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PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
MEDIDA CAUTELAR
MEIOS DE PROVA
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL REALIZADA EM INQUÉRITO CRIMINAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Sumário
I – Os depoimentos e mesmo as declarações prestadas no âmbito de perícia-médico legal em sede de inquérito criminal, podem ser consideradas como prova em sede de processo tutelar para fundamentar a aplicação de medida cautelar nos termos da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo.
Texto Integral
Relator: Luís Miguel Martins
Primeira Adjunta: Margarida Pinto Gomes
Segunda Adjunta: Conceição Sampaio
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo de Promoção e Proteção relativo aos menores AA, nascida a ../../2018, a BB, nascida a ../../2019 e a CC, nascido a ../../2022, filhos de DD e de EE, foi proferida, em 02/10/2024, decisão cautelar nos seguintes termos:
“Termos em que se decide, a título cautelar, aplicar a medida protectiva de apoio junto de outro familiar, na pessoa dos avós maternos, FF e GG, residentes da Rua .... Traseiras, União de Freguesias ..., ... e ... – ... - cfr. art.º 35.º, n.º 1, al. b) da LPCJP e 37.º do mesmo diploma legal. ”.
Iniciaram-se os autos por via da sinalização, a 19/06/2023, do Agrupamento de Escolas ..., a que pertence o equipamento educativo que a criança AA frequenta (Jardim de Infância ...), por suspeita da mesma ser vítima de abusos sexuais e de mau trato psicológico, permanecendo muito tempo calada, por vezes com o semblante triste e com sinais de sono inusuais para uma criança da sua idade.
A suspeita assenta em relatos da menor sobre contactos físicos de cariz sexual por parte do pai.
Por decisão negociada de 20/07/2023 foi aplicada às crianças a medida protetiva de apoio junto dos pais, na pessoa da mãe.
Em 19/03/2024, após advertências à progenitora, foi mantida a medida protetiva inicialmente aplicada.
A 10/04/2024 foi aplicada, provisoriamente, a medida de apoio junto de outro familiar, na pessoa dos avós maternos, FF e GG por se entender que quer o progenitor, quer a progenitora não só incumpriram aquilo a que se tinham obrigado, mas mantinham contacto das crianças com o pai e a mãe obstava à instrução do processo.
A 10/07/2024 foi a medida protetiva de apoio junto de outro familiar, na pessoa dos avós maternos mantida.
Face à posição dos progenitores na diligência de 30/09/2024, que se opuseram à continuação da medida, foi proferida a sobredita decisão de 02/10/2024.
Inconformados com esta decisão, da mesma vieram recorrer os progenitores dos menores, formulando as seguintes conclusões:
“I. Constituiu objeto do presente recurso a reapreciação da matéria de facto e a reapreciação da matéria de direito.
II. Atenta a fundamentação da matéria de facto provada, o tribunal a quo considerou provados factos alegadamente relatados pela menor AA à Polícia Judiciária – factos 16 a 22 da matéria de facto provada - atentando o teor do auto junto ao presente processo a 30.06.2023; e considerou provados factos alegadamente relatados pelas menores AA e BB à perita do INML - factos 23 a 27 da matéria de facto provada - atentos os relatórios do INML juntos aos autos em 11.06.2024.
III. Porém, os elementos recolhidos nos autos n.º 1823/23...., entretanto incorporados no inquérito criminal n.º 3747/23...., entre eles o auto da Polícia Judiciária [bem como os depoimentos que o mesmo integra] e os relatórios o INML, não podem ser considerados como meio de prova válida para os presentes autos.
IV. Nenhum dos elementos recolhidos naqueles autos cumpriu o formalismo tendente à sua validação legal, pelo que constituem prova ilegal e, por conseguinte, não pode ser considerada.
V. No decurso das diligências em crise, as crianças não estavam devidamente acompanhadas [por curador/patrono/técnico devidamente habilitado] para que as mesmas pudessem optar pela recusa do seu depoimento, nem dos ditos elementos resulta que as mesmas tenham sido informadas da hipótese de se recusarem a prestar depoimento.
VI. A falta de informação de recusa de depoimento a testemunha que possa recursar-se a depor, como sucede no caso das crianças AA e BB relativamente ao arguido, seu pai, afeta os respetivos atos/elementos de ilegalidade, por violação do preceituado no art.º 134º, n.º 1, al. a) do CPP, o que se invoca para todos os efeitos legais, vide o teor do Ac. TRP, processo n.º 2218/20.0T9VFR.P1, de 06-04-2022, disponível em dgsi.pt.
VII. Desconhecem-se as circunstâncias em que as crianças prestaram depoimento: se as crianças estavam capazes de compreender o significado do seu depoimento; se as crianças compreenderam o teor das perguntas; se as perguntas foram efetuadas de forma direta ou indutiva; se foi garantida as crianças a estabilidade emocional na sua audição e se as crianças efetivamente disseram o que resulta dos seus depoimentos
VIII. Desconhece-se, a genuinidade do “depoimento” das crianças, bem como a existência de eventuais pressões ou manipulações prejudiciais à descoberta da verdade material; desconhece-se o ambiente em que tais “depoimentos” foram prestados; desconhece-se a capacidade das crianças distinguir realidade de fantasia, verdade da mentira…
IX. Tais dúvidas, porque sérias e inultrapassáveis, afetam irremediavelmente a credibilidade de tais “depoimentos”, pelo que, desacompanhados de prova bastante que os confirme, não podem ser considerados.
X. Nenhum dos elementos recolhidos nos autos de processo crime, e que serviram de base à fundamentação da sentença em crise, foram sujeitos ao necessário contraditório pelo arguido/recorrente no âmbito do processo crime, nem pelos recorrentes no âmbito do presente processo de promoção e proteção, cfr art.º 32º, n.º 5 CRP e 3º, n.º 3 do CPC e 117º da LPCJP.
XI. Ao não fazer observar o princípio do contraditório sobre matéria que serviu de base à decisão proferida e ao respetivo enquadramento jurídico, o tribunal a quo, cometeu omissão processual grave, consubstanciada em nulidade processual, cfr art.º 195º, n.º 1 do CPC, que se invoca para todos os efeitos legais, vide Ac. TRG, proferido no Processo: 533/04.0TMBRG-K.G1, de 19-04-2018, e do Ac. do TRC, proferido no processo n.º 168/19.2GTLRA.C1, de 08/02/2023, ambos disponíveis em dgsi.pt.
XII. No decorrer de todo o processo crime o recorrente, não obstante se dispor a tanto, nunca foi ouvido perante o MP [ou JIC]; arrolou testemunhas e requereu lhe fosse realizada a competente perícia psicológica, o que nunca foi promovido/ordenado; prestou TIR e nunca foi promovido o agravamento da medida de coação entretanto aplicada.
XIII. A perita médica o INML entendeu que: no que se refere à menor BB, a perícia concluiu pela inexistência de desajustamento psicológico; e no que se refere à menor AA, a perícia realizada revelou-se inconclusiva.
XIV. Pelo que a prova que esteve na base da decisão em recurso é ilegal, o que se requer seja reconhecido com todas as legais consequências.
XV. Há manifesto erro de julgamento quanto à matéria de facto dada por provada nos pontos 16 a 27 da matéria de facto provada, que deve ser alterada para a MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA, o que se requer.
XVI. Efetuadas as diligências de investigação criminal e apreciados os indícios de crime, mormente o teor das declarações prestadas para memória futura perante JIC, mas também os relatórios periciais juntos aos autos, não foi possível indicar, com a força probatória necessária, que o progenitor/recorrente tenha efetuado contacto de natureza sexual com as crianças, suas filhas.
XVII. As declarações para memória futura são documentos autênticos, cfr art.º 369º e 370º do CC, e fazem prova pela dos factos neles documentados, cfr. art.º 371º do CC.
XVIII. Motivo pelo qual, entendeu o DIAP de Braga determinar o arquivamento dos autos de processo crime conforme decisão junta aos autos, mas que o tribunal a quo entendeu não considerar mormente para efeitos de matéria de facto provada.
XIX. A sobredita decisão de arquivamento é, salvo melhor entendimento, facto superveniente que justifica a alteração não só do regime convivial, bem como, da medida de acompanhamento entretanto decretada, o que se peticiona seja reconhecido por via do presente recurso.
XX. Do relatório Pericial elaborado pela Sr.ª Perita HH cujo teor e validade não foi impugnado, resulta que: da avaliação efetuada não foram encontrados indicadores que permitem concluir a ocorrência da alegada experiência abusiva.
XXI. Do relatório do CAPAF do Porto de 26.09.2024 resulta, entre o mais, que: É notório o sofrimento emocional associado ao afastamento; Há grande relação de afeto e proximidade entre o pai e as crianças; O pai demonstra competências parentais sólidas; As crianças denotam dificuldade em se separar dos pais; É visível o exercício de uma parentalidade positiva por parte do pai; A família tem uma notável capacidade de adaptação; A família mantem laços de afeto e proximidade; Aguardam pacientemente pela resolução do assunto;
XXII. Há manifesto erro de julgamento quanto à matéria de facto não considerada pelo tribunal a quo relativa ao teor do despacho de arquivamento dos autos n.º 1823/23...., entretanto incorporados no inquérito criminal n.º 3747/23...., que face à sua junção aos autos, viola flagrantemente as regras previstas nos artigos 369º, 370º e 371º do CC.
XXIII. Pelo que, deve a decisão da primeira instância ser anulada e substituída por outra que julgue ampliada a matéria de facto provada nos seguintes termos:
IV. Da avaliação efetuada pela Sr.ª Perita Dr.ª HH não foram encontrados indicadores que permitem concluir a ocorrência da alegada experiência abusiva.
V. Do relatório do CAPAF do Porto de 26.09.2024 resulta que:
ix. É notório o sofrimento emocional associado ao afastamento;
x. Há grande relação de afeto e proximidade entre o pai e as crianças;
xi. O pai demonstra competências parentais sólidas;
xii. As crianças denotam dificuldade em se separar dos pais;
xiii. É visível o exercício de uma parentalidade positiva por parte do pai;
xiv. A família tem uma notável capacidade de adaptação;
xv. A família mantem laços de afeto e proximidade;
xvi. Aguardam pacientemente pela resolução do assunto;
VI. Do despacho de arquivamento proferido nos autos n.º 1823/23...., entretanto incorporados no inquérito criminal n.º 3747/23...., resulta que efetuadas as diligências de investigação criminal e apreciados os indícios de crime, mormente o teor das declarações prestadas para memória futura perante Juiz de Instrução Criminal, mas também os relatórios periciais juntos aos autos, não foi possível indicar, com a força probatória necessária, que o progenitor/recorrente tenha efetuado contacto de natureza sexual com as crianças, suas filhas.
XXIV. A fundamentação da decisão em crise pondera factualidade que não resultou de prova produzida em debate judicial e/ou não resultam de prova válida, daí extraindo conclusões falaciosas e erradas, pelo que merece censura.
XXV. O tribunal a quo não ponderou o teor do despacho de arquivamento do processo crime, que incorpora as declarações para memória futura proferidas perante Juiz de Direito e que tem valor de documento autêntico e faz prova pela dos factos a que se referem; do relatório pericial da Sr.ª Perita HH; e do relatório do CAPAP do Porto de 26.09.2024, o que se impõe.
XXVI. De acordo com a de LPCJP, na escolha da medida adequada a afastar de modo definitivo os perigos aos quais se encontram sujeitas as crianças, o tribunal deve nortear-se pelos princípios estabelecidos pelo legislador no seu art.º 4.º, com destaque para o interesse superior da criança, a intervenção mínima, a proporcionalidade e atualidade, a responsabilidade parental, o primado da continuidade das relações psicológicas profundas, a prevalência da família e audição obrigatória e participação, vide Ac. do TRG de 28.09.2023, disponível em dgsi.pt. [sublinhado nosso].
XXVII. Lê-se no ac. do TRG de 22.02.2024, proferido no processo n.º 5012/18.5T8GMR.G2, disponível em dgsi.pt, entre o mais, que: A execução da medida de apoio junto dos pais deve ter em conta a situação de perigo que determinou a sua aplicação e o nível das competências parentais, reveladas aquando da aplicação da medida e deve ser orientada no sentido do reforço ou aquisição por parte destes das competências para o exercício da função parental adequadas à superação da situação de perigo e suas consequências e à conveniente satisfação das necessidades de proteção e promoção da criança (cfr. artigo 16º n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 12/2008, de 17/01). . [sublinhado nosso].
XXVIII. O tribunal a quo entendeu que os factos revelam que, pelo menos, o pai das crianças atuou sobre as filhas de molde tal que a sua atuação se consubstancia do disposto n.º art.º 3, n.º 1 e n.º 2, al. b) da LPCJP. Mais entendeu o tribunal a quo que a progenitora, ao saber e ter não agido em conformidade não agiu como a sua posição de garante lhe exigia, tendo ocultado e, já na pendência do presente processo, permitido que as crianças estivessem com o pai, com elas dormido e lhe dado banho. Claramente, os pais, nos termos da lei - art.º 3.º, n.º 1 da LPCJP - põem em perigo os filhos.
XXIX. O tribunal a quo não ponderou prova documental careada aos autos depois da decisão de 10.07.2024, e antes da prolação da decisão em recurso, o que impõe uma nova avaliação a realizar aquando a aplicação da medida.
XXX. O tribunal a quo decidiu como se o DIAP de Braga não tivesse concluído as investigações do foro criminal e como se sobre o progenitor ainda se mantivessem suspeitas fundadas de abuso sexual sobre as suas filhas, o que não sucede mais.
XXXI. O processo penal não é uma causa prejudicial relativamente aos autos de promoção e proteção. Os critérios de apreciação da prova são distintos no processo penal e no processo civil. Mas quando os factos (muito graves) que levaram à abertura do processo de promoção e proteção estão igualmente a ser investigados num processo penal, faz sentido aguardar pela decisão penal, vide Ac. do TRG de 25.012024, proferido nos autos n.º 1383/22.7T8CHV-F.G1, disponível em dgsi.pt.
XXXII. In casu, escamoteados os factos para efeitos de natureza criminal, concluiu-se pela não acusação do recorrente. O processo de promoção e proteção, bem como o processo cível no geral, não pode ser mais penoso/exigente para um suspeito do que aquilo que foi o processo crime. Se assim fosse estaríamos perante um conflito de jurisdição e/ou competência, cfr art.º 109º do CPC, / ofensa à autoridade de caso julgado, o que não se pode aceitar.
XXXIII. A decisão em recurso põe em causa a segurança e confiança jurídica e põe em causa a paz jurídica e viola direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, vide ac. do STJ de 13-04-2011, proferido nos autos n.º 250/06.6PCLRS.L1-3, disponível em dgsi.pt.
XXXIV. A decisão de que se recorre viola o preceituado no art.º 1º, 3º, 4º, 34º e 117º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, art.º 134º do Código de Processo Penal, art.º 109º e 195º do Código de Processo Civil, art.º 29º, 32º, 36º e 69º da Constituição da República Portuguesa, e art.º 369º, 370º, 371º, 1878º, 1885º e 1096º todos do Código Civil, pelo que deve ser alterada.
TERMOS EM QUE, com o douto suprimento de V/Excelências, deve o presente recurso merecer total provimento e, em consequência, ser revoga a decisão proferida e, por conseguinte, ser substituída por outra que revogue a medida protetiva de apoio junto de outro familiar, na pessoa dos avós maternos, e determine o arquivamento dos presentes autos,
Ou, se assim não se entender,
Deve a decisão do tribunal a quo ser alterada e substituída por outra que revogue a medida protetiva de apoio junto de outro familiar, na pessoa dos avós maternos, e determine a medida protetiva de apoio junto dos progenitores, aqui recorrentes, assim se fazendo sã e costumada
JUSTIÇA!”.
*
O Ministério público apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. Os princípios que norteiam o processo penal e os princípios que norteiam o processo civil e consequentemente o processo de promoção e proteção não são os mesmos.
2. No processo penal vigora o princípio in dubio pro reo segundo o qual, a dúvida razoável sobre os factos que interessam à definição da responsabilidade do arguido resolve-se sempre a favor dele.
3. No processo de promoção, nos termos do art. 1.º da LPCJP, o objetivo do processo é a promoção dos direitos e proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral.
4. De cordo com o disposto no art. 3.º da mesma lei “1 - A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo. (…)”.
5. Nos termos das al. b) e f), do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo), «2. Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações: (…); b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais; f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente (…) o seu equilíbrio emocional».
6. O conceito de perigo deve ser entendido como o risco atual ou iminente para a segurança, saúde, formação moral, educação e desenvolvimento do menor.
7. Por sua vez, o art. 4.º do mesmo diploma legal, estabelece como princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo, entre outros, o superior interesse da criança e do jovem; a proporcionalidade e atualidade, no sentido de a intervenção dever ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade; a responsabilidade parental, devendo a intervenção ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem; a prevalência da família; a obrigatoriedade da informação e a audição obrigatória e participação.
8. O processo de promoção e proteção tem a natureza de jurisdição voluntária (cfr. artº. 100º), significando tal, e antes de mais, que neste tipo de processos não existe um verdadeiro conflito de interesses a compor, mas tão só um interesse a proteger, o da criança ou jovem em perigo, muito embora possa existir um conflito de representações ou de opiniões acerca desse mesmo interesse.
9. Neste tipo de processos, ao contrário do que sucede nos processos de jurisdição contenciosa, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo, antes e sempre, adotar a solução que julgar mais conveniente e oportuna para o caso concreto, sempre com os olhos postos nos reais interesses das crianças ou jovens envolvidos em termos do seu futuro desenvolvimento físico-psicológico, intelectual e moral, que se pretende o mais harmonioso e equilibrado possível, e que, no fundo, consubstancia o tal interesse superior e o desenvolvimento integral, e sem nunca esquecer que, por isso, neste domínio as decisões nunca são definitivas, já que podem ser alteradas ou modificadas sempre que circunstâncias supervenientes o justifiquem.
10. Acresce que, ao contrário do que parecem pretender os recorrentes, não é a existência do processo de promoção e proteção que é passível de integrar a situação de perigo, mas sim a situação que deu origem à instauração do presente processo.
11. As crianças, atualmente com 2, 5 e 6 anos de idade, respetivamente, não têm capacidade para se proteger, competindo ao Tribunal, acautelar a segurança e o bem-estar das crianças, face às provas coligidas que, apesarem de não terem sido suscetíveis de levar a uma acusação pública, não afastam as certezas de que algo aconteceu, ou seja, de que as duas irmãs foram vítimas de abuso sexual por parte do progenitor.
12. Aliás, o próprio despacho de arquivamento do inquérito coloca a possibilidade de as crianças terem sido instrumentalizadas para o momento da audição para memória futura, assim como o relatório pericial faz referência a tal, no que à criança AA se refere.
13. Acrescer a isto, temos o longo período de tempo que decorreu desde a denúncia, a inquirição pela PJ, até à data em que foi realizada a audição para memória futura, o que face à idade das crianças, leva a que o tempo decorrido tenha, ainda, mais relevância.
14. Assim, perante os factos dados como provados dúvidas não subsistem estarmos perante a situação de perigo a que se alude nas al. b) e f), do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 147/99, de 01 de setembro da LPCJP.
15. Mas, mesmo na versão apresentada desde sempre pelos recorrentes as crianças estão numa situação de perigo.
16. Resulta dos autos que os recorrentes admitem ou admitiram que a filha poderá ter sido abusada sexualmente, talvez por amigos seus que frequentavam a casa, referiram-no à Senhora Técnica Gestora do caso e em diligência. Porém, nunca tentaram apurar tais factos de forma cabal.
17. Antes pelo contrário. A preocupação deste progenitores foi sempre obstaculizar à investigação dos factos e à instrução dos presentes autos, mas aparentemente tentando passar a ideia que estavam a colaborar (saindo o progenitor imediatamente de casa; fazendo requerimentos a estes autos queixando-se da morosidade do processo crime, e, contemporaneamente, obstando à realização das perícias ordenadas; solicitando por diversas vezes a intervenção do CAFAP mas deixando de aí comparecer; impedindo que as Senhoras Técnicas falassem com a nova educadora das crianças, impondo que, para isso seriam eles a dar as informações da mesma; violando os compromissos assumidos perante este Tribunal no sentido de o progenitor não contactar com as crianças sem supervisão; a progenitora permitindo que aquele desse banho às filhas e pernoitasse em casa; levando a criança a uma psicóloga particular quando estavam pendentes, ainda, as perícias no INML ordenadas no âmbito do processo crime e antecipadamente referindo à Senhora Técnica Gestora do caso o resultado do relatório que solicitaram a esta Psicóloga, que se fez presente durante as declarações para memória futura…)
18. Isto é, a preocupação dos recorrentes em tentarem provar que o pai não abusou das filhas foi de tal ordem que os progenitores apesar de, em dado momento perante aquilo que foi verbalizado pelas crianças terem colocado a hipótese de tal ter ocorrido, por amigo ou amigos que frequentavam a sua casa, quando questionados em diligência pela identificação dessas pessoas, não os identificaram e nunca procuraram esclarecer tal situação.
19. A única preocupação que tiveram sempre foi inviabilizar a finalização das perícias e descredibilizar o relatório das perícias ordenadas no âmbito do processo crime arranjando um documento feito por psicóloga por eles contratada, tentando assumir o domínio sobre a investigação e a instrução dos presentes autos de promoção e proteção (veja-se a junção, no dia 22.01.2024 , dos relatórios das creches das crianças e, como por eles próprios referido no requerimento, por forma a evitar que as técnicas gestoras da ATT falassem com as mesmas e veja-se ainda que é após esta audição, no dia 08.04.2024, com as educadoras das crianças que as Senhoras Técnicas tiveram conhecimento que o pai estava em casa com as crianças, dormia em casa, dava banho às crianças, isto depois dos compromissos assumidos).
20. Como se refere no relatório da PJ, junto aos autos a 30.06.2023 “ os atos sexuais que a criança AA referiu ser vítima pelo pai, não correspondem aos atos sexuais que a mesma visualizou (visualizou coito oral da mãe ao pai, contudo, alegou, ser vítima exatamente do oposto), sendo certo que, perante a PJ a criança conseguiu reproduzir o estado de ereção do órgão genital masculino.”
21. As preocupações e explicações da progenitora, perante a Senhora Perita do INML, face ao que foi denunciado (abuso sexual do progenitor às crianças) são estas:
a. - a AA disse alguma coisa...;
b. - mas o afastamento faz mal às miúdas e tem feito mal ao pai;
c. -invenção da ... ou outras. Tinham inveja de nós. Queria tirar as meninas, ela tinha um filho deficiente e faleceu há pouco tempo…;
d. - apanhou-nos duas vezes no ato sexual, uma estávamos a fazer sexo oral e outra eu estava por cima.
e. -AA viu o pai a ver filmes pornográficos deve ter sido isso...”
f. - não tenho apoio, o meu marido está em ..., ele foi muito presente... faz muita falta às miúdas, inventaram uma mentira.
g. - deve ser ciúmes de nos ver juntos...
22. Ou seja, mesmo na versão apresentada desde sempre pelos progenitores, o perigo verifica-se pois estas crianças:
a. – podem ter sido abusadas por amigos dos progenitores e estes não cuidaram de saber quem, como, onde e levá-los à justiça, afastando-os dos convívios das mesmas,
b. - presenciaram os progenitores a praticar atos sexuais e
c. - viram o progenitor a assistir a filmes pornográficos.
23. Tais comportamentos integram, sem dúvida alguma, o perigo definido nas al. b) e f), do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro ( Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo) pelo que está legitimada a aplicação da medida protetiva promovida.
24. No que aos elementos constantes dos autos e que foram tidos em conta na douta sentença os recorrentes tinham conhecimento dos mesmos, quer da consulta que efetuaram a estes autos quer na consulta que efetuaram no âmbito do processo de inquérito.
25. A aplicação da medida de apoio junto de outro familiar foi precedida do procedimento regular previsto na lei (art. 100.º e ss.), com observância do disposto no art. 104.º, quanto ao exercício do contraditório, e com a audição dos progenitores e dos avós maternos, nos termos do art. 107.º, todos da LPCJP.
26. A decisão recorrida foi proferida após ter sido dado o contraditório sobre a promoção do Ministério Público e sobre o qual os recorrentes se pronunciaram.
27. Como tal não se pode concluir pela violação do princípio do contraditório, improcedendo, assim, este fundamento recursivo.
28. O arquivamento do inquérito, ao abrigo do disposto no art. 277.º do CPP, não tem efeitos preclusivos, pois o inquérito pode ser reaberto nos termos do art. 279.º n.º1 do mesmo diploma, ou seja, caso surjam novos factos ou elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento.
29. O despacho de arquivamento neste âmbito é da exclusiva competência do Ministério Público e nele não há qualquer intervenção judicial, pelo que não sendo a decisão jurisdicional, não é suscetível de recurso, nem de trânsito em julgado.
30. Convenientemente os recorrentes destacam apenas do relatório do INML “ no que se refere à criança BB, que a perícia concluiu pela inexistência de desajustamento psicológico; e quanto à criança AA, a perícia realizada revelou-se inconclusiva.”
31. No entanto, como acima se transcreveu, da referida perícia resulta que a criança “AA recusa-se a falar no segundo relato, e não o pudemos confirmar por faltar duas vezes às perícias (terceira perícia sugerida). Sugere que a progenitora e a mãe sugeriram não falar, ou chorar, para terminar rapidamente a perícia o que condicionou o relato e a avaliação, o que condiciona a avaliação dos indicadores de credibilidade uma vez que não temos dados de confirmação do relato. No entanto, considerando o tempo que decorreu desde as duas perícias, consideramos que não faria sentido, além de correr o risco de se recusar novamente a falar.”
32. E quanto à BB “analisando o relato de BB à luz dos indicadores de veracidade das alegações de abuso, verificamos que este apresenta caraterísticas semelhantes às de um relato verdadeiro. Assim, o relato da menor apresenta espontaneidade na sua organização e estrutura lógica. O relato de BB apresenta grande consistência entre entrevistas. Por último, não parece que existam, neste caso, processos que possam contaminar a veracidade do testemunho, nomeadamente a presença de distorções significativas de memória nem indicadores de eventual mentira da autoria da menor ou induzida por terceiros. De acordo com a avaliação, BB não demonstra desajustamento psicopatológico clinicamente significativo.”
33. Os recorrentes convocam para os seus argumentos o relatório das perícias realizadas no INML mas apenas na parte que lhes pode aproveitar, desinserido e desvirtuando essas partes do teor de todo o relatório.
34. A isto acresce, que, face ao silêncio imposto pela mãe e madrinha as crianças estão agora ainda mais desprotegidas pois como referiu a AA à perita do INML «“…a mentira estraga a família. Nós não podemos dizer que o nosso pai faz alguma coisa...o que se passa em casa não é para dizer a ninguém. A mãe disse que eu tenho de chorar para tu me mandares embora” e “a mãe não me deixa dizer segredos” e, ainda “alguém pediu para dizer que era tudo mentira, eu vi na televisão”.». E na segunda perícia recusou-se falar “não posso dizer o que acontece em casa, a madrinha e a mãe disseram que o que acontece em casa não se pode contar”. “ Manteve silêncio em relação a qualquer pergunta, jogo ou tentativa de conversa».
35. É consabido que muitas das denúncias de abusos sexuais são efetuadas na escola, em ATL`s, a outros familiares próximos