir razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente protegido teria eficazmente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que este é praticado.”
In casu, a questão respeitante a um alegado consentimento das vítimas para a “vivência” a que foram sujeitas nos períodos em que permaneceram na Fraternidade Missionária ... não integra o objeto do processo como delineado pela acusação pública/pronúncia deduzida nem pela defesa, visto que os recorrentes arguentes da nulidade, nas contestações que deduziram, não invocaram, de facto e de direito, a ocorrência da mencionada causa de exclusão da ilicitude, acrecendo que não prestaram declarações em audiência de julgamento. Todavia, a arguida BB, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, negando primacialmente a prática dos imputados factos, particularmente os mais gravosos, os que seriam determinantes para o preenchimento da tipicidade objetiva do crime de escravidão, quanto aos factos que admitiu como verdadeiros alegou que as respetivas práticas eram executadas pelas ofendidas de livre vontade, isto é, sem serem impostas pelos arguidos por recurso a qualquer meio coercivo. Assim sendo, constituindo o consentimento do sujeito passivo, nos termos do art. 38º do CP, uma causa de exclusão da ilicitude, um fator que delimita pela negativa a responsabilidade jurídico-penal do agente, a questão do conhecimento sobre a sua verificação impõe-se ao Tribunal, ainda que oficiosamente.
Dito isto, afigura-se-nos óbvio que no caso vertente o Tribunal a quo não descartou a pronúncia sobre a temática do eventual consentimento das “vítimas” para a prática das atividades por si executadas na Fraternidade, pois que ressuma da decisão recorrida que a participação das mesmas não foi livre, antes foi condicionada/determinada por fatores externos à sua vontade, criados e/ou aproveitados pelos arguidos.           
Com efeito, o Tribunal recorrido, perante a globalidade da prova produzida nos autos, convenceu-se de que os arguidos, no circunstancialismo de tempo, modo e lugar constantes da factualidade dada como provada, erigiram um esquema em que, servindo-se do Carisma/Ideário da Fraternidade, angariavam jovens mulheres tementes a Deus e convencidas da sua vocação religiosa (em regra, com raízes humildes, baixas qualificações e, em alguns casos, emocionalmente desequilibradas) para forçar estas a exercerem contrariadas, todas as tarefas diárias exigidas para a conservação e manutenção das instalações propriedade do Centro Social, sem qualquer contrapartida financeira, mediante a implementação de um clima de terror, que lhes foi coartando, ao longo do tempo, qualquer capacidade de reação, utilizando-as como mera força de trabalho e, por essa via, beneficiando patrimonialmente o Centro Social, na modalidade de poupança de despesas - cfr. factos provados nºs 20 e 21.
Para tanto, segundo o entendimento do Tribunal, os arguidos recorriam ao engano e à crença religiosa das ditas jovens para as convencer de que deviam escolher a vida religiosa, pois que caso negassem as suas vocações daí advinham castigos “divinos”, problemas familiares, mortes na família – cfr. factos provados nºs 22 e 23.
O Tribunal recorrido julgou provado que, para assegurar os seus intentos, os arguidos AA, BB, CC e DD, criaram um constante clima de atemorização física e psicológica das ofendidas para as impedir de livremente decidir sobre a sua permanência na instituição e/ou as atividades que aí realizariam, pelo que para o efeito perpetraram sobre aquelas, diariamente, agressões físicas, injúrias, pressões psicológicas, tratamentos humilhantes, castigos, trabalhos pesados, escassez de alimentação, negação de cuidados médicos e medicamentosos e restringimento da liberdade – cfr. factos provados nºs 24 a 42.
Por conseguinte, do teor do acórdão recorrido exsuda expressamente contrariada a verificação de consentimento das sujeitas passivas dos imputados crimes de escravidão enquanto causa de justificação da ilicitude. 
Ou seja, inexiste a alegada nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia sobre questão de que o tribunal devesse conhecer, nos termos e para efeitos do disposto do 379º, nº1, al. c), do CPP.

III.2.1.3 – Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º, nº2, al. a), do CPP):

Invocando expressamente o preceituado no art. 410º, nº2, do CPP, os recorrentes CC, AA e DD alegam que ainda que os factos provados no acórdão recorrido fossem incontestáveis e incontestados – que não são –, há insuficiência dos mesmos para o que deles se pretende retirar, ou seja, o preenchimento do crime do art. 159.º, al. a), do CP, bastando, segundo eles, atentar nos factos que ali transcreveram e que demonstram que as ofendidas não foram coisificadas – cf. conclusões 235 e 103, respetivamente.
Apreciando.

Preceitua o art. 410º do Código de Processo Penal [na parte ora relevante]:
“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada […]”
No que tange ao invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, comungando do douto e cristalino ensinamento do Exmo. Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças [in “Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº 10, 2010, p. 25/26], cumpre ter presente:
“Se o recorrente alega este vício – partindo necessariamente da análise do texto da decisão – deve especificar os factos que em seu entender era necessário – para a decisão que devia ser proferida – que o tribunal a quo tivesse indagado e conhecido e não indagou e consequentemente não conheceu, podendo e devendo fazê-lo.
Assim, num discurso argumentativo, encorpado e completo, mas ao mesmo tempo simples e claro, o recorrente deve procurar convencer o tribunal de recurso que faltam factos (identificando-os) necessários (fundamentando esta necessidade, nomeadamente invocando as normas jurídicas pertinentes) para a decisão e que não foi levada a cabo indagação a respeito deles quando (fundamentando) podia e devia ser feita.”       
O vício em apreço tem forçosamente de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou mediante concomitante recurso às regras de experiência comum, não cabendo na previsão do preceito legal «toda a tarefa de apreciação ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objeto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto» [cf. Exmo. Conselheiro Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal Comentado”, António Henriques Gaspar e outros, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, anot. 1 ao art. 410º, p. 1291]. 
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada implica que esta, na sua globalidade, se revela inidónea ou escassa para suportar a decisão tomada pelo Tribunal.
Por outro lado, como menciona o sobredito excelso magistrado [ob. cit., anot. 4 ao art. 410º, pp. 1292 e 1293], «A afirmação do vício ora em causa, importa, sim, sempre, uma adequada perspetiva do objeto do processo, cujos confins são fixados pela acusação e (ou) pronúncia quando exista, complementada pela pertinente defesa. A partir daí, impõe-se o confronto de tal objeto processual com o que o tribunal de julgamento em concreto indagou, independentemente de o resultado dessa indagação ter tido ou não êxito, isto é, independentemente de os factos indagados terem sido dados como provados ou não provados. Importa, sim, que esses factos pertinentes ao objeto do processo tenham sido averiguados em julgamento do facto e obtido a necessária resposta, seja positiva ou negativa. Se se constar que o tribunal averiguou toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objeto do processo - ainda que toda ela tenha, porventura, obtido resposta de «não provado», então o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão. Já assim não será se o tribunal de julgamento deixou de dar resposta a um facto essencial postulado pelo referido objeto de processo, isto é, deixou por esgotar o thema probandum.»       
In casu, salvo o devido respeito, cremos que os arguidos recorrentes embarcam em nítida confusão entre a alegação deste vício e a discordância que manifestam face à subsunção jurídica dos factos provados operada pelo Tribunal a quo.
Analisada a argumentação recursória, não decorre da mesma a exigível especificação de factos relevantes para a decisão final que o Tribunal recorrido pudesse e devesse ter escrutado e conhecido, sem que o tivesse feito, e bem se compreende tal omissão, pois que o que recorrentes verdadeiramente entendem é que a factualidade apurada não é adequada, idónea para o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de escravidão, legalmente traçado no artigo 159º, nº1, alínea a), do Código Penal, entre eles o tratamento da vítima como coisa e não como ser humano.
Sucede que a questão assim suscitada pelos recorrentes contende com um eventual erro de julgamento quanto à matéria de direito, e não com a verificação do vício previsto na alínea a) do nº2 do art. 410º do CPP, assente em pressuposto assaz distinto e concernente ainda à impugnação restrita da matéria de facto (ou revista alargada).   
No caso vertente, não se vislumbra, pois, qualquer facto que se tome como indispensável para a decisão a ser tomada pelo tribunal recorrido (atentas as normas jurídicas aplicáveis ao caso), cujo apuramento e conhecimento se mostre omisso.
Assim sendo, improcede a alegação de existência de vício do acórdão recorrido por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

III.2.1.4 - Contradição insanável entre a fundamentação (de facto e de direito) e a decisão final (art. 410º, nº 2, al. b), do CPP):

Invocando expressamente o preceituado no art. 410º, nº2, do CPP, os recorrentes CC, AA e DD alegam a existência de contradição insanável entre a fundamentação (de facto e de direito) e a decisão final, porquanto, face ao que alegaram nas respetivas motivações, ainda que os factos ocorridos correspondessem aos factos dados como provados – em grande medida, impugnados pelos recorrentes –, estes não têm virtualidade para condená-los pela prática de crimes de escravidão, mas, ao invés, para os absolver – cf. conclusões 236 e 104, respetivamente.

Analisando.

Estatui o art. 410º do Código de Processo Penal [na parte ora relevante]:
“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
[…]
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão […]”
A contradição insanável a que alude o art. 410º, nº2, al. b), do CPP pode reportar-se à fundamentação e/ou ocorrer entre a fundamentação (abrangendo a fundamentação de facto e de direito) e a decisão.    
Como mencionado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/2015, processo nº 72/11.2GDSRT.C1, acessível em www.dgsi.pt, «A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.»
Segundo o aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/05/2015, processo nº 3793/09.6TDLSB.L1-9, acessível em www.dgsi.pt, «O vício em apreço, como resulta da letra do art. 410, n.º 2 al. b) do CPP, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, isto é, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é susceptível de o integrar, mas apenas a que se mostre insanável, ou seja, aquela que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Qualquer um dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 410 do CPP, como decorre da letra da lei, só se poderá ter por verificado se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo (cf. entre outros os ac. do STJ de 90-01-10 e de 94-07-13, o primeiro publicado na AJ, 5, 3 e o segundo na CJ/STJ, ano II, tomo III, 197), pelo que a actividade de fiscalização e de controlo do tribunal superior neste particular, conquanto incida sobre toda a decisão, com destaque para a proferida sobre a matéria de facto, não constitui actividade de apreciação e julgamento da prova, sendo que ao exercê-la se limita a verificar se a mesma contém algum ou alguns dos mencionados vícios, sendo que no caso de aquela deles enfermar e, em face disso, se tornar impossível decidir a causa, deverá o processo ser reenviado para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426, n.º1 do CPP).
Este vício ocorre quando se afirma e nega ao mesmo tempo uma coisa ou uma emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas. A contradição pode suceder entre segmentos da própria fundamentação - dão-se como provados factos contraditórios, dá-se como provado e não provado o mesmo facto, afirma-se e nega-se a mesma coisa, enfim, as premissas contradizem-se -, como entre a fundamentação e a decisão - esta não se encontra em sintonia com os factos apurados (cf., neste sentido, Germano Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», III, 2ª Ed., Editorial Verbo, págs. 340 e 341).
A contradição a que se reporta a alínea b) do art. 410 do CPP é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento.»

Ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/01/2017, Processo nº 93/14.3JAGRD.C1.S1 – 3ª Secção, in www.dgsi.pt: «Ocorre contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão, ou seja, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.»  

No caso sob apreciação, sempre salvaguardado o devido respeito, julgamos que, também neste aspecto, os arguidos recorrentes alegam erroneamente a verificação deste vício quando o que perpassa da respetiva motivação é a discordância daqueles perante a subsunção jurídica dos factos provados operada pelo Tribunal a quo. Com efeito, o que os recorrentes na realidade defendem é que a factualidade apurada não é adequada, idónea para o preenchimento da tipicidade objetiva e subjetiva dos imputados crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º, nº1, al. a), do Código Penal, razão pela qual devia ter sido proferida uma decisão absolutória.
Ora, a questão assim suscitada pelos recorrentes consubstancia a alegação de um eventual erro de julgamento quanto à matéria de direito, ao enquadramento jurídico dos factos provados, não medrando enquanto fundamento do vício previsto na alínea b) do nº2 do art. 410º do CPP.   
Analisado o texto do acórdão recorrido, constata-se que o Tribunal ali verteu um racicocínio congruente no que tange à subsunção jurídica dos factos apurados e decisão proferida, uma vez que tendo considerado que a factualidade provada preenchia integralmente os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal dos crimes de escravidão imputados aos arguidos, bem assim os elementos atinentes à respetiva consciência da ilicitude, decidiu responsabilizá-los jurídico-penalmente por tal prática.
Em conformidade, a decisão recorrida não contém contradição insanável entre a fundamentação (de facto e de direito) e a decisão.
III.2.1.5 – Impugnações amplas da decisão sobre a matéria de facto (art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP) – considerações gerais:

Preceitua o art. 412º do CPP, na parte que ora releva:
“1 – A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
[…]
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
[…]
6 – No caso previsto no nº4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”  
Como tem entendido sem disparidade o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorretamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP -, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer.[6]
Por outro lado, nessa tarefa de reapreciação da prova pelo tribunal de recurso intrometem-se necessariamente fatores como a ausência de imediação e da oralidade, que constituem princípios estruturantes do direito processual penal português. 
A ausência de imediação e oralidade - dado que o “contacto” com as provas se circunscreve ao que consta das gravações - determina que o tribunal de segunda instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º][7].
Com efeito, quando está em causa a questão da apreciação da prova cumpre dar a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo. Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum.

Como loquazmente se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/07/2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, acessível em www.dgsi.pt:
«São os Juízes de 1.ª instância quem de forma direta e «imediata» podem observar as intransferíveis sensações que derivam das declarações e que se obtêm a partir do que os arguidos e das testemunhas disseram, do que calaram, dos seus gestos, da palidez ou do suor do seu rosto, das suas hesitações. É uma verdade empírica que frente a um mesmo facto diversos testemunhos presenciais, de boa-fé, incorrem em observações distintas.
A congruência dos testemunhos entre si, o grau de coerência com outras provas que existam e com outros factos objetivamente comprováveis, quer dizer, a apreciação conjunta das provas, são elementos fundamentais para dar maior credibilidade a um testemunho que a outro.
Para tal, a convicção do Tribunal tem de ser formada na ponderação de toda a prova produzida, não podendo censurar-se aquele por nesse juízo ter optado por uma versão em detrimento de outra. Não existindo prova legal ou tarifada que se impusesse ao Tribunal, o Tribunal julga a prova segundo as regras de experiência comum e a livre convicção que sobre ela forma (art. 127.º do Código de Processo Penal).»
Ou seja, é comumente aceite que a (re)apreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso não implica a realização de um “segundo julgamento”, agora baseado na prova gravada, em que o tribunal ad quem aprecia toda a prova produzida e documentada em primeira instância, como se o julgamento ali realizado não existisse. Como se refere, de modo impressivo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/05/2015, processo 441/10.5TABJA.E2, acessível em www.dgsi.pt, «O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância. Os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.»
Relevantes ainda as seguintes palavras de Paulo Saragoça da Matta[8]:
«Ao Tribunal de recurso não cabe repetir a produção de prova havida, nem a prova anteriormente produzida na instância recorrida perde seja o que for de vivacidade. Pelo contrário, o Tribunal de recurso limitar-se-á a aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração. Com o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual como foi produzida em primeira instância.»  
Concluindo: o artigo 412º, nº3, al. b) do CPP, ao exigir que o recorrente que impugne a decisão proferida sobre matéria de facto especifique as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, implica que o tribunal de recurso só pode (e deve) alterar aquela decisão se da análise que faz das provas documentadas indicadas pelo recorrente, em concatenação com as regras da experiência comum e da lógica, concluir que o juízo probatório levado a cabo pelo tribunal a quo é, à luz daqueles elementos, insustentável, indefensável (porque decidiu claramente sem prova ou em indiscutível contradição com as preditas regras), revelando-se por isso imperioso decidir de forma distinta.
Diferentemente, «se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a “tornam necessária” ou racionalmente “obrigatória”, então deve manter a decisão da primeira instância tal como está» - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1, acessível em www.dgsi.pt.

III.2.1.5.a – Recurso formulado pela arguida BB:

De acordo com a jurisprudência pacífica sobre o assunto, «são manifestamente improcedentes os recursos quando é clara a sua inviabilidade, quando no exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições jurisprudenciais sobre as questões suscitadas, que os mesmos estão votados ao insucesso» - assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/03/2007, proferido no âmbito do Processo nº 07P1020, in www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, menciona o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03/03/2015, cujo sumário se encontra disponível no sítio da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa www.pgdl.pt. (anotação ao art. 417º do CPP): «I - A manifesta improcedência do recurso (conceito que a lei não define) nada tem a ver com a extensão da matéria submetida a apreciação, nem com a sua intrínseca complexidade, nem com a prolixidade da motivação do recurso (na procura de deixar bem claras as razões de discordância com a decisão recorrida); II - O que releva é o bem-fundado, a solidez ou o apoio legal, doutrinário ou jurisprudencial, da argumentação usada para atacar a decisão de que se recorre; III - Existirá manifesta improcedência sempre que seja inequívoco que essa argumentação de modo nenhum pode conduzir ao efeito jurídico pretendido pelo recorrente».
Por via do presente recurso, entre o mais, veio a arguida BB deduzir impugnação da decisão sobre a matéria de facto, designadamente quanto aos pontos dos factos provados que descreve nos items 3 a 7 das alegações do recurso, que, no seu entender, face à prova produzida nos autos, deviam ter sido dados como não provados.
Ora, salvo o devido respeito, atendendo ao modo como no recurso é sustentada a sobredita pretensão recursória, é evidente, desde logo face à lei vigente, a impossibilidade de procedência da mesma.

Estatui o já citado art. 412º do CPP, na parte que ora releva:
“1 – A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
(…)
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
d) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
e) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
f) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(…)
6 – No caso previsto no nº4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.” – sublinhados nossos. 
Ressuma do disposto nos nºs 3 e 4 do art. 412º que quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, é-lhe imposto um especial dever de especificação, o que bem se compreende tendo em vista a natureza e objeto do recurso previsto na lei. Um recurso, que, consabidamente, «não constitui uma impugnação sem fronteiras da matéria de facto na 2ª instância, mas que se traduz apenas numa “intervenção cirúrgica” do Tribunal da Relação. Intervenção esta, no sentido de indagar se houve erro de julgamento, corrigindo-o, se for caso disso, nos concretos pontos de facto, devidamente identificados pelo recorrente.» - cf. Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças, in “Processo Penal – Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº 10, 2010, p. 31.          O artigo 412º, nº3, al. b) do CPP, ao exigir que o recorrente que impugne a decisão proferida sobre matéria de facto especifique as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, implica que o tribunal de recurso só pode (e deve) alterar aquela decisão se da análise que faz das provas documentadas indicadas pelo recorrente, em concatenação com as regras da experiência comum e da lógica, concluir que o juízo probatório levado a cabo pelo tribunal a quo é, à luz daqueles elementos, insustentável, indefensável (porque decidiu claramente sem prova ou em indiscutível contradição com as preditas regras), revelando-se por isso “obrigatório” decidir de forma distinta.
Distintamente, «se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está» - cf. citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015.
No caso vertente, a recorrente BB incumpriu, parcial, mas decisivamente, o dever de especificação legalmente imposto.
Não obstante não o ter feito de forma exemplar, é viável considerar que a recorrente indicou os concretos pontos da matéria de facto sobre os quais defende ter existido erro de julgamento. Na verdade, apesar de a indicação dos factos em causa não ter referido, como podia e devia, a sua integração nos factos provados por referência à respetiva numeração destes atribuída na decisão recorrida, e, por vezes, se mostrar genérica e sem correspondência às condutas especificadamente descritas e individualizadas na decisão sobre a matéria de facto, é ainda assim possível apreender minimamente o sentido da impugnação, isto é, em relação a qual factualidade se dirige.
Contudo, olvidou na motivação, a indicação das concretas provas que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, ónus que só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da contestada.
A recorrente BB não fundamentou a sua divergência face à decisão da matéria de facto tomada pelo Tribunal a quo em concretas passagens das declarações das ofendidas a que aludem no recurso, prestados em audiência de julgamento (contextualizando-as por referência ao tempo consignado na ata), dos quais se pudesse inferir que obrigavam, impreterivelmente, a decisão fática diversa.
Diferentemente, no que concerne às declarações/depoimentos em causa, a recorrente enveredou por invocar nas alegações de recurso, de modo esparso, truncado, genérico e conclusivo, asserções da sua própria lavra do que supostamente seria o conteúdo daqueles meios probatórios, sem que especifique, como se impunha, em discurso direto, as concretas passagens, isto é, o que concretamente foi afirmado pelas declarantes.
A apontada omissão é absoluta e intransponível, inviabilizando a formulação de convite ao aperfeiçoamento, pois que este não se destina a suprir oblívios de exposição de pressupostos legalmente exigidos.[9]
Destarte, encontra-se este Tribunal ad quem impedido de conhecer do erro de julgamento invocado pela arguida recorrente BB, sendo por isso manifestamente improcedente a impugnação ampla da matéria de facto tida em mente por aquela, o que implica, nesta parte, a rejeição do recurso – cf. art. 420º, nº1, al. a), do CPP.

III.2.1.5.b – Recursos dos arguidos CC, AA e DD:

Neste conspecto, alegam os recorrentes CC e AA que os pontos 1º, 2º, 6º a 8º, 10º, 13º, 16º a 18º, 20º a 24º, 27º a 34º, 41º, 44º a 47º, 49º, 50º, 54º, 79º a 83º e 85º a 184º da matéria de facto provada foram incorretamente julgados pelo Tribunal a quo, pois que, no seu entendimento, atendendo à prova documental, por declarações e testemunhal que indicam, impunha-se decisão inversa, devendo a dita factualidade ser dada como não provada ou, nos casos que ali descrevem, ser conferida à matéria de facto nova redação.
Por seu turno, alega a recorrente DD que os pontos 5º, 6º, 13º, 16º a 18º, 20º a 24º, 33º, 43º a 47º, 49º a 58º, 63º, 64º, 78º a 83º e 86º a 181º da matéria de facto provada foram incorretamente julgados pelo Tribunal a quo, pois que, no seu entendimento, atendendo à prova documental, por declarações e testemunhal que indicam, impunha-se decisão inversa, devendo a dita factualidade ser dada como não provada ou, nos casos que ali descrevem, ser conferida à matéria de facto nova redação.

Conhecendo.

- Impugnação dirigida pelos recorrentes aos pontos 1, 2, 5, 6, 8 e 10 da matéria de facto provada:
Quando invocam depoimentos prestados por testemunhas em audiência de julgamento, o que sucede na contestação à decisão da matéria de facto vertida nos pontos 1 e 10, por referência aos depoentes MM e Comissário do estabelecimento prisional ... (que não indentifica nominalmente), respetivamente, os recorrentes CC e AA não procedem à transcrição das concretas passagens desses depoimentos que sustentam uma decisão diversa, isto é, o que pelas testemunhas foi dito em discurso direto; ao invés, os recorrentes expendem, de modo genérico, conclusivo e necessariamente parcial, aquilo que eles próprios inferiram dos respetivos testemunhos; tal modo de alegação não satisfaz o ónus legal de especificação dos concretos meios de prova que forçam decisão diversa.
No demais, compulsada a motivação dos recursos constata-se que os recorrentes não colocam verdadeiramente em questão a veracidade da factualidade que consta dos especificados pontos da matéria de facto nem a fidelidade dos meios probatórios que, segundo o Tribunal recorrido, a estribaram; antes pretendem acrescentar outros factos à matéria de facto que consta desses pontos, com fundamento na prova documental e testemunhal produzida nos autos, sendo certo que quanto a esta última, como sobredito, não se pode atender à mesma em virtude de não ter sido validamente aduzida.
Sucede que, a oposição à decisão da matéria de facto efetuada nos termos e para efeitos do disposto conjugadamente nos artigos 412º, nºs 3 e 4 e 431º, al. b), do CPP, deve ser dirigida à factualidade que foi dada como provada e/ou não provada e que se considera incorretamente julgada face à prova produzida.
Conforme se sumaria no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2012, proferido no Processo nº 130/10.0JAFAR.F1.S1, relator Armindo Monteiro:
“VII – No que respeita à impugnação da matéria de facto ante a Relação, nos termos do art. 427º e 428º do CPP, não dispensa o recorrente, além do mais, do ónus de enumeração especificada, ou seja, um a um, dos factos reputados incorretamente julgados, dentre os elencados como provados ou não provados, quer provenientes da acusação, defesa ou resultantes da discussão da causa, por força do art. 412º, nº3, al. a), do CPP. VIII – Quando, então, impugne a decisão proferida ao nível da matéria de facto tal impugnação faz-se por referência à matéria de facto efetivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspetiva interessada, não equidistante, com o devido respeito, em relação àquilo que o tribunal tem para si como sendo a boa solução de facto, entende que devia ser provada. Por isso, segundo os termos da lei, a impugnação é restrita à “decisão proferida”, e realmente prolatada, e não a qualquer realidade virtual, de sobreposição da sua convicção probatória, pessoal, intimista e subjetiva, à convicção desinteressada formada pelo tribunal.»  
O entendimento aqui defendido foi sufragado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão 312/2012, publicado no D.R., Série II, de 07/01/2013, onde decidiu: «Não julgar inconstitucional as normas dos artigos 410º, nº1, 412º, nº3 e 428º, conjugados com os artigos 339º, nº4, 368º, nº2 e 374º, nº2, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não pode ser objeto da impugnação da matéria de facto, num recurso para a Relação, a factualidade objeto da prova produzida na 1ª instância, que o Recorrente-arguido sustente como relevante para a decisão da causa, quando tal matéria não conste do elenco dos factos provados e não provados da decisão recorrida.»
Distintamente, quando se entenda que existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada deve invocar-se o vício previsto no art. 410º, nº2, al. a), do CPP. Porém, os recorrentes não alegam, como se exigia para apreciação desse vício, por que motivo a inclusão da factualidade que pretendem ver aditada é essencial, preponderante para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa nem essa relevância é oficiosamente descortinada por este Tribunal ad quem. Com efeito, a matéria que os impugnantes pretendem ver aditada à factualidade dada por provada em nada infirma esta, antes consubstancia meras precisões ou elucidações que podem e devem ser atendidas em sede de motivação da decisão de facto – se foram ou não consideradas, e em que medida, é questão que infra abordaremos relativamente a outros pontos fácticos impugnados.      
Não colhe, destarte, neste conspecto, a impugnação deduzida.

- Impugnação dirigida pelos recorrentes ao ponto 13 da matéria de facto provada:

Consta do ponto 13 dos factos provados vertidos no acórdão recorrido:
13. Apesar do que consta dos Estatutos do Centro Social de Apoio e Orientação ..., na prática, ele foi criado pelos arguidos, para ser o suporte jurídico da atividade económica levada a cabo pela Fraternidade Missionária ..., para ser recetora de financiamentos para a obra desenvolvida pela Fraternidade e para absorver todo o património gerado por esta.”
Tal matéria de facto não constava da acusação/pronúncia, mas o seu aditamento foi oportuna e validamente comunicado à defesa dos arguidos enquanto alteração não substancial de factos, nos termos e para efeitos do disposto no art. 358º, nº1, do CPP.

O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:
«Concretamente, quanto aos pontos 1º a 16º da factualidade provada, matéria atinente à natureza jurídica da Fraternidade Missionária ... e do Centro Social de Apoio e Orientação ..., bem como a confusão gerada por estas duas pessoas jurídicas de direito canónico, o tribunal louvou-se, na análise conjunta das provas documentais, por declarações dos arguidos e testemunhais.
Neste particular, em sede de prova documental, vejamos o que resulta dos autos:
Por decreto de 24 de Janeiro de 1978, emitido por D. PP, foi ereta a União das Irmãs Missionárias ..., tendo como denominação “Fraternidade Missionária ...”, com sede provisória no lugar e ... – cfr. fls. 59 do Anexo I.
A Fls. 56 a 58 do Anexo I, consta uma cópia desses Estatutos de 24 de Janeiro de 1978, dos quais avulta:
“ - art. 1º - É criada uma União das Irmãs Missionárias ... com o título ou denominação de Fraternidade Missionária ....
- art. 2º - A Fraternidade Missionária ... tem a sua sede provisória no lugar e ..., freguesia ... e Arciprestado de ...;
- Art. 3º - A Fraternidade Missionária ... é de natureza exclusivamente espiritual, sem fins lucrativos de qualquer espécie;
(…)
Art. 6º- Podem ser admitidas como membros ou irmãs da Fraternidade Missionária ..., jovens com um mínimo de 18 anos e que satisfaçam as condições exigidas, tanto nestes estatutos, como no regulamento interno da Fraternidade”.
Consta dos autos uma carta remetida pela arguida BB, dirigida à Arquidiocese ..., datada de 10/04/2014, a fls. 55 do Anexo I, solicitando a revisão dos Estatutos de 24 de Janeiro de 1978, da Fraternidade Missionária ... e respetiva aprovação.
Avulta ainda dos autos a Ata nº ..., datada de 22 de Maio de 2014, de fls. 54 do Anexo I, que documenta a Assembleia geral que reuniu na Fraternidade Missionária ... e aprovou a eleição dos corpos gerentes nos seguintes termos:
Assembleia Geral:
-Presidente: Irmã HH;
- Secretaria: irmã EE;
- 2º Secretária: Irmã GG;
Direção:
Presidente: Irmã CC;
Secretária: irmã BB;
Tesoureira: DD;
Órgão Assessor ( “Conselho de Assistência”)
Presidente: FFF – Advogada;
Vogais: GGG – TOC
ZZ – Oficial de Justiça,
Dos autos consta ainda uma carta remetida por CC, datada 3/06/2014, dirigida ao Arcebispo RRR, solicitando Provisão dos Corpos Gerentes da Fraternidade Missionária ... – cfr. fls. 60 do Anexo I;
Nesta senda, por Decreto datado de 3 de Junho de 2014, emitido pela competente Autoridade Eclesiástica Diocesana, foram aprovados os novos Estatutos da Fraternidade Missionária ..., proferido o despacho que os aprovou, bem como a Provisão dos corpos gerentes da Fraternidade Missionária ..., datada de 03/06/2014, bem como a Ata nº ..., datada de 7 de Novembro de 2014, da qual resulta a nomeação dos corpos gerentes para os próximos cinco anos - cfr. fls. 27, 28, 63 e 94 do Anexo I.
Consta ainda dos autos uma cópia dos novos Estatutos da Fraternidade Missionária ... e respetivo averbamento, de fls. 29 a 52 do Anexo I, bem como das Normas Gerais das Associações de Fiéis de fls. 421 e ss. e, ainda, de um Exemplar da publicação “... de 2005 de fls. 2364.
Dos Novos Estatutos da Fraternidade Missionária ..., aprovados em 3 de Junho de 2014, consta:
- art. 1º: “A Fraternidade Missionária ..., nasceu como União das Irmãs Missionárias ...-
- Art. 2º: A Fraternidade Missionária ... é uma Associação Pública de Fieis, ereta em pessoa jurídica canónica pela Autoridade competente, com Estatutos aprovados em 24 de Janeiro de 1978;
- Art. 3º: A Fraternidade Missionária ... tem a sua sede na Rua ..., ..., Arciprestado de ..., Arquidiocese ....
- Art. 4º: Os objetivos da Fraternidade Missionária ... são:
1. Consagrar-se totalmente, no ser e no ter, aos jovens como principal e fundamental meio de apostolado.
2. Dedicar-se a uma vida de piedade, intimidade e amizade com Deus, através da oração e testemunho de espirito, num carisma de fraternidade contemplativa na ação;
3. A salvação do Mundo Jovem pela conversão e orientação para cristo, ajudando a descobrir e viver a extraordinária riqueza da sua vocação cristã, em qualquer dos estados de vida ou perfeição cristã.
4. Consagrar-se a um verdadeiro movimento de conversão cristã dos jovens, desejando corresponder a um generoso primeiro passo, na sua consciente e cada vez mais crescente realização cristã, por uma vida apostólica incarnada e vivida no seu meio ambiente próprio, tanto familiar, como social, religioso e vocacional, através das suas atividades próprias.
5. Assumir a vida contemplativa como expressão máxima da consagração, tendo apenas como intenção fiel a salvação dos jovens;
6. Manter atividade própria e especifica: organização e realização de cursos especializados (cursos de conversão, cursos de orientação para a vida), convívios de oração, intimidades, Betânias, sessões culturais ou artísticas.
7. Realizar edições de carater formativo e informativo sem fins lucrativos;
8. Visitar todas s cadeias de Portugal, em espirito de missão evangelizadora, dando apoio aos mais carenciados sobretudo os jovens vitimas do flagelo da droga;
9. zelar pelo património da instituição;
Art. 14: Os membros dos corpos gerentes são responsáveis perante a lei eclesiástica e estatal, civil e criminalmente, pelas faltas ou irregularidade cometidas no exercício do mandato
(…)”
Consta ainda dos autos uma cópia do Cartão de identificação de pessoa coletiva religiosa, do qual resulta que foi atribuído à Fraternidade Missionária ..., um número de identificação de pessoa coletiva religiosa nº ...10; bem como uma declaração emitida pelo Vigário Geral, da Arquidiocese ..., Mons. Cón. Doutor SSS, datada de 26 de Setembro de 2000, da qual resulta que a Fraternidade Missionária ... está isenta de impostos face à Concordata – Cfr. fls. 85, anexo I.
Também consta dos autos uma credencial datada de 27 de Janeiro de 2015, emitida pelo Cónego Dr. RR, declarando que as ... e ... são pertença da Fraternidade Missionária ..., bem como um Relatório sobre a 13ª visita da Fraternidade a todos os estabelecimentos prisionais portugueses no período compreendido entre 18/10/2004 e 11/02/2005, entregue ao Sr. Diretor Geral dos Serviços Prisionais, bem como declarações emitidas por várias entidades sobre o trabalho desenvolvido por alguns dos arguidos junto de alguns estabelecimentos prisionais, a fls. de fls. 61, 73 e ss do Anexo I, e de fls. 2357 a 2360;
Ora, como se constata dos documentos atrás referidos, ainda enquanto União das Irmãs Missionárias ..., a Fraternidade Missionária ..., tinha criado uma Fundação, denominada Centro Social de Apoio e Orientação ....
Do processo completo da constituição e aprovação dos primeiros Estatutos do Centro Social de Apoio e Orientação ... avulta que, por Decreto de 22 de agosto de 1985 foram aprovados os primeiros Estatutos do Centro Social de Apoio e Orientação ..., com as alterações de 8 de Novembro de 1985, cujo teor resulta de fls. de fls. 901 verso do Apenso A, e ss e 98 e 143 a 145 do Anexo I.
Resulta do texto dos Estatutos originários de 22 de agosto de 1985, que:
“Art. 1 – O Centro Social de Apoio e Orientação ..., é uma fundação de solidariedade social, criada por iniciativa da União das Irmãs Missionárias ..., denominada “Fraternidade Missionária ...”. O Centro tem a sua sede em ..., ....
Art. 2 – O Centro Social de Apoio e Orientação ... tem por objetivos principais o apoio a adolescentes e jovens, apoio ás famílias, apoio à integração social e comunitária e a educação e formação profissional dos cidadãos, com espirito cristão. Como objetivos secundários, desenvolve atividades de orientação para pais, professores e demais responsáveis pela juventude, de formação destes responsáveis, através dos principais meios de comunicação social, como a imprensa, o cinema, o teatro e sessões culturais – poesia e musica.
(…)”.
Segundo resulta da informação prestada pela Direção Geral da Segurança Social, o Centro Social de Apoio e Orientação ... é uma instituição particular de solidariedade social, cujo registo foi efetuado provisoriamente nesta Direção-Geral em 14/09/1985, sob a inscrição nº ...5, a fls. 4 e 4 verso do Livro nº3 das Fundações de Solidariedade Social e convertido em definitivo em 05/12/1985 pelo averbamento nº1, à referida inscrição – cfr. fls. 945 e certidão de fls. 946 do Apenso A,
Consta dos autos, a fls. 120 do Anexo I, uma Ata de 10 de Janeiro de 2011, que documenta a reunião dos membros que compõe a Direção da Fraternidade Missionária ..., que procedeu à reeleição dos membros do Conselho de Administração do Centro Social de Apoio e Orientação ..., também como sede na Rua ..., em ..., ...;
Avulta dos autos uma Provisão datada de 16 de Março de 2011, que concedeu provisão aos corpos gerentes do Centro Social de Apoio e Orientação ..., fazendo parte da Direção: Presidente: AA; Secretária: BB; Tesoureira: CC;
Avulta dos autos uma carta remetida pelo Padre AA à Arquidiocese ... a solicitar a abertura do processo de revisão dos Estatutos do Centro Social de 1985, e respetiva aprovação de fls. 109 do Anexo I.
Consta ainda dos autos uma carta subscrita por CC dirigida à Arquidiocese ... a solicitar a Provisão de Corpos Gerentes;
Por seu turno, por Decreto de 25/11/2014 e despacho da mesma data, foram aprovados os novos Estatutos do Centro Social de Apoio e Orientação ..., tendo sido emitida a provisão de corpos gerentes que nomeia:
Direção:
Presidente: Irª CC;
Secretária: Irª BB;
Tesoureira:  Irª DD;
Conselho Fiscal:
Presidente: Dr. HHH;
Vogais: Eng. III;
JJJ;
Órgão de Vigilância:
P.e AA.
Dos novos estatutos do Centro Social consta:
“- Art. 2 – O Centro Social de Apoio e Orientação ... é uma fundação ereta em pessoa jurídica canónica publica por decreto da autoridade competente, em 22 de agosto de 1985.
O Centro, segundo o D.L. nº 119/83, fica integrado na ordem civil como Instituição Particular de Solidariedade social (IPSS).
- (…)
- Art. 4 – O Centro Social de Apoio e Orientação ... em por objetivo o apoio:
- a adolescentes e jovens;
- às famílias;
- à integração social e comunitária;
- á educação e formação profissional dos cidadãos com espirito cristão.
Como objetivos secundários, o centro desenvolve atividades:
- de orientação para pais, professores e demais responsáveis pela juventude;
- de formação destes responsáveis através dos principais meios de comunicação social (imprensa, cinema, teatro, sessões culturais, poesia e musica).
No exercício destas atividades, o Centro terá sempre presente.
- o conceito unitário e global da pessoa humana e respeito pela sua dignidade;
- o aperfeiçoamento cultural, espiritual e moral de todos os participantes;
- o espirito de convivência e de solidariedade social como fator decisivo de trabalho comum, tendente à valorização integral dos indivíduos, das famílias e demais agrupamentos;
- que é um serviço da Igreja, devendo assim proporcionar, com respeito pela liberdade de consciência, formação cristã aos seus utentes e não permitir qualquer atividade de se oponha aos princípios cristãos.
- o centro procurará dar resposta a todas as forma de pobreza exercendo assim a sua finalidade sócio-caritativa. 
Art. 5 – Para a realização dos seus objetivos, o Centro Mantém uma atividade de tipografia sem fins lucrativos, que produz publicações para a atividade de evangelização do mundo juvenil.
Na medida em que a prática o aconselhe e os meios disponíveis o permitam, o Centro procurará exercer outras atividades de caracter sócio cultural, educativo, recreativo, de assistência, de saúde e de atendimento/acompanhamento social, e designadamente:
- a promoção do culto mariano, fomentando assim um verdadeiro Movimento de Conversão Cristã dos Jovens;
- a organização e realização de cursos especializados (cursos de conversão, cursos de orientação para a vida), convívios, sessões culturais ou artísticas;
- evangelização dos presos nas cadeias.
(…)
Art. 17º - Os membros dos órgãos de gestão são responsáveis perante a lei eclesiástica e estatal, civil e criminal, pelas faltas ou irregularidades cometidas no exercício do mandato.
(…)”.
Avulta ainda dos autos que se encontra descrita na CRP ..., sob as descrições nº ...34 e ...66, a aquisição por parte do Centro Social de Apoio e Orientação ..., Fundação de Solidariedade Social, de dois terrenos rústicos respetivamente com a área de 30 700 m2 e 7200 m2, inexistindo quaisquer ónus registados sobre os aludidos imoveis e, que se encontram inscritos em nome do Centro Social de Apoio e Orientação ..., na respetiva matiz, a propriedade de três prédios rústicos ( nº 7, 206 e 208) sitos na freguesia ..., bem como o registo provisório da propriedade do artigo Urbano nº ...51, inscrito oficiosamente pelo serviço de Finanças por se encontrar omisso na matriz.
Ora, do acervo documental atrás referido e da comparação do conteúdo dos antigos e novos Estatutos da Fraternidade e do Centro Social, no que tange aos objetivos de cada um dos entes, constata-se que se trata de duas pessoas jurídicas de direito canónico distintas e autónomas, mas que só o Centro Social foi integrado na ordem jurídica civil como IPSS.
Por outro lado, como se verá, apesar do que consta nos estatutos, sobre os objetivos do Centro Social, resultou por exuberância de toda a prova produzida, que toda a atividade religiosa de culto e de evangelização, designadamente feita através de publicações periódicas e de visitas a estabelecimentos prisionais era desenvolvida pela Fraternidade e que o Centro Social terá sido criado pelos arguidos para ser o suporte jurídico da atividade económica levada a cabo pela Fraternidade Missionária ..., para ser recetor de fundos estatais relacionados com a atividade desenvolvida pela Fraternidade e para absorver o património gerado por esta.
Segundo esclareceu o representante do demandado, QQ, Notário da Curia Diocesana, Juiz dos Tribunais Eclesiásticos e responsável pelas Associações de Fieis e Fundações da Arquidiocese de ..., por volta do ano de 2011, o Exmo. Arcebispo incumbiu-o de entrar em contato com a Fraternidade e com o Centro Social para organizar os Estatutos destas instituições, nomear os respetivos corpos gerentes e despoletar a prestação de contas.
Segundo o declarante, quando a Igreja repara que a Instituição tem um certo impacto social, consubstanciado no facto de existir uma publicação religiosa e obras de evangelização relativas às visitas a estabelecimentos prisionais, entende que é preciso mudar o cariz destas pessoas jurídicas, que até então eram pessoas jurídicas de direito canónico, mas de natureza privada.
A partir de 2011, por indicação do Arcebispo, o declarante começou a intervir junto das identificadas instituições, reconhecendo que não foi fácil fazer com que os arguidos entendessem que eram igreja, que tinham de aprovar os Estatutos das instituições, nomear corpos gerentes e prestar contas da atividade económica desenvolvida.
Também o Exmo. Arcebispo Emérito de ..., Dom NN, que assumiu tais funções desde o ano de 1999, até há pouco tempo atrás, explica que visitou ..., quando fazia a visita pastoral à paroquia e, uma vez ou outra, a convite do arguido Padre AA.
Confirmou que pediu ao Padre QQ – especialista na elaboração dos Estatutos – para ir passando por ... e ir vendo como era a vida da Fraternidade.
Segundo explicaram o declarante e a testemunha identificadas, desde 1978 até 2014, a Fraternidade era apenas uma União das Irmãs Missionárias ..., figura prevista pelo Código Canónico de 1917.
Com a aprovação do Código Canónico de 1983, surgem as Associações de Fieis publicas e privadas, sendo que, quando têm atividades da responsabilidade da igreja, são consideradas Associações de Fieis de cariz publico, caso em que têm de ter estatutos aprovados, corpos gerentes e aprovação de contas.
Ora, até 2014, a Fraternidade Missionária ..., era uma União das Irmãs Missionárias ..., sem que estivesse definida a sua natureza (publica ou privada).
Com a aprovação dos Estatutos em 2014, passa a ser uma Associação de Fieis, de natureza publica, porque exercia atividade que implicava o culto, evangelização e publicações de cariz religioso.
Quer o Arcebispo de ..., quer o Padre QQ, reconhecem que todas estas atividades eram desenvolvidas pela Fraternidade, chegando mesmo NN a afirmar, que tudo era feito pela Fraternidade e que o Centro Social era “apenas uma muleta para fazer as obras sociais”, levadas a cabo pela Fraternidade, designadamente as visitas aos estabelecimentos prisionais que, por sinal, se inscrevem nos objetivos da Fraternidade.
Segundo declarou o Padre QQ, à luz dos respetivos estatutos, a Fraternidade tem como objetivo a formação espiritual, consubstanciada na publicação de uma revista de formação e informação espiritual, denominada “...” e atividades de culto, já o Centro Social, à luz dos respetivos estatutos, teria teoricamente um objetivo predominantemente social e caritativo, que seria desenvolvido designadamente através das visitas às cadeias.
Todavia, como resulta do acervo documental atrás referido, até mesmo esta atividade consubstanciada nas visitas dos arguidos a estabelecimentos prisionais era desenvolvida pela Fraternidade e inscreve-se num dos seus objetivos.
Veja-se o Relatório sobre a 13ª visita da Fraternidade a todos os estabelecimentos prisionais portugueses no período compreendido entre 18/10/2004 e 11/02/2005, bem como as declarações emitidas por várias entidades sobre o trabalho desenvolvido por alguns dos arguidos junto dos estabelecimentos prisionais (cfr. fls. 61, 73 do Anexo I, fls. 2357 a 2360), de onde resulta que já após a constituição do Centro Social era a Fraternidade quem desenvolvia esta iniciativa.
Para o declarante, a Fraternidade e o Centro Social são obras distintas, têm autonomia entre si, mas na pratica admite que elas se possam confundir, porque os corpos gerentes eram os mesmos, a sede era a mesma e os estatutos eram idênticos.
Segundo julga, embora a revista seja anterior à constituição do Centro Social e se inscrever num dos objetivos da Fraternidade Missionária ..., a realização de edições de caracter formativo e informativo, sem fins lucrativos, a atividade da revista, designadamente a aquisição de material e papel, com a criação do Centro Social, terão passado a ser efetuados em nome deste, o que reforça a ideia de que este ultimo foi criado com o fito de constituir um suporte jurídico da atividade económica da Fraternidade Missionária ....
Em jeito de conclusão, o declarante admite que, bem vistas as coisas, o Centro social tinha importância apenas para o património já que o património está todo registado em nome do Centro Social e terá sido criado por razões burocráticas, para suportar a atividade jurídica da Fraternidade Missionária, porque esta não estava registada civilmente, já o Centro Social era uma IPSS, registada civilmente como fundação.
Na mesma linha, a testemunha TTT, Cônego, Sacerdote, Chanceler da Diocese ..., que zela pelos arquivos e estatutos, sustentou que o Centro Social se limitava à prossecução de fins fiscais e tinha em vista a obtenção de apoios do Estado.
Ainda nesta linha, o Padre UUU, refere que, quando foi incumbido pelo Arcebispo de ... para acompanhar aquelas duas pessoas jurídicas de direito canónico, refere que perguntou aos arguidos porque existia o Centro Social e estes lhe disseram que este foi criado porque tinham a promessa de um apoio para financiar os muros da propriedade e constituíram a IPSS para ser recetora do financiamento para construção dos aludidos muros.
Também o Padre TT, que integrou a Comissão administrativa atrás referida, relatou que, quando ali se deslocaram, o Centro Social já estava instituído, mas não teria qualquer atividade, pois que havia sido criado com o exclusivo objetivo de angariação de fundos.
As próprias Assistentes reforçam esta ideia, pois que todas elas admitem que, quando ingressaram, mal conheciam a existência do Centro Social e que ingressaram para a Fraternidade Missionária ....
Constata-se, portanto, que embora exista autonomia formal das entidades, facto é que perante terceiros, é manifesta a existência de uma confusão entre estas duas entidades de direito canónico, potenciada pelo facto de serem os mesmos os corpos gerentes, a mesma sede e idênticos os respetivos estatutos, sendo certo que, segundo referem todas as testemunhas acima referidas, o Centro Social foi criado para ser o suporte jurídico da atividade da Fraternidade Missionária ..., para ser recetora de fundos e subsídios do Estado motivados pela atividade desenvolvida da Fraternidade e para titular todo o património gerado por esta.»
Com vista a contrariar a decisão do Tribunal, invocam os recorrentes que conforme consta do documento de fls. 12 a 15 do Anexo I, a Fraternidade Missionária ... foi criada em 24.01.1978, sendo que possui desde então cartão de identificação de pessoa coletiva religiosa, como consta provado no ponto 8.
Assim, dizem, desde essa data que a Fraternidade Missionária iniciou a prossecução do seu objeto social, nos termos da erecção dos seus Estatutos, e desenvolvia actividade económica (compra de matérias necessários às edições, como papel e tintas; e ao equipamento gráfico, como manutenção e aquisição de máquinas – e a venda das suas publicações), através do seu próprio Número Fiscal, sem necessidade de o fazer através do Centro Social, pois este ainda nem estava constituído.
Por outro lado, acrescentam os recorrentes transcrevendo declarações prestadas pelo legal representante do Centro Social, Padre QQ, este, que só iniciou funções m 2012, nada sabia sobre o assunto, ou seja, sobre a constituição daquelas instituições e respetivos motivos.
Concluem, então, que a matéria de facto do ponto 13 não se sustenta em qualquer documento junto aos autos, nem no depoimento do “arguido” Padre QQ, nem de nehuma das testemunhas ouvidas sobre esta matéria. A existência do número de contribuinte da Fraternidade demonstra exatamente o contrário, isto é, que permitia à própria, por si só, deter o suporte jurídico da atividade económica levada a cabo. Acresce que os bens da Fraternidade Missionária se mantiveram propriedade daquela (cf. facto provado em 9) e canalizados para as obras evangélicas – edições e visitas às cadeias de Portugal.
Pugnam pela eliminação do ponto 13 do elenco dos factos provados.
Vejamos.
Está provado que a Fraternidade Missionária ... foi criada em 24.01.1978 e que desde essa data possui cartão de identificação de pessoa coletiva religiosa (cf. factos provados nos pontos 1 e 8).
Apurou-se ainda que, desde a data da sua constituição, a Fraternidade Missionária iniciou a prossecução do seu objeto social, nos termos dos seus Estatutos, e desenvolvia actividade económica (compra de matérias necessários às edições, como papel e tintas; e ao equipamento gráfico, como manutenção e aquisição de máquinas – e a venda das suas publicações), através do seu próprio Número Fiscal; como referem os recorrentes, fê-lo em nome próprio, sem necessidade de o fazer através do Centro Social, pois este ainda nem estava constituído, o que só sucedeu no ano de 1985 (cf. facto provado nº 2).
Todavia, salvo o devido respeito, a predita alegação recursória, sendo verdadeira, olvida injustificadamente a circunstância preponderante de que ocorreu nesse interím alteração legal atinente à aprovação de um novo Código Canónico, em 1983, que acarretou a necessidade de criação de uma nova pessoa jurídica, com reconhecimento na ordem jurídica civil, em nome da qual se registasse o património da Fraternidade e se prosseguisse a atividade económica desta entidade. Essa pessoa coletiva foi o Centro Social, enquanto Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), civilmente registada como fundação.
 Isso mesmo foi devidamente explanado pelo Tribunal a quo na motivação, por referência às declarações do legal representante do Centro Social de Apoio e Orientação ..., padre QQ, aos depoimentos das testemunhas D. NN, padres UUU e TT e, ainda que residualmente, às declarações das assistentes.
Logo, não colhe a objeção recursória de que “a existência do número de contribuinte da Fraternidade demonstra exatamente o contrário, isto é, que permitia à própria, por si só, deter o suporte jurídico da atividade económica levada a cabo”, porquanto, reitera-se, tal realidade alterou-se a partir do momento em que, por força das normas de direito canónico vigente, foi necessário erigir uma associação de fiéis de natureza pública, com estatutos aprovados, corpos gerentes nomeados e aprovação das respetivas contas.     
Também não contraria decisivamente o decidido, a circunstância alegada pelos recorrentes de que “os bens da Fraternidade Missionária mantiveram-se propriedade daquela (cf. facto provado em 9º) que é canalizado para as obras evangélicas – edições e visitas às cadeias de Portugal”.
Primeiramente, tal asserção não corresponde inteiramente à verdade pois que no aludido ponto 9 consta como provado que “[s]egundo consta da Credencial datada de 27.01.2015, emitida pelo Cónego Dr. RR, as ... e ... são pertença da Fraternidade Missionária ...”; ou seja, somente há referência à propriedade dos direitos autorais sobre as mencionadas publicações. Concomitantemente, como aduzido na fundamentação da decisão recorrida, foi produzida nos autos prova documental de que os imóveis em que, supostamente, a Fraternidade e o Centro Social exerciam as suas atividades se encontravam inscritos na matriz e descritos no registo predial em nome do Centro Social.      
Não está em causa que a Fratenidade Missionária continuou a desenvolver a atividade de culto, evangélica e económica que realizava antes da criação do Centro Social, em conformidade com o estatutariamente previsto, originariamente e após a revisão dos estatutos; aliás, é precisamente isso que o Tribunal recorrido pressupõe ao dar como provado, com base nos meios de prova elencados e especificados no acórdão, que a criação do Centro Social não se destinou à prossecução dos objetivos vertidos no respetivo pacto constitutivo – cujos estatutos são similares aos da Fraternidade no que tange às atividades a desenvolver –, antes servindo, na prática, o propósito enunciado nos factos provados (ponto 13): «(…) para ser o suporte jurídico da atividade económica levada a cabo pela Fraternidade Missionária ..., para ser recetora de financiamentos para a obra desenvolvida pela Fraternidade e para absorver todo o património gerado por esta.»           
Pretendem os recorrentes, mas sem razão, abalar a credibilidade conferida, nesta parte, pelo Tribunal a quo ao depoimento prestado pelo Padre QQ, por este só ter iniciado em 2012 funções no Centro Social, pelo que, alegadamente, nada sabia sobre a constituição de ambas as instituições e os respetivos motivos.
É certo que o aludido declarante só tomou contacto com as instituições em apreço em 2011, na sequência de incumbência superior para que fossem aprovados os respetivos novos institutos, nomeados corpor gerentes e prestadas contas da atividade económica desenvolvida. 
Sucede que, a circunstância de o declarante não ter acompanhado pessoalmente o processo de criação do Centro Social, no ano de 1985, não é impeditiva da valoração das respetivas declarações (tomadas por credíveis, fiáveis) no que tange à realidade por si diretamente percecionada a partir do momento em que interveio no processo de aprovação dos novo estatutos da Fraternidade e do Centro Social e em que inciou o exercício de funções nesta segunda instituição, mais propriamente sobre a constatada sobreposição jurídica, formal, de atividades a desenvolver por esta e pela Fraternidade, e sobre o exercício praticamente exclusivo das mesmas por banda desta última em detrimento do Centro.  
Tanto mais que o nosso ordenamento processual penal permite a valoração da denominada prova indirecta, indiciária ou por presunção judicial, possibilitando que o tribunal, partindo de um facto certo, infira, por dedução lógica, um facto desconhecido.
 (cf. arts. 125º e 127º do CPP).
Entende-se por “indício” a circunstância que tem conexão verosímil com o facto incerto de que se pretende a prova.
Conforme defende Andrés Martinez Arrieta [“La prueba indiciaria”, in “La prueba en el processo penal”, Centro de Estudos Judiciales – Col. Cursos, vol. 12, Ministerio de Justicia, Madrid, 1993, p. 55], a alusão a “indício” «supõe um elemento fáctico que autoriza uma dedução, como sua consequência, assim permitindo afirmar a realidade de um facto oculto.»  
A propósito da distinção entre prova direta e indireta afirma Germano Marques da Silva[10]: «Se se tratar de prova directa, a perceção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal; na prova indireta a perceção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo e que podem ser regras jurídicas ou máximas de experiência. A esta sequência de proposição em preposição chama-se presunção. A prova directa faz-se por perceção, a indireta por perceção e presunção.»        
Sumariando o sobredito, pode-se então dizer que um indício constitui um facto que apesar de não revelar a existência histórica do factum probandum, demonstra outros factos, os quais, apelando às regras da lógica e da experiência comum, autorizam a extração de determinadas ilações quanto ao facto que se visa demonstrar.     

Como se menciona no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.05.2012, Processo nº 347/10.8PATNV.C1, disponível em www.dgsi.pt:
«1. A presunção judicial é admissível em processo penal e traduz-se em o tribunal, partindo de um facto certo, inferir, por dedução lógica, um facto desconhecido.
2. As presunções de facto - judiciais, naturais ou hominis - fundam-se nas regras da experiência comum.
3. Para a valoração de tal meio de prova devem exigir-se, os seguintes requisitos: - pluralidade de factos-base ou indícios; - precisão de tais indícios estejam acreditados por prova de carácter direto; - que sejam periféricos do facto a provar ou interrelacionados com esse facto; - racionalidade da inferência; - expressão, na motivação do tribunal de instância, de como se chegou à inferência.»

O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.06.2012, Processo nº 25/11.0PCCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, também vinca os limites que circunscrevem a prova por presunção:
«I. A prova por presunção não é uma prova totalmente livre e absoluta, como, aliás, o não é a livre convicção (sob pena de abandono do patamar de segurança da decisão pressuposto pela condenação penal, em homenagem ao princípio do in dubio pro reo) conhecendo limites que quer a doutrina quer a jurisprudência se têm encarregado de formular;
II. Desde logo, é necessário que haja uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sendo inadmissíveis «saltos» lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação);
III. Por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma (por exemplo, a autoria «desconhecida» de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido);
IV. Por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede).»

Em idêntico sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.07.2020, Processo nº 11/17.7GFVNG.P1, disponível em www.dgsi.pt:
«I - A prova por presunção judicial constitui um meio de prova legalmente previsto nos artigos 349º e 351º do Código Civil e 125º do Código de Processo Penal.
II - A estrutura lógica de tal tipo de presunção caracteriza-se pela conexão de factos através de um juízo de probabilidade que, por sua vez, se apoia na experiência, de tal maneira que a prova de um envolve a prova de outro; obtém-se a prova de um determinado facto (facto presumido) partindo de um outro ou outros factos básicos (indícios) que se apuram através de qualquer meio probatório e que estão estreitamente ligados com o facto presumido, ao ponto de se poder afirmar que, provado o facto ou factos básicos, também resulta provado o facto consequência ou facto presumido.
III - A presunção de inocência que impera em direito processual penal exige, no entanto, que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais; tal exige que a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal seja particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário; além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.
IV - Resultando as presunções de facto - judiciais, naturais ou “hominis” –, de regras da experiência comum, havendo uma falha evidente na utilização de uma presunção judicial ou natural que resulte do texto da fundamentação de uma decisão da matéria de facto, tal corporiza um erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, 2, c), do C.P.P.).»

No caso vertente, o Tribunal a quo, recorrendo ainda ao acervo de prova documental e testemunhal que aponta na motivação, e cujos depoimentos são esquecidos pelos recorrentes, que os não especificam para efeitos da presente impugnação, fundamentou adequadamente a conclusão probatória adotada, a razão da dedução do facto provado perante a ocorrência de outros factos básicos correlacionados com o facto probando cujo conhecimento lhe adveio daqueles meios probatórios.
Improcede, nesta parte, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

- Impugnação concernente aos pontos 7 e 15 a 18 da matéria de facto provada:

Consta dos pontos 7 e 16 a 18 dos factos considerados provados no acórdão recorrido:
7. Dos Estatutos revistos da Fraternidade Missionária ..., aprovados em 3 de Junho de 2014, consta:
- art. 1º: “A Fraternidade Missionária ..., nasceu como União das Irmãs Missionárias ...-
- Art. 2º: A Fraternidade Missionária ... é uma Associação Pública de Fieis, ereta em pessoa jurídica canónica pela Autoridade competente, com Estatutos aprovados em 24 de Janeiro de 1978;
- Art. 4º: Os objetivos da Fraternidade Missionária ... são:
· Consagrar-se totalmente, no ser e no ter, aos jovens como principal e fundamental meio de apostolado.
· Dedicar-se a uma vida de piedade, intimidade e amizade com Deus, através da oração e testemunho de espirito, num carisma de fraternidade contemplativa na ação;
· A salvação do Mundo Jovem pela conversão e orientação para cristo, ajudando a descobrir e viver a extraordinária riqueza da sua vocação cristã, em qualquer dos estados de vida ou perfeição cristã.
· Consagrar-se a um verdadeiro movimento de conversão cristã dos jovens, desejando corresponder a um generoso primeiro passo, na sua consciente e cada vez mais crescente realização cristã, por uma vida apostólica incarnada e vivida no seu meio ambiente próprio, tanto familiar, como social, religioso e vocacional, através das suas atividades próprias.
· Assumir a vida contemplativa como expressão máxima da consagração, tendo apenas como intenção fiel a salvação dos jovens;
· Manter atividade própria e especifica: organização e realização de cursos especializados (cursos de conversão, cursos de orientação para a vida), convívios de oração, intimidades, Betânias, sessões culturais ou artísticas.
· Realizar edições de carater formativo e informativo sem fins lucrativos;
· Visitar todas as cadeias de Portugal, em espirito de missão evangelizadora, dando apoio aos mais carenciados sobretudo os jovens vitimas do flagelo da droga;
· zelar pelo património da instituição;
Art. 14: Os membros dos corpos gerentes são responsáveis perante a lei eclesiástica e estatal, civil e criminalmente, pelas faltas ou irregularidade cometidas no exercício do mandato
(…)”
15. A instalação que constituí a sede, quer da Fraternidade, quer do Centro Social de Apoio e Orientação ... é constituída por mais de 20 compartimentos, possui 8 quartos, uma Capela, uma tipografia, uma sala denominada de “...”, a Capela denominada de “Capela da Clausura”, composto por várias bouças, com 4800 m2, 7200 m2 e 30.700m2 e um jardim.
16. Porém, nenhuma das pessoas jurídicas canónicas atrás mencionadas é considerada uma congregação religiosa, mas apenas associação publica de fiéis e Fundação, respetivamente, ambas geridas pelos arguidos AA, BB, CC e DD à margem da igreja Católica, pelo menos até 2014.
17. Apesar de se apelidarem como “irmãs”, de envergarem o hábito, as arguidas, na realidade não são freiras pois não têm votos reconhecidos pela igreja Católica.
18. Desde a constituição da arguida e até ao dia ../../2016, os arguidos AA, BB, CC e DD foram os representantes legais e de facto da IPSS, bem como da Fraternidade Missionária ..., aos quais competia gerir entre si toda atividade das instituições, desde a organização, planeamento e atribuição de tarefas até às exigências “espirituais” que impunham.”

Sem que coloquem especificamente em causa o conteúdo do ponto 7 dos factos provados, que reproduz parcialmente o teor dos Estatutos revistos da Fraternidade Missionária ..., aprovados em 3 de Junho de 2014, pretendem os recorrentes que seja eliminada dos factos provados a matéria de facto constante do ponto 16 e 17 referente à natureza das duas instituições em causa e à não consagração das arguidas como “freiras”, por considerarem, em súmula, por um lado, que a Fraternidade Missionária e o Centro Social eram, desde a sua criação, congregações religiosas e, por outro lado, que os votos realizados pelas noviças, ora ofendidas/assistentes, em cerimónias presididas pelo Padre AA ou pelo Arcebispo Emérito da Diocese de ..., com conhecimento ou autorização do Bispo então em exercício de funções, são válidos e, como tal, conferem àquelas o estatuto de consagradas (“freiras”).
Cremos que não pode vingar esta pretensão recursória.
Nenhum dos meios probatórios a este propósito invocados pelos recorrentes determina que seja dado como provado que a Fraternidade Missionária ... e, muito menos, o Centro Social de Apoio e Orientação ..., são congregações religiosas e que as noviças tinham votos reconhecidos pela Igreja Católica.
Das declarações prestadas pela testemunha VV (na sessão de audiência de julgamento de 14.01.2022) – Arcebispo Emérito de Évora –, transcritas pelos recorrentes, ressuma que a vivência em comunidade realizada pelas arguidas e pelas noviças na Fraternidade, assim como a realização de votos de castidade, obediência e pobreza e recebimento do hábito justificam e tornam compreensível o tratamento de irmãs que dispensavam entre si, bem como a circunstância de se verem a si próprias como “freiras”.
Contudo, como explicado igualmente pela testemunha, de modo isento e credível, os preditos votos apenas são reconhecidos pela Igreja Católica se produzidos em cerimónia presidida por um sacerdote autorizado pela autoridade eclesiástica competente, pelo próprio Bispo ou Arcebispo da respetiva Arquidiocese ou Diocese, ou, ainda, por bispo ou arcebispo emérito com prévia autorização do que esteja em exercício de funções ou desde que a este seja comunicada a intenção de praticar o ato, com implícita aprovação caso não haja oposição. Caso não ocorram estes pressupostos, a cerimónia de atribuição dos votos será nula, não gerando efeitos.
Sucede que, o depoente não tinha efetivo conhecimento sobre se as cerimónias de realização dos votos alegadamente presididas pelo Arcebispo Emérito D. PP ou pelo Padre AA dispunham de prévia autorização para o efeito do então Arcebispo da Diocese ... (D. NN) ou, sequer, se este teve oportuno prévio conhecimento do facto mediante as necessárias comunicações.
Por outro lado, a testemunha D. NN (Arcebispo de ... de 1999 a fevereiro de 2022), prestou depoimento em que negou ter tido conhecimento ou concedido autorização ao Padre AA ou ao Arcebispo Emérito D. PP para que celebrassem, em nome da Diocese/Igreja Católica as mencionadas cerimónias de consagração das noviças.
Pode-se tomar como duvidosa a assertividade de parte daquelas afirmações, visto que a testemunha, pelo invocado conhecimento que possuía da retidão do D. PP enquanto pessoa e sacerdote, não conseguia admitir a possibilidade de o mesmo ter presidido a cerimónias solenes de votos sem lhe ter pedido autorização, quando é certo que decorre de outras declarações e depoimentos, de modo suficientemente seguro, que ele terá efetivamente encabeçado tais solenidades.
Porém, como supra se expendeu, a eventualidade de viabilidade desta versão alternativa dos factos não permite, por si só, considerar mal julgada a matéria de facto em apreço, pois que para tanto era necessário que a prova produzida impusesse, pela sua própria natureza ou teor ou em conjugação com as regras de experiência comum, decisão diversa, no caso que as arguidas e/ou as noviças tinham realizado votos reconhecidos pela Igreja Católica, o que não sucede.
Segundo as declarações prestadas pelo Padre QQ, representante legal do Centro Social de Apoio e Orientação ..., inexistiam documentos comprovativos da realização das alegadas cerimónias, cuja ocorrência o declarante desconhecia.                                        
Note-se também que a existência na Fraternidade Missionária de documento consubstanciador do Ritual de Tomada de Hábito da Irmãs (junto a fls. 15 a 18 do Anexo I), de teor em tudo semelhante à consagração religiosa católica, que se admite fosse o adotado nas celebrações de realização de votos, não basta para conferir validade formal a estes, capaz de lhes conceder o reconhecimento da Igreja Católica, porquanto, como acima se referiu, para isso era necessário que a entidade religiosa que presidisse à cerimónia dispusesse dos respetivos poderes para o efeito, diretamente pela sua condição de representante da Diocese ... ou porque autorizado por esta, expressa ou implicitamente, uma vez conhecedora do ato.
Ademais, a asserção constante do ponto 16 “à margem da igreja Católica, pelo menos até 2014”, contra a qual também se insurgem os recorrentes, mostra-se conforme à prova produzida, devendo ser entendida como significando que a gestão da Fraternidade Missionária e do Centro Social era conduzida pelas respetivas Direções sem interferência direta da Arquidiocese ..., que não dispunha, pelo menos até então, de acordo com o direito canónico, de poder regulador sobre as ditas instituições.
No que tange à imputação a todos os arguidos da gestão das sobreditas instituições, desde a data das respetivas constituições e até ao dia ../../2016 (pontos 16 e 18), observa-se que os recorrentes CC e AA, na impugnação que encarreiram àquela factualidade, limitam-se a alegar que a mesma foi mal julgada pelo Tribunal a quo, devendo, por isso, ser considerada como não provada, remetendo “para a apreciação aos Factos em 13.º, 7.º, 16.º e 17.º”.
Ora, a alegação genérica operada não tem potencial para inverter a decisão da matéria de facto neste conspecto tomada pelo Tribunal a quo, desde logo porque, nos termos supra expostos, igualmente não colheram os argumentos aduzidos pelos recorrentes com vista à alteração do decidido nos pontos 7, 13, 16 e 17 da factualidade apurada, a qual se manterá inalterada. Diga-se, aliás, que aqueloutra matéria de facto, na parte impugnada e já apreciada, não se relaciona com a titularidade do exercício da gestão das instituições em causa.
Ademais, a prova produzida nos autos, designadamente a adiantada a este propósito pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, conducente ainda à especificação das funções desempenhadas pelos arguidos AA, CC e BB, como descrito no ponto 19 dos factos provados, permite a conclusão probatória extraída de que estes três arguidos, face ao teor Estatutos das pessoas jurídicas em causa, enquanto membros nomeados dos respetivos corpos gerentes, estavam incumbidos de administrarem as duas instituições. O mesmo sucedia, sob o prisma estatutário, jurídico, com a arguida DD, nomeada tesoureira da Direcção/Administração.
A prova produzida sustenta também a constatação fáctica reproduzida no acórdão de que os arguidos AA, CC e BB exerceram, de facto, conjuntamente e em simbiose, a gestão de ambas as instituições.
Ainda que não fosse este o nosso entendimento acerca do mérito desta alegação recursória, sempre estaria vedado ao tribunal ad quem aditar matéria de facto aos pontos provados por força da impugnação ampla prevista no art. 412º do CPP, porquanto, vinca-se, esta ferramenta legal de oposição à decisão não serve o propósito de amplificar a factualidade que conforma o objeto do processo resultante, no essencial, do teor do libelo acusatório e da defesa plasmada nas contestações deduzidas. A contestação dirigida à decisão sobre a matéria de facto há-de tão-só visar a factualidade que consta do elenco dos factos provados e/ou não provados, promovendo a sua inclusão e/ou afastamento de algum ou alguns dos respetivos pontos.
Se os recorrentes entendiam que a matéria de facto que ora pretendem ver aditada ao ponto 16 dos factos provados era essencial para a decisão a tomar pelo tribunal de primeira instância, incluindo acerca da (i)licitude do facto e/ou da sua culpabilidade, deveriam antes ter alegado a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no art. 410º, nº2, al. a), do CPP. Não o fizeram nem se descortina ex officio a verificação deste vício.
O mesmo vale, mutatis mutandis, para a inconsequente impugnação dirigida ao ponto 15.
Alega a recorrente DD que este facto (nº 15) vai impugnado “por não retratar a específica localização do espaço que integra a Fraternidade Missionária, Rua ..., ..., ..., tal como resulta do Auto de diligência externa realizado pela Polícia Judiciária a 16/10/2015, e constante de fls. 127, do Vol. I.”. Ora, olvida a recorrente que esse facto, atinente à morada da Fraternidade, já consta como provado no ponto 1, parte final.
Distintamente, não tem acolhimento na prova produzida, nomeadamente de cariz documental (estatutos da Fraternidade Missionária e do Centro Social), o juízo probatório realizado pelo Tribunal recorrido, vertido no ponto 18 dos factos provados, de que todos os arguidos representavam legalmente a Fraternidade e Centro Social, uma vez que decorre dos respetivos estatutos que a representação perante terceiros de cada uma destas instituições cabia unicamente ao Presidente do respetivo Conselho de Administração ou Direção, cargos exercidos durante o período temporal em questão pelos arguidos AA e CC – cfr. documentos de fls. 27 a 52, 54, 56 a 65, 93 a 106, 108 a 127 e 132 a 145 do Anexo I.
De igual modo, julgamos merecer acolhimento nesta parte o recurso interposto pela arguida DD.
Cremos que a prova por declarações e testemunhal produzida em audiência de julgamento a propósito das funções efetivamente exercidas pela arguida DD não autoriza a conclusão extraída pelo Tribunal a quo de que ela também geria a atividade da Fraternidade e do Centro Social.
Conforme consta provado no ponto 19, em consonância com a motivação aventada pelo Tribunal recorrido, a arguida DD auxiliava nas tarefas. Diferentemente do que sucedia com os demais arguidos, aquela não estava incumbida de dirigir nem dirigia qualquer atividade associada às vertentes materiais ou espirituais das pessoas jurídicas em questão. Aliás, não obstante a arguida DD se encontrar estaturiamente indicada e juridicamente provida como tesoureira daquelas coletividades, na prática as respetivas funções atinentes à área financeira eram exclusivamente exercidas pela coarguida CC.
Destarte, nos termos conjugados dos arts. 412º, nº3 e 431º, al. b), ambos do CPP, urge proceder à modificação da decisão da primeira instância sobre matéria de facto constante dos pontos 16 e 18 dos factos provados, de modo a refletir as apuradas circunstâncias de que a arguida DD não exercia de facto a gestão de qualquer das instituições, bem assim que os únicos arguidos que exerceram funções de representação legal destas foram AA e CC, nos períodos em que, nos termos estatutários, foram titulares dos cargos de Presidente do Conselho de Administração e da Direção, respetivamente.

Assim, o ponto 16 passará a conter a seguinte redação:
16. Porém, nenhuma das pessoas jurídicas canónicas atrás mencionadas é considerada uma congregação religiosa, mas apenas associação pública de fiéis e Fundação, respetivamente, ambas geridas pelos arguidos AA, BB e CC, à margem da igreja Católica, pelo menos até 2014.”

A redação do ponto 18 é alterada para os seguintes termos
18. Desde a constituição da arguida e até ao dia ../../2016, os arguidos AA e CC foram os representantes legais e de facto da IPSS, bem como da Fraternidade Missionária ..., aos quais competia gerir entre si toda atividade das instituições, conjuntamente com a arguida BB, desde a organização, planeamento e atribuição de tarefas até às exigências “espirituais” que impunham.”

Do supra exposto ressuma ainda que não pode merecer acolhimento a subsidiária pretensão dos recorrentes de que seja aditada factualidade ao ponto 16 dos factos provados de modo a integrar a convicção dos arguidos de que integravam uma congregação religiosa, por toda a essência dos hábitos e tomada de votos de duas noviças pelo Arcebispo Emérito de ....
Desde logo porque os recorrentes não invocam qualquer passagem de declarações prestadas pela arguida BB, única que falou em audiência de julgamento, em que a mesma tivesse alegado tal circunstancialismo nem a sua verificação, por parte dela ou dos demais arguidos, se impõe por via da audição dessas declarações, bem assim da restante prova por declarações ou testemunhal produzida em audiência.
Acresce que, sendo os arguidos membros de órgãos de gestão das pessoas jurídicas canónicas em apreço, tendo nelas exercido efetivas funções diretivas (com exceção da arguida DD) e, no caso dos arguidos AA e CC, com intervenção direta nas conversações/negociações com as autoridades eclesiásticas competentes no contexto da aprovação dos estatutos, não é crível que os arguidos possuíssem o alegado convencimento de que integravam uma congregação religiosa, dado que não deveriam desconhecer que tal hipótese implicava que os votos dos integrantes da comunidade fossem ministrados e reconhecidos pela igreja Católica, representada pela Arquidiocese ..., o que não se comprova ter sucedido.
Ainda que não fosse este o nosso entendimento acerca do mérito desta alegação recursiva, sempre estaria vedado ao tribunal ad quem aditar matéria de facto aos pontos provados por força da impugnação ampla prevista no art. 412º do CPP, porquanto, vinca-se, esta ferramenta legal de oposição à decisão não serve o propósito de amplificar a factualidade que conforma o objeto do processo resultante, no essencial, do teor do libelo acusatório e da defesa plasmada nas contestações deduzidas. A contestação dirigida à decisão sobre a matéria de facto há-de tão-só visar a factualidade que consta do elenco dos factos provados e/ou não provados, promovendo a sua inclusão e/ou afastamento de algum ou alguns dos respetivos pontos.
Se os recorrentes entendiam que a matéria de facto que ora pretendem ver aditada ao ponto 16 dos factos provados era essencial para a decisão a tomar pelo tribunal de primeira instância, incluindo acerca da (i)licitude do facto e/ou da sua culpabilidade, deveriam antes ter alegado a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no art. 410º, nº2, al. a), do CPP. Não o fizeram nem se descortina ex officio a verificação deste vício.
Numa segunda hipótese, no caso de os recorrentes estarem convencidos de que tinham alegado aquele circunstancialismo fáctico na sua defesa, escrita ou por declarações verbais prestadas/examinadas em audiência – o que não sucedeu –, sem que o Tribunal a quo o tivesse integrado na matéria de facto provada ou não provada, então estaríamos perante uma eventual nulidade do acórdão recorrido por ormissão de pronúncia sobre questão de que devia conhecer (cf. art. 379º, nº1, al. c), do CPP), invalidade que, contudo, não foi por eles arguida nem este Tribunal superior vislumbra verificada.
Pelas preditas razões, que nos dispensamos de reproduzir, há-de igualmente improceder a peticionada inclusão no ponto 17 dos factos provados, após a matéria ali vertida, da asserção “apesar de as mesmas estarem convictas que o são.” (freiras).
Assim, não obstante se reconheça relevância à factualidade ora alegada pelos recorrentes, dado que a mesma pode influir, entre o mais, na percepção probatória sobre a existência ou não de coação nas atividades desenvolvidas diariamente pelas queixosas, noviças, ou se as mesmas eram realizadas por estas conciente e voluntariamente no convencimento de que, enquanto “freiras”, estavam a “servir a obra de Deus”, a questão será infra apreciada no âmbito da impugnação dirigida pelos recorrentes aos pontos da matéria de facto provada que se conexionem com a mencionada fundamentação recursiva.                 
        
- Impugnação quanto aos pontos 20 a 24 da matéria de facto provada:                
É a seguinte a factualidade dada como provada nos pontos em apígrafe:     
“20. Assim, os arguidos AA, BB, CC e DD, desde a constituição da IPSS e da Fraternidade, em conjugação de esforços e vontades, idealizaram um esquema, um embuste que redundava em servirem-se do Carisma/Ideário da Fraternidade, para angariar jovens tementes a Deus e convencidas da sua vocação religiosa, para forçar estas a exercerem contrariadas, todas as tarefas diárias exigidas para a conservação e manutenção das instalações propriedade do Centro Social, sem qualquer contrapartida financeira, mediante a implementação de um clima de terror, que lhes foi coartando, ao longo do tempo, qualquer capacidade de reação, utilizando-as como mera força de trabalho e, por essa via, beneficiando patrimonialmente o Centro Social, na modalidade de poupança de despesas.
21. Os arguidos tinham como alvo jovens de raízes humildes, com poucas qualificações ou emocionalmente fragilizadas e com pretensões a integrarem uma comunidade espiritual de raiz católica, piedosas e tementes a Deus.
22. Deste modo, conforme plano previamente por todos gizado, sempre que jovens com o referido perfil visitavam as instalações da arguida ou aí permaneciam por alguns dias para auxiliar em tarefas da Fraternidade, em regime de voluntariado, os arguidos afirmavam que tinham sido escolhidas por Deus, convencendo-as que deviam escolher a vida religiosa, pois que caso negassem as suas vocações daí advinham castigos “divinos”, problemas familiares, mortes na família.
23. Mais lhes transmitiam que se fossem infiéis a Deus tal traria igualmente consequências para a eternidade.
24. Para assegurar os seus intentos, no período temporal desde pelo menos 05 de Dezembro de 1985 até ao início do ano de 2015, os arguidos AA, BB, CC e DD, em conjugação de esforços e vontades, puseram em concretização o esquema previamente delineado e, individualmente e em conjunto, no interior das instalações da arguida, perpetraram, diariamente, várias agressões físicas, injúrias, pressões psicológicas, tratamentos humilhantes, castigos, trabalhos pesados, escassez de alimentação, negação de cuidados médicos e medicamentosos e restringimento da liberdade sobre as jovens que angariavam e aí residentes.”

Concordamos com os recorrentes quanto à apontada ausência de prova de que o ingresso e permanência das ofendidas no Convento de ..., na Fraternidade Missionária ..., foi determinada ou seriamente influenciada por um embuste, um engano criado pelos arguidos, que falsamente lhes incutiram um sentimento de vocação para a vida religiosa e que, concomitantemente, aqueles, concumunados, visando transformá-las em mera força de trabalho, as sujeitaram a um clima de terror tal que elas, atemorizadas, perderam completamente a sua capacidade de reagir e, como tal, limitavam-se a executar gratuitamente trabalhos excessivos, desumanos, para permitir que a direção do Centro Social obtivesse vantagem económica, no caso, por poupança de despesas, dado que não tinham de contratar para execução daquelas tarefas trabalhadores remunerados.
No que tange à suposta “angariação” das noviças e entrada forçada destas na Fraternidade, invoca o Tribunal a quo na motivação o depoimento da testemunha OO, que ali ingressou em ../../1974 e saiu em 18/02/1998, referindo que pela mesma foi dito que os arguidos Padre AA, CC e BB a pressionaram e forçaram a entrar na Fraternidade a pretexto de que se não entrasse não a receberiam no magistério e que se não fosse naquela altura já não a recebiam. Mencionou que teve medo de ser infiel a Deus e aceitou.
É imprescindível notar que a mencionada motivação não corresponde integralmente ao que foi dito pela testemunha, porquanto esta excluiu a arguida BB da narrada intervenção para pressioná-la a entrar para a Fraternidade, até porque, naquela altura, aquela arguida ainda não fazia parte da mesma – cf. gravação do depoimento prestado em audiência de julgamento no dia 11/10/2021, disponível no sistema citius-media studio, minutos 03:17 a 05:15. 
Acresce que, salvo o devido respeito, as sobreditas declarações não consubstanciam qualquer influência negativa ou imprópria dos mencionados três arguidos no convencimento da depoente para ingressar no convento, muito menos qualquer logro ou ameaça de afetação de interesses legalmente protegidos.
Em primeiro lugar, cumpre não perder de vista que se tratando inequivocamente a obra em causa de uma Fraternidade, caracterizada pela vida em comunidade de pessoas que desejam, em regime de clausura, ausência de riqueza e materialismo e, mediante o seu esforço e trabalho coletivo, serem praticamente autosuficientes e dedicarem a sua existência à realização do desígnio e ensinamentos divinos, é óbvio que à Direção da Instituição competia empenhar todos os esforços para concencerem as potenciais interessadas, necessariamente crentes de Deus e predispostas a “servi-lo”, de que possuíam vocação religiosa e que deviam exercê-la. E quantas mais melhor, pois assim a Fraternidade ganharia visibilidade e prestígio na comunidade, civil e religiosa, e, simultaneamente, não se olvida, a indispensável força de trabalho, pois que aquele estilo de vida conventual implicava a realização de várias, vastas e árduas tarefas. Nenhuma das pessoas inquiridas referiu - nem isso se apresentaria como verosímil, face as regras de experiência comum -, que a necessidade de trabalhar no convento, de modo gratuito, tivesse sido uma surpresa.
Dito isto, cumpre adiantar que não se compreende porque razão a testemunha se sentiu pressionada para entrar na Fraternidade, pois que ela também declarou que quando visitou o convento já estudava no magistério, faltando-lhe dois meses para acabar os estudos, pelo que não se percebe como estaria impedida de retomar aquela atividade. Ademais, se os arguidos estivessem unicamente empenhados em “angariar” noviças para “escravizar” nenhuma vantagem teriam em pressionar a testemunha a ingressar naquela altura, referindo-lhe que mais tarde já não iria ser possível ser acolhida, circunstância que podia “afugentá-la”; ou seja, se atuassem movidos por aquela intenção, qualquer ocasião seria boa para obterem uma “serva”.
Aliás, a depoente admitiu que já sentia vocação para ser freira ainda antes de os arguidos AA e CC lhe transmitirem essa ideia. 
Acresce que o nosso ordenamento jurídico em geral e o crime de escravidão em apreço, que implica efetiva coartação, em várias vertentes, como seja a de exercício do livre arbítrio e decisão e/ou de movimentação, não protege “crendices”, superstições ou genuínos, admite-se, mas injustificados, crédulos receios de castigos divinos. Se a depoente teve, como admitiu, medo de ser “infiel a Deus”, então cabe concluir que foi ela que se auto-atemorizou. Ao mesmo tempo, o seu depoimento atesta que ela, como as demais noviças – como infra explicaremos –, queria muito “servir” Deus e fazê-lo no contexto próprio de um convento, de uma comunidade religiosa, com prestação de votos, o que, obviamente, representa uma voluntária sujeição ao cumprimento das regras vigentes na Fraternidade, algumas delas potencialmente restritivas da respetiva individualidade/emancipação.
Ainda no domínio do depoimento prestado por esta testemunha, na parte em que foi valorado como credível e invocado pelo Tribunal de primeira instância na fundamentação para justificar a conclusão probatória de que o clima de terror implementado pelos arguidos AA, CC e BB, mediante agressões físicas e pressão psicológica, restringia totalmente a capacidade de reação das noviças, impedindo-as de abandonarem livremente o convento, julgamos, salvo melhor opinião, que o declarado pela depoente, apreciado na sua globalidade e em conformidade com as regras da experiência comum e da lógica, não permite formular esse juízo.
Com efeito, a testemunha OO mencionou que cerca de dois ou três anos após ter ingressado na Fraternidade (em ../../1974) começou a ser vítima de diversas agressões físicas, inicialmente perpetradas pelo padre AA e pela CC e mais tarde pela BB, que era muito cruel.
Acrescentou que quando dizia que queria embora era agredida e insultada por aqueles três arguidos. Quem saía apanhava muito e imputavam-lhe má fama, o que as impedia de entrar noutras congregações religiosas. Uma ocasião, tentou sair à noite, à vista dos arguidos, mas foi insultada por todos (“filha da puta”, “monte de merda, “inútil”, “infiel”). Referiu também que no dia em que saiu (18/02/1988) os arguidos AA, CC e BB lhe bateram com “as cordas” (ficou “toda negra”), mas manteve a sua predisposição para abandonar a instituição e nunca mais ali regressou - na motivação aduzida pelo Tribunal recorrido sublinha-se que todos os arguidos a agrediram, o que pode inculcar a falsa ideia de que a arguida DD também participou nessa agressão, o que, segundo a depoente, não sucedeu. Depois de ter estado um mês em casa, entrou para outra congregação, onde ainda permanece – cf. gravação do depoimento disponível no sistema citius-media studio, minutos 13:50 a 14:20. 
 Explicitou que no dia em que resolveu abandonar o convento disse aos arguidos AA, CC e BB: “já me podem bater o que quiserem que hoje mesmo saio desta casa”, desiderato que concretizou apesar das agressões que sofreu, tendo saído à noite, com o conhecimento dos arguidos – cf. gravação do depoimento disponível no sistema citius-media studio, minutos 15:03 a 15:12. 
Ou seja, decorre do depoimento da testemunha OO que os maus tratos físicos e psicológicos por si sofridos não eram de molde a impedir que quem quisesse abandonar o convento, por sua iniciativa, o fizesse.
Tanto mais que a testemunha também adiantou que durante o período em que permaneceu na Fraternidade, outras treze noviças saíram (ela foi a 14ª), facto que reportado a uma quantidade considerável de pessoas não se coaduna com a ideia de uma pretensa “fortaleza” em que as irmãs estivessem, inapelavelmente, cativas. 
Aliás, como infra veremos, as restantes ofendidas que lograram abandonar voluntariamente o convento não sofreram agressões físicas ou, pelo menos, não de modo adequado a obstar que elas deixassem o local pelos seus próprios meios.
Por outro lado, a testemunha OO asseverou que os responsáveis da Fraternidade Missionária “sempre foi o Padre AA, a CC e a BB” – min. 05:20 a 05:28; “a DD era uma de nós, como qualquer uma de nós (…) a DD tinha a 4ª Classe, normal e corrente” – min. 05:29 a 05:50. Reforçando adiante: “A irmã DD era uma igual que eu, era uma igual que eu (…) e apanhou muito, muito, muito, muito dos três” – 01h14m36s a 01h14m41s e 01h15m a 01h15m22s.
No que tange às declarações prestadas em audiência de julgamento pela Assistente II que são invocadas pelo Tribunal a quo neste conspecto, urge notar que a declarante disse coisas diferentes das que o Tribunal apreendeu e fez constar da motivação. Assim, como também notam os recorrentes face às passagens transcritas, não foi a BB que abriu um dos livros à sorte e começou a ler um segmento no qual Jesus dizia “Chamei-te”; foi sim a ofendida EE (EE) quem aconselhou à ora Assistente a leitura do livro “A verdadeira vida em Deus”, que era um livro da Vassula, o qual, tendo sido aberto “ao calhas” pela declarante, veio a revelar a palavras “Chamei-te”, o que a fez convencer-se de que tinha vocação religiosa e a querer ficar no convento – cf. gravação das declarações prestadas na sessão de audiência de julgamento do dia 14/06/2021, disponível no sistema citius-media studio, minutos 03:01 a 04:04. 
Ou seja, ressuma das suas próprias declarações da ofendida II que não existiu atuação dos arguidos para, propositadamente, conduzir ao engano da ofendida quanto à sua vocação e ingresso na Fraternidade.
Por outro lado, exsuda dessas mesmas declarações, como vertidas pelo Tribunal recorrido na fundamentação da decisão de facto quanto à matéria de facto que deu como provadas nos pontos 22 e 23 (31 e 32), respeitante ao doutrinamento que fazia parte integrante do plano traçado pelos arguidos para, alegadamente, forçarem as noviças a se manterem na instituição, onde eram exploradas pelos arguidos, ao nível laboral, que, no fundo, era a fé religiosa das ofendidas, o temor de castigos divinos dirigidos a si e/ou aos seus familiares que lhes manietava a liberdade de decisão e de atuação, designadamente quanto ao se recusarem a realizar todas as tarefas que lhes eram atribuídas, muitas delas abusivas do ponto de vista da sua condição física, a suportarem maus tratos físicos e písiquicos que lhes eram infligidos, e as impedia, a final, de saírem da Fraternidade.
Na verdade, II declarou que ainda hoje, quando os pais estão doentes, ela sente-se culpada por ter fugido do convento, por causa da doutrina que absorveu. Quando encentou a fuga tinha medo de ser apanhada porqua a BB lhe dizia: “se saíres daqui vais para o inferno, a tua família vai ser condenada.”
Ora, não olvidamos que a fé religiosa deve ser respeitada enquanto característica individual de cada cidadão, na sua componente espiritual. Contudo, esse grau de respeito é exatamente o mesmo que numa sociedade laica e democrática como aquela em que nos inserimos, num estado de Direito como é o Português, se impõe ter pelos não crentes. Daí que, reitera-se, o nosso ordenamento jurídico, na sua globalidade, incluindo na vertente penal, não protege especificamente os direitos de quem, acreditando piamente numa entidade divina, superior aos Homens, neste caso em um Deus católico, se auto limita, coarcta no livre exercício dos seus direitos legal e constitucionalmente consagrados, por receio de condenações celestes.
O princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, significa que «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei», pelo que «ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de (…) religião.»   
O prenúncio de concretização de um mal divino não faz parte do elenco de “ameaças” suscetíveis de encarnarem o anúncio de um mal futuro relevante, atendível, capaz de condicionar, adequadamente, o livre arbítrio humano, sob pena de o Direito estar a conceder proteção a meras crenças, superstições, casualidades, no fundo a factores insuscetíveis de comprovação científica, pelo menos até à data.
Resumindo: a atuação do agente causalmente condicionante do exercício da liberdade da vítima, ao ponto de praticamente a excluir, tornando esta um “escravo”, alguém desprovido de direitos, deve ser aquilatada objetivamente, segundo parâmetros hodiernos e comprováveis, válidos em relação a qualquer pessoa humana, independentemente das suas convicções religiosas ou quaisquer outras particularidades como ser excecionalmente ingénua ou timorata.
Distintamente, numa análise necessariamente casuística, pode e deve ser valorada uma eventual dependência económica da vítima face ao agente, o padecimento por parte do sujeito passivo de inimputabilidade ou imputabilidade acentuadamente diminuída ou, mesmo, uma especial vulnerabilidade do ofendido fundada em outra causa (o que, como infra se verá, não ocorre no caso vertente).            
Também assiste razão aos recorrentes quando alegam que das declarações da Assistente GG não decorre que a mesma tenha sido pressionada por qualquer dos arguidos para ingressar na Fraternidade, muito menos de modo indevido. Contrariamente, decorre das suas declarações que a entrada na Fraternidade se tratou de uma decisão absolutamente livre e ponderada, tendo a Assistente explanado que nos dias em que esteve na instituição, a título “experimental”, gostou do ambiente, do modo em que decorria a vida em comunidade entre as irmãs, e, nessa sequência, também incentivada pela irmã HH, porque estava a sentir-se cada vez mais desinteressada dos estudos e se atravessava uma data bonita, pois era na altura da Anunciação de Nossa Senhora, ela sentiu que Deus a queria ali e quis ficar – cf. gravação das declarações prestadas na sessão de audiência de julgamento do dia 14/07/2021, disponível no sistema citius-media studio, minutos 00:22 a 01:15 e 01:30 a 02:27. 
Ademais, distintamente do que expõe o Tribunal a quo na motivação, não concedemos relevo negativo ao declarado pela Assistente GG de que após ingressar na Fraternidade se apercebeu de que deviam angariar jovens e de que começou a ser insultada por não incentivar as vocações. Antes tomamos como usual, corrente, razoável o procedimento de uma Fraternidade deste tipo, que se carateriza pela vida em comunidade de pessoas com vocação religiosa e até executa serviços externos de apoio espiritual a pessoas carenciadas, de desejar recrutar novos membros e atuar em conformidade com esse desiderato procurando convencer as jovens interessadas da sua inerente vocação.         
De igual modo, ouvidas as declarações originária e espontaneamente prestadas pela Assistente JJ em audiência de julgamento a propósito do circunstancialismo em que ingressou na Fraternidade, não se vislumbra qualquer ardil, pressão ou intimidação exercidos pelos arguidos que tivesse determinado, sequer influenciado, a sua entrada na congregação.
Antes referiu a Assistente, resumidamente, que ficou bem impressionada com os arguidos Padre AA, CC e BB quando os conheceu na Ilha ... aquando de uma visita que eles fizeram a pessoas ali reclusas. Nessa ocasião, tinha saído de casa dos pais porque quis abandonar os estudos e começar a trabalhar; encontrava-se a trabalhar num bar e vivia em casa da patroa. Foi então convidada a visitar a Fraternidade no continente e resolveu deslocar-se aqui para passar uns dias. Como foi bem-recebida e gostou do ambiente, decidiu ficar – cf. gravação das declarações prestadas na sessão de audiência de julgamento do dia 01/06/2021, disponível no sistema citius-media studio, minutos 01:45 a 03:58 e 04:00 a 05:04. 
Os recorrentes transcrevem ainda um único trecho das declarações prestadas em audiência de julgamento pela Demandante Civil FF, em que refere que “quem mais insistiu para que ela ficasse foi a BB”, defendendo que a declarante não mencionou os demais arguidos como a tendo “pressionado” para ingressar na Fraternidade.
Na fundamentação da decisão da matéria de facto constante do acórdão recorrido, no que tange à factualidade dada por provada nos pontos 20 a 22 relativa ao modo como os arguidos, agindo em conluio, “angariavam” as noviças, diz-se, por referência às declarações prestadas em audiência de julgamento pela ofendida FF: «Os arguidos foram dizendo que tinha vocação e antes de ir ter com os pais, a BB disse que devia ficar e ficou. BB abria o livro à sorte e lia “Fica Comigo” e a declarante interpretava como sendo um chamamento divino. Nesses dias ficou convencida a ficar lá, que tinha vocação; ia lendo passagens de livros a dizer que Deus estava a chamar, foi ficando e convenceram-na a ficar.» 
Tais alegadas declarações correspondem, no essencial, ao que a Demandante disse, embora o Tribunal recorrido, uma vez mais, proceda a uma generalização da atuação de todos os arguidos quando a declarante asseverou mais do que uma vez – precisamente a instâncias da Mma. Juíza Presidente do tribunal coletivo – que quem procedeu do modo descrito foi principalmente a arguida BB. Nenhuma referência concreta é feita aos demais arguidos. Acresce que a demandante não disse que era a arguida BB quem abria o livro à sorte, mas sim a própria declarante. Esta acrescentou que, para além desse convencimento de que possuía vocação e tinha sido chamada por Deus para permanecer na Instituição, foi motivada pela circunstância de anteriormente, a convite das irmãs, ter feito ali uns retiros de uns dias e de, esporadicamente, ter ajudado na realização das publicações, tendo apreciado bastante o ambiente vivenciado e as tarefas desempenhadas – cf. gravação das declarações prestadas na sessão de audiência de julgamento do dia 21/09/2021, disponível no sistema citius-media studio, minutos 00:50 a 02:54, 03:53 a 05:45, 06:06 a 06:54, 07:48 a 09:33 e 09:45 a 10:22.  
Compulsadas as preditas declarações não se vê que as mesmas sustentem, como pretende o Tribunal a quo, que a declarante tenha sido vítima de um logro, de um embuste praticado pelos arguidos com o único objetivo, concretizado, de falsamente a convencer de que tinha uma vocação religiosa e, por isso, levá-la integrar a Fraternidade Missionária, pretendendo aqueles apenas aproveitar-se da sua força de trabalho para enriquecer ilegitimamente ao Centro Social “acoplado” à Fraternidade.              
Por conseguinte, como os recorrentes, entendemos que a prova produzida sobre tal matéria não permite acompanhar a conclusão vertida na fundamentação de que «Perante estes depoimentos, o Tribunal convenceu-se que as jovens eram literalmente angariadas e que essa angariação fazia parte integrante do plano estabelecido pelos arguidos.»
Note-se ainda que, salvo o devido respeito, a decisão recorrida desconsidera a relevantíssima circunstância, adiantada pelas ofendidas inquiridas – conforme descrito própria motivação –, de que as noviças se sentiam no interior da instituição como irmãs, verdadeiramente consagradas como “freiras”, por essa via serventes de Deus, e aí praticavam atividades intrinsecamente associadas à adoração do Senhor, ainda que os votos por elas prestados não sejam reconhecidos pela competente entidade eclesiástica representante da Igreja Católica, o que na altura desconheciam.
Com efeito, as noviças ingressavam no convento (o local era assim tratado por elas, pelas entidades canónicas e pelos membros da comunidade geográfica onde se inseria, localizando-se até na “Rua ...”, na freguesia ..., ... – cf. auto de diligência externa da PJ junto a fls. 127 do Volume I) convictas de que iriam exercer a vocação e, efetivamente, realizavam quotidianamente, entre outras, atividades que representavam a essência da vida clerical, o serviço religioso, como é o caso de rezar o terço, o ofício litúrgico, a adoração do “Evangelho” e do “Santíssimo”, assistir a missas e ler literatura religiosa – cf. factos provados sob os nºs 35 a 39.
Como esclareceu de modo isento e credível a testemunha VV nas declarações que prestou em audiência de julgamento – sessão do dia 14/01/2022 -, transcritas em conformidade pelos recorrentes, uma das características de uma congregação religiosa é os seus membros terem uma vida em comunidade, podendo os seus membros serem chamadas de freiras, revertendo todo o trabalho de cada uma, voluntariamente e de forma gratuita, a favor da própria comunidade.
Ora, conforme expresso por todas as ofendidas, era esse o sentimento por elas vivenciado aquando do ingresso na Fraternidade Missionária ... e durante o período em que ali permaneceram, convictas de que os votos de castidade, obediência e pobreza que realizaram eram reconhecidos pela Igreja Católica e, como tal, encontravam-se devidamente “consagradas”.
Cremos ainda ser consabido, face às regras da experiência comum, que as pessoas que abraçam este tipo de vocação e integram comunidades religiosas deste jaez prestam voluntariamente trabalho em prol da congregação e de forma gratuita, não remunerada, pois que esse “fazer pelos outros” faz parte da essência da vivência religiosa comunitária. A soma do trabalho de cada membro gera em conjunto a sustentabilidade da comunidade e de cada indivíduo que a compõe. Visa-se frequentemente a autossuficiência.
Corrobora tal conclusão a circunstância de as ora Assistentes HH, EE e GG terem voltado para o convento após terem saído do mesmo, sendo que as duas primeiras ainda lá permanecem, sendo que BB é a única arguida que já não lá estava aquando do regresso das ofendidas. A HH, juntamente com a arguida CC, até foi buscar o Padre AA ao local onde se encontrava acolhido e levaram-no novamente para o convento. Tal significa que, à parte os significativos “maus tratos” a que eram sujeitas, as ofendidas entendiam que havia uma vertente religiosa das suas vidas que justificava a respetiva presença na instituição. Desejavam prosseguir a sua vocação.
Significativo é também o facto de as queixosas LL e KK terem sido expulsas da Fraternidade. Ora, afigura-se-nos óbvio que a circunstância de alguém ser expulso da instituição por não cumprir as regras da mesma ou não demonstrar a necessária vocação religiosa não se coaduna minimamente com o apregoado desígnio dos arguidos de manterem cativas as noviças com vista a explorá-las ao nível do labor a desempenhar por elas. Afinal, as portas do convento eram franqueadas para quem não cumprisse os normativos institucionais.       
Aliás, a ofendida KK declarou perentoriamente em audiência de julgamento que os portões estavam habitualmente abertos, pelo que ela (ou qualquer uma das outras pessoas) podia sair livremente das instalações da Fraternidade quando quisesse – cf. gravação das declarações prestadas em audiência de julgamento no dia 21/09/2022, disponível no sistema citius-media studio, minutos 56:05 a 56:20.
Logo, as noviças em apreço nos autos não foram angariadas pelos arguidos, enquanto dirigentes da Fraternidade e do Centro Social, para as obrigar a exercer gratuitamente e contrariadas, todas as tarefas diárias exigidas para a conservação e manutenção das instalações do Centro, assim beneficiando patrimonialmente esta entidade. Elas exerciam outras atividades, típicas da consagração devota a Deus, não tendo sido utilizadas como “mera força de trabalho”. O “clima de terror” a que foram submetidas nunca foi de molde a privá-las da sua capacidade de reação, designadamente da possibilidade de, voluntariamente, abandonarem as instalações da instituição.
Aliás, a expressão «clima de terror» deve ser desconsiderada e eliminada dos factos não provados por não encerrar matéria de facto, tratando-se antes de alegação genérica, conclusiva, desprovida de essência fáctica.

No que concerne ainda ao perfil das noviças alegadamente angariadas, descrito no ponto 21, escudou-se o Tribunal recorrido nas declarações prestadas pela arguida BB.
Assim, destaca o Tribunal que, segundo a arguida, a JJ, antes de entrar para a Fraternidade, tinha fugido de casa dos pais e dormia debaixo de uma ponte. Olvidou, porém, o Tribunal o que diretamente foi declarado por esta Assistente, referindo que antes de ter ingressado na instituição havia saído de casa de seus pais porque quis abandonar os estudos e começar a trabalhar, o que fez, como empregada de bar, passando a morar na casa da sua patroa (na Madeira). Esclareceu também que o contexto de vida em casa dos seus pais era “normal”, sem dificuldades económicas ou outras – cf. declarações prestadas pela Assistente JJ, a minutos 01:45 a 03:58.
Relativamente à Assistente GG, mencionou a arguida BB, de modo inócuo, incapaz de quanto a ela justificar a conclusão do Tribunal a quo, que era uma pessoa muito triste, difícil, fechada. Contudo, quanto a esta ofendida, tomamos apenas como relevantes as próprias palavras desta, verbalizando que à data da entrada no convento padecia de depressão. 
Quanto à Assistente II, limitou-se a arguida a referir que a mãe desta tinha saído de um convento em que esteve integrada, pelo que não se compreende o que daí intuiu o Tribunal a quo para chamar tal declaração como prova atendida para efeitos de dar como provada a factualidade descrita no ponto 21.
Por último, no que tange à ofendida LL, invoca o Tribunal recorrido, erradamente, declarações da arguida que não demonstram conhecimento direto sobre a personalidade daquela à data do ingresso na Fraternidade, mas mera reprodução de rumores, de “ouvir dizer”, cuja valoração é legalmente inadmissível (cf. art. 129º, nº1, do CPP).     
Não resulta da globalidade da prova produzida, muito menos da invocada pelo Tribunal recorrido, um padrão comum das jovens que ingressavam na Fraternidade caracterizado pela sua modesta condição socioeconomica, parcas qualificações e/ou fragilidade emocional.                                            
Além do mais, a realidade demonstra-nos que não é incomum que as pessoas que buscam a vivência clerical em comunidade, particularmente em clausura, sejam indivíduos com vidas (mais ou menos transitoriamente) desestruturadas, vácuas ou que vivenciaram eventos traumatizantes.
A decisão da matéria de facto dada como provada nos pontos 22 e 23 não surge devidamente impugnada pelos recorrentes - exceto, nessa parte com razão, como suprareferido, quanto à existência de um acordo traçado pelos arguidos para atemorizar as ofendidas com vista ao seu ingresso na instituição. Os recorrentes limitam-se neste conspecto a invocar genericamente a prova por declarações supostamente produzida em contrário, sem que, contudo, especifiquem essa prova, transcrevam uma única passagem.
Por outro lado, no que tange ao facto provado no ponto 24, defendem os recorrentes que o mesmo não consubstancia uma imputação objetiva aos arguidos, pois o que há é uma imputação genérica e conclusiva de factos, sem especificar o quê e a quem. Assim, dizem, os arguidos deparam-se com a impossibilidade de exercer o direito ao contraditório e à sua defesa.
A objecção deduzida pelos recorrentes mostra-se indevidamente operada no contexto da impugnação da matéria de facto, pois que a crítica pressupõe que o ponto 24 não contém verdadeira factualidade.
Ainda assim, sempre se dirá que assiste parcialmente razão aos recorrentes.
Com efeito, o conteúdo da primeira parte do ponto 24 até “perpetraram” corresponde a factos relevantes para o preenchimento da figura jurídica da coautoria, enquanto forma de comparticipação criminosa.
Contrariamente, as posteriores asserções vertidas no ponto 24 revelam-se genéricas, conclusivas, meros juízos de valor ou de cariz eminentemente jurídico (atenta a substância do tipo legal de crime imputado aos arguidos), ou seja, desprovidas de conteúdo factual. As atividades ali elencadas de modo indevido, porque, frisa-se, vago, indeterminado, frequência com que ocorreram e respetivos fautores, encontram-se concretizados nos pontos 27 a 42 dos factos provados e, também quanto às respetivas vítimas, nos pontos 50 a 54 (MM), 55 a 78 (EE), 79 a 85 (FF), 86 a 102 (KK), 103 a 112 (HH), 113 a 140 (GG), 141 a 163 (II), 164 a 181 (LL) e 182 a 184 (JJ) do mesmo item. 
As garantias de defesa constitucionalmente consagradas incluem o direito ao contraditório (art. 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa) e este pressupõe que ao arguido sejam imputados factos, acontecimentos naturalísticos – não conceitos genéricos ou abstratos –, a fim de lhe permitir alcançar convenientemente o objeto da acusação e se poder defender adequadamente.
Como aduzido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.07.2021, Processo nº 2/20.0GEBRG.G1, relator Armando Azevedo, disponível em www.dgsi.pt, «A necessidade de concretização e especificação dos factos imputados ao arguido, com indicação das respetivas circunstâncias de tempo e de lugar decorre, desde logo, de serem asseguradas ao arguido todas as garantias de defesa por imperativo constitucional, cfr. artigo 32º, nº 1 da CRP. Na verdade, o arguido só poderá efetivamente defender-se se puder contraditar as provas que sejam oferecidas contra ele e que o possam prejudicar. Para tanto, o arguido terá de conhecer, com o necessário rigor, os factos que lhe são imputados, descritos de forma a que não subsistam dúvidas no seu espirito sobre qual o “pedaço de vida” em discussão. Pois pior do que não poder defender-se é, à semelhança de um processo tipo kafkiano, não saber do que defender-se.»
Assim sendo, cumpre expurgar do ponto 24 as alegações que não incorporam autênticos factos, remetendo nessa parte para a concretização que é operada adiante na pronúncia, como acima exposto.       

Relativamente à coautoria assacada à arguida/recorrente DD:
Salvo o muito respeito que temos pelo entendimento lavrado no acórdão recorrido, consideramos que a globalidade da prova produzida e examinada em audiência de julgamento não permite o juízo probatório emitido pelo Tribunal recorrido de que a arguida DD gizou conjuntamente com os demais arguidos, ou a ele aderiu posteriormente, expressa ou implicitamente, o plano criminoso descrito e executado nos termos plasmados nos factos provados nºs 20 a 24.               
 Desde logo, no seguimento do acima expendido quanto às funções efetivamente exercidas por cada um dos arguidos na Fraternidade e no Centro Social, cumpre reafirmar que a arguida DD não dispunha de qualquer poder diretivo, em nenhuma área de atividade das instituições, seja financeira, vocacional, de representação ou outra.
As declarações e depoimentos prestados pelas ofendidas, que se tomam por isentos e credíveis, sugerem fortemente, senão indubitavelmente, que a arguida DD se encontrava ao nível daquelas, ou seja, sujeita às diretivas dos demais arguidos e sem domínio de facto sobre os atos que aqueles cometiam sobre as noviças, as “irmãs”.
Ressuma ainda do exposto que as pessoas que deposeram sobre a respetiva matéria, isentaram a arguida DD de qualquer conduta tendente a convencê-las erroneamente da sua fé religiosa a fim de ingressarem no convento.
Já aqui se falou no depoimento da testemunha OO - que a recorrente DD igualmente chamou à colação no recurso - que não hesitou em considerar que, no período em que permaneceu na Fraternidade (1974-1988), “a DD era uma de nós, como qualquer uma de nós”, “a irmã DD era uma igual que eu, era uma igual que eu e apanhou muito, muito, muito, muito dos três [referindo-se aos restantes arguidos]”.
De resto, na fundamentação da decisão de facto o Tribunal recorrido admite que as Assistentes/ofendidas EE, HH, II, GG, JJ, FF e KK declararam que a arguida DD era praticamente como elas, era um “soldado raso”, estava no mesmo patamar das noviças, tratava essencialmente da cozinha e dos animais ainda que, pelo menos nos tempos recentes, não sofresse agressões e castigos.
O Tribunal teve também presente o depoimento prestado pela testemunha MMMM, irmã da arguida DD, referindo que a BB também insultava a irmã e que esta também fazia trabalhos pesados, exemplicando que cerca de três meses após ter sido operada à coluna vertebral, tendo colocado dois parafusos, foi obrigada a varrer o vasto chão da cozinha. Segundo a depoente, a DD não mandava, obedecia.
Mais se refere que as Assistentes EE e HH adiantaram ainda que ouviram várias vezes a arguida BB e insultar e a menosprezar a arguida DD; nunca viram a DD a ser agredida, mas era comentado que já teria sucedido em momentos passados.
Não obstante, o Tribunal a quo não concedeu credibilidade às sobreditas declarações prestadas pelas ofendidas EE, HH e GG, incluindo quanto à atuação da arguida DD, por ter entendido que estas demonstraram uma linha de proteção dos arguidos AA, CC e DD.  
Assim, lembra o Tribunal recorrido que já depois da intervenção da PJ, a HH e a GG escreveram à titular do Inquérito a pedir para regressar ao convento e a EE, que havia saído, retornou à instituição, precisamente porque a BB e o Padre AA já lá não estavam, acabando a HH, juntamente com a arguida CC, por ir recolher o Padre AA e levá-lo novamente para a instituição, onde ainda coabitam, com exceção da GG que entretanto saiu definitivamente.  
E acrescentam os Mmos. Juízes que deve ser negada credibilidade, nesta parte, às versões veiculadas por aquelas assistentes, uma vez que concluem que o facto de duas delas permanecerem na Fraternidade juntamente com os arguidos AA, CC e DD, sujeitas à sua direção e a novas represálias, condiciona a sua capacidade para dizer a verdade, toda a verdade.
Cremos, porém, que tal argumentação, para além de insuficiente, choca frontalmente com as regras da experiência comum e da lógica.
Primeiramente, importa ter presente que declarantes/ofendidas houve que após abandonarem o Convento de ... não voltaram à instituição, sendo certo que não tiveram pejo em concretizar as deploráveis atuações levadas a cabo pelos demais arguidos, que não a DD, que, frisa-se, viam como uma delas, ou seja, como uma vítima. É o caso das Assistentes II, JJ e FF. A Assistente GG voltou a ingressar na instituição após ter abandonado a mesma, mas, entretanto, já saiu definitavamente. Outras foram expulsas, como sucedeu com as ofendias LL e KK. Logo, quanto a estas ofendida não colhe a objeção de que as suas declarações estariam condicionadas pelo facto de se encontrem presentemente sob a alçada “disciplinar” da arguida DD e, como tal, alvos de novos maus tratos caso descrevessem qualquer conduta negativa desta arguida.
Acresce que, pela normalidade das coisas, atento o normal suceder, não se conhecendo às ofendidas EE, HH e GG qualquer patológica característica psicológica de masoquismo, gosto pela auto inflicção de dor, física e/ou psíquica, e face ao “terror” por cada uma delas vivido no interior do convento durante os períodos em que ali permaneceram, não se vislumbra razão para terem regressado à instituição sabendo que teriam de continuar a privar com a arguida DD, caso ela fosse uma “malvada”, uma cruel infligidora de maus tratos semelhante aos demais arguidos.
Aliás, atesta a isenção e credibilidade das respetivas declarantes a circunstância de não terem deixado de mencionar esporádicos episódios em que a arguida DD ofendeu verbal ou corporalmente outras irmãs.          
Também não é decisiva a circunstância expressa na fundamentação de que, segundo as Assistentes, a DD era muitas vezes usada pela BB e pela CC para controlar as “infiéis”, designadamente nos convívios, nas deslocações ao médico e aos centros de saúde, quando começaram a visitar os familiares em casa e, em geral, durante as refeições, sendo que, não raras vezes, acusava-as à CC e à BB (embora as declarantes reconheçam que não era costume a DD insultá-las). Na verdade, tal circunstância é ambivalente pois permite uma interpretação distinta ou oposta, no sentido de que corrobora o supramencionado pelas Assistentes e testemunhas de que a DD era “uma como elas”, sujeita ao cumprimento das ordens emanadas pela CC e, mormente, pela BB, que era quem mais contacto direto e frequente mantinha com elas. 
Note-se que ficou provado no acórdão uma situação concreta de agressão perpetrada pela arguida DD sobre uma “irmã” (EE) mediante prévio “incentivo” – palavra eufemisticamente usada pelo Tribunal a quo para distinguir a atuação da arguida de outras “irmãs”, assistentes nos autos, que também agrediram colegas nesta e noutras ocasiões e pelo mesmo motivo, mas que na realidade, como infra veremos, correspondeu a uma verdadeira ordem – da arguida BB, isto é, sem que aquela tivesse atuado por iniciativa própria, mas tão-só após ter sido a isso determinada por esta – cfr. factualidade constante do ponto 58. 
Por conseguinte, tudo visto e ponderado, cumpre excluir a arguida DD do grupo de arguidos que, dirigindo as instituições em apreço, gizaram conjuntamente o plano criminoso descrito e o executaram nos termos que se encontravam vertidos nos factos provados nºs 20 a 24, ora alterados.                     
           
Relativamente ao concluio estabelecido entre os arguidos AA, CC e BB, enquanto dirigentes da Fraternidade, para adotarem e executarem conjuntamente sobre as ofendidas as comprovadas atuações atentatórias da sua integridade física e psíquica e tratamentos cruéis, desproporcionados e desadequados à prossecução da sua vocação religiosa, nenhuma prova é especificada nos doutos recursos que obrigue a decisão diversa da assumida pelo Tribunal recorrido, que, por sua vez, se mostra devidamente fundamentada.     
 
Em conformidade, nos termos conjugados dos arts. 412º, nº3 e 431º, al. b), ambos do CPP, urge proceder à modificação da decisão da primeira instância sobre matéria de facto constante dos pontos 20, 21 e 24 dos factos provados.

Assim, a redação do ponto 20 passa a ser a seguinte:
20. Assim, os arguidos AA, BB e CC, desde a constituição do Centro Social (IPSS) e da  Fraternidade e início das respectivas funções, em conjugação de esforços e vontades, resolveram servir-se do Carisma/Ideário da Fraternidade para angariar jovens tementes a Deus e convencidas da sua vocação religiosa para ali exercerem tal vocação e, entre o mais, executarem tarefas diárias exigidas para a conservação e manutenção das instalações propriedade do Centro Social, sem qualquer contrapartida financeira, mediante a adoção das condutas a que se alude no ponto 24.”

Em contrapartida, será aduzida à factualidade não provada a seguinte matéria de facto:
- Os arguidos idealizaram um embuste para forçar as jovens angariadas a exercerem contrariadas todas as tarefas diárias exigidas para a conservação e manutenção das instalações propriedade do Centro Social, mediante a sua atemorização, que lhes foi coartando, ao longo do tempo, qualquer capacidade de reação, utilizando-as como mera força de trabalho e, por essa via, beneficiando patrimonialmente o Centro Social, na modalidade de poupança de despesas.

A redação do ponto 21 é alterada para os seguintes termos
21. Os arguidos AA, CC e BB tinham como alvos jovens com pretensões a integrarem uma comunidade espiritual de raiz católica, piedosas e tementes a Deus.”

Não se encontra provado que:
- Os arguidos tinham como alvo jovens de raízes humildes, com poucas qualificações ou emocionalmente fragilizadas.

A redação do ponto 24 passa a ser a seguinte
24. No período temporal desde pelo menos 05 de Dezembro de 1985 até ao início do ano de 2015, os arguidos AA, BB e CC, em conjugação de esforços e vontades, puseram em concretização o esquema previamente delineado e, individualmente e em conjunto, no interior das instalações da arguida, perpetraram sobre jovens que angariavam e aí residentes os comportamentos descritos nos pontos 50 a 184.”

Passa a integrar a matéria de facto não provada a seguinte factualidade:
- A arguida DD participou na concepção ou aderiu ao plano firmado e executado pelos demais arguidos e, nas concretas situações em que agiu, fê-lo em conjugação de esforços e vontades com aqueles.  
   
- Impugnação quanto aos pontos 25, 27 a 34, 41 e 42 da matéria de facto provada (integralmente constestada pelos recorrentes CC e AA e somente quanto ao ponto 33º por parte da recorrente DD):

No que tange ao ponto 25 dos factos provados, a contestação dos recorrentes incide sobre a asserção de que houve angariação das noviças, que entendem não ter ocorrido. Contudo, não faz parte do conteúdo do ponto 25 o modo como as ofendidas ingressaram na Fraternidade, mas tão só esse ingresso. Nada há a modificar quanto a este ponto da matéria de facto.
Na impugnação que dirigem aos pontos 27 a 30 dos factos provados, os recorrentes CC e AA não especificam nenhuma prova que, por si só ou face às regras da experiência, conduzisse necessariamente a uma diferente decisão sobre a respetiva matéria de facto. Ao invés, alegam inexistir naquela factualidade uma imputação objetiva e concretizadora de cada um dos factos aos recorrentes, deparando-se estes com a impossibilidade de exercer o direito ao contraditório e à sua defesa e que nem tampouco o Tribunal especifica os termos e o modo do consentimento e da anuência dos arguidos ora recorrentes aos atos praticados pela arguida BB.
Salvo melhor juízo, não assiste razão aos recorrentes.
Do elenco da factualidade apurada, na parte tangente ao vivenciado por cada uma das ofendidas, constam os concretos atos materiais perpetrados por cada um dos arguidos sobre elas, nomeadamente ofensas à integridade física, vitupérios, sujeição a humilhações/vexame, castigos corporais e de índole psicológica e privações de vária ordem (cuidados médicos e medicamentosos, higiene, alimentação, relacionamento com os familiares, acesso a informação e aos documentos pessoais e de identificação) – cfr. pontos 43 a 54, 55 a 78, 79 a 85, 86 a 102, 103 a 112, 113 a 140, 141 a 163, 164 a 181 e 182 a 184.
Nesses pontos da factualidade provada são materializadas as condutas suscetíveis de integrarem a inflicção de “maus tratos” às ofendidas e apontados os respetivos perpetradores, comportamentos e fautores que já são narrados nos pontos 27 a 30, ainda que de modo menos específico.
Por outro lado, o conhecimento que os arguidos CC e AA detinham acerca dos atos que eram cometidos pela BB e o consentimento que prestavam para a adoção de tais comportamentos consititui o facto em si, não carecendo a comprovada alegação de especificação dos «termos e modo do consentimento e da anuência», tarefa que o Tribunal recorrido deixou, e bem, para motivação da decisão da matéria de facto, sem que os recorrentes nada lhe oponham. 
Do mesmo modo, na impugnação que dirigem aos pontos 31 e 32 dos factos provados, os recorrentes não especificam nenhuma prova que, por si só ou face às regras da experiência, conduzisse necessariamente a uma diferente decisão sobre a respetiva matéria de facto. Apesar de invocarem, de modo vago, declarações alegadamente prestadas pelas assistentes, não transcrevem qualquer passagem dessas declarações. 
Alegam que aquela factualidade não consubstancia uma imputação objetiva aos recorrentes CC e AA, resultando de uma imputação genérica e conclusiva de factos sem especificar o quê de cada um deles. Olvidam, porém, que o Tribunal recorrido descreve nestes e noutros pontos da matéria de facto a existência de um acordo expresso ou tácito estabelecido entre os arguidos BB, CC e AA, bem assim uma atuação conjunta dos mesmos, no quadro de uma coautoria, o que – como se aprofundará na apreciação dos recursos quanto à matéria de Direito – dispensa que cada um dos comparticipantes execute por si todos os atos que consubstanciam a execução do plano criminoso.
Não obstante, atendendo ao acima explanado quanto ao teor do acordo firmado entre os arguidos e à exclusão da participação da arguida DD nesse facto e na sua execução, o recurso dos arguidos CC e AA obterá procedência parcial no que tange à impugnação dos sobreditos pontos 27 a 32 da matéria de facto provada, nos seguintes termos:
- Exclui-se a arguida DD das condutas em comparticipação descritas nos pontos 27 a 32;
- Acrecenta-se no Ponto 27 que a arguida DD agiu, por si, nos termos plasmados nos pontos 58, 129 e 130 dos factos provados;      
- Acrecenta-se no Ponto 29 que a arguida DD agiu, por si, nos termos plasmados nos pontos 112, 181 e 183 dos factos provados;     
- Acrecenta-se no Ponto 32 que a arguida DD agiu, por si, nos termos plasmados no ponto 83 dos factos provados.     
Adita-se à factualidade não provada um ponto com a seguinte redação: “Nas situações descritas nos pontos 58, 83, 112, 129, 130, 181 e 183, a arguida DD atuou em conjugação de esforços e vontades com os arguidos AA, CC e BB, e em execução de um plano entre todos firmado ou a que aquela aderiu.” 

Os recorrentes CC, AA e DD estribam a oposição que dirigem à decisão sobre a matéria do ponto 33 dos factos provados, e os dois primeiros ainda quanto ao ponto 34, no teor transcrito do depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha YY, que, no seu entendimento, a par da factualidade constante dos pontos 35 e 39 – que consideram bem julgada –, impõe decisão distinta da tomada pelo Tribunal a quo, designadamente no que respeita à pessoa que dava as ordens para a execução das tarefas, que, segundo eles, seria exclusivamente a arguida BB, ao número de horas em que as noviças executavam trabalhos, sempre inferior às ali apontadas 20 horas, até por impossibilidade física, e, ainda, quanto ao tipo de tarefas realizadas.
Ouvimos na íntegra o depoimento da testemunha YY, cuja isenção e credibilidade não vemos razão para questionar, sendo que ele foi contratado e prestou serviços como jardineiro para a Fraternidade/Centro Social desde, pelo menos, o ano de 2004 até março de 2020, com o seguinte horário: 08h-12h e 14h-18h.
Das passagens desse depoimento que foram transcritas pelos recorrentes (bem assim do seu conteúdo integral), nada decorre que obrigatoriamente exclua os arguidos CC e AA da execução conjunta, com a arguida BB, do acordo que entre os três foi estabelecido de imporem às ofendidas a realização das tarefas descritas no ponto 33.
Na verdade, o depoente asseverou que quem o contratou em nome da Fraternidade/Centro Social foi a arguida CC (estando também presente na reunião a “irmã” BB), que era aquela quem lhe pagava o salário mensal e que quem normalmente lhe dava diretamente as orientações ou ordens para os trabalhos que tinha de executar era a BB. Quando ocasionalmente era a “irmã” DD ou outra das “irmãs” a indicar-lhe as tarefas que devia executar elas diziam-lhe que estavam a comunicar-lhe orientações transmitidas pela arguida BB ou, residualmente, pela arguida CC.
Nada sabia a testemunha sobre quem, de entre os arguidos, decidia impor às ofendidas as tarefas que ele as viu executar diariamente, sendo que todos os arguidos as podiam igualmente ver a trabalhar no exterior do convento.
As declarações prestadas por esta testemunha serviram, contudo, para fortalecer o nosso juízo supra expresso e fundamentado de que a arguida DD não era ouvida nem achada nas decisões tomadas pelos demais arguidos quanto ao modo como devia ser gerido o convento, incluindo quanto aos trabalhos diários a realizar pelas noviças, limitando-se, como as demais irmãs, a cumprir as determinações que lhe eram comunicadas pelos demais arguidos, nomeadamente, a este propósito, pelas arguidas CC e BB.
Relativamente ao número de horas de trabalho que eram impostas às ofendidas, ressuma da factualidade que o Tribunal recorrido deu concomitantemente como provada nos pontos 35 a 39, em concatenação com o mencionado depoimento de YY, a impossibilidade prática, física, de as ofendidas terem sido obrigadas a efetuar «jornadas de trabalho que chegavam a atingir as 20 horas».
Neste conspecto, sempre com respeito por diverso entendimento, entendemos que o juízo probatório emitido pelo Tribunal a quo é plenamente infirmado pelas regras da experiência e da lógica.
Com efeito, como igualmente notam os recorrentes, basta atentar nos provados trâmites quotidianos experimentados pelas ofendidas no convento e respetivos horários para concluir que seria impossível que, esporadicamente e muito menos em regra, as “noviças” tivessem sido forçadas a executar jornadas de trabalho que podiam atingir as 20 horas diárias (contínuas ou interpoladas), pois que os períodos de descanso, recolhimento e litúrgia ali descritos, ainda que parcimoniosamente reduzidos em determinadas circunstâncias, impediriam em absoluto que sobejassem 20 horas destinadas ao labor.
Por outro lado, resulta das regras de experiência comum, acolitadas por estudos científicos[11], que a execução de 20 horas de trabalho manual, ou mesmo de 14 ou mais horas, de modo frequente ou sistemático, causaria nas trabalhadoras fadiga física e psicológica extremas e, provavelmente, limitações, incapacidades para o trabalho, que seriam notórias, mas que nunca foram observadas pela testemunha YY, que com elas privava quase todos os dias, nem lhe foram transmitidas pelas mesmas.
Ademais, julgamos que as provas em que nesta matéria se ancorou o Tribunal a quo não permitem, por si só, a conclusão extraída na decisão recorrida. 
É a seguinte a fundamentação a este propósito invocada pelo Tribunal recorrido:
«Quanto à duração das jornadas de trabalho e natureza dos trabalhos que eram impostos às noviças – matéria que integra os pontos 33º e 34º -, a arguida BB, em jeito autista, responde com uma interrogação: “será que as pessoas estavam lá para se sentarem?” E acrescenta: é certo que trabalhavam um bocadinho, mas a declarante tomava a dianteira, pois que se a declarante descansasse um bocadinho “esse tipo de gente sentava-se”.
A Assistente II diz que chegavam a trabalhar durante 20 horas nas madeiras, pinturas exteriores, carregavam pedras, construíram muros, canteiros, fez com a BB a substituição das pedras e ainda tratavam da revista, “...”. Refere que entrou para lá com 15 anos, impediram-na de estudar e diziam que ali a escola era outra. Nesse particular, a Assistente II enfatiza que a BB não trabalhava e era proibido descansar: quando iam no trator, tinham de ir à frente do trator, abrir o portão para o trator sair, tinham de chegar ao destino ao mesmo tempo que o trator para o descarregar e andavam a pé cerca de 1 km. Se algo caísse ao chão, tinham que apanhar do chão, a BB punha o trator em andamento e elas tinham de andar a pé, com o peso da lenha, atrás do trator em andamento.
Relatou um episódio que considera paradigmático da maldade e crueldade da arguida BB: uma vez um tronco caiu abaixo do trator, a declarante pediu à BB para parar, ela fez que não ouviu e continuou com o trator em andamento, forçando a Assistente a ter de pegar no tronco sozinha e coloca-lo em cima do trator em andamento. Outra vez, estava a chover, ela e a EE tinham o saco cheio de eucalipto, a BB queria ir à bouça, tinha chegado das piscinas e quando chegou queria o trator carregado e não tinham conseguido, porque pediram para chamar o jardineiro, mas este foi-se embora: tiveram de levar o saco das folhas, muito pesado, ao longo de 1 km a pé e quando chegaram a BB ainda lhes ralhou, já nem sabe se lhes bateu, chamando-lhes: “preguiçosas”, “sóis o demónio”, “não estais no espírito”.
A Assistente JJ [trata-se de um manifesto lapso de escrita, pretendendo o Tribunal mencionar o nome “GG”] LLL diz que excediam as 14 horas, quando queimavam lenhas das podas e não havia compensações.
Nessa medida, o tribunal convenceu-se que as longas jornadas de trabalho, faziam parte integrante do plano traçado pelos arguidos, que excecionalmente podiam atingir 20 horas de trabalho, mas normalmente não eram inferiores a 14 horas, para além de se ter convencido de que as noviças faziam os trabalhos aí descritos.»
Ora, extrai-se da predita argumentação que, como sucedeu em relação a outros aspetos fáticos em discussão nos autos, o Tribunal a quo, face a declarações de assistentes de teor não coincidente - neste caso apenas de duas, com incompreensível alheamento do referido pelas demais -, optou por conceder primazia às declarações que encerravam maior severidade para os interesses dos arguidos, sem que justifique convenientemente a razão do seu convencimento, da sua preferência.
A Constituição da República Portuguesa, no seu art. 32º, nº1, estabelece que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa”. Nestas garantias inclui-se e emerge de modo assaz relevante o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32º, nº2 do Texto Fundamental, nos seguintes moldes: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
Por seu turno, o princípio in dubio pro reo é complementar do princípio da presunção da inocência e o seu campo de aplicação encontra-se após a conclusão da tarefa judicial da valoração da prova produzida e quando o resultado desta não é conclusivo; neste caso, por via desta regra atinente à decisão, a dúvida insanável, inultrapassável sobre os factos deve favorecer o arguido. 
Este princípio encerra uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
Destarte, é de recorrer também ao princípio in dúbio pro reo para considerar como não provado que os arguidos AA, BB e CC impuseram às ofendidas jornadas de trabalho que chegavam a atingir as 20 horas, mas tão-só que essas jornadas, que habitualmente eram de cerca de 7 horas e 15 minutos, como factualmente comprovado por via do descrito nos pontos 35 a 39 (considerando judiciosos períodos de 30 minutos para almoço e jantar, sendo que o depoente YY apontou uma duração de 30 minutos para o almoço das noviças), ascendiam excecionalmente a 14 horas, no circunstancialismo descrito no ponto 40.         
Além disso, no que tange às tarefas desempenhadas pelas ofendidas, descritas no ponto 33, cumpre retirar dessa factualidade provada que incluíam “plantarem, podarem e abaterem árvores de grande porte», não só porque tal realidade foi negada, de modo credível, pelo depoente YY, como não surge especificamente mencionada nas sobreditas declarações das duas assistentes tidas em conta pelo Tribunal recorrido. Aquela testemunha asseverou que esse tipo de trabalho fazia parte das suas funções e era por ele pessoalmente realizado, em parte com a ajuda da sua esposa que também ali trabalhou contratada, nomeadamente nos arranjos dos jardins. As assistentes ajudavam-no frequentemente na realização de trabalhos de jardinagem, mas menos pesados, como, por exemplo, arrancar ou abater uma árvore de pequeno porte, arranjarem as plantas dos jardins e limpar estes. Tal versão afigura-se verosímil pois que seria normal que a direção da Fraternidade aproveitasse o trabalhor remunerado e especializado que contratou para efetuar aquele tipo de atividades, dispensando as noviças da sua realização, que até envolveria potencial risco para a sua integridade física ou mesmo para a sua vida.
O que ficou dito vale igualmente, mutatis mutandis, para a circunstância que havia sido dada como provada de as ofendidas “racharem lenha”. A este propósito, YY garantiu que tal trabalho era feito por um outro senhor que prestava serviços para a Fraternidade; era este que procedia ao corte dos troncos das árvores de modo a torná-los em “rolos” e depois procedia ao seu corte em pedaços mais pequenos de lenha utilizando para o efeito uma máquina ligada ao trator. Uma vez mais, as declarações das assistentes consideradas pelo Tribunal a quo não referem expressamente que fossem elas quem procedesse ao rachamento da lenha, mas antes que ajudavam a carregar a mesma.
Quanto ao mais, consideramos que o depoimento prestado pela testemunha YY não é suficiente para contrariar decisivamente a prova acolhida pelo Tribunal recorrido para dar como provada a restante factualidade constante do ponto 33, atinente às tarefas impostas às ofendidas.
A testemunha afirmou que eram trabalhadores contratados, externos ao convento, que procediam às pinturas dos exteriores, por exemplo das janelas, que tratavam da calçada e dos muros. Sucede que, como acima se verteu, as assistentes, de modo que se afigurou ao Tribunal recorrido - de modo justificado -, isento e credível, adiantaram que tais tarefas foram por elas efetuadas, versão que não é impreterivelmente infirmada pelas declarações da testemunha visto que esta cumpria um horário de trabalho, não se encontrando sempre nas instalações da Fraternidade, pelo que desconhecia o que as “irmãs” faziam fora daqueles períodos de tempo.                 
Em conformidade com o exposto, procede-se à alteração da decisão da matéria de facto, passando os pontos 33 e 34 dos factos provados a ter a seguinte redação:  
 - «33. E, através do identificado esquema, logravam os arguidos AA, BB e CC impor às ofendidas jornadas diárias de trabalho que chegavam a atingir as 14 horas e que compreendiam a limpeza de toda a casa e divisões que compunham a propriedade do Centro Social, fazer as refeições, tratar de todos os jardins, cuidar dos animais, carregarem esteios, carregarem lenha, carregarem tratores de estrume, lixarem e envernizarem as madeiras, executarem pinturas exteriores, carregarem pedras, construírem muros, substituírem pedras da calçada, cortar o mato, queimar e apanhar folhas e fitas, apanhar pinhas, arrancar silvas, trabalhar na tipografia, imprimindo livros, revistas folhetos, calendários, posters, estampas e postais, tratar dos aviários, entre outras.»
- «34. As tarefas que eram obrigadas a executar eram impostas às ofendidas, principalmente pela arguida BB, com o conhecimento dos demais arguidos e anuência dos AA e CC, de forma aleatória pelo período de uma semana de acordo com a conveniência dos arguidos BB, AA e CC e após trocavam de tarefas.

Passa a integrar os factos não provados a seguinte matéria:
- As tarefas que as ofendidas eram obrigadas e desempenhar incluíam plantarem, podarem e abaterem árvores de grande porte e racharem lenha.
- A arguida DD impunha às ofendidas jornadas diárias de trabalho que chegavam a atingir as 14 horas e que compreendiam as tarefas descritas no ponto 33 dos factos provados ou deu a sua anuência a outros arguidos para que assim procedessem.

A impugnação realizada pelos recorrentes AA e CC soçobra quanto ao ponto 41 dos factos provados por inexistência da respetiva motivação no recurso. Nesta parte, os recorrentes não especificam qualquer prova que determinasse decisão diversa.
    
- Quanto aos pontos 44 a 47, 49, 50 e 54 dos factos Provados (ofendida MM):
A este propósito, alegam os recorrentes CC, AA e DD, em súmula:
O Tribunal a quo baseou a sua convicção no Relatório da Perícia Tanatológica de fls. 37, e no relato das Assistentes, tendo, desde logo, desconsiderado o Exame do Hábito Externo, junto a fls. 38 e 39, que concluiu pela inexistência se lesões sofridas pela MM, e falta de alimento: - Pesava 54 kg e media 1,48 m, evidenciando: Constituição esquelética: Normal; - Estado de nutrição: Normal; - Membros Superiores: Sem alteração; e Membros Inferiores: Sem alteração.
Por outro lado, referem que da análise crítica da prova produzida em audiência, as declarações das Assistentes EE, II e HH, aqueles factos não resultam provados, porque estas não fazem qualquer referência à pessoa dos Recorrentes CC, AA e DD, como tendo tidos qualquer intervenção ou acção na humilhação, maus-tratos ou das injúrias ou das agressões perpetradas na MM, e bem assim que os mesmos tivessem conhecimento ou manifestado a sua anuência.
Também os irmãos da MM ouvidos como testemunha não relataram, em momento algum, a presença dos aqui Recorrentes aquando das idas que aquela fez a casa dos seus pais, ou quando se deslocaram a ... para visitar a sua irmã.
Alegam ainda que a Recorrente CC não tinha a seu cargo o trabalho que era destinado à MM. Quem de facto mandava no interior do Convento era a arguida BB, e as situações que ocorriam entre esta e as demais Irmãs, não lhe chegavam ao o conhecimento, pois nenhuma delas, ouvidas em Tribunal, relatou que alguma vez se tivesse queixado ou lamentado à aqui Recorrente CC, nem ao Recorrente AA, por actos praticados por terceiros.
Acrescentam que não foi dito por ninguém que na ocasião descrita no ponto 50, a aqui Recorrente CC se encontrava na sala da televisão, quando a MM foi levar o jantar. A ter estado presente, não foi ela que se dirigiu à MM. E ninguém viu o episódio constante do Facto 49.º nem ninguém disse que os Recorrentes tiveram dele conhecimento, razão pela qual o Tribunal a quo não podia dar como provado.
Concluem que não há alusão a uma qualquer conduta dos aqui Recorrentes para com a MM, no sentido de a ter colocado num progressivo estado depressivo profundo, e que determinou ter-se afogado no tanque no dia ../../2004.
Peticionam, em conformidade, que seja dado como não provado o conhecimento e anuência dos arguidos CC, AA e DD quanto ao descrito nos factos 44.º; 45.º; 46.º, 47.º, 49.º, 50.º e 54.º, e como não provado que o facto 49.º se tenha verificado.
Analisando.
Não colhe a presente impugnação no que tange à apontada falta de conhecimento dos arguidos CC e AA sobre as condutas habitualmente perpetradas pela arguida BB sobre as Assistentes, e, especificamente, sobre a entretanto falecida MM e, outrossim, acordo que deram para que esse tipo de comportamentos tivesse lugar na Fraternidade.
Como acima se deixou expresso, os recorrentes não lograram infirmar o devidamente fundado juízo probatório estabelecido pelo Tribunal recorrido de que foi acordado entre os arguidos AA, CC e BB, dirigentes da Fraternidade, a adoção e execução conjunta, com divisão de tarefas, sobre as ofendidas de atuações atentatórias da sua integridade física e psíquica e tratamentos cruéis, desproporcionados e desadequados à prossecução da sua vocação religiosa, do tipo das que vieram a ocorrer.
Assim, vinca-se, o conhecimento e aquiescência dos arguidos acerca da prática de atos da natureza dos descritos nos factos provados decorre desde logo do pacto assumido entre eles ou a que aderiram, independentemente dos seus exatos contornos ou da concreta pessoa que os executou (mormente a arguida BB).
A dita comparticipação criminosa, na forma de coautoria, dispensa para a possível responsabilização jurídico-penal de todos os comparticipantes que cada um dos arguidos CC e AA tivesse conhecimento, prévio ou contemporâneo, de cada comportamento concretamente adotado pela coarguida BB contra cada uma das ofendidas ou que a perpetradora tivesse de colher antecipadamente dos demais arguidos o seu assentimento para o que previa e pretendia fazer.
Por outro lado, tendo sido já acima defendido que a arguida DD não partilhava funções diretivas na Fraternidade/Centro Social, nada decidindo sobre o modo de tratamento das “noviças” no interior dessas instituições, nomeadamente no contexto de um acordo gizado com os demais arguidos ou a que aderiu ulteriormente, cumpre negar quanto a esta arguida a alegada concessão de anuência perante os atos praticados por outros arguidos, nos termos descritos nos factos ora sob impugnação. O que aqui se menciona quanto aos factos relativos à ofendida MM vale mutatis mutandis para o que infra se descreve quanto às condutas cometidas sobre as demais vítimas.
Procedem ainda ambas as impugnações no que concerne ao julgamento da matéria de facto constante do ponto 49 dos factos provados.
O Tribunal a quo fundamentou a prova daquela factualidade, indistintamente, no teor das declarações prestadas pela arguida BB, pelas Assistentes EE, II, HH, GG e pelos Demandantes KK e herdeiros da MM, PPPP, QQQQ, SSSS, TTTT, UUUU e VVVV.
Sucede que nenhum dos aludidos declarantes/depoentes demonstrou conhecimento direto sobre a ocorrência do evento ali narrado (nem tal conhecimento transparece sequer das súmulas das declarações que foram vertidas na fundamentação do acórdão recorrido). Aliás, como observam os recorrentes em conformidade com o que foi declarado pelas mesmas em audiência de julgamento, a assistente EE mencionou que foi a assistente HH quem lhe contou o sucedido; esta, por sua vez, mencionou que quem lhe contou foi a assistente II, que teria obtido o relato da arguida DD; contudo, a assistente II nem sequer relatou tal episódio nas declarações que prestou, sendo certo que, alegadamente, também não teria assistido ao mesmo.
Ora, em processo penal, o depoimento indireto, de “ouvir dizer”, que não seja corroborado em audiência de julgamento pela pessoa de quem alegadamente se ouviu o relato presencial, como sucede in casu, é insuscetível de valoração pelo Tribunal – cfr. art. 129º, nº1, do CPP.   
Por outro lado, a arguida BB negou ter agido do modo descrito no ponto 49.
Por conseguinte, constata-se que quanto a este ponto da matéria de facto o Tribunal recorrido decidiu sem prova que o sustentasse.
É de excluir dos factos provados a matéria constante do ponto 49 que agora se dá como não provada.
No que tange ao ponto 50 dos factos provados, alega a recorrente CC que ninguém referiu que ela se encontrava presente aquando do acontecimento ali descrito.
Porém, olvidam os recorrentes que a assistente EE descreveu os factos alegadamente perpetrados pela arguida BB sobre a MM, asseverando que a arguida jantava numa sala à parte com os arguidos CC e AA, onde existia um televisor. A sala onde as noviças e restantes irmãs jantavam não dispunha de televisor.  
A assistente HH referiu que o ocorrido lhe foi relatado na mesma noite pela vítima MM, entretanto falecida, pelo que tais declarações podiam ser - como foram - excecionalmente valoradas na parte em que constituíam depoimento indirecto - cf. art. 129º, nº1, parte final, do CPP.
Assim sendo, tendo o Tribunal a quo considerado provas legais, que apreciou livremente e sem que a sua interpretação se mostre necessariamente contrariada pelas regras da experiência e da lógica, cumpre manter nesta parte a decisão sobre a matéria de facto.
Nada de inovador face ao sobredito alegam os recorrentes que implique a imperiosa alteração do decidido quanto ao ponto 54 dos factos provados.

Em conformidade, face à procedência parcial dos recursos, nesta parte, cumpre modificar a decisão sobre a matéria de facto nos seguintes moldes:  
- Quanto aos pontos 44, 45 e 47: exclui-se a anuência da arguida DD relativamente aos comportamentos perpetrados sobre a ofendida MM ali descritos, circunstância que se considera como não provada.
- A matéria de facto constante do ponto 49 passa a ser não provada.
- Quanto ao ponto 54: considera-se como não provado que foi também em consequência da conduta da arguida DD que a ofendida MM ficou progressivamente num estado depressivo profundo, o que determinou que no dia ../../2004 esta se tenha afogado num tanque existente no interior das instalações da arguida.     

- Quanto aos pontos 55 a 58, 63, 64 e 78 dos factos Provados (ofendida EE):
A este propósito, alegam os recorrentes CC e AA e DD que o Tribunal a quo fundamentou a prova dos factos em epígrafe nas declarações da Assistente EE.
Para sustentar que a prova produzida impunha decisão diversa, transcrevem esparsas passagens das declarações prestadas pela Assistente EE que não apresentam conexão com a factualidade em discussão nos pontos da matéria de facto ora em apreço.
No mais, limitam-se a tecer vagas considerações de índole jurídica para manifestar a sua discordância face ao decidido pelo Tribunal recorrido sem que, contudo, invoquem uma concreta prova produzida nos autos que implique obrigatoriamente uma alteração da decisão sobre a matéria de facto em questão, tanto mais que esta se revela devidamente fundamentada, e, contrariamente ao que de modo inverídico alegam os recorrentes, não só com base nas declarações prestadas em audiência de julgamento pela assistente EE, mas ponderadas ainda, em concatenação, as declarações aí veiculadas pelas assistentes II, HH e GG, pela Demandante Civil KK e, no que tange à matéria do ponto 78, o teor do relatório.
Excetua-se a reclamada não imputação à arguida/recorrente DD, por alegada anuência, das condutas perpetradas pelos demais arguidos que se encontram descritas nos pontos 55, 56, 63 e 64, que terá de proceder atendendo à já acima afirmada exclusão desta arguida do concerto criminoso firmado entre os restantes arguidos.
Ademais, não resulta da prova produzida nos autos e invocada pelo Tribunal a quo na fundamentação da decisão sobre o ponto 78, nomeadamente do relatório de perícia de avaliação de dano corporal, apreciada conjugadamente e à luz das regras da experiência e dos conhecimentos científicos disponíveis, que a circunstância de a arguida DD, incentivada pela arguida BB, ter desferido murros nas costas da ofendida EE – cf. ponto 58 –, tenha produzido nesta sequelas permanentes ou lesões noutros partes do corpo, como sejam o maxilar superior e os joelhos – cf. ponto 78.
Finalmente, na sequência do já decidido a propósito da impugação referente à decisão sobre o ponto 33 e atento o declarado neste conspecto pela própria assistente EE, cumpre alterar a redação do ponto 63 dos factos provados, alterando a atividade cuja realização foi imposta, que se tratava não de rachar lenha, mas sim de a amontoar, pois que quem a cortava era um senhor “de fora” contratado para o efeito. Também deve ser alterado o período do trabalho, de modo a não exceder 14 horas.

Consequentemente, procedendo parcialmente nos preditos termos as ajuizadas impugnações, modifica-se a decisão da matéria de facto relativa aos pontos 55, 56, 63, 64 e 78 dos factos provados, que assumirão agora o seguinte teor:
- 55. No que respeita à ofendida EE, as agressões físicas e verbais e bem assim o trabalho exaustivo imposto principalmente pela arguida BB, com o conhecimento dos arguidos AA, CC e DD e anuência dos arguidos AA e CC, por várias horas seguidas, iniciaram-se 4 meses após o seu ingresso na instituição, ou seja, desde Agosto de 2004 e prolongou-se até o dia ../../2015.
- 56. As agressões verbais, físicas e os castigos perpetrados impostos principalmente pela arguida BB, com o conhecimento dos arguidos AA, CC e DD e anuência dos arguidos AA e CC, contra EE eram praticamente diárias, tendo esta emagrecido 30 quilos em escassos meses.
- 63. Em dia não concretamente apurado de Agosto do ano de 2007, a ofendida EE, juntamente com a GG, acompanhadas de um vizinho, foram obrigadas a trabalhar principalmente pela arguida BB, com o conhecimento e anuência dos arguidos AA e CC, cerca de 14 horas seguidas a amontoar lenha, tendo estes apenas permitido às ofendidas parar para almoçar por breves instantes.
- 64. As ofendidas EE, GG, II e HH, em data não concretamente apurada mas situada nos períodos mencionados em 26), por determinação principalmente da arguida BB, com o conhecimento dos arguidos AA, CC e DD e anuência dos arguidos AA e CC, tiveram que dormir no chão em cima de um colchão com um canídeo que estava doente, o que perdurou durante meses, por vezes, apenas logravam dormir uma hora e não tinham qualquer compensação no dia seguinte, tendo que executar todas as tarefas que lhe tinham sido atribuídas.
- 78. Em consequência da conduta perpetrada pelos arguidos AA, BB e CC, a ofendida EE sofreu sequelas permanentes traduzidas numa cicatriz obliqua e de forma irregular localizada na metade direita do maxilar superior, aproximadamente com 20 cm posterior do lábio superior, joelho direito escuro, pisado e macerado, joelho esquerdo escuro, pisado e macerado.

Adita-se à factualidade não provada que:
- A arguida DD anuiu aos comportamentos perpetrados sobre a ofendida EE descritos nos pontos 55, 56, 63 e 65.
- Foi também em consequência da conduta da arguida DD que a ofendida EE sofreu sequelas permanentes traduzidas numa cicatriz obliqua e de forma irregular localizada na metade direita do maxilar superior, aproximadamente com 20 cm de comprimento, cicatriz vertical e de forma irregular localizada na linha média da mucosa da face posterior do lábio superior, joelho direito escuro, pisado e macerado, joelho esquerdo escuro, pisado e macerado.

- Quanto aos pontos 79 a 83 e 85 dos factos provados (ofendida FF):
Desde logo, em conformidade com o decidido a propósito da matéria de facto constante do ponto 20 dos factos provados, especificamente no que se reporta ao circunstancialismo em que a ofendida FF ingressou na Fraternidade, sem que se vislumbre qualquer coação física ou psicológica condicionante, muito menos determinante, da sua entrada e/ou permanência na instituição, importa alterar a redação do ponto 79 dos factos provados de modo a que deixe de retratar aquela inverificada “imposição”. 
Quanto ao mais, entendemos que as concretas passagens das declarações da assistente FF transcritas pelos recorrentes CC e AA e DD determinam a modificação do decidido pelo Tribunal a quo no ponto 81 no que tange a uma alegada proibição de deslocação da declarante ao médico.
Na verdade, questionada pelo Tribunal sobre se podia ir ao médico caso tivesse algum problema de saúde, a ofendida declarou que “no período em que lá estive [na instituição] nunca precisei de ir ao médico”. Mais mencionou que se deslocou ao médico dentista sempre que necessitou, uma vez que usava aparelho dentário fixo – cf. gravação das declarações prestadas em audiência de julgamento no dia 21/09/2022, disponível no sistema citius-media studio, minutos 17:15 a 17:30.
Ou seja, do mencionado pela própria ofendida não ressuma que ela tivesse sido impedida de recorrer a um médico, porquanto nunca se verificou tal necessidade. Caso tivesse ocorrido tal necessidade, os arguidos teriam permitido que ela fosse ao médico? Não sabemos. Embora saibamos que quando a demandante necessitou de ir ao dentista tal foi permitido (ainda que fosse sempre acompanhada).
De todo o modo, a dita dúvida, concebível e intransponível sempre implicava que o Tribunal recorrido, em obediência à já citada regra in dubio pro reo, tivesse decidido no sentido mais favorável aos arguidos, não dando assim como provado o alegado impedimento.
Aliás, neste conspecto, é inexistente na fundamentação do Tribunal a quo razão para dar como provada tal circunstância.
Por outro lado, as próprias declarações da Demandante FF obrigam a que não se dê como provada a factualidade constante do ponto 82 dos factos provados, já que ela afirmou perentoriamente que tomava banho uma vez por semana e nunca lhe foi aplicado castigo que a impedisse de tomar esse banho semanal – cf. gravação das declarações prestadas em audiência de julgamento no dia 21/09/2022, disponível no sistema citius-media studio, minutos 15:23 a 17:12.
Assim, quanto ao ponto 82, o Tribunal recorrido decidiu contra a prova produzida.
Relativamente à matéria constante do ponto 83, urge excluir a asserção “sofreu pressão psicológica diária” atento o seu caráter vago, genérico, conclusivo, descarnado de facto.
Note-se que existe notório erro de escrita revelado pelo próprio contexto em que se insere a declaração, visto que onde se refere “arguida” se pretendeu dizer ofendida. Ao abrigo do disposto no art. 380º, nºs 1, al. b), e 2 do CPP, será determinada a correção de tal lapso.
Por outro lado, na sequência do acima explanado e decidido sobre a matéria dos pontos 20 a 24, cabe negar a pretensa causalidade objetiva estabelecida entre a obrigação de execução das tarefas impostas pelos arguidos BB, CC e AA e as afirmações feitas por aqueles de que a desobediência as tornava em “infiéis a Deus”. Tal conexão há-de ser afirmada somente ao nível subjetivo, isto é, do que era sentido pelas ofendidas.
Por último, no que tange ao descrito no ponto 85 dos factos provados, extrai-se das declarações prestadas por FF que nada há a alterar quanto à circunstância de a arguida CC ter retido os seus documentos de identidicação, mas apenas quanto ao momento em essa retenção ocorreu.
Com efeito, a Demandante mencionou que a arguida CC ficou com os seus documentos quando ingressou na Fraternidade (não em momento posterior referido na decisão recorrida), os quais ficaram lá quando ela abandonou a instituição, sem que tivesse pedido a sua devolução. Aliás, enquanto esteve na instituição a declarante nunca sentiu necessidade de aceder aos seus documentos – cf. gravação das declarações prestadas em audiência de julgamento no dia 21/09/2022, disponível no sistema citius-media studio, minutos 24:50 a 25:22.
Defende a recorrente CC que resulta do declarado pela ofendida que ela não reteve os documentos, mas “apenas ficou com eles”. 
Salvo o devido respeito, a diferença é aparente, meramente retórica, porquanto “reter”, entre o mais, também significa “deter”, “manter”, “conservar”, realidade que sucedeu no caso, pois a arguida acedeu à posse da documentação em causa e não a restituiu, não a entregou à sua titular, nem sequer quando esta abandonou a Fraternidade, independentemente de esta não ter expressamente requerido a sua devolução.
Quanto à alegação de que se retira das declarações da ofendida a falta de intervenção dos recorrentes CC e AA nos atos relativos às noviças, e que daquelas não resulta que estes tivessem conhecimento ou que tivessem dado a sua anuência para a sua prática, terá de improceder a impugnação, remetendo-se para o supra decidido quanto à efetiva existência de um acordo estabelecido entre aqueles arguidos e a arguida BB para que vida conventual fosse conduzida por todos do modo descrito nos factos provados, ainda que os comportamentos fossem principalmente materializados pela BB, mas sempre com a anuência dos restantes arguidos.         
A pugnada não imputação à arguida/recorrente DD, por alegada anuência, das condutas perpetradas pelos demais arguidos que se encontram descritas nos pontos fácticos em apreço deve proceder atendendo à já acima afirmada exclusão desta arguida do plano criminoso concertado pelos restantes arguidos.

Donde, a decisão sobre esta matéria de facto sob impugnação será modificada nos seguintes termos:
Passa estar a provado:
- «79. A ofendida FF foi incitada pela arguida BB a permanecer na instituição, convencendo-a de que tinha uma vocação, e aconselhou-a a redigir uma carta aos seus pais, segundo as orientações daquela, a mencionar que estava a sentir uma vocação e que pretendia ficar, o que foi aceite e realizado pela ofendida.»
- «81. No período em que permaneceu na Fraternidade foi obrigada principalmente pela arguida BB, com o conhecimento dos arguidos AA, CC e DD e a anuência dos arguidos AA e CC, a trabalhar por várias horas seguidas, tendo-lhe sido fornecido pouca alimentação, tomava banho uma vez por semana, por vezes de água fria, não lhe foi permitido visitar os seus familiares, foi por várias vezes objeto dos insultos supra descritos e obrigada a autoflagelar-se.»
- «83. No período em que permaneceu na instituição a arguida sentiu-se obrigada a executar todas as tarefas e submeter-se às condições da instituição, pois os arguidos afirmavam que, caso não fizessem conforme ordenado, seria uma “Infiel a Deus”.»
- «85. No período em que permaneceu na instituição, não lhe foi permitido ver televisão fazer chamadas telefónicas e foi-lhe retido pela arguida CC, quando do seu ingresso, os seus documentos de identificação.»
  
Passa a constar da factualidade não provada:
- Não era permitido à ofendida FF ir ao médico.
- A ofendida FF na sequência dos castigos que eram implementados, por vezes, só podia tomar banho de 15 em 15 dias.
- A arguida DD anuiu aos comportamentos perpetrados sobre a ofendida FF pelos demais arguidos.
     
- Quanto aos pontos 86, 87, 93, 94, 98, 100 e 102 dos factos provados (ofendida KK)
Cada um dos recorrentes CC, AA e DD pretende contrariar a factualidade constante dos pontos em epígrafe, ou parte dela, com base nas declarações da ofendida que citam.
Todavia, salvo o devido respeito, a prova invocada é, em geral, insuficiente, inidónea para promover a clamada alteração da decisão sobre a matéria de facto em questão, pois que em nada abala impreterivelmente o juízo probatório emitido pelo Tribunal recorrido, fundamentado em termos que merecem o nosso acolhimento.
Assim, a alteração do decidido não se justifica quanto à comprovada negação de cuidados médicos apropriados e quanto à administração de castigos e prática de ofensas corporais pela arguida BB, com a anuência dos arguidos CC e AA. A este último propósito, reproduz-se a sagaz observação realizada pelo Tribunal a quo: «De notar que, segundo as Assistentes esta ofendida terá sido expulsa pelo Padre AA e pela CC, contra a vontade da BB, o que é bem sintomático de que, estes dois arguidos tinham poder e ascendente sobre a BB e, em ultima análise também interferiam com as vocações.»
A presença da arguida DD aquando do episódio descrito no ponto 94 é convenientemente assegurada pelas declarações prestadas pela assistente II, que assistiu aos factos.
Porém, quanto à recorrente DD cumpre reiterar o dito no contexto da impugnação em analise, no sentido de que procede a reclamada não imputação a esta arguida, por alegada anuência, das condutas perpetradas pelos demais arguidos que se encontram descritas nos pontos fácticos em apreço, considerando a supra afirmada exclusão desta arguida do plano criminoso concertado pelos restantes arguidos e por eles conjuntamente posto em ação.
Consequentemente, procede parcialmente a impugnação, sendo de exluir dos pontos 87, 98 e 102, que as ações e omissões ali descritas decorreram com a anuência da arguida DD.
      
- Quanto aos pontos 105, 107, 110 e 112 (ofendida HH):
Os recorrentes CC, AA e DD visam contrariar a factualidade constante dos pontos em epígrafe, ou parte dela, que especificam, com base nas declarações da ofendida HH que citam.
Contudo, a prova convocada é, em geral, exígua e, em certa medida, inadequada para lograr a pretendida modificação da decisão sobre a matéria de facto em apreço, pois que não contraria inevitavelmente o juízo probatório emitido pelo Tribunal recorrido, fundamentado em termos que merecem a nossa concordância.
Assim, a alteração do decidido não se impõe quanto à comprovada prática pela arguida BB de castigos, insultos, humilhações e ofensas corporais, com a anuência dos arguidos CC e AA, à parte as situações ali descritas em que estes dois arguidos atuaram pessoal e diretamente sobre as vítimas.
A propósito do conhecimento que o Padre AA detinha sobre o que se passava no convento, designadamente sobre o modo como a arguida BB lidava com as noviças/irmãs, são relevantes as palavras proferidas pela Assistente HH: «(…) a BB é que informava o Senhor Padre AA de como as coisas iam correndo na Fraternidade e para a BB tudo o que nós fizéssemos, e por muito que a gente fizesse, nunca tínhamos feito o que era preciso.»
Conforme decorre da fundamentação expressa pelo Tribunal a quo - que, contrariamente ao alegado pelos recorrentes, não se cingiu às declarações prestadas pela assistente HH -, a atuação da arguida/recorrente CC no epsódio narrado no ponto 110 foi assegurada, de modo isento e credível, pela assistente II, que assistiu aos factos.
Porém, assiste razão à recorrente CC a propósito do errado julgamento da matéria descrita no ponto 112, visto que da prova produzida sobre tal matéria não decorre que aquela arguida (assim como a arguida DD) tenha alguma vez dirigido à ofendida HH qualquer impropério. Em conformidade, importa dar como não provada esta factualidade.
Quanto à recorrente DD cumpre reiterar o dito no contexto da impugnação em analise, no sentido de que procede a reclamada não imputação a esta arguida, por alegada anuência, das condutas perpetradas pelos demais arguidos que se encontram descritas nos pontos fácticos em apreço, considerando a supra afirmada exclusão desta arguida do plano criminoso concertado pelos restantes arguidos e por eles conjuntamente posto em ação.
Consequentemente, procede parcialmente a impugnação, sendo de exluir da matéria de facto provada:
- Do ponto 112, que as arguidas CC e DD pessoalmente dirigiram insultos à ofendida HH
- Dos pontos 105, 107 e 110, que as ações e omissões ali descritas decorreram com a anuência da arguida DD.

- Quanto aos pontos 113, 122 e 122 (ofendida GG):
Os recorrentes CC, AA e DD discordam da factualidade constante do ponto 113 na parte em que é referido que a assistente GG, após sair e regressar à instuição, abandonou esta definitivamente em novembro de 2018, pois dizem – sem transceverem as supostas declarações – que a ofendida declarou antes às assistentes EE e HH que sentia cansada e tinha de ir para casa recuperar.
Como é bom de ver, a objeção adiantada é inócua e falaciosa, porquanto o facto objetivo inquestionavelmente ocorrido é o vertido nos factos provados, ou seja, a saída ou abandono do convento por banda da ora assistente GG, em novembro de 2018, sem que ao mesmo tenha regressado.  
No que tange à impugnação da decisão quanto aos pontos 122 e 123, cabe referir que os recorrentes omitem a invocação específica de prova que contarie impreterivelmente a deliberação do Tribunal recorrido.
Com efeito, os recorrentes abstêm-se de transcrever as concretas passagens das supostas declarações das assistentes GG, sendo que quando chamam à colação a fundamentação aduzida pelo Tribunal a quo para justificar a sua decisão quanto a estes pontos da matéria de facto, verifica-se que se limitam a invocar trechos truncados de meios de prova também eles selecionados, olvidando outros que o Tribunal ali elenca, e, de todo o modo, mais suscetíveis de confirmarem a decisão tomada do que de a invalidar.
As restantes parcas alegações corporizam inatendíveis (neste conspecto) conclusões e juízos dos recorrentes quanto à subsunção jurídica dos factos verificados, face à interpretação que fazem da prova produzida.
Assim, nesta parte, soçobra o recurso dos arguidos CC e AA e, pelos fundamentos já acima invocados e que aqui se reiteram sem necessidade de reprodução, procede o recurso da arguida DD quanto à reivindicada não imputação a esta arguida, por alegada anuência, das condutas perpetradas pelos demais arguidos que se encontram descritas nos pontos fácticos em apreço, considerando a supra afirmada exclusão desta arguida do plano criminoso concertado pelos restantes arguidos e por eles conjuntamente posto em ação.

Consequentemente, procede parcialmente a impugnação quanto à recorrente DD, sendo de exluir da matéria de facto provada:
- Dos pontos 123 e 140, que as ações e omissões ali descritas diretamente cometidas por outrem, decorreram com a anuência da arguida DD.

- Quanto aos pontos 141 a 163 (ofendida II):
Invocando genérico desacordo quanto à decisão do Tribunal a quo sobre a factualidade dada por prova nos pontos em epígrafe – sem discriminarem nenhum –, os recorrentes CC, AA e DD estribam os respetivos recursos em alegadas declarações das assistentes II, EE e HH e da testemunha CCC que, contudo, não transcrevem, como deviam. Aliás, ainda que se confirmasse o apontado conteúdo dessas declarações nunca o mesmo seria bastante para infirmar o juízo probatório do Tribunal recorrido vertido nos pontos fácticos em questão.
Por outro lado, as declarações prestadas em audiência de julgamento pela testemunha, que os recorrentes devidamente reproduzem, em nada comprometem a justeza da decisão tomada quanto aos pontos em apreço.   
Na verdade, o facto de a assistente II se deslocar sozinha aos correios uma vez por semana, acompanhada do seu telemóvel, podendo assim sair das instalações da Fraternidade, bem como a circunstância de, por vezes, dialogar com terceiras pessoas que se encontravam a trabalhar naquelas instalações, não afasta necessariamente a possibilidade de ocorrência dos factos descritos nos pontos da matéria de facto em análise, de sujeição da ofendida às sevícias ali retratadas.
Assim, nesta parte, decai o recurso dos arguidos CC e AA e, pelos fundamentos já acima invocados e que aqui se reiteram sem necessidade de reprodução, procede o recurso da arguida DD quanto à reivindicada não imputação a esta arguida, por alegada anuência, das condutas perpetradas pelos demais arguidos que se encontram descritas nos pontos fácticos em apreço, considerando a supra afirmada exclusão desta arguida do plano criminoso concertado pelos restantes arguidos e por eles conjuntamente posto em ação.
Consequentemente, procede parcialmente a impugnação quanto à recorrente DD, sendo de exluir da matéria de facto provada:
- Dos pontos 142 e 163, que as ações ali descritas decorreram com a anuência da arguida DD.

- Quanto aos pontos 164 a 181 (ofendida LL):
Invocando genérico desacordo quanto à decisão do Tribunal a quo sobre a factualidade dada por prova nos pontos em epígrafe – sem discriminarem nenhum –, os recorrentes CC, AA e DD, limitam-se a invocar que «A LL foi expulsa. Pela expulsão e seus motivos pode-se constactar que a Fraternidade Missionária não pretendia angariar mão-de-obra, mas sim receber no seu seio noviças com valores religiosos. Nos factos dados como provados pelo Tribunal não resulta qualquer imputação à aqui recorrente».
Tais considerações – que não são provas –, ainda que pertinentes no contexto da apreciação de outra factualidade, como se viu a propósito dos pontos 20 a 24, mostram-se neste contexto vagas, conclusivas e absolutamente desadequadas a lograr a não prova dos factos constantes dos pontos em apreço.
Decaem, pois, os recursos, com exceção do recurso da arguida DD quanto à reivindicada não imputação à recorrente, por alegada anuência, das condutas perpetradas pelos demais arguidos que se encontram descritas nos pontos fácticos em apreço, considerando a supra afirmada exclusão desta arguida do plano criminoso concertado pelos restantes arguidos e por eles conjuntamente posto em ação.
Consequentemente, procede parcialmente a impugnação quanto à recorrente DD, sendo de exluir da matéria de facto provada:
- Do ponto 181, que as ações ali descritas decorreram com a anuência da arguida DD.

- Quanto aos pontos 182 a 184 (ofendida JJ):
Decorre das declarações prestastas em audiência de julgamento pela ofendida LL – transcritas pelos recorrentes – que a mesma não foi alvo de qualquer agressão perpetrada pelas arguidas CC e DD, pelo que urge alterar em conformidade a respetiva matéria de facto constante dos pontos 183 e 184.  
No mais, soçobram os recursos, com exceção do recurso da arguida DD quanto à reivindicada não imputação à recorrente, por alegada anuência, das condutas perpetradas pelos demais arguidos que se encontram descritas nos pontos fácticos em apreço, considerando a supra afirmada exclusão desta arguida do plano criminoso concertado pelos restantes arguidos e por eles conjuntamente posto em ação.
Consequentemente, procedem parcialmente as impugnações nos seguintes termos:
- Os pontos 183 e 184 passam a assumir o seguinte teor:
183. No período em que aí permaneceu a ofendida, a arguida BB, com conhecimento e anuência dos arguidos AA e CC, com uma frequência praticamente diária, puxou-lhe os cabelos e desferiu-lhe pancadas com vários objetos, e foi objeto dos referidos insultos protagonizados por todos os arguidos.
184. Em consequência da conduta dos arguidos BB, CC e AA, a ofendida JJ sofreu dores e pisaduras e passou a padecer de problemas psíquicos.
Passa a integrar a factualidade não provada que:
- As ações descritas no ponto 183 sucederam com a anuência da arguida DD.
- As consequências descritas no ponto 184 decorreram da conduta da arguida DD. 

Aqui chegados, visto o disposto no art. 403º, nº3, do CPP, cumpre extrair do supra decidido as consequências relativamente à matéria de facto provada vertida nos pontos 185º a 190º, atinente à imputação subjetiva dos factos aos respetivos agentes.
Decorre do sobredito que a atuação conjugada dos arguidos BB, CC e AA, concedendo às ofendidas um tratamento indigno, com parco humanismo, não obstante condicionasse, limitasse a liberdade de autodeterminação das ofendidas, por si só não dominava aquelas, não as aterrorizava ao ponto de as privar de vontade ou de quebrantar esta quando a pretendessem manifestar, nem lhes retirava em absoluto a possibilidade de contrariar ou evitar o cumprimento das ordens que recebiam dos arguidos, designadamente abandonando o convento.
Como vimos, da prova produzida nos autos, apreciada conjugadamente e à luz das regras da experiência e da lógica, ressuma que as ofendidas também se deixaram determinar pela fé a Deus que sentiam e pela vontade de o servir, imbuídas de profundas convicções religiosas, pré-existentes à sua entrada para a Fraternidade ou aí criadas ou reforçadas, as quais se vieram a revelar prejudiciais para o seu crescimento e sã vivência, pois que essas crenças foram aproveitadas pelos ditos arguidos para as tratar com desestima e desamor, sujeitando-as a práticas que contrariam os valores cristãos apregoados, por exemplo, de amor fraternal, bondade e auxílio aos necessitados. Assim, em nome do Deus (também castigador, retaliativo) em que acreditavam e também por que se sentiam atemorizadas, as ofendidas suportaram sevícias que de outro modo por certo não tolerariam.
Por conseguinte, reitera-se, as vítimas não foram usadas pelos arguidos como meros peões de trabalho ou “bestas de carga”, simples corpos desprovidos de vontade e de querer, tudo no contexto de um propositado processo de “desumanização” daqueles seres humanos.
A asserção «clima de terror» utilizada no ponto 185 dos factos assentes deve ser excluída dos factos provados e não provados por não se tratar de verdadeira matéria de facto, antes de alegação genérica, conclusiva, desprovida de substância fáctica.
Por outro lado, importa delimitar a prova da alegação de que as ofendidas foram obrigadas a trabalhar «sem qualquer contrapartida material e espiritual» à comprovada circunstância de que elas não obtiveram retribuição monetária, pois que quanto ao mais, desconhece-se o que seja retribuição “espiritual” e não se pode olvidar que se tratavam de tarefas desempenhadas no âmbito de uma Fraternidade e que existia fornecimento de alimentação e alojamento às irmãs que integravam aquela instituição.
Em conformidade, urge proceder à alteração da decisão quanto à matéria de facto constante dos pontos 185 a 190 dos factos provados, que assumirão a seguinte redação:
- 185. Todas as ofendidas, face à atuação conjugada dos arguidos BB, CC e AA ficavam predispostas a aceder à vontade destes, pelo temor, quer pelas ofensas físicas e verbais e castigos de que eram vítimas quer pelas que presenciavam e bem assim pelo rigor espiritual que lhes era imposto.
- 186. Deste modo, os arguidos AA, BB e CC, com as referidas condutas, logravam que as ofendidas executassem, em parte por temor, os trabalhos necessários para o normal funcionamento da Fraternidade, incrementando o património do Centro Social, na modalidade de poupança de despesa, sem qualquer contrapartida monetária, vivenciando as ofendidas um permanente “regime de medo”, não tendo poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho.
- 187. Os arguidos AA, BB e CC sujeitaram as ofendidas a trabalhos que eles não queriam executar, mediante a prática dos supra descritos insultos, agressões e castigos.
- 188. As ofendidas viram-se coarctadas na sua liberdade de autodeterminação, nomeadamente, de abandonar a Fraternidade ou em não proceder conforme lhes era ordenado pelos arguidos AA, BB, CC e DD face ao poder que estes tinham em ambas as instituições e com receio de retaliações dos arguidos.
- 189. Os arguidos AA, BB, CC atuaram enquanto gerentes de facto e de direito da Fraternidade Missionária ... e do Centro Social de Apoio e Orientação ..., servindo-se do Carisma/Ideário da primeira, que dirigiam como queriam, também com o objetivo de, à custa do trabalho das arguidas, incrementarem o património do Centro Social, na modalidade de poupança de despesas, atuando em termos de exprimir e vincular tal IPSS.
190. Agiram os arguidos CC, AA e BB em conjugação de esforços e vontades, de forma livre, voluntária e conscientemente bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por Lei.

Considera-se como não provada a seguinte factualidade:
- [185.] Todas as ofendidas, face à atuação conjugada dos arguidos, ficavam totalmente subjugadas, pelo temor, às suas vontades.
- [186.] Os arguidos AA, BB, CC e DD exerciam uma completa relação de domínio sobre as ofendidas.
- [187.] Os arguidos trataram as ofendidas como se tratassem de propriedade sua, com total desumanização das ofendidas e limitação da sua liberdade de movimentos.
- [188.] As ofendidas viram-se impedidas de abandonar a Fraternidade e de não proceder conforme lhes era ordenado pelos arguidos AA, BB, CC e DD face ao poder que estes tinham em ambas as instituições e com receio de retaliações dos arguidos.
- A arguida DD agiu nos termos descritos nos pontos 185, 187, 189 e 190 dos factos provados.
         
III.2.1.6 Da alegada falta de concretização da matéria descrita nos pontos 20 e 185 a 190 dos factos provados [recursos dos arguidos BB e Centro Social de Apoio e Orientação ...]:
           
Neste ponto, invoca a recorrente BB, resumidamente [conclusões XVIII a XX], que os “factos” constantes no rol dos factos provados, nos itens 185 a 190, deverão ser considerados não escritos, por se tratar de “não factos” ou factos nulos, na medida em que são factos conclusivos, logo, insusceptíveis de serem subsumidos a uma qualquer previsão normativa, concretamente à hipótese legal do tipo de ilícito de “escravidão”, p.p. no artigo 159º do CP.
O recorrente Centro Social de Apoio e Orientação ... alega que os pontos 20, 186 e 189 contêm matéria conclusiva, genérica e indefinida que, por não sustentada em factos que a permitem concretizar temporal, espacial e circunstancialmente, violam de forma flagrante o Princípio da Presunção de Inocência e o Princípio do Contraditório (limitando e dificultando o direito de defesa da ora Recorrente) postulados nos n.ºs 1,2 e 5 do artigo 32.º da CRP; peticiona que seja determinada a desconsideração de tais factos para efeitos de condenação.
Vejamos.
Coligido o teor do número 20 dos factos provados, na redação alterada que em sede do presente recurso se fixou, conclui-se que o mesmo não encerra matéria “conclusiva, genérica e indefinida”.
A matéria que integra aquele ponto consubstancia factualidade que assume relevo para efeitos de enchimento do conceito legal de coautoria (cf. art. 26º do Código Penal), designamente no que concerne ao estabelecimento entre os arguidos de um acordo, em momento suscetível de concretização, pois que há referência às datas de constituição do Centro Social e da Fraternidade, identificadas noutros pontos prévios dos factos provados, aos respetivos contornos e desígnio desse plano conjunto, outrossim à forma como seria implementado na prática, que se mostram suficientemente descritos permitindo a sua cabal apreensão pelos sujeitos processuais, incluindo os arguidos, tanto mais que esses aspectos fácticos revelam-se mais vincadamente concretizados nos subsequentes itens dados como provados na decisão recorrida.
Por outro lado, conforme fomos deixando expresso no item anterior [III.2.1.5], a referência feita no ponto 20, na parte que ora foi considerada como não provada, e no ponto 185 dos factos provados a «clima de terror» deve ser eliminada dos factos provados (e não provados) por não se tratar realmente de matéria de facto, antes de alegação genérica, conclusiva, desprovida de essência fáctica.
Igualmente consideramos como vaga, não substantificada factualmente a alegação de ausência de “contrapartida (…) espiritual” usada no ponto 186 dos factos dados como provados no acórdão recorrido, pelo que deve ser considerada como “não escrita” e excluída da decisão sobre a matéria de de facto.
Diferentemente, a aparentemente vaga asserção “contrapartida material” revela-se suficientemente balizada na decisão pela referência feito no ponto 20 dos factos provados a uma contrapartida «financeira».   
Quanto ao mais, entendemos que o vazado nos pontos 185 a 190 dos factos provados corporiza matéria de facto, de conteúdo pertinente para o preenchimento dos elementos subjetivos do tipo legal do crime de escravidão cuja prática é imputada aos arguidos, não se tratando, como defende a recorrente, de meros conceitos genéricos, conclusivos ou jurídicos. 
Em conformidade, neste conspecto, procedem parcialmente os recursos apresentados pelos arguidos BB e Centro Social.

III.2.1.7 – Subsunção jurídica dos factos ao Direito. Sobre o crime de escravidão e da sua imputação a título de coautoria

Estatui o art. 159º do Código Penal, na redação introduzida pelo DL nº 48/95, de 15/03 [que reproduz, com pequenas alterações formais e diminuição da medida da pena, o art. 161º do Código Penal, na sua versão original, de 1982]:
“Quem:
a) Reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo; ou
b) Alienar, ceder ou adquirir pessoa ou dela se apossar com a intenção de a manter na situação prevista na alínea anterior;
é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.”

O citado preceito legal, prevendo o crime de escravidão, visou consagrar a que tal respeito se dispõe na Convenção de Genebra sobre a escravatura, assinada em 25/09/1926, pelo que o tipo legal deve ser interpretado e aplicado à luz dos conceitos e princípios constantes desse texto de Direito Internacional, conforme ditame constitucional expresso nos arts. 8º e 29º, nº2, da Constituição da República Portuguesa.
A definição de «escravatura» encontra-se vertida no art. 1º, §1, da mencionada Convenção nos seguintes termos: «o estado ou condição de um individuo sobre o qual se exercem todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade».
A proibição da escravatura mostra-se consagrada em outros textos de Direito Internacional.
Assim, preceitua o art. 4º da Declaração Universal dos Direitos do Homem: «Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos».
A predita proibição é igualmente determinada no art. 4º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: «1 – Ninguém pode ser mantido em escravatura ou servidão. 2 – Ninguém pode ser constrangido a realizar um trabalho forçado ou obrigatório», bem como no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, cujo art. 8º dispõe: «1 – Ninguém será submetido à escravidão; a escravidão e o tráfico de escravos, sob todas as suas formas, são interditos. 2 – Ninguém será mantido em servidão. 3 a) – Ninguém será constrangido a realizar trabalho forçado ou obrigatório».
Segundo a Convenção Suplementar de Genebra relativa à Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, de 1956, são condições análogas à escravidão todas as situações em que uma pessoa é reduzida à «categoria de mero objeto, coisa ou mercadoria». São elas a servidão por dívidas, a servidão da gleba, a alienação ou aquisição a qualquer título, do direito de disposição total sobre mulher ou menor.
Tais estados e condutas subsumem-se na descrição da alínea b) do art. 159º.     
O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, I Volume, Academia das Ciências de Lisboa, 2001, Verbo, pág. 1504, atribui à palavra “escravo” os seguintes significados: «1. Pessoa que não é de condição livre, que está sob a dependência absoluta de um senhor, de quem é propriedade, por nascimento, venda captura na guerra, condenação… 2. Pessoa privada de liberdade ou de direitos; pessoa submetida a um poder tirânico, a um governo despótico, ao domínio de uma nação estrangeira 3. Pessoa que se submete às vontades ou submete às ordens de outrem, que vive na sua inteira dependência, por razões económicas, sociais, afetivas… 4. Pessoa que está completamente dependente de alguma coisa ou cuja conduta. 5. Pessoa que trabalha em demasia.»; Ainda: «1. Que está sob a dependência absoluta de um senhor, que não goza de liberdade, não tem direitos cívicos. 2. Que é relativo pessoa que não é de condição livre, que é propriedade de um senhor. 3. Que está privado de liberdade ou de direitos; que está submetido a um poder tirânico, a um governo despótico. 4. Que é árduo, penoso. 5. Que vive totalmente dominado por alguém, que lhe obedece ou se lhe dedica inteiramente. 6. Que se encontra totalmente dominado por alguma coisa, dependente dela; cuja vida é guiada incessantemente pela consideração dominante de alguma coisa.»Como sagazmente se observa no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30/01/2013, Processo nº 1231/09.3JAPRT.P1, relator Desembargador José Piedade, acessível em www.dgsi.pt:
«Como é evidente, a integração contemporânea do conceito pouco ou nada tem a ver com o conceito de escravatura, quando foi decretada, em Portugal, a proibição do tráfico de escravos, em 1836.
O conceito tem de ser densificado perante as circunstâncias sociais, históricas e políticas contemporâneas, e de acordo com as concepções ético-filosóficas dominantes.
Assim, na previsão se pretende integrar, entre outras formas de “escravidão”, a laboral, em que a vítima seja sujeita a uma situação de servidão, sendo objecto de uma completa relação de domínio por parte do agente, vivenciando um permanente “regime de medo”, não tendo poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho e não recebendo qualquer parte da sua retribuição.
O trabalho efectuado em tal situação de servidão ter-se-á de considerar trabalho realizado em condições análogas às de escravo, em que a vítima, colocada sob o domínio do agente, é destituída de toda a dignidade inerente ao ser humano; tal como conclui o MºPº em 1ª Instância, estabelece-se “uma relação tal que o primeiro se apodera totalmente da liberdade pessoal do segundo, ficando este reduzido a um estado de passividade idêntica àqueles que viviam em cativeiro”.»
Também no aresto do Tribunal da Relação do Porto de 09.12.2015, Processo nº 9238/13.0TDPRT.P1, relator Desembargador Borges Martins, acessível em www.dgsi.pt, se chama a atenção para a circunstância de a incriminação em apreço se reportar à exploração do ser humano feita por outro, sem que se resuma à escravidão em sentido estrito (como perpetrada em outros momentos da História, particularmente em vetustos tempos), abarcando todas as formas de servidão.
Assim, como ali se articula, «Haverá sempre que densificar o conceito com as circunstâncias económicas, sociais e culturais de cada época; e dentro de cada conjunto destas não é unívoco», sendo certo que «Não releva a comparação com aquelas formas mais extremas de esclavagismo para excluir o presente tipo legal. A pág. 640 desta obra [Enciclopédia del Diritto, volume XLI, Giuffrè Editore, Milão, pág. 625, entrada “Schiavitù”] pode ainda ler-se: Com esta incriminação, o ordenamento jurídico quer reprimir a constituição ou manutenção de relações de senhorio/sujeição que, considerando a pessoa análoga a um animal ou a uma coisa, não a tratam de acordo com a sua natureza humana. Objecto da tutela é o interesse da sociedade no reconhecimento e salvaguarda da personalidade individual. Mais que a liberdade, objecto de tutela é a pessoa humana.
Já no Trattato di Diritto Penale Italiano, vol. VIII, pág. 633, Manzinni englova no conceito de escravidão «também as condições individuais que correspondem aos antigos institutos da semiliberdade e da servidão da gleba».
A condição análoga à escravidão em sentido estrito vem a ser a condição de um indivíduo que – por meio da actividade aplicada por outrem sobre a sua pessoa – se venha a encontrar (embora conservando nominalmente o status de sujeito do ordenamento jurídico) reduzido à exclusiva senhoria do agente, o qual materialmente o utiliza, apropria-se do seu rendimento, de modo similar aquele que – segundo o conhecimento histórico, reunido no actual património sócio-cultural dos membros da colectividade – o «senhor», em tempos, exercia o seu poder sobre o escravo – Paolo Pisa, Giurisprudenza Commentata di Diritto Penale, vol. I, Cedam, Padova, 1999, pág. 252.»
Observa-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.11.2013, Processo nº 322/04.1TAMLG.P1, relator Desembargador Augusto Lourenço, acessível em www.dgsi.pt: «[e]mbora julgando-se erradicado durante muito tempo, das chamadas sociedades “modernas e civilizadas”, assentes no Estado Social de garantia de plenos direitos a todos os cidadãos sem excepção, a verdade é que a realidade tem vindo a demonstrar um crescente aumento de uma nova modalidade de escravatura e de tráfico de pessoas com chocantes violações dos mais elementares direitos humanos../../../daniela.c.matos_st/Desktop/Proc  n ┬║ 355-15 - recurso penal-VW.doc - _ftn5, situada sobretudo a dois níveis», um deles, que releva para o caso sub judice, «a exploração laboral de mão-de-obra agrícola e industrial, em que as vítimas trabalham sem salários, sem liberdade e em regime de detenção ou carcere privado, muitas vezes passando fome e outras privações».
No pugnado sentido de que o conceito de escravidão contido no art. 159º, al. a), do CP contempla também os casos de servidão para a exploração do trabalho, veja-se ainda o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.11.2014, Processo nº 978/07.3PAESP.P1, relator Desembargador Artur Oliveira, disponível em www.dgsi.pt, onde se explicita que «A servidão constitui uma forma particularmente grave de negação da liberdade e uma realidade mais ampla que a invocada pelo sentido comum do termo “escravidão”», entendendo a Comissão Europeia dos Direitos do Homem a servidão como “a obrigação de viver e trabalhar na propriedade dos outros e de prestação de determinados serviços, remunerados ou não, bem como a impossibilidade de mudar a condição”.
Relativamente ao tipo objetivo do crime, considera Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 2008, UCE, anot. 4 ao art. 159º, págs. 428/9, que consiste «na redução de uma pessoa ao estado ou condição de escravo, isto é, de coisa sobre a qual se exercem os direitos de propriedade. A redução pode ser operada por qualquer meio. Ela não implica necessariamente um cativeiro da vítima, mas o cativeiro da vítima é um forte indício da existência de uma situação de escravidão. Trata-se de um crime de execução livre. Como concluiu o Conselho da Europa, na exposição de motivos da convenção sobre a acção contra o tráfico de seres humanos, a escravidão sexual, a escravidão laboral e a extração de órgãos são os meios de reduzir uma pessoa a escravo mais frequentes nas sociedades modernas.»
No que tange à «escravidão laboral», o insigne autor entende que para a sua verificação são exigidas cumulativamente duas condições: «por um lado, a vítima não tem qualquer poder de decisão sobre o número de horas de trabalho que tem de prestar e, por outro, a vítima não dispõe de qualquer parte da retribuição pelos serviços prestados.» [idem, nota 6, pág. 429].
O acórdão do Supremo Tribunal de 06.11.2014, proferido no Processo n.º 161/05.2JAGRD.C2.S1 – 5.ª Secção, relator Conselheiro Manuel Augusto de Matos, acessível em www.dgsi.pt, subscrevendo considerações tecidas no já itado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-11-2013, sublinha que «constituem traços característicos da escravidão: o trabalho forçado ou obrigatório, mediante a prática ou ameaça de qualquer tipo de castigo, ainda que ab initio o trabalho resulte de burla relativa a promessa de trabalho e emprego; o exercício de um direito de propriedade sobre a pessoa escravizada por parte de outrem, recorrendo a castigos ou a ameaças da sua prática; a desumanização; e a limitação da liberdade de movimentos.»
Como pertinentemente elucida Taipa de Carvalho in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, p. 423, «Elemento essencial e suficiente da caracterização de uma conduta como escravidão é que uma pessoa seja em si mesmo tratada como uma coisa de que o agente dispõe como sua propriedade. Não basta, portanto, que uma pessoa seja instrumentalizada como meio para a realização de determinados objetivos (…)»     
O elemento subjetivo do tipo é consubstanciado pelo dolo em qualquer das suas modalidades previstas no art. 14º do CP, sendo que no que respeita à conduta prevista na alínea b) não basta o dolo eventual, exigindo-se ainda um elemento subjetivo do ilícito ou dolo específico materializado na particular intenção de, pelo menos, ao apossar-se de alguém o fazer para a manter com o status de escravo.
A abominável prática da escravatura afeta sobremaneira e, frequentemente, de modo irreversível, a própria dignidade da pessoa humana, pelo que o bem jurídico protegido pela incriminação é a «dignidade ou personalidade humana individual» (cf. Taipa de Carvalho, idem, e Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, in “Código Penal Anotado e Comentado”, 2ª Edição, anot. 3 ao art. 159º, p. 465; na jurisprudência, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2017, Proceso nº 355/15.2T9VFR.P1.S1, relator Conselheiro Manuel Augusto de Matos e o já citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.12.2015).  
Retornando ao caso sob apreciação.
Atendendo à globalidade da factualidade dada por provada e não provada, conclui-se que aquela não permite o preenchimento integral dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal dos crimes de escravidão, previstos e punidos pelo art. 159º, alínea a), do Código Penal, imputados aos arguidos, em coautoria.
Com efeito, as condutas perpetradas pelos arguidos não minoraram as ofendidas ao ponto de as converter em “escravas”, isto é, seres humanos tratados como “coisas”.
Não obstante os condicionamentos à autodeterminação e manifestação da vontade das ofendidas/assistentes derivados dos comportamentos intimidatórios e agressores do seu bem-estar físico e psíquico adotados pelos arguidos AA, CC e BB, as ofendidas nunca se encontraram absolutamente amputadas do seu discernimento, da sua capacidade de autodeterminação e, menos ainda, da sua liberdade.  
As ofendidas nunca foram remetidas a uma condição sub-humana, desprovida de direitos, de afetos, nunca foram tratadas como meros objetos, dos quais os seus donos ou detentores põem e dispõem a seu bel-prazer, sem atender aos seus interesses e vontades.
Apurou-se que na sequência do temor que as assistentes sentiam face aos impropérios, agressões e castigos que sofriam pessoalmente ou que, cometidos sobre outrem, presenciavam, não tinham poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação de trabalho que era exigida e fixada pelos arguidos (exceto pela arguida DD). Porém, não se provou que esse circunstancialismo em que decorreram os factos tivesse, adequada e causalmente, impedido as ofendidas de reagir contra a própria obrigação de prestarem trabalho ou, pelo menos, de executarem determinadas tarefas consideradas excessivamente árduas, designadamente, abandonando a Fraternidade. Ou seja, independentemente de as ofendidas não serem ouvidas sobre o tipo e horário de prestação do trabalho que lhe era imposto pelos gerentes da instituição, limitando-se a cumprir as ordens que lhes eram dirigidas por estes, sempre aquelas dispunham do poder, da faculdade intelectual e física, de negarem a execução dessas tarefas, fossem elas quais fossem, porquanto bastava-lhes sair do convento, ainda que isso implicasse o indesejado abandono da sua formação/vocação religiosa que ali empreendiam ou julgavam empreender (se considerarmos a vertente de falta reconhecimento pela competente entidade eclesiástica).
No ajuizado caso, inexistiu por parte dos arguidos esbulho do salário, com a consequente privação do mesmo por parte das vítimas, uma vez que estas não tinham qualquer expetactiva de auferirem uma remuneração monetária pelos trabalhos que desempenhassem em prol da Fraternidade Missionária .... A sua entrada e permanência nessa instituição visou a sua formação enquanto religiosas, com celebração dos respetivos votos, o que implicava que cada uma delas contribuísse com o seu trabalho para o bem comum, mediante a realização das tarefas imprescindíveis à munutenção e funcionamento do convento e do associado Centro Social e concomitante prossecução das respetivas finalidades estatutárias.   
Não se verifica ainda o típico, frequentemente existente confinamento da vítima a espaços sem condições de higiene ou salubridade. Neste conspecto, não se assume como tal o transtitório e excecional período de tempo em que as ofendidas EE, GG, II e HH, por motivos solidários e não por castigo, tiveram que dormir no chão com um canídeo que estava doente (cf. facto provado nº 64).
Acresce que as apuradas circunstâncias de as ofendidas terem sido sujeitas, em determinadas e especificadas condiçõe descritas nos pontos relativos a cada uma delas, a escassez de alimentação e de restrição da sua comunicação com o exterior, nomeadamente com a família, não podem também deixar de ser interpretadas, no geral, naquilo que não constitui já castigo intolerável (como infra abordaremos), à luz da vivência religiosa que era imposta às noviças/freiras, e a que estas livremente se submetiam, caraterizada pela frugalidade, pobreza e um certo isolamento social, um recato autoimposto, tudo por força da vida de sacrifício por elas assumida, em nome de Deus.      
Enfim, não se provou que os arguidos exerciam uma completa relação de domínio sobre as assistentes, tendo-lhes sugado totalmente a vontade e a liberdade ou sequer que pretendessem agir dessa forma, dolosamente.
Não se provou que os arguidos tivessem toldado por completo ou, pelo menos, de modo terminante, a liberdade de movimentos das ofendidas, que tivessem negado ou restringido de modo relevante o seu sustento alimentar e demais necessidades básicas.
As vítimas não perderam toda a dignidade humana, não se viram sonegadas de toda a autonomia e poder de decisão sobre a sua própria pessoa.
Assim, não se mostra preenchida a tipicidade objetiva e subjetiva do crime de escravidão em apreço, cumprindo absolver os arguidos da sua imputada prática.

Dito isto, como já alvitrado no despacho que comunicou à defesa dos arguidos uma eventual alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação/pronúncia, entendemos que os factos considerados provados no que tange às ofendidas menores de 16 e 18 anos à data dos ajuizados acontecimentos, permitem subsumi-los juridicamente a crimes de maus tratos.

Prescrevia o art. 153º do Código Penal de 1982, na sua redação originária (DL 400/82, de 23.09), sob a epígrafe “Maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges”):

“1 - O pai, mãe ou tutor de menor de 16 anos ou todo aquele que o tenha a seu cuidado ou à sua guarda ou a quem caiba a responsabilidade da sua direcção ou educação será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa até 100 dias quando, devido a malvadez ou egoísmo:
a) Lhe infligir maus tratos físicos, o tratar cruelmente ou não lhe prestar os cuidados ou assistência à saúde que os deveres decorrentes das suas funções lhe impõem; ou
b) O empregar em actividades perigosas, proibidas ou desumanas, ou sobrecarregar, física ou intelectualmente, com trabalhos excessivos ou inadequados de forma a ofender a sua saúde, ou o seu desenvolvimento intelectual, ou a expô-lo a grave perigo.
2 - Da mesma forma será punido quem tiver como seu subordinado, por relação de trabalho, mulher grávida, pessoa fraca de saúde ou menor, se se verificarem os restantes pressupostos do n.º 1.
3 - Da mesma forma será ainda punido quem infligir ao seu cônjuge o tratamento descrito na alínea a) do n.º 1 deste artigo.”
Entretanto, entrou em vigor o Código Penal Revisto aprovado pelo DL 48/95, de 15.03, que no art. 152º, com a epígrafe “Maus tratos ou sobrecarga de menores, incapazes ou cônjuge”, estatuía:
“1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou como subordinado por relação de trabalho, pessoa menor, incapaz, ou diminuída por razão de idade, doença, deficiência física ou psíquica e:
a) Lhe infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente;
b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;
é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144.º
2 - A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges maus tratos físicos ou psíquicos. O procedimento criminal depende de queixa.
3 - Se dos factos previstos nos números anteriores resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.”
Assim, entre o mais, o novo regime penal incriminador dos maus tratos extendeu a idade da vítima Menor até aos 18 anos e prescindiu ao nível da atuação objetiva que a mesma fosse motivada por “malvadez ou egoísmo” do agente.
Para além de outras alterações que não contendem com os concretos normativos aplicáveis ao ajuizado caso, a Lei nº 65/98, de 02.09, modificou a redação do corpo do nº1 do art. 152º, que passou a ser a seguinte: “1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez […]”.
O artigo em questão sofreu novas alterações introduzidas pela Lei nº 7/2000, de 27.05, sem que, contudo, interfiram com os preceitos cuja aplicação no caso cabe aquilatar.

Por fim, o crime de maus tratos passou a estar previsto no artigo 152º-A do Código Penal, aditado pela Lei nº 59/2007, de 04.09, com a retificação nº 102/2007, de 31.10 (com a epigrafe “Maus tratos”), agora apartado do autónomo crime de violação de regras de segurança (que agora constitui o aditado art. 152º-B), e com a seguinte redação:
“1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;
b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.”

Desde a sua primeira previsão legal que o tipo de ilícito de maus tratos pretendeu responder à crescente consciencialização ético-social de necessidade de punição de formas de violência frequentemente exercidas no contexto, familiar, escolar/ educacional e laboral.   
Nessa senda, a Proposta de Lei n.º 98/X, Anteprojecto da Lei nº 59/2007, de 4 de setembro, no seu ponto 2, refere que a respetiva revisão do Código Penal procura fortalecer a defesa dos bens jurídicos e, especialmente, «o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica, maus tratos ou discriminação».
A incriminação visa essencialmente os maus tratos perpetrados nas escolas, hospitais, creches, infantários, lares de idosos ou outras instituições.
O tipo objetivo do crime de maus tratos materializa-se pela prática de maus tratos físicos ou psíquicos (incluindo “castigos corporais”, “privações da liberdade” e “ofensas sexuais”), no tratamento cruel, no emprego em atividades perigosas, desumanas ou proibidas ou na sobrecarga com trabalhos excessivos de pessoa menor ou particularmente indefesa – assim, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 2008, UCE, anot. 3 ao art. 152º-A, p. 408.
Trata-se de um crime específico, dado exigir uma relação de guarda ou vigilância entre o agente e o sujeito passivo.
O legislador presume especialmente indefeso o indivíduo menor (de 16 anos ou, desde 1995, de 18 anos), considerando-o uma pessoa em situação de especial vulnerabilidade, mais exposto a ataques à sua pesssoa provindos de terceiros de quem depende laboralmente ou a quem cabe a responsabilidade da sua direção ou educação.
A conduta objetiva típica pode assumir várias formas: a) maus tratos físicos, correspondendo a condutas suscetíveis de constituírem ofensas à integridade física; b) maus tratos psíquicos, incuindo a prolação de expressões intimidatórias, difamatórias ou injuriosas ou o exercício de coação sobre a vítima, a privação ou restringimento da sua liberdade (de movimentação, de decisão); c) em ambas as vertentes se podem incluir os castigos corporais, dependendo do grau de ofensa ao corpo do ofendido, sendo que podem constituir meras humilhações; d) ofensas sexuais, abarcando a coação, a importunação e o abuso sexuais; e) tratamento cruel, consistente na adoção pelo agente de comportamentos deliberadamente causadores à vítima de dor ou sofrimento, comprazendo-se o agressor com o sofrimento que causa; trata-se da realização sobre a vítima de condutas desumanas, degradantes, impiedosas ou demasiado severas face ao fito de causação de dor, humilhação, satisfação sexual, etc.        
Como observa Américo Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, nota § 8 ao art. 152º, p. 333, a sobrecarga com trabalhos excessivos consiste na atribuição de «trabalhos que, embora em si legítimos e adequados à idade e à saúde, sejam, todavia, manifestamente excessivos (o que, p. ex., pode mesmos acontecer com as lides domésticas)». Neste caso estamos perante um crime de mera conduta, não se exigindo para a consumação a verificação do resultado, da efetiva “sobrecarga” do sujeito passivo.
A consubstaciação das várias condutas que integram a tipicidade objetiva do ilícito criminal em apreço é operada no acórdão do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.02.2023, Processo nº 1549/19.7T9SNT.L1-3, relatora Cristina Almeida e Sousa, acessível em www.dgsi.pt, nos seguintes moldes:
«Constituem formas de maus tratos, relevantes para a tipificação contida no art. 152º A do Código Penal: qualquer forma de agressão física (espancamentos, golpes, queimaduras, fracturas, administração abusiva de fármacos ou tóxicos, relações sexuais forçadas), que se reconduzem à modalidade maus tratos físicos; os maus-tratos psicológicos ou emocionais, que se materializam em condutas que causam dano psicológico, como manipulação, ameaças, humilhações, chantagem afectiva, desprezo ou privação do poder de decisão, negação do afecto, isolamento e marginalização; a negligência traduzida em não satisfazer as necessidades básicas (negação de alimentos, cuidados higiénicos, habitação, segurança e cuidados médicos) que se reconduz a tratamento cruel, assim como condutas de abuso económico, como sejam, impedir o uso e controlo do próprio dinheiro, exploração financeira e chantagem económica, ou permitir a exposição incontrolada a formas de auto-negligência resultantes da incapacidade de um indivíduo desempenhar tarefas de cuidado consigo próprio indispensáveis à sua sobrevivência e à satisfação de necessidades essenciais do quotidiano.» 
Como vimos, aquando da vigência da norma incriminadora anterior à conferida pelo DL nº 48/95, o tipo objetivo impunha que a conduta do sujeito ativo fosse executada a título de malvadez ou egoísmo, isto é, que o autor tenha agido perversamente ou apenas preocupado consigo, desprezando os eventuais sentimentos da vítima.
Conforme expendido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.02.2020, Processo nº 61/17.3JAGRD.C1, relatora Helena Bolieiro, disponível em www.dgsi.pt, «À semelhança do que sucede com a violência doméstica (artigo 152.º do Código Penal) o tipo incriminador dos maus tratos protege o bem jurídico saúde, tomado na acepção complexa que abrange a saúde física, psíquica e mental, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos.
(…)
Tipo objectivo que, como acima foi dito, tutela um bem jurídico complexo que radica na dignidade da pessoa humana, pelo que, para constituir maus tratos, a conduta apurada deve consubstanciar uma ofensa que, pelas suas características (a analisar no caso concreto, à luz do específico contexto relacional existente entre o agente e a vítima, correspondente a um dos descritos no corpo do n.º 1 da norma incriminadora), se reflecte negativamente na saúde física, psíquica ou mental da vítima e conduz à degradação da sua dignidade pessoal.
Os actos praticados pelo agressor que, como acima ficou dito, podem ser de várias espécies, são considerados na sua integração num comportamento global dotado de uma unidade de sentido de ilicitude, cujo elemento característico corresponde, precisamente, ao tipo dos maus tratos, previsto no artigo 152.º-A do Código Penal.»
O elemento subjetivo do tipo preenche-se com o dolo, em qualquer das suas modalidades (cf. art. 14º do CP).
O crime de maus-tratos assume natureza pública, não necessitando de queixa e acusação particular por parte do ofendido para que tenha lugar o procedimento criminal contra o agente. 
Volvendo ao caso sub judice.
A assistente II nasceu no dia ../../1989 e ingressou na Fraternidade Missionária ... no dia ../../2004, com 15 anos de idade, onde se manteve até ao dia 21 ou 22 de novembro de 2013 - cf. ata de audiência de julgamento de 01.06.2021, em que prestou declarações, e facto provado no ponto 26.
A Assistente JJ nasceu no dia ../../1988 e ingressou na Fraternidade Missionária ... em abril de 2005, com 16 anos de idade, onde se manteve até janeiro de 2007 - cf. ata de audiência de julgamento de 01.06.2021, em que prestou declarações, e facto provado no ponto 26.
A assistente HH ingressou na Fraternidade Missionária ... em abril de 1990, com 15 anos de idade, onde se manteve até ao dia ../../2015; voltou a ingressar em 07.01.2016, ali permanecendo desde então - cf. ata de audiência de julgamento de 06.07.2021, em que prestou declarações, e facto provado no ponto 26.
A ofendida KK ingressou na Fraternidade Missionária ... em junho de 2008, com 14 anos de idade, onde se manteve até ../../2009 - cf. declarações prestadas na sessão de audiência de julgamento de 21.09.2021 (a respetiva ata é omissa quanto ao seu depoimento) e facto provado no ponto 26.
Assim, as supramencionadas ofendidas experienciaram a vivência no seio da Fraternidade enquanto ainda eram menores, com idades compreendidas no intervalo legal a que aludem os sobreditos citados preceitos legais que desde 1982 prevêm a incriminação de maus-tratos a menores.
Nada se provou que exclua a legalmente assumida especial vulnerabilidade (física e/ou psíquica) daquelas pessoas derivada da sua juvenil idade.      
Por outro lado, estas ofendidas, noviças, durante o período em que, ainda menores, estiveram naquela instituição mantiveram-se sob a direção dos arguidos CC, BB e AA, que eram quem, estatutariamente e na prática, geria a Fraternidade – cf. factos provados nos pontos 16, 18 e 19, com a redação conferida em sede do presente recurso.             
Assim, as ofendidas, que ali viviam a tempo inteiro, encontravam-se subordinadas ao cumprimento das regras vigentes na instituição e, como tal, deviam acatar as orientações, ordens e diretivas emanadas dos aludidos arguidos enquanto representantes dos corpos gerentes da Fraternidade.
Dito isto, julgamos que, atenta a factualidade provada, se mostra demonstrado o cometimento pelos arguidos CC, AA e BB de maus-tratos sobre as quatro referidas ofendidas, enquanto menores.

No caso da ofendida KK, ressuma da factualidade apurada sob os nºs 86 a 102 que no período compreendido entre a sua entrada para a Fraternidade, em junho de 2008, com 14 anos de idade, até ao momento em que abandonou a instituição, em ../../2009, ainda menor, aquela foi sujeita a plúrimas condutas que atentaram contra o seu bem-estar físico e psíquico.
Assim, foi alvo de reiteradas, quase diárias, agressões físicas, perpetradas pela arguida BB, que incluíram o desferimento de uma pancada nas costas com uma vassoura, com tal força que partiu esse objeto, dezenas de bofetadas na cara, sendo que para além de todas as dores provocadas, uma delas atingiu o nariz da Menor e fê-la sangrar, sem que a arguida tivesse lamentado o facto, antes o menosprezando, em tom irónico.
Todas as ocorridas ofensas sucederam por motivos fúteis, desprezíveis, como manchar um chão que estava a ser limpo, não avisar que tinha limpo um corredor da casa, não pegar bem na faca ou não cortar bem um frango ou por ter deixado cair uma folha de alface ou de espinafre.             
Ao longo do lapso temporal em questão, quase diariamente, foram dirigidos pelos arguidos à ofendida vitupérios, melhor concretizados no ponto 29 dos factos provados.  
A menor KK foi ainda sujeita a vários castigos, tais como trabalhar várias horas seguidas sem poder beber água, jantar de joelhos no chão e com o prato em cima da mesa (uma vez por semana), ter sido várias vezes impedida de tomar o pequeno-almoço e obrigada a dormir, por duas noites, no chão.
Os ditos arguidos não providenciaram, como lhes competia, para que a ofendida tivesse tido os cuidados médicos e medicamentosos de que necessitava em função do seu crónico problema de saúde (asma).
Tais comportamentos mostram-se gratuitos, sem a mínima justificação para a sua prática, não sendo exigidos, sequer tolerados, pela formação religiosa que cabia aos arguidos fornecer às noviças.
As preditas condutas, globalmente valoradas, pela sua reiteração e gravidade, refletem um tratamento degradante, aviltante da vítima, adequado a lograr o seu rebaixamento enquanto pessoa, a afetar a sua dignidade humana, como sucedeu – cf. factos nºs 185 a 188.   
             
No caso da assistente HH, ressuma da factualidade apurada sob os nºs 106, 107 e 112 que no período compreendido entre a sua entrada para a Fraternidade, em abril de 1990, com 15 anos de idade, até ao dia em que completou 16 anos de idade, em ../../1991, aquela foi sujeita a plúrimas condutas que atentaram contra o seu bem-estar físico e psíquico.
Note-se que só consideramos o período decorrido até a ofendida HH ter perfazido 16 anos de idade, porquanto a norma incriminadora vigente à data do início dos factos previa essa idade como constituindo o limite para o preenchimento da tipicidade; jovens com 17 ou 18 anos não estavam abrangidos pela previsão normativa. Quando ocorreu a alteração legislativa de 1995, que estendeu a punibilidade deste tipo de condutas até ao termo da menoridade da vítima, isto é, aos 18 anos, já a assistente era maior de idade, razão pela qual o novo regime punitivo não é aplicável.
Posto isto, cumpre considerar que a assistente HH, no apontado período de tempo, foi alvo de reiteradas agressões físicas, perpetradas pela arguida BB, mediante o desferimento de pancadas com vassouras, instrumentos de lavoura ou mangueiras, assim lhe causando, hematomas e, numa dessas ocasiões, sangramento da testa.
Durante aquele período de tempo, a assistente também foi objeto dos insultos descritos no ponto 29 dos factos provados, proferidos principalmente pelos arguidos AA, BB, mas também pontualmente pelas arguidas CC e DD.
As mencionadas condutas dos arguidos ocorreram sem motivo justificativo, situando-se muito para além das exigências decorrentes do processo de formação religiosa das ofendidas.
Os ajuizados atos revelam desumanidade e um propósito egoísta, pois que também visavam obter benefício económico para as instituições em apreço, com absoluta desconsideração pelos interesses pessoais das vítimas.  
As preditas condutas, globalmente valoradas, pela sua reiteração e gravidade, refletem um tratamento degradante, aviltante da vítima, adequado a lograr o seu rebaixamento enquanto pessoa, a afetar a sua dignidade humana, como sucedeu – cf. factos nºs 185 a 188.

Não valoramos para este efeito o episódio descrito no ponto 110 dos factos provados, porquanto o mesmo sucedeu “nos primeiros anos em que permaneceu na Fraternidade”, sendo que se entendermos essa asserção como se referindo, pelo menos, aos dois primeiros anos, ocorre legítima dúvida sobre se esse evento sucedeu no segundo ano e, nesse caso, antes ou depois de a assistente HH perfazer 16 anos. Logo, apelando ao princípio processual penal in dubio pro reo, essa incerteza quanto à prova da data desta ocorrência há de ser interpetrada pela forma que se mostra mais favorável aos arguidos e, como tal, as respetivas condutas não podem ser valoradas para este efeito.

Relativamente à assistente II, decorre da factualidade apurada sob os nºs 141 a 144 e 163 que no período compreendido entre a sua entrada para a Fraternidade, no dia 8 de agosto de 2004, com 15 anos de idade, até ao momento em que perfez 18 anos de idade, em 10.05.2007, aquela foi sujeita a plúrimas condutas que atentaram contra o seu bem-estar físico e psíquico.
Com efeito, foi agredida fisicamente e castigada, principalmente pela arguida BB com conhecimento e anuência dos arguidos AA, CC e DD, com uma frequência praticamente diária, com puxões de cabelo e com pancadas com vários objetos.
Entre essas agressões, conta-se uma ocorrida no ano de 2005, por motivo fútil, ocasião em que no momento em que II estava a lavar a varanda de uma casinha de madeira com uma vassoura e água tocou numa planta, sendo que a arguida BB apercebendo-se do sucedido desferiu-lhe uma bofetada, causando-lhe dores.
Ao longo do lapso temporal em questão, quase diariamente, foram dirigidos pelos arguidos à ofendida impropérios, melhor concretizados no ponto 29 dos factos provados.  
A menor II foi ainda sujeita a restrições à sua liberdade e a atos tendentes a promover a sua exclusão social, tendo sido impedida pelos arguidos BB, AA e CC de visitar os seus familiares e impedida de fazer e receber chamadas telefónicas e impedida de ver televisão.
Tais comportamentos revelam-se injustificados, intoleráveis, ainda que apreciados sob o prisma do processo de formação religiosa que cabia aos arguidos fornecer às noviças.
As sobreditas condutas, concatenada e globalmente valoradas, pela sua reiteração e gravidade, refletem um tratamento degradante, de rebaixamento, achincalhação da vítima, adequado a lograr o seu apoucamento enquanto pessoa, a afetar a sua dignidade humana, como sucedeu – cf. factos nºs 185 a 188.   

Não valoramos para este efeito os episódios descritos nos pontos 145 e 146, 158 e 159 dos factos provados, porquanto o primeiro sucedeu “no ano de 2007”, desconhecendo-se se antes ou depois de a assistente II perfazer 18 anos. De igual modo, desconhece-se a concreta data de ocorrência dos eventos narrados nos pontos 158 e 159. Logo, apelando ao princípio processual penal in dubio pro reo, essa incerteza quanto à prova da data destas ocorrências há de ser interpetrada pela forma que se mostra mais favorável aos arguidos e, como tal, as respetivas condutas não podem ser valoradas para este efeito.

No que concerne à assistente JJ, decorre da factualidade apurada sob os nºs 182 a 184 que no período compreendido entre a sua entrada para a Fraternidade, em abril de 2005, com 16 anos de idade, até ao momento em que perfez 18 anos de idade, em 23.07.2006, aquela foi sujeita a plúrimas condutas que atentaram contra o seu bem-estar físico e psíquico.
Com efeito, a arguida BB, com conhecimento e anuência dos arguidos AA e CC, com uma frequência praticamente diária, puxou-lhe os cabelos e desferiu-lhe pancadas com vários objetos.
Ao longo do lapso temporal em questão, quase diariamente, foram dirigidos por aqueles arguidos à ofendida vários impropérios, melhor concretizados no ponto 29 dos factos provados.  
Apurou-se ainda que, em consequência das condutas dos arguidos BB, CC e AA, a ofendida JJ sofreu dores e pisaduras e passou a padecer de problemas psíquicos.

Tais comportamentos revelam-se injustificados, intoleráveis, ainda que apreciados sob o prisma do processo de formação religiosa que cabia aos arguidos prover às noviças.
Na sua configuração global, os ajuizados atos exteriorizam um padrão de atuação violento, de desrespeito pela dignidade da pessoa das vítimas e de desejo de prevalência, dominação e controlo sobre as mesmas.
Assim, as sobreditas condutas, concatenada e globalmente valoradas, consubstanciam um tratamento degradante, de humilhação da vítima, adequado a lograr o seu rebaixamento enquanto pessoa, a afetar a sua dignidade humana, como sucedeu – cf. factos nºs 185 a 188. 

Os arguidos BB, CC e AA atuaram em todas as mencionadas condutas com conhecimento dos respetivos concretos comportamentos adotados sobre as ofendidas menores, de que os mesmos eram suscetíveis de causar às vítimas resultados danosos ao nível do seu normal desenvolvimento, da sua saúde física, psíquica ou mental, da sua consideração enquanto pessoas, de afetar a sua dignidade, como efetivamente sucedeu, sendo que as suas condutas e os resultados delas decorrentes foram previstos e desejados pelos arguidos – cfr. factos provados nos pontos 20 a 34 e 185 a 189.
Atuaram, pois, os arguidos com dolo direto ou de primeiro grau (cf. art. 14º, nº1, do CP). 
Provou-se também que “agiram os arguidos em conjugação de esforços e vontades, de forma livre, voluntária e conscientemente bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por Lei.” – ponto 190 dos factos provados –, ou seja, com consciência da respetiva ilicitude.
Por conseguinte, mostram-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de maus-tratos, supra enunciados, assim como se verifica a exigível consciência da ilicitude que, atenta a ação livre e voluntária, permite dirigir aos agentes um juízo de censura por, podendo fazê-lo, não terem conformado a sua atuação ao direito, assim se afirmando a sua culpa.    

Como refere Maria da Conceição Valdágua (A Autoria Mediata no Âmbito da Criminalidade Organizada), referindo-se ao artigo 26º do Código Penal e citada por Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette[12], «esta disposição legal descreve sucessivamente quatro formas de comparticipação criminosa, em cada uma das quais o agente é, invariavelmente, “punível como autor”, consistindo a primeira e a terceira na prestação de contributos de natureza material e as duas restantes na prestação de contributos de natureza moral ou psíquica. Trata-se, concretamente, das formas de comparticipação criminosa que, na literatura juspenalista portuguesa, são designadas por autoria imediata, autoria mediata, co-autoria e instigação, as quais, nos termos da lei, consistem, respetivamente, em: 1) executar o facto por si mesmo; 2) executá-lo por intermédio de outrem; 3) tomar parte direta na execução do facto, por acordo ou conjuntamente com outro ou outros; 4) determinar dolosamente outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução»          
A coautoria implica a execução conjunta do facto pelos agentes, com base num acordo firmado entre eles (expresso ou tácito, prévio ou concomitante à execução) sobre a repartição de tarefas, com o fito comum de realização do facto. Exige-se, por via da existência do acordo, a consciência bilateral de colaboração entre os participantes.
Como se expressa no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/2014, processo nº 168/11.0GCCUB.S1, disponível em www.dgsi.pt: «Quando vários arguidos realizam, em comum, um facto ilícito, todos são autores (a própria lei denomina neste caso os intervenientes como «co-autores»). A co-autoria também se baseia no domínio do facto. Porém, a partir do momento em que na sua execução intervêm vários autores o domínio do facto tem de ser comum, cada co-autor domina o processo total em união com outra ou outras pessoa, consistindo assim numa «divisão de trabalho», que torna possível o facto ou que facilita o risco e requer, no aspecto subjectivo, que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma una resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto uma tarefa parcial mas essencial que o apresenta como co-titular da execução de todo o processo.»

No mesmo sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.12.2017, processo nº 470/16.5JACBR.S1, disponível em www.dgsi.pt:
«A co-autoria, como tal referida na tipologia das formas de autoria (3.ª alternativa), configura uma forma de participação em que o domínio do facto (na esteira de Roxin) é exercido com outro ou outros, tratando-se de um domínio, agora, “colectivo”, ou de um condomínio de facto, na expressão de Figueiredo Dias (“Direito Penal, Parte Geral”, I, 2.ª ed., reimp., Coimbra Editora, pág. 791).
Segundo este autor, o que há de característico nesta figura é uma decisão conjunta e uma determinada medida de significado funcional da contribuição do co-autor para a realização típica traduzida na tomada de parte directa na execução conjunta do facto.
A actuação de cada autor é essencial na execução do plano comum, ela sendo a tarefa com vista à realização desse plano.
O acordo ou a decisão conjunta representa a componente subjectiva da co-autoria e é esse elemento que permite justificar que o agente que levou a cabo apenas uma parte da execução típica responda, afinal, pela totalidade do crime.
O acordo pode ser expresso ou tácito (implícito), a aferir razoavelmente dos factos materiais comprovados e ao qual se pode aderir antes do início da execução do facto (como é a regra), ou durante a realização do facto e até à consumação (co-autoria sucessiva) e, desde que se não comparticipe na totalidade dos actos, o contributo de cada um para o facto tem de ser essencial à produção do resultado.
O co-autor, ao aderir ao plano inicial, torna-se senhor do facto, que domina globalmente tanto pela positiva, quando assume um poder de direcção preponderante na execução conjunta do facto, como pela negativa, quando está nas suas mãos poder impedir o facto (Acs. STJ de 05.06.2012, Proc. 148/10.3SCLSB.L1.S1 e 04.07.2013, Proc. 1243/10.4PAALM.L1.S1).
Quanto à execução conjunta, o domínio do facto assenta numa repartição de tarefas, sendo indispensável que do contributo objectivo dependa o se e o como da realização típica e não apenas que o agente se limite a oferecer ou pôr à disposição os meios de realização (Figueiredo Dia, ob. cit., pág. 795).
Sintetizando, a co-autoria apresenta como elementos integrantes: um acordo, expresso ou tácito para a realização conjunta de uma acção criminosa (a)); intervenção directa na fase executiva do crime (b)); repartição de tarefas ou papéis entre cada comparticipante (c)); domínio funcional do facto, traduzido na possibilidade de exercer o domínio positivo do facto típico e de impedir ou abortar esse resultado (d)).»
No caso vertente, a factualidade apurada nos pontos 18 a 42, 87, 98, 102, 105, 112, 142, 163, 183 e 184 permite afirmar uma comparticipação criminosa, em forma de coautoria, em que foram sujeitos ativos os arguidos BB, CC e AA.
Os mencionados arguidos, enquanto dirigentes das instituições em questão, Fraternidade Missionária e Centro Social, cada um deles com funções em determinadas áreas de exercício da atividade das ditas pessoas coletivas, que geriam conjuntamente, gizaram um plano que, resumidamente, se propunha a aproveitar economicamente a favor do Centro Social o trabalho a desempenhar pelas menores que ingressavam na Fraternidade/“convento”, com o intuito de ali exercerem a sua vocação religiosa, obrigando-as a laborar mais do que a sua idade aconselharia ou permitiria, o que logravam mediante o condicionamento da vontade das ofendidas, quer por via dos descritos abusos e agressões físicas e psíquicas que eram cometidos sobre si e outros que viam ser perpetrados sobre outras noviças/irmãs, quer através da persistente chantagem emocional que sobre as vítimas era exercida no sentido de que deviam obediência às ordens que lhe eram dirigidas, habitualmente pela arguida BB, pois só dessa forma agradariam ao Deus que veneravam e não seriam (ou as respetivas famílias) por ele punido.
Em todas as ocasiões concretas em que cada um dos arguidos BB, CC e AA agiu, fê-lo em conformidade com o plano por todos aceite e na visada execução do mesmo, isto é, em conjugação de esforços e vontades, dividindo as tarefas entre si, com maior ou menor incidência para cada um, mas sempre com um escopo comum.   

Distintamente, não se provou que a arguida DD participou na concepção ou aderiu ao plano firmado e executado pelos demais arguidos e, nas concretas situações em que agiu, fê-lo em conjugação de esforços e vontades com aqueles. Aliás, quanto às ofendidas menores em apreço não foi provado que a arguida DD tivesse pessoalmente cometido qualquer procedimento violento ou insultuoso sobre as mesmas ou outro potencialmente punível criminalmente.

III.2.1.8 – Do alegado consentimento relevante das ofendidas como causa de exclusão da ilicitude (art. 38º do Código Penal):   
 
No pressuposto de se manter inalterada a matéria de facto dada como provada em primeira instância – que, como vimos, não sucede -, alegam os arguidos/recorrentes CC, AA e DD, em síntese [conclusões 197 a 231 do recurso dos primeiros e 65 a 99 do recurso desta última], que:
- Para estarmos perante um crime de escravidão, mister se torna que, sem ou contra a vontade do ou dos titulares dos bens jurídico-penais, sendo estes disponíveis, não violando os “bons costumes” e obedecendo aos demais requisitos do art. 38.º do CP, inexista qualquer tipo de consentimento – expresso, tácito ou por actos concludentes – que exclua a tipicidade da conduta.
- O ou os ofendidos têm de ser reduzidos à condição de um simples objecto em relação ao qual se exerçam todas as faculdades inerentes ao direito real de propriedade, de tal forma que não reste nenhum espaço de liberdade ou de iniciativa para quem se vê reduzido à condição ou ao estado de escravo/a. Não é isto que se retira do acervo factual dado como provado, na medida em que não há uma limitação total, por parte dos arguidos, em relação às alegadas ofendidas.
- As pretensas ofendidas não se encontravam encerradas nas instalações da Fraternidade, como se de um cárcere privado se tratasse, tendo várias delas daí saído para receber cuidados médicos, para visitar a família e também – e sobretudo –, várias delas, de livre e espontânea vontade, sem que os arguidos lhes tivessem colocado qualquer obstáculo, saíram da instituição.
- Todas as acções e omissões que os arguidos empreenderam eram orientadas para o cumprimento das regras da Fraternidade e da educação das noviças para o serviço a Deus.
- Podemos gostar mais ou menos das mesmas, no entanto, atento o direito constitucional da liberdade religiosa, de crença, de culto e de pensamento do art. 41.º da CRP, não violando outros bens jurídicos, é materialmente inconstitucional a interpretação segundo a qual cabe ao Estado, através dos seus tribunais, como órgão de soberania, aquilatar da correcção ou não de tais práticas. Bastará recordar o que sucede em várias congregações religiosas também catolicamente erectas, bem como em prelaturas pessoais de Sua Santidade o Papa, como o Opus Dei, onde as mortificações e os castigos corporais fazem parte do modo de vivência dos ensinamentos católicos – concorde-se ou não com eles, mas tendo de ser respeitado por via do art. 41.º da CRP –, ponto é, naturalmente, que com o consentimento do titular do bem jurídico, a que se associam períodos de oração em condições físicas difíceis ou de jejum de comida e/ou bebida.
- As ofendidas, expressa ou tacitamente, consentiram na factualidade descrita no acórdão a quo, sendo que se acham verificados todos os requisitos exigidos pelo art. 38.º do CP: eram maiores de 16 anos e estavam em condições de entender e querer o alcance e sentido do consentimento, estamos em face de bens jurídicos livremente disponíveis pelo próprio – integridade física e honra – e, em face do quadro descrito, que deve ser sempre tido em consideração, não há ofensa aos “bons costumes”.
- Assim, “os motivos e os fins do agente” foram sempre no sentido de fazer com que as ofendidas interiorizassem as regras da Fraternidade, da congregação e da Igreja Católica, tendo-se já visto que alguns sectores da mesma, provavelmente mais conservadores, usam castigos físicos e ofensas à honra como forma de interiorização dos ensinamentos da fé que professam.
- A perda do direito de ir e de vir, rectius, a sua supressão pelo agente (do ius ambulandi) é um elemento implícito do tipo e não resulta do manancial de factos dados por provados, pois que as ofendidas circulavam dentro do espaço ocupado pela Fraternidade, saíam para receber cuidados médicos, para conviverem com as famílias e até tinham a liberdade de abandonar a Fraternidade e, mais tarde regressarem, o que só pode ser interpretado no sentido de que aí se sentiam bem.
Apreciando.

Preceituava o artigo 38º do CP na versão originária do Código Penal de 1982 (DL nº 400/82, de 23.09), face à Declaração 03/12:
“1 - Além dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento exclui a ilicitude do facto quando se refira a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofenda os bons costumes.
2 - O consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade séria, livre e esclarecida no titular do interesse juridicamente protegido e pode ser livremente revogado até à execução do facto.
3 - O consentimento só é eficaz se prestado por quem tenha mais de 14 anos e possua discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta.
4 - Se o consentimento não é conhecido do agente, este é punível com a pena aplicável à tentativa.”
O artigo 38º do Código Penal Revisto, na redação introduzida pelo DL nº 48/95, de 15.03, manteve a predita redação.
A Lei nº 59/2007, de 04.09, modificou o disposto no nº3 do preceito legal, aumentando para 16 anos a idade necessária para a concessão do consentimento.
Como bem ensina Paulo Pinto de Albuquerque [“Comentário do Código Penal”, 2008, UCE, anot. 1 ao art. 38º, págs.167/8], «O fundamento da causa de justificação do consentimento reside na auto-realização pessoal do portador do bem jurídico lesado, cujo respeito pelo sistema penal implica a sobreposição da vontade do portador do bem jurídico ao interesse geral de preservação de bens jurídicos.». Acrescenta [idem, anot. 10, p. 168]: «O consentimento (Einwillingung) é uma causa de justificação nos casos em que a ação é, desde logo, socialmente desvaliosa, mas o sistema penal acolhe e protege a liberdade de disposição do portador do bem jurídico, constituindo o consentimento um modo de resolução do conflito entre os interesses do sistema penal: a auto-realização pessoal, por um lado, e a tutela dos bens jurídicos, por outro.»

Reportando-se à responsabilidade civil e denominando o tipo de consentimento que aqui apreciamos como “tolerante” (por contraposição ao vinculante e autorizante que, correspondendo ao “acordo”, nos casos em que a ação contra a vontade do titular do direito, exclui a tipicidade) – em termos que, contudo, são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à responsabilidade jurídico-penal –, Mafalda Miranda Barbosa refere que «[E]ste não envolve o normal exercício de um direito por parte de um sujeito, que, desta forma, autoriza um terceiro a atuar no âmago na sua esfera de direitos, mas implica que a pessoa lesada permita uma interferência precária no seu círculo de direitos disponíveis e dentro dos limites dessa disponibilidade. Tal interferência precária não apaga o desvalor de resultado, que continua presente, mas do ponto de vista do lesado que o autoriza, embora seja tolerado, em nome de um interesse próprio ou alheio no quadro da autónoma gestão de vida pessoal. Não estamos, assim, diante de uma causa de legitimação, mas de uma causa de justificação: o desvalor de resultado, que se mantém, é admitido em nome da tolerância do titular do direito, que determina uma retração do ordenamento jurídico. Há uma autorização justificadora que agora é conferida pelo próprio titular do direito.» [in “O tríptico da exclusão da ilicitude”, 2023, Gestlegal, págs. 137/8].             
A validade do consentimento depende, nos crimes de resultado, de este abranger tanto a ação como o resultado típicos, bastando para a verificação desta última vertente a aceitação ou conformação com o risco de verificação do resultado, risco esse que, fora desses casos, é de qualificar como “proibido”.  
Por outro lado, conforme decorre do texto legal, o consentimento só é eficaz relativamente a bens individuais e livremente disponíveis pelo seu titular. Como observa ainda o citado autor, «indisponíveis são os bens jurídicos supra-individuais (como sucede na generalidade dos crimes de perigo abstrato) e o bem jurídico da vida e outros direitos da personalidade elementares (com o exemplo da inadmissibilidade do consentimento na escravidão, Cavaleiro Ferreira, 1992: 251, Taipa de Carvalho, 2004: 282, e Figueiredo Dias, 2007: 480).» [ibidem, anot. 12, pág. 169].
Disponíveis são, em regra, os bens jurídicos patrimoniais e a integridade física.
No que tange à exigência de não contrariedade do facto consentido aos “bons costumes”, Jorge de Figueiredo Dias [in “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, págs. 481/2], após alertar para a alta imprecisão, mesmo imaterialidade, resultante do adotado critério legal, adianta que «com ela, se não quer remeter para a contrariedade à moral nem do facto consentido nem – ainda menos – do consentimento como tal», antes se devendo buscar o seu significado à luz do fundamento justificante do consentimento e, desse modo, concluir que «o facto consentido constitui ofensa aos bons costumes sempre que (mas só quando) ele possui uma gravidade e (sobretudo) uma irreversibilidade tais que fazem com que, nesses casos, apesar da disponibilidade do bem jurídico, a lei valore a sua lesão mais altamente do que a auto-realização do seu titular.»
  Acrescentando que é relativamente às ofensas à integridade física que a cláusula dos bons costumes assume (e praticamente esgota) o seu relevo, o autor exemplifica as preditas considerações expendidas nos seguintes termos: «(…) o consentimento será ineficaz quando a ofensa à integridade física possua uma gravidade tal – nomeadamente uma irreversibilidade, v.g., uma mutilação – que, perante ela, o valor da auto-realização pessoal deva ceder o passo. Pelo contrário, uma ofensa à integridade física simples e passageira não ofenderá os bons costumes, quaisquer que tenham sido os motivos ou os fins que tenham estado na base do consentimento: aqui a supremacia no conflito deve ser deferida ao valor da auto-realização pessoal.»    
No que concerne ao formalismo, temos que o consentimento pode ser expresso “por qualquer meio” e revogado até à execução do facto (art. 38º/2), devendo, pois, preexistir no momento da prática do facto.
A plena eficácia do consentimento pressupõe também que o mesmo seja do conhecimento do lesante (art. 38º/4); não sucedendo isso, o agente responderá (por analogia) pela tentativa do crime e não pela sua consumação, caso aquela forma seja punível relativamente ao tipo de ilícito concretamente preenchido.
No caso concreto, entendemos que a prova produzida afasta liminarmente a pretendida existência de consentimento das ofendidas (menores) para o cometimento pelos arguidos dos factos apurados.    
Quanto à ofendida KK, a validade do pretenso consentimento mostra-se desde logo afastada pela circunstância de ela ter entrado e saído (em junho de 2008 e em ../../2009, respetivamente) da Fraternidade quando ainda não havia completado 16 anos de idade, pelo que face à vigência nesse período do art. 38º, nº3, do CP, na redação conferida pela Lei nº 59/2007, de 04.09, não estaria preenchido o requisito da idade mínima para a eficaz prestação do consentimento.
De resto, relativamente a todas as ofendidas em questão, se dirá que a factualidade dada por provada em primeira instância – na parte ora mantida – demonstra que aquelas foram obrigadas, coagidas a suportar os supramencionados atos consubstanciadores de maus-tratos sobre si cometidos pelos arguidos BB, CC e AA, não se tendo submetido a tal tratamento bárbaro, impiedoso, degradante, de livre vontade.
Muito menos se provou que as vítimas tivessem manifestado aos arguidos o assentimento para tais práticas, sendo que, contrariamente ao que pretendem os arguidos recorrentes, não é legítimo extrair a concessão desse consentimento do facto de elas, perante as primeiras ofensas, não terem abandonado logo a instituição, dado que, reitera-se, existia sério condicionamento externo à formulação e expressão da vontade das ofendidas, criado adequado e propositadamente pelos arguidos.
Ademais, ainda que assim não fosse – como estamos plenamente convencidos ser – sempre seria de negar eficácia a tal hipotético consentimento em virtude de estarmos perante condutas cuja gravidade objetiva, aquilatada concatenadamente, numa visão global dos factos, violam de modo severo e irreversível um bem jurídico que transcende as “meras” ofensas corporais, injúrias, humilhações, sujeição a trabalhos realizados em condições inadequadas para a idade das vítimas, privações de liberdades, para se erigir como um bem júridico superior: a própria dignidade da pessoa humana (que, sendo complexo, engloba a saúde física, psíquica e mental).
Os comportamentos violentos, agressivos e castradores da liberdade reiteradamente perpetrados pelos mencionados arguidos afetaram a saúde física e psíquica das ofendidas, mostrando-se prejudiciais do desenvolvimento destas, enquanto Menores.
A gravidade do grau e modo (reiterado e plúrimo) de afetação do bem jurídico protegido, a par da irreversabilidade dos danos causados às vítimas, considerando-se aqui como irreperável a perda da dignidade humana que estas experienciaram durante o mais ou menos longo período de tempo em que conviveram com tais maléficas ofensas, não permitem conceder tolerância ético-social a condutas desta natureza. Uma ferida, um hematoma, uma equimose, saram; distintamente, não é possível conceder novamente às vítimas a dignidade pessoal que perderam durante o lapso temporal em que, na sua menoridade, decorreram os ajuizados factos. Aguarda-se e deseja-se que as ofendidas tenham recuperado integralmente ou ainda recuperem futuramente a sua saúde, autoestima e dignidade enquanto pessoas, ainda que, lamentavelmente não se lhes possam ser concedidos agora esses interesses e valores de que se viram então ilicitamente privadas, num específico período das suas vidas, em que eram mais indefesas, vulneráveis, até porque já não são menores de idade.
Acresce que, in casu, as vítimas são pessoas a quem os arguidos, por estarem sob sua direção, deviam proteção. 
Donde, o suposto consentimento dado pelas ofendidas – que, frisa-se, inexistiu – ofenderia os “bons costumes” e, como tal, não podia produzir efeito como causa de exclusão da ilicitude.
Não colhe, destarte, esta argumentação recursória.

III.2.1.9 -  Erro sobre a ilicitude (artigo 17º do Código do Penal):
   
Nos recursos deduzidos pelos arguidos CC e AA e BB invoca-se a respetiva atuação em erro sobre a ilicitude, prevista no art. 17º, nº1, do Código Penal, que afasta a ilicitude, ou, entendendo-se que o erro lhes é censurável, pede-se, de acordo com o nº2 desse preceito legal, a atenuação especial da pena.
Alegam, em súmula, que:
Recurso dos arguidos CC e AA [conclusão 45]:    
- Por estarem na convicção, que lhes havia sido dada pela cerimónia de tomada de votos à Assistente WW e à outra noviça WW (...), para além do rigoroso cumprimento de rituais religiosos e pela forma como se vestiam e por todos eram tratadas como sendo freiras, até pela autoridade eclesiástica máxima de ..., e no resto do país, e de que estavam no cumprimento dos direitos e deveres impostos pelo Direito Canónico, há um erro sobre a ilicitude não censurável do art.º 17.º, n.º 1, do C.Penal, exactamente porque actuaram convencidas de que estavam a fazer o que o Senhor delas exigia e em todo aquele contexto de fé tal não seria censurável.
Recurso da arguida BB [conclusões LXXVI a CIV]:
- Os factos imputados aos arguidos não poderão ser aferidos por referência à sociedade civil comum, porque a comunidade denominada “Fraternidade Missionária ...” tratava-se de uma comunidade religiosa que pautava os seus comportamentos com a rigidez, cujos cânones afinavam por comportamentos austeros e próprios da vida num “Convento”, onde religiosos e religiosas viviam em comunidade, com regras próprias e autónomas, diferenciadas da sociedade civil, em geral.
- Neste tipo de vivência é comum a existência de “punições por quebra de disciplina” e também existem “zonas sensíveis” que são aquelas que propiciam “o contacto entre o intramuros e a sociedade exterior”. A comunidade “intramuros” (o Convento) pauta as suas regras de convivência por cânones diferentes, daqueles que constituem parâmetro de referência da sociedade civil, em geral. A “caixa de ressonância ética” da comunidade conventual é diferente do conjunto de valores e referências de censurabilidade que constituem a “consciência da i/licitude”, da sociedade civil comum.
- A arguida não imaginava que pudesse estar a cometer um crime de escravidão e essa falta de consciência não lhe é censurável pois julgava que agia de acordo com os parâmetros “normais” de um Convento, no qual imperam a disciplina, os comportamentos austeros, os autoflagelos e outras privações e sacrifícios, como forma de “louvar Deus”.
- Se o Tribunal ad quem entender que há censurabilidade não desculpável, a mesma deve ficar circunscrita aos factos típicos integrantes dos crimes de “ofensas corporais” e de “difamação”, decorrentes dos castigos (segundo os factos julgados provados) subsumíveis ao crime de ofensas corporais simples; bem como, os factos assentes subsumíveis à previsão normativa do crime de injúrias perpetrado em relação às ofendidas, através dos impropérios relatados no acórdão a quo. Censurabilidade não desculpável, decorrente de eventuais atos praticados, subsumíveis ao crime de “escravidão”, julgamos inexistir de todo.
- Para o caso de o Tribunal ad quem entender existir censurabilidade, a pena a aplicar à arguida deve ser “especialmente atenuada”, nos termos do art. 17º, n.º 2, cujas regras de atenuação especial estão consagradas nos arts. 72º e 73º do CP.

Conhecendo. 
Estipula o art. 17º do CPP, com a epígrafe «erro sobre a ilicitude»:
“1 – Age sem culpa quem atuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro não lhe for censurável.
2 – Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respetivo, a qual pode ser especialmente atenuada.”
Como menciona Teresa Pizarro Beleza, in “Direito Penal”, 2º Volume, aafdl, pp. 224 e 225, a consciência da ilicitude, que alguns autores (v.g., Figueiredo Dias[13]) relacionam ainda com um terceiro elemento do dolo, denominado «emocional» – coexistindo com os elementos intelectual e volitivo –, «é a consciência com que determinada pessoa age, de que os atos que pratica são ilícitos», i.e., dizemos nós, violam a lei de modo não justificado. 
Nessa decorrência, o tipo de culpa doloso só se mostrará preenchido quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal; tal não sucederá se o agente atuou na convicção errónea e não censurável de que o seu comportamento estava a coberto da verificação em concreto de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa (ou dos seus limites).  
A sobredita posição doutrinária, que é de adotar, funda-se no princípio da culpa e correlativa distinção tradicional entre a punibilidade a título dolo e de negligência, daí ressumando que no dolo existe um conteúdo de culpa mais pesado e mais grave do que na negligência, pelo que naquela forma de culpa acresce um maior desvalor da culpa ao já de si superior desvalor do ilícito doloso.
A doutrina tradicional prevalecente sustentou durante muito tempo que a punição do agente a título de dolo pressupunha, para além da verificação dos elementos intelectual e volitivo do dolo do tipo, que ele agiu sobrepondo conscientemente os seus interesses ao desvalor do ilícito, assim conexionando esta questão ao problema da consciência do ilícito; o agente teria de representar que o facto pretendido era proibido pelo Direito. Diferentemente, Figueiredo Dias [ibidem, pp. 529 e 530], ainda que concordando com a pertinência da observada exigência para a punibilidade de um elemento adicional, extra, ao tipo de dolo, o tal elemento emocional, defende que este elemento se reporta ainda e sempre ao tipo de culpa doloso.
Independentemente da opção que se assuma relativamente à integração do denominado elemento emocional do dolo no tipo de culpa doloso, que se nos afigura a mais correta, ou no tipo de ilícito, ao nível da consciência da ilicitude, urge concluir que a prova da consciência por parte do agente da contrariedade da sua conduta ao ordenamento jurídico, porque se trata de um elemnto subjetivo do crime, é imperiosa, dela dependendo a verificação e punibilidade do comportamento constante da norma incriminadora.
A falta de consciência da ilicitude do facto ou erro sobre a ilicitude, traduz a ausência de consciência de uma proibição jurídica, não por referência ao conteúdo do tipo legal, aos seus elementos normativos, mas por referência à capacidade de percepção pelo agente da proibição que recai sobre a adoção de condutas desse jaez.
Acompanhamos o expedido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 05.11.2012, Processo nº 253/11.9GACBT.G1, relator João Lee Ferreira, disponível em www.dgsi.pt: «O erro sobre a ilicitude excluirá o dolo do tipo sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito. O erro será censurável, ou não, consoante ele próprio seja revelador e concretizador de uma personalidade indiferente perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente.»
Como sumariado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25.02.2015, Processo nº 120/08.3GCBGC-A.G1.P1, relator Ernesto Nascimento, disponível em www.dgsi.pt, «I - O erro sobre a ilicitude ou sobre a punibilidade que exclui o dolo (artº 16º1 CP) apenas se deve e pode referenciar aos crimes cuja punibilidade não se pode presumir conhecida de todos os cidadãos. II - Aos crimes cuja punibilidade se pode presumir que seja conhecida por todos os cidadãos, o eventual erro sobre a ilicitude só pode ser subsumível ao artº 17º CP, em caso em que a culpa só é afastada se a falta de consciência da ilicitude do facto decorre de erro não censurável. III - A censurabilidade só é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material não esteja devidamente sedimentada na consciência ético social.»
Dito isto, cabe concluir que in casu não se verifica a mencionada causa de exclusão da culpa fundada em inconsciência da ilicitude do facto. 
Em primeiro lugar, cabe notar que nas contestações que deduziram os arguidos não invocaram nem sustentaram, de facto e de direito, a ocorrência da mencionada causa de exclusão da culpa, por erro sobre a ilicitude. Acresce que só a arguida/recorrente BB prestou declarações em audiência de julgamento, negando primacialmente a prática dos imputados factos, particularmente os mais gravosos, os que seriam determinantes para o preenchimento da tipicidade objetiva do crime de escravidão, e quanto aos factos que admitiu como verdadeiros alegou que as respetivas práticas eram executadas pelas ofendidas de livre vontade, isto é, sem serem impostas pelos arguidos por recurso a qualquer meio coercivo.
Daí que não conste do elenco dos factos provados e não provados a matéria de facto suscetível de integrar esta causa de exclusão da culpa, correspondente em larga medida à que agora, ex novo, é invocada pelos recorrentes – de modo mais profuso e apropriado pela arguida BB.
Ora, para que pudesse proceder a alegação necessário era que o erro sobre a ilicitude resultasse dos factos provados[14], o que, vinca-se, não sucede.
Pelo contrário, encontra-se definitivamente provado que os arguidos agiram «de forma livre, voluntária e conscientemente bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por Lei». [cf. facto provado nº 190]
De todo o modo, sempre soçobra neste ponto a argumentação recursória, porquanto, ainda que as arguidas e ofendidas estivessem convictas de ser irmãs, se sentissem e comportassem como tal no âmbito de uma vida conventual, apesar de não serem freiras por falta de reconhecimento dos votos pela Igreja Católica e de as instituições a que pertenciam não constituírem uma congregação religiosa [cfr. factos provados nos pontos 16 e 17], afigura-se-nos indubitável que os arguidos não podiam desconhecer a censurabilidade e punibilidade que mereciam as condutas por eles cometidas.
Na verdade, qualquer cidadão medianamente formado colocado na posição dos arguidos sabe que, mesmo em contexto de vivência religiosa, em regime ou não de clausura, o Direito não permite, contra a vontade das vítimas, as ajuizadas práticas abusivas, degradantes, atentatórias da saúde física e psíquicas das noviças/irmãs, da sua dignidade enquanto indivíduos humanos, comportamentos que, aliás, se revelam dispensáveis, rectius, desadequados ao prosseguimento do objetivo maior de fornecer às menores que ingressaram na Fraternidade a correta formação religiosa, criando as sãs condições para que exercessem a sua vocação.  
Na sociedade hodierna vinga o entendimento largamente maioritário de que no cumprimento do dever de educação não são adequados nem admissíveis comportamentos de agressão física e psicológica e de bullyng, pois tais comportamentos colocam em causa o equilíbrio emocional, afetivo e a liberdade do menor.
Como se menciona no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.10.2023, Processo nº 181/22.2GHCTB.C1, relatora Ana Carolina Cardoso, acessível em dgsi.pt, «As reacções desproporcionais e desadequadas a comportamentos de menores, que excedam de forma inaceitável o poder-dever de correção/educação à luz da consciencialização ético-social da actualidade, não podem nunca entender-se como não ilícitas à luz de uma qualquer causa de exclusão da ilicitude.»
Deviam, pois, os arguidos ter conformado a sua atuação com o conhecimento que possuíam sobre a ilicitude dos factos que pretendiam perpetrar, abstendo-se do seu cometimento.     
Destarte, soçobram os recursos quanto a este fundamento.              
           
III.2.1.10 – Número de crimes de maus-tratos efetivamente cometidos:
           
No recurso por si deduzido veio a arguida BB suscitar a questão do número de crimes efetivamente por si cometidos, na altura pondo em causa os 9 (nove) crimes de escravidão pelos quais foi condenada em coautoria com os demais arguidos pessoas singulares.

Alegou, resumidamente, que [conclusões CV a CXII]:
- A existir crime de escravidão, tal crime deverá ser único, porque perpetrado segundo o mesmo modus operandi e perante todas as noviças (as ofendidas e as outras) numa relação de fungibilidade.
- No caso concreto, houve – segundo os factos provados – uma unicidade reiterada de factos praticados, segundo a mesma forma e comportamento, muito embora os agentes lesados tenham sido aqueles que nos autos se constituíram como ofendidas.
- A ter de existir punibilidade, dever-se-á punir, nos termos do art. 79º do CP, o comportamento único, agravado pelo resultado “mais grave que integra a continuação”; e, ao contrário, não se deverá punir conduta por conduta, porque a conduta foi única, sem visadas privilegiadas e (a acreditarmos nos factos dados como provados) teriam existido mais lesadas do que aquelas que foram sujeitos processuais.
Cumpre, pois decidir a predita questão, ainda que reportada agora cometimento dos quatro crimes de maus-tratos entendidos por perpetrados pelos arguidos BB, CC e AA sobre as ofendidas II, JJ, HH e KK.

Preceitua o art. 30º do Código Penal, com a epígrafe «concurso de crimes e crime continuado»:
“1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.” [redação da Lei nº 40/2010, de 03.09, com entrada em vigor em 03.10.2010]    

Antes da alteração introduzida pela Lei nº 40/2010 ao citado nº3, este normativo dispunha: “3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima” [redação da Lei nº 59/2007, de 04.09, corrigida pela Retificação nº 102/2007, de 31.10].
As anteriores redações deste preceito do Código Penal de 1982 não continham o nº3.
Neste contexto, adianta-se que é manifestamente improcedente a pretensão recursória em causa, pois que, além do mais, a desejada unificação das condutas da arguida BB em um único crime continuado, independentemente do número de vítimas, não encontra arrimo no texto legal, que, no caso do crime que atente contra bens eminentemente pessoais, como sucede in casu, só previu transitoriamente no aludido número 3 a possibilidade de continuação criminosa unitariamente punida relativamente ao mesmo sujeito passivo do crime, já não no caso de pluralidade de vítimas.     
Isso mesmo surge lapidarmente afirmado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2012, Processo nº 1718/02.9JDLSB - 3ªSecção, relator Santos Cabral, acessível em www.dgsi.pt: «A negação da possibilidade da continuação criminosa em função da existência de uma pluralidade de vítimas resulta da circunstância de cada bem jurídico eminentemente pessoal ter de ser entendido em concreto numa união incidível com o seu portador individual. O bem da vida, tal como o da autodeterminação sexual ou o próprio direito á integridade física, consubstanciam-se nas pessoas concretas que se vêm diminuídas na sua dignidade ou integridade próprias que é totalmente distinta dos restantes.»
A comprovada reiteração e homogeneização de condutas integradoras do tipo de crime de maus-tratos levada a cabo pela arguida é a cola que une os múltiplos e temporalmente dispersos comportamentos por si realizados que, de outra forma, preencheriam distintos ilícitos criminais (v.g. ofensas à integridade física, injúrias, perseguição), unificação que, como supra se adiantou [item III.2.1.7], assenta no acrescido desvalor da ação que agrava a ilicitude material do facto globalmente considerado.
Mesmo a entender-se como legalmente admissível a punição de cada agente por um só crime de maus-tratos, apesar de estarem em causa quatro vítimas com afetação de bens eminentemente pessoais, como inelutavelmente são a saúde física e psíquica da pessoa (individual) e a sua dignidade humana, o que, reitera-se, não se concede, sempre se mostraria inverificada a figura do crime continuado, prevista no nº2 do art. 30º do CP, visto não ocorrer qualquer circunstância exterior acentuadamente diminuitiva da culpa do agente.
A propósito do significado deste pressuposto, verte-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.04.2011, Processo nº 250/06.6PCLRS.L1-3, relator Rui Gonçalves, acessível em www.dgsi.pt:
«XVII. O cerne do crime continuado, o seu traço distintivo, à luz do qual todos os outros orbitam parece situar-se na existência de uma circunstância exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. O quid essencial está em saber em que medida a solicitação externa diminui a censura que determinada(s) conduta(s) merece(m).
XVIII. Só ocorrerá diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que o agente actue de forma conforme ao direito, quando essa tal circunstância exógena se lhe apresenta, nas palavras impressivas de Eduardo Correia, de fora, não sendo o agente o veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê.
XIX. Sempre que as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa é de concluir pela existência de concurso real de crimes.
XX. In casu, as circunstâncias são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa. É o próprio arguido a determinar o cenário, o agente actuou aperfeiçoando a realidade exterior aos seu desígnios e propósitos sendo ele a dominá-la, e não esta a dominá-lo. Não há circunstância exterior, mas sim uma predisposição anterior do agente.
XXI. Assim, estando o «núcleo duro» da continuação criminosa na diminuição considerável da culpa - e esta entendida na sua concepção normativa, e não apenas psico-fisiológica -, a menor exigência de actuação do arguido/recorrido de acordo com o direito devido a uma situação objectiva exterior com que se depara, operar-se-ia um absoluto desvirtuar da figura se se entendesse actuar com culpa diminuída o agente que se depara com uma circunstância facilitadora do crime que, afinal, tinha sido ele a criar.»
Como sapientemente observa Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, 2008, UCE, anotação 19 ao art. 152º-A, pág. 410, «Não é admissível o crime continuado de maus tratos quando ele implique violência física ou psíquica, pela razão de que o dolo deste meio de supressão da vontade da vítima é incompatível com a constatação de uma diminuição considerável da culpa. Dito de outro modo, não há culpa sensivelmente atenuada onde o agente utilize repetidas vezes violência física ou psíquica sobre a vítima».     
Ademais, no caso vertente, temos que as vítimas, sendo menores, se encontravam sob direção dos arguidos BB, CC e AA, praticamente confinadas às instalações da Fraternidade Missionária, com limitações assaz relevantes no que tange ao contacto com o mundo exterior, visando prosseguir uma efetiva ou suposta vocação religiosa, mas submetidas a um clima global de violência física e psíquica que lhes toldava significativamente a vontade, o que tudo edifica um circunstancialismo montado pelos arguidos, que não surgiu por acaso. Tais circunstâncias foram conscientemente criadas pelos mencionados arguidos, a fim de lhes permitir exercitar ao longo de consideráveis períodos de tempo, repetidamente e sobre diversas ofendidas, todas especialmente vulneráveis, em razão da menoridade, os censuráveis atos consubstanciadores de maus-tratos.

Pelo exposto, conclui-se que cada um dos arguidos CC, AA e BB praticou, em coutoria e em concurso efetivo, quatro crimes de maus-tratos, p. e p. pelo art. 153º, nº1, al. a), do CP de 1982, redação originária (DL nç 400/82, de 23.09), quanto à ofendida HH; p. e p., à data dos factos, pelo art. 152º, nº1, al. a) do CP Revisto de 1995, aprovado pelo DL nº 48/95, de 15.03, na redação dada pela Lei nº 65/98, de 02.09, e atualmente pelo art. 152º-A, nº1, al. a) do mesmo Código, aditado pela Lei nº 59/2007, de 04.09, quanto às ofendidas II e JJ. e p. pelo art. 152º-A, nº1, al. a) do CP, aditado pela Lei nº 59/2007, de 04.09, quanto à ofendida KK.

Por conseguinte, improcede, nesta parte, o recurso deduzido pela arguida BB.       

III.2.1.11 - Da alegada prescrição do procedimento criminal atinente aos verificados crimes de maus-tratos:
           
No âmbito de vigência do art. 153º, nº1, al. a), do Código Penal de 1982, na redação orginária dada pelo DL 400/82, de 23.09, o crime de maus tratos era abstratamente punível com pena de prisão de 6 meses a 3 anos (e multa até 100 dias).
           
Atento o disposto no então vigente art. 117º, nº1, al. c), do CP 1982, versão original, “o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime sejam decorridos os seguintes prazos: (…) c) 5 anos, quando se trate de crimes a que corresponda pena de prisão com um limite máximo igual ou superior a 1 ano, mas que não exceda 5 anos;”, como sucede no caso vertente.
Nos termos do nº3 do aludido preceito legal, “Quando a lei estabelecer para qualquer crime, em alternativa ou conjuntamente, pena de prisão ou de multa, só a primeira é considerada para efeito deste artigo.”

Preceitua o art. 118º, nº1, al. b), do mesmo diploma legal, em redação que se mantém inalterada agora no art. 119º, nº1, al. b), do Código Penal Revisto e versões ulteriores, “O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se consumou.”. Todavia, como estipulado no nº2, al. b), “Porém, o prazo de prescrição só corre (…) [n]os crimes continuados ou habituados, desde o dia da prática do último ato criminoso.”
No crime de maus tratos, sendo um ilícito criminal “complexo”, isto é, «constituído por factos que, sem a aglutinação legal, seriam subsumíveis em dois ou mais preceitos incirminadores», o prazo prescrional inicia-se com a prática do último ato de execução – assim, Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, ibidem, anot. 4 ao art. 119º, p. 346.      
Assim, quanto ao crime em que é ofendida HH, temos que a contagem do prazo de prescrição de 5 anos começou em ../../1991, data em que aquela perfez 16 anos de idade.
Entretanto, a prescrição do procedimento criminal suspende-se, entre o mais, pelo período máximo de 2 anos, a partir da notificação aos arguidos do despacho de pronúncia ou equivalente – cf. art. 119º, nº1, al. b), e nº2, do CP/82, versão originária.
A prescrição volta a correr desde o dia em que cessar a dita causa da suspensão – nº3 do aludido normativo legal.

Prescreve o art. 120º do Código Penal de 1982, versão original:
 
“1 - A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução preparatória;
b) Com a prisão;
c) Com a notificação do despacho de pronúncia ou equivalente;
d) Com a marcação do dia para o julgamento no processo de ausentes.
2 - Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo prescricional.
3 - A prescrição do procedimento criminal terá sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a 2 anos, o limite máximo da prescrição corresponderá ao dobro desse prazo.”

O Assento nº 12/2000, de 16-11-2000, in DR I Série A de 6-12-2000, fixou a seguinte jurisprudência: «No domínio da vigência do Código Penal de 1982, versão original, a partir da entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987, a prescrição do procedimento criminal não se interrompe com a notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução.»
Por outro lado, revela o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 5/2001, in DR, I Série A de 15-03-2001: «Instaurado processo criminal na vigência do Código de Processo Penal de 1987, por crimes praticados antes de 1 de Outubro de 1995, a notificação ao arguido do despacho que designa dia para julgamento, proferido nos termos dos artigos 311º a 313º daquele diploma, na versão originária, suspende e interrompe a prescrição do procedimento criminal, de acordo com os artigos 119º, nº 1, alínea b), e 120º, nº 1, alínea c), ambos do Código Penal de 1982, também na sua versão originária.»

No caso concreto, temos que não ocorreu qualquer causa de suspensão e/ou interrupção da prescrição, designadamente a notificação aos arguidos do despacho que designou dia para julgamento, no decurso do prazo prescrional de 5 anos, pelo que o procedimento criminal se mostra extinto, por prescrição, desde 13.06.1996.
Cumpre ter presente que as causas de suspensão e/ou interrupção da prescrição inovadoramente consagradas nos arts. 120º e 121º do Código Penal a partir da Revisão de 1995 e subsequentes modificações legais, são retroativamente inaplicáveis.
As normas sobre prescrição do procedimento criminal assumem natureza mista, substantiva e processual, constituindo-se assim como normas processuais-materiais, o que tem implicações ao nível da problemática da aplicação das leis penais no tempo.  
Para tanto, urge ter presente o fundamento ou fundamentos do instituto da prescrição.
Nas doutas palavras de Figueiredo Dias [in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, pp. 699 e 700], «A prescrição justifica-se, desde logo, por razões de natureza jurídico-penal substantiva (…). Por um lado, a censura comunitária (…) esbate-se, se não chega mesmo a desaparecer» pelo «mero decurso do tempo». Por outro lado, as exigências de prevenção especial (…) tornam-se progressivamente sem sentido e podem mesmo falhar completamente os seus objectivos (…). Finalmente, e sobretudo, o instituto da prescrição justifica-se do ponto de vista da prevenção geral positiva: o decurso de um largo período sobre a prática de um crime ou sobre o decretamento de uma sanção não executada faz com que não possa falar-se de uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitária, já apaziguadas ou definitivamente frustradas». Acrescenta: «Também do ponto de vista processual (…), o instituto geral da prescrição encontra pleno fundamento. Sobretudo (…) na medida em que o decurso do tempo torna mais difícil e de resultados mais duvidosos a investigação (e a consequente prova) do facto e, em particular, da culpa do agente, elevando a cotas insuportáveis o perigo de erros judiciários».
No mesmo sentido, Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette [ibidem, p. 353]: «Não seria justo constranger o condenado, em função de facto que vai ficando esquecido, por força da erosão que o tempo vai impondo, ao cumprimento duma pena remota. Tal contrariaria, aliás, a essência dos fins das penas e consagraria retribuição de matriz eminentemente repressiva. Nos antípodas da prevenção que hoje, sobretudo, anima aqueles. E porquanto se trataria, então, de execução socialmente já carecida de interesse ou razão de ser, inclusive por o decurso do tempo haver eliminado, à força do seu efeito diluente e dissipador, qualquer resquício duma efetiva necessidade de defesa social. E já que não persiste, a propósito, necessidade ou carência da pena.»
Estatui o art. 29º, nº4 da Constituição da República Portuguesa que «Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.»
O legislador ordinário refletiu no art. 2º, nº4, do CP, aquele ditame constitucional: «Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente (...)»
Destarte, ocorrendo sucessão de leis no tempo atinentes ao instituto da prescrição do procedimento criminal, cumpre, de acordo com os citados normativos, aquilatar, no cotejo dos diferentes regimes legais que temporalmente vigorem entre a data da prática dos factos puníveis e o momento atual, qual o regime (considerado em bloco) concretamente mais favorável ao arguido, sendo esse o aplicável.

No caso vertente, quanto à conduta dos arguidos em que é sujeito passivo a assistente HH, urge concluir pela inaplicabilidade dos ulteriores regimes penais vigentes, atento o incontornável e legalmente proibido agravamento da situação processual dos arguidos que adviria da retroatividade das leis penais novas, na medida em que no âmbito das disposições legais em vigor à data da prática dos factos, o procedimento criminal já estaria extinto, por prescrição, ao que acrescem os factos de terem sido agravados os limites máximos da punição (pena de prisão) e, severamente, o respetivo prazo de prescrição aplicável ao crime, bem como o âmbito de preenchimento da tipicidade objetiva por força da entretanto operada ampliação da idade da ofendida menor para os 18 anos de idade.    

Quanto aos maus tratos perpetrados sobre as ofendidas II, JJ e KK:
As incriminações do tipo de crime de maus-tratos passaram, desde a Revisão de 1995, a puni-lo com pena de prisão de 1 a 5 anos – cfr. art. 152º, nº1, al. a), do Código Penal Revisto de 1995, na redação conferida pelo DL 48/95, de 15.03, com as alterações introduzidas pelas Leis 65/98, de 02.09, e de 7/2000, de 17.05, e art. 152º-A, nº1, do CP, aditado pela Lei nº 59/2007, de 04.09, com a Retificação 102/2007, de 31.10.

Assim, por via do disposto conjugadamente nos arts. 118º, nº1, al. b), nº3, e 119º, nºs 1 e 2, al. b), do Código Penal, na redação introduzida pelo DL 48/95, de 15.03 e, no caso do primeiro preceito, alterada pela Lei 59/2007, de 04.09, os crimes cometidos sobre estas ofendidas menores, o prazo de prescrição é de dez (10) anos, contados desde:
- 10.05.2007, no caso da assistente II;
- 23.07.2006, no caso da assistente JJ;
- ../../2009, no caso da ofendida KK.

Dispõe o art. 120º do CP, nas redações dadas pelas Leis nº 65/98, de 02.09 e 19/2013, de 21.02:
“1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal;
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo;
c) Vigorar a declaração de contumácia; ou
d) A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência;
e) A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado;
f) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da  liberdade.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos.
3 - No caso previsto na alínea c) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar o prazo normal de prescrição.
4 - No caso previsto na alínea e) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar 5 anos, elevando-se para 10 anos no caso de ter sido declarada a excecional complexidade do processo.
5 - Os prazos a que alude o número anterior são elevados para o dobro se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional.
6 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.”

Dispõe o art. 121º do CP, nas redações dadas pelas Leis nº 65/98, de 02.09 e 59/2007, de 04.09:
“1 - A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a constituição de arguido;
b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo;
c) Com a declaração de contumácia;
d) Com a notificação do despacho que designa dia para audiência na ausência do arguido.
2 - Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.”
         
No caso sub judice, ocorre a interrupção da prescrição do procedimento criminal com a constituição dos arguidos – art. 121º, nº1, al. a) –, o que sucedeu em ../../2015 relativamente aos arguidos AA, BB, DD e CC (fls. 313, 317, 321 e 325, respetivamente, do Apenso A – Instrução) e em 08.03.2016 relativamente ao arguido Centro Social (fls. 835).
A partir das sobreditas datas iniciou-se novo prazo de prescrição – art. 121º, nº2, do CP.    
Verifica-se ainda a suspensão