DESPACHO SANEADOR
DISPENSA DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA
NULIDADE
Sumário


I. Não pode dispensar-se a audiência prévia no caso de ser proferido saneador sentença que conheça do mérito da causa, nos termos do disposto, nos artºs 591º nº 1, 593º nº1, alínea d) e) e f) e 595º nº 1 a) e b), todos do Código de Processo Civil.
II. Configura uma nulidade processual e nulidade do despacho saneador proferido nos casos em que se omitiu a realização da audiência prévia no caso em que é obrigatória.
III. Configura uma nulidade processual a dispensa da realização da audiência prévia onde se pretende conhecer do mérito da causa, sem que previamente se tenha permitido às partes pronunciarem-se sobre essa decisão.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório:

AA, melhor identificado nos autos, veio dar à execução contra BB e CC, melhor identificados nos autos, sentença de condenação.

Em tempo, vieram os executados deduzir oposição de embargos invocando:

a) incidente da suspeição ao Sr.AE e requerendo que, a realizar-se tal diligência, a mesma deva ser levada a efeito por outro AE e isto porque o Sr. Agente de Execução (AE) é o mesmo que se encontra designado no processo executivo nº 4439/22...., que corre termos pelo Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão-J..., onde figuram como Exequente e Executados os aqui Exequente e Executados.
b)o exequente tem o ónus de, no requerimento executivo, expor os factos que demonstrem ter efetuado a sua prestação ou, pelo menos, que a ofereceu, juntando a respetiva prova documental, testemunhal ou outra, complementando desta forma o título executivo.
Ora, o Exequente, sozinho ou com o outro titular do direito, DD, nunca ofereceu aos Embargantes o cumprimento da sua prestação, corroborando esta factualidade as sentenças já transitadas em julgado proferidas nos processos nº 4197/18...., Juízo de Execução-J... e nº 4439/22....- Juízo de Execução-J....
É, por isso, manifestamente falso que o Exequente tenha oferecido aos Embargantes o cumprimento da sua prestação, sendo certo que nem tem condições para a efetuar, pretendendo sim, obter um ganho injusto, um enriquecimento ilícito, o recebimento do valor de €24.000,00, sem efetuar a sua prestação.
Para que a sentença dada à execução sirva de título executivo, deve cumprir e prosseguir a necessária tramitação, sendo que, considerando-se a sentença um titulo executivo, o processo seguirá a sua tramitação normal, daí que não seja justificável o recurso ao regime jurídico previsto no artº 715 do Código Processo Civil (CPC), uma vez que, logo que devidamente notificados nos termos legais, os Embargantes cumprirão a sua prestação.
c)o Exequente, por entender haver solidariedade ativa de credores, considera que
poderá sozinho e desacompanhado do outro titular de igual direito, o EE, intentar a presente execução. Contudo, a solidariedade, sendo ativa ou passiva, tem de resultar da lei ou do negócio jurídico, conforme dispõe o artº 513º do Código Civil.
Não se vislumbra nos presentes autos a fonte da solidariedade da obrigação, daí que, não sendo a obrigação solidária, não baste um deles oferecer aos outros a prestação integral.
Daí que os Embargantes devam oferecer/pagar a sua prestação ao Exequente e ao outro titular do direito, EE, que não figura nos presentes autos.Se apenas a oferecerem a um deles, tudo deve passar-se como se a não tivessem oferecido in totum, continuando, assim, a não estar verificado o referido requisito de exequibilidade interna da obrigação exequenda.
Assim sendo, de modo a cumprir aquela condição de oferta da prestação a todos os interessados, se torne exigível a intervenção de todos os interessados nos presentes autos, daí que a falta de um provoque a ilegitimidade ativa do outro, o aqui Exequente, - artº 33 do Código Processo Civil.
d)no requerimento executivo é liquidado o valor de €6.010,15 a título de juros vencidos, apesar de já em anterior processo intentado pelo Exequente tenha sido alegado pelos Embargantes a impossibilidade legal de se formular tal pedido.
Na verdade, o pagamento de uma obrigação só se torna exigível quando se encontre vencida. Ora, nas obrigações com um nexo de reciprocidade, as mesmas têm de ser simultaneamente cumpridas, não constando dos autos, designadamente dos processos judiciais referidos no requerimento executivo, que se encontram vencidas as obrigações.
Ou seja, não se encontra demonstrado nem alegado que os Embargantes não efetuaram, ou se recusaram a efetuar, a sua prestação, pelo que não se encontram em mora, daí que não haja direito à liquidação e cobrança de juros.
e)que o valor da presente acção deve ser de €24.000,00.

Admitidos os embargos ordenou-se a notificação do exequente/embargado para, querendo, apresentar contestação, o que fez, em tempo, impugnando parte dos factos alegados e concluindo pela sua legitimidade e pela existência de título executivo e exigibilidade da obrigação nele contida.

A 3 de maio de 2024, foi realizada tentativa de conciliação entre as partes, o que não foi possível, uma vez que as mesmas se mantiveram irredutíveis nas posições que assumiram nos respectivos articulados, tendo-se ordenado então a abertura de conclusão.

Foi então proferida decisão que julgou procedentes os embargos à execução e, em consequência, determinou a extinção da execução apensa, com custas pelo embargado/exequente.

Inconformado com tal decisão veio o exequente/embargado recorrer de tal decisão, formulando, as seguintes conclusões:

A. DO VÍCIO DA FALTA DE REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA PRÉVIA:

B. Atento o saneador-sentença, agora em crise, depara-se o recorrente com uma decisão surpresa, porquanto o Tribunal “a quo” em total violação dos normativos legais, concretamente artigos 591.º, n.º 1, alínea b); 547.º; 6.º, n.º 1; 592.º e 593.º todos do Código de Processo Civil, proferiu decisão em total preterição dos formalismos legais previstos em tais normativos, a qual – omissão – influiu no exame e na decisão da causa.
Ora vejamos,
C. No caso em apreço impunha-se a CONVOCAÇÃO DA AUDIÊNCIA PRÉVIA, destinada a algum ou alguns dos fins previstos nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 591.º, nomeadamente, facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa [alínea b)], ou proferir despacho
saneador, nos termos do nº 1 do artigo 595.º [al. d)], do mesmo diploma legal.
D. Descendo à situação dos autos, temos que o processo findou com a prolação do despacho saneador (saneador-sentença) que, conhecendo da exceção peremptória – exceção de não cumprimento, que se traduziu na inexibilidade da obrigação - invocada pelos embargantes, ora recorridos, à qual respondeu em sede de contestação o embargado, ora recorrente, julgou procedente a mesma e, consequentemente, os embargos deduzidos à execução.
E. Não se configura, assim, nenhuma das hipóteses previstas no artigo 592.º, contemplando a alínea b) do seu n.º 1 as exceções dilatórias - que deixa fora do seu âmbito de aplicação as exceções peremptórias que, contendem com o mérito da causa -, nem a situação do artigo 593.º da lei processual civil - que concede ao juiz a faculdade de dispensar a audiência prévia, destinando-se esta apenas a algum dos fins nela especificados -, concebido apenas para a hipótese das “accoes que hajam de prosseguir”.
F. Assim, a dispensa da audiência prévia só poderia ser através de despacho que expresse a decisão de dispensa da realização da referida formalidade processual e só depois de ouvidas as partes - dos artigos 547.º e 6.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.
G. Dado que a audiência prévia não foi dispensada nessa específica situação, exigia-se a sua realização para assegurar o cumprimento da finalidade imposta pelo n.º 1, al. b) do artigo 591.º Código de Processo Civil.
H. Assim, de acordo com o exposto, teria de ser designada audiência prévia para concretização da finalidade prevista no artigo 591.º, n.º 1, b) do Código de Processo Civil, não contrariando esse entendimento o facto de as partes haverem discutido nos articulados a exceção de não cumprimento.
I. Ademais, não tendo o Tribunal “a quo” indagado acerca da concordância das partes na dispensa da audiência prévia - artigos 547.º e 6.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil – esperava o ora recorrente, legitimamente, a sua realização, para puderem fazer valer nesse ato, através da garantia do primado da oralidade, os seus derradeiros argumentos.
J. Viu assim, o ora recorrente, defraudada essas expectativas, que a lei lhes assegurava, bem como, não pode deixar de constituir decisão-surpresa, a ora decisão recorrida, que conheceu do mérito da causa à revelia do estabelecido no mencionado artigo 591.º, n.º 1, b) do Código de Processo Civil.
K. Posto isto, o facto de, antes do conhecimento da exceção peremptória de não cumprimento, ter sido dispensada a audiência prévia, quando a lei impunha a sua realização, constitui nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil.
L. Nulidade que, no caso aqui em debate, está a coberto da decisão judicial que se lhe seguiu, que a sancionou e confirmou, pelo que o meio processual próprio para a arguir é através de recurso.
M. Tal nulidade implica a anulação da decisão que, dispensando a audiência prévia, a omitiu, bem como dos termos processuais subsequentes a essa decisão viciada, incluindo a decisão que ditou a procedência dos embargos de executado.
Sem prescindir,
N. NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
O. A douta decisão em crise, não apresenta os factos provados e os factos não provados, o que configura nulidade por falta de fundamentação de facto, nos termos do artigo 615º n.º 1 da alínea b) do Código de Processo Civil.
P. Tal dispositivo legal prescreve que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Q. Assim, considera-se nulidade da sentença quando o julgador deixe de incluir a decisão sobre a matéria de facto (provada e não provada). Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
R. Há nulidade (no sentido de invalidade, usado na lei) quando falte em absoluto, a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão.
S. POSTO ISTO, deve este Tribunal Superior declarar a nulidade da sentença em causa.

Ainda Sem prescindir,
T. NULIDADE DA SENTENÇA POR OMISSÃO DE PRONUNCIA:
U. Preceitua o artigo 615º, nº. 1 al. d), do CPC que “e nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento”. (sublinhado nosso)
V. Decorre de tal norma que o vício que afeta a decisão advém de uma omissão (1º. Segmento da norma) ou de um excesso de pronúncia (2º. segmento da norma).
W. Preceito legal esse que deve ser articulado com o nº. 2 no artigo 608º do CPC, onde se dispõe que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido a sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo nao se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” (sublinhado nosso)
X. Assim, tendo presente tais dispositivos legais, no caso concreto temos que decorre do requerimento executivo apresentado que a ação em causa foi intentada com pedido de despacho liminar.
Y. Consta alegado do requerimento executivo que:
“(...)

DO DESPACHO LIMINAR:
15. O exequente entende ser de total interesse e pertinencia, chamar a esta acao o regime do artigo 715.o do Codigo de Processo Civil e que respeita a denominada prova complementar do titulo.
16. Trata-se duma actividade instrutoria a ter lugar na fase liminar do processo executivo, cuja necessidade decorre de, antes das providencias executivas, serem verificados os pressupostos da certeza e da exigibilidade da obrigacao exequenda.
Assim,
17. Conforme acima foi referido e provado, o exequente remeteu comunicacao aos executados onde ofereceu a restituicao dos bens moveis – ex. vi documento n.o 1 -.
18. Sucede que, nao tendo os executados comparecido no local, dia e hora indicado pelo exequente, não conseguiu o mesmo comprovar que tinha os bens no local e que, por via disso, se encontrava mesmo disposto a cumprir.
19. Por conseguinte, afigura-se necessario – ANTES DA CITACAO DO DEVEDOR - a realizacao de diligencia adequada a identificacao de bens a realizar no local indicado na comunicacao suprarreferida, concretamente, na Rua ..., ... ..., de onde devera constar a lista dos bens existentes no local e que configuram os bens moveis objeto do contrato anulado pela sentenca, oferecida como titulo executivo nos presentes autos. A qual devera ser elaborada pelo Agente de Execucao nomeado nos presentes autos, em dia e hora a designar por V.a Ex.a.
20. Aquando de tal diligencia, ira o exequente prestar declaracao de honra, no sentido do oferecimento (novamente) dos bens em causa aos executados, comprometendo-se a restitui-los, sob a condicao de, em simultaneo, os executados cumprirem a obrigacao de restituicao dos €24.000,00. Mais declarara o exequente, que o levantamento dos bens devera ter lugar em dia e hora a agendar, pelos executados, junto do Ex.mo Agente de Execucao e durante o prazo concedido, por via da citacao, para os competentes embargos.
21. Apos tais diligencias, devera o Tribunal considerar que a obrigacao in casu e exigivel, porquanto, vencese com a citacao dos executados e em relacao a qual o exequente nao se encontra em mora quanto a realizacao da sua contraprestacao.
22. Por conseguinte, o exequente tinha a faculdade e possibilidade de cumprir e fez quanto lhe competia para o efeito. (...)”
Z. Citados os executados, ora recorridos, apresentaram embargos nos quais, entre outras coisas, alegaram ser injustificável o recurso ao regime do artigo 715.º do CPC.
AA. Mais disseram, quantos às diligências de prova requeridas no requerimento de execução, em requerimento apresentado que se opuseram a tais diligências na oposição apresentada à execução.
BB. Sucede que o Tribunal “a quo” na sua decisão conheceu e julgou do mérito da causa, mas não se pronunciou sobre o regime do artigo 715.º do Código de Processo Civil e que respeita à denominada prova complementar do título, requerida pelo exequente, ora recorrente.
CC. O recorrente esclareceu que tais diligências eram em seu entendimento, indispensáveis para o Tribunal poder “considerar que o ora exequente exprimiu, para com os executados, uma verdadeira e seria oferta de restituicao dos bens moveis, os quais, ao nao procederem ao levantamento dos bens e, simultaneamente, cumprirem a obrigacao de restituicao dos €24.000,00, incorreram em mora, tornando a sua obrigacao vencida e, por via disso, exigivel
DD. Assim, uma vez que tal matéria consubstancia matéria decisória impunha-se que o Ex.mo Julgador do Tribunal de 1ª Instância, na sua douta decisão, se pronunciasse sobre o regime do artigo 715.º do Código de Processo Civil.
EE. Ao não o fazer o Tribunal “a quo” omitiu pronúncia sobre questões que devia apreciar e que foram colocadas à sua apreciação, o que nos termos do artigo 615º, nº. 1 al. d), do CPC, se traduz numa nulidade da sentença, a qual deve ser declarada e censurada por este Tribunal Superior.

NESTES TERMOS,
e nos melhores de direito que V.as Exas. douta e superiormente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via dele, verificadas as nulidades indicadas e, consequentemente, anulada a decisão recorrida, como aliás é de DIREITO E DE JUSTIÇA!

Não foram produzidas contra alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

*
II.Do objeto do recurso:

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, impondo-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes, bem como as que sejam de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, sendo certo que o tribunal não se encontra vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e que visam sustentar os seus pontos de vista, isto atendendo à liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.
Assim considerando o teor das conclusões apresentadas pelos recorrentes e atrás supra transcritas, resulta como objecto do recurso saber se, ao caso concreto se impunha a realização da audiência prévia e a não ser de realizar a mesma se impunha a audição das partes, o que não se tendo verificada acarreta a nulidade processual.
Importa ainda, caso não se imponha a realização da audiência prévia apurar se estão as partes perante uma decisão surpresa.
Por último, importa aos autos aferir se a decisão é nula por falta de fundamentação de facto e de omissão de pronúncia.
*
III. Fundamentação de facto:

Com relevância para o presente recurso há a considerar a factualidade resultante do relatório supra.
*
IV. Do direito:

a) da nulidade resultante da omissão de convocação e realização de audiência prévia, decisão surpresa e suas consequências.

Importa antes de mais atentar que as nulidades processuais distinguem-se das nulidades específicas da sentença, previstas no artº 615º do Código de Processo Civil e do erro de julgamento, de facto ou de direito, regulados no artº 640º e ss do mesmo diploma legal. Efetivamente os primeiros dizem respeito à existência ou não de atos processuais enquanto estes últimos se reportam a vícios de conteúdo da decisão.
Conforme atrás se referiu, veio o exequente/embargado concluir ter o Tribunal a quo incorrido em nulidade ao dispensar a realização de audiência prévia, sem audição das partes, entendendo ser de decidir de mérito, através de saneador sentença.
Como refere o Acordão da Relação do Porto de 10 de julho de 2024, relatado pela Srª Desembargadora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt “Apresenta-se, pois, o apelante a arguir nulidade habitualmente chamada de secundária, inominada ou atípica nas alegações de recurso”, que, conforme referem os Drs Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa in Código de Processo Civil Anotado, Vol II, pág. 248-249, 2ª edição, Almedina “(…)que poderão ter por base a prática de um ato que a lei não admite, a omissão de um ato que a lei prescreve (…) ou a prática de um ato legalmente admitido ou prescrito mas sem a observância das formalidades respetivas”.
Ora, tais nulidades são reguladas nos artºs 186º a 202º do Código de Processo Civil, sendo certo que, conforme resulta do nº 1 do artº 195º, sob a epígrafe “Regras gerais sobre a nulidade dos atos”, “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Por seu lado, de acordo com o nº 1 do artº 199º do referido diploma legal, sob a epígrafe “Regra geral sobre o prazo de arguição, “se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”.
Ora, conforme referem os Drs Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, na obra acima citada, pág 249 “Este Sistema remete o juiz para a análise casuística, susceptível de só invalidar o ato que não possa, de todo, ser aproveitado, sendo certo que a nulidade de um ato acarreta a invalidação dos atos da sequência processual que daquele dependam absolutamente”.
Ora, da leitura do artº 196º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Nulidades de que o tribunal conhece oficiosamente, resulta que relativamente às nulidades principais, tratadas nos artºs 186º, 187º, 191º, 193º e 194º, são as mesmas do conhecimento oficioso, dada a sua importância e as restantes, ou seja, as secundárias, terão, por regra de ser arguidas pelas partes, ressalvando-se a hipótese de o juiz das mesmas conhecer por sua iniciativa, quando ocorram no decurso de ato presidido pelo mesmo, como resulta do nº 2 do artº 198º do referido diploma.
Da leitura dos preceitos relativos a estas nulidades resulta que dos despachos deve recorrer-se e das nulidades reclamar-se, sendo certo que não sendo o recurso e a reclamação meios concorrentes, cabe às partes, numa primeira fase, reclamar da nulidade a fim de sobre a mesma obter uma decisão.
Havendo, porém, uma decisão, no limite uma sentença precedida de uma nulidade de conhecimento oficioso ou tendo sido omitida uma qualquer formalidade de cumprimento obrigatório, daquela podem as partes recorrer (neste sentido Drs Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, na obra e pág atrás citadas, Dr Abrantes Geraldes, Recursos no NCPC, 5ª edição, pág. 26 e ss, o Acordão da Relação do Porto, atrás citado).

Ora, no caso, veio o exequente/embargado recorrer de decisão de mérito, proferida após a realização de uma tentativa de conciliação, sem que, previamente, tenha sido convocada audiência prévia sendo certo que, daquela mesma decisão consta, sem prévia audição das partes, despacho a dispensar a realização da mesma.

Com relevo para a apreciação da questão suscitada importa convocar aqui alguns preceitos legais.

Assim, sob a epígrafe “Audiência prévia”, estabelece o artº 591º do Código de Processo Civil que:
“1.Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:
a)Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º;
b)Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c)Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d)Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;
e)Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes;
g) Programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas.
2.O despacho que marque a audiência prévia indica o seu objeto e finalidade, mas não constitui caso julgado sobre a possibilidade de apreciação imediata do mérito da causa.
(…)”.


Estabelece, por seu lado, o artº 592º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Não realização da audiência prévia” que:
“1.A audiência prévia não se realiza:
a)nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) e d) do artigo 568º;
b)quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados;
2.Nos casos previstos na alínea a) do número anterior, aplica-se o disposto no nº 2 do artigo seguinte”.
Do artº 593º do referido diploma legal, com a epígrafe “Dispensa da audiência prévia” resulta que:
“1.Nas ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º.
2 - No caso previsto no número anterior, nos 20 dias subsequentes ao termo dos articulados, o juiz profere:
a) Despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;
b) Despacho a determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
c) O despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º;
d) Despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas.
3.Notificadas as partes, se alguma delas pretender reclamar dos despachos previstos nas alíneas b) a d) do número anterior, pode requerer, em 10 dias, a realização de audiência prévia; neste caso, a audiência deve realizar-se num dos 20 dias seguintes e destina-se a apreciar as questões suscitadas e, acessoriamente, a fazer uso do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 591”.

Em último lugar, estabelece o artº 597º do referido diploma legal e sob a epígrafe “Termos posteriores aos articulados nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação” que:
“Nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação, findos os articulados, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 590.º, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo:
a)Assegura o exercício do contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados;
b)Convoca audiência prévia;
c)Profere despacho saneador, nos termos do no n.º 1 do artigo 595.º;
d)Determina, após audição das partes, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
e)Profere o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º;
f)Profere despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas;
g)Designa logo dia para a audiência final, observando o disposto no artigo 151.º”.

Ora, da leitura conjugada destes preceitos, designadamente, do nº 1 do artº 591º, nº 1 do artº 592º, nºs 1 e 3 do artº 593º e 597º, resulta que na ação declarativa comum de valor superior a metade da alçada da Relação, ou seja, superior a €15.000,00, a regra é a realização da audiência prévia, com exceção, dos casos indicados no nº 1 do artº 592º e quando o juiz, ao abrigo do disposto no nº 1 do artº 593º dispense a sua realização.
Ou seja, a dispensa da audiência prévia, nos termos do nº 1 do artº 593º, apenas é possível quando se destine aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do nº 1 do artº 591º, a saber, proferir despacho saneador, nos termos do nº 1 do artº 595º; determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no nº 1 do artº 6º e no artº 547º; proferir, após debate, o despacho previsto no nº 1 do artº 596º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes.
Daqui se retira que a realização da audiência prévia será obrigatória, visando, como referem, a pág, 710, os Drs Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, na obra citada, “(…)dois objetivos fundamentais: por um lado, materializar princípios gerais como o da cooperação e o da imediação; por outro, evitar a paralisação dos processos no culminar da fase dos articulados, na medida em que se estabelece um prazo de 30 dias para a sua realização, resolvidas que estejam as questões inseridas no despacho pré-saneador”, nos demais casos, designadamente, quando se pretende  conhecer do pedido, na fase de saneamento dos autos, devendo, nos termos da al. b), do nº 1, do artº 591º, do Código de Processo Civil, facultar às partes a possibilidade de alegarem de facto e de direito sobre a matéria de que irá conhecer.

Ora, no caso sub judice, o valor da presente causa, correspondente a € 30.000,01, mostrando-se, pois, superior a metade da alçada do Tribunal da Relação.
Por outro lado, conforme resulta do disposto no nº 2 do artº 732º do Código de Processo Civil, após a notificação do exequente para contestar os embargos, estes passaram a seguir os termos do processo comum declarativo, aplicando-se pois ao caso os preceitos atrás citados.
Assim sendo, conhecendo do mérito da causa, em sede de despacho saneador, não precedido ou proferido em sede de audiência prévia, nem precedido da audição das partes quanto à dispensa daquela, verifica-se a nulidade invocada, por quem tem legitimidade para a invocar, em tempo e na forma adequada.

E diga-se ainda que, mesmo que se entendesse ser admissível a dispensa da realização da audiência prévia sempre se colocaria a questão da não audição das partes para se pronunciarem quanto àquela e da surpresa da decisão.

Vejamos.

Resulta do nº 3, do artº 3º do Código de Processo Civil que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
 Consagra-se assim o principio do contraditório, ao qual subjaz a ideia de que, como referem os Drs Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in obra citada, pág. 21, “(…)repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, regra que apenas sofre desvios quando outros interesses se sobreponham”. Ou seja, através do exercício do direito de influência, traduzido na possibilidade de as partes, antes de proferida decisão, se pronunciarem sobre as questões suscitadas, previnem-se as “decisões surpresa”.
Como refere o Acordão da Relação do Porto de 10 de julho de 2024, atrás citado, “Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas com soluções de direito inesperadas. Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, selecionar, qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Impõe, sim, ao julgador que, antes de decidir, faculte às partes a discussão da questão de direito”.
A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. Efetivamente, pretendendo o juiz basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes mas oficiosamente levantadas por si, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, ao abrigo do citado nº 3 do artº 3º do Código de Processo Civil, convidar, previamente, as partes a sobre as mesmas, querendo, se pronunciarem, facultando assim àquelas, como se refer no D. Aresto, “(…)a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar”, só estando dispensado de o fazer, em casos de manifesta desnecessidade.
Ou seja, nenhuma decisão deve tomar-se sem que previamente tenha sido dada às partes a possibilidade de, perante os factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a decisão, as discutirem, contestarem ou valorarem, podendo, assim, influir ativamente construção daquela decisão.
Assim sendo, estaremos perante uma decisão surpresa quando o juiz, como se refere no Acordão acima citado “de forma inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta decisão do litígio. Não tendo as partes configurado a questão na via adotada pelo juiz, cabe ao mesmo dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos[12], só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta desnecessidade”.
Ora, como já acima nos referimos, encontrando-se o Julgador impedido de, nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação, decidir a causa, sem antes dar às partes a faculdade de se pronunciarem em audiência prévia, sendo esta uma diligência que tem, obrigatoriamente, de ter lugar nas referidas ações, conforme estatui o nº1, do artº 591º, do CPC, e tal, in casu, efetivamente, não foi respeitado, ao dispensar a realização daquela, sem previamente permitir às partes sobre tal intenção se pronunciarem, violou não só principio do contraditório, como proferiu decisão surpresa.
A não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, invocada, também, por quem tem legitimidade para a invocar, em tempo e na forma adequada.

Assim, a falta da audiência prévia destinada, designadamente, ao fim previsto na al. b), do nº1, do artº 591º do Código de Processo Civil, “Facultar às partes a discussão de facto e de direito” e a não audição prévia das partes quanto à possibilidade de se vir a conhecer do mérito sem a convocação da audiência prévia, determinam a nulidade do saneador-sentença que conheceu do mérito da causa, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas, devendo baixar os autos à 1.ª instância com vista à oportuna designação da audiência prévia que obrigatoriamente deverá ter lugar, em estrita observância do preceito atrás citado, cumprindo-se assim, o princípio do contraditório.
*
V. Decisão:

Considerando quanto vem exposto acordam os Juízes desta Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso de apelação (quanto às questões apreciadas), anulando-se, consequentemente a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos na 1.ª instância, com vista à oportuna designação da audiência prévia que, em observância do nº 1 do artº 591º do Código de Processo Civil, terá obrigatoriamente lugar.

Custas pela apelante, dado o proveito, nos termos do disposto no nº 1 do artº  527º do Código de Processo Civil.
Guimarães, 18 de dezembro de 2024

Relatora: Margarida Pinto Gomes
Adjuntas: Paula Ribas
Fernanda Proença Fernandes.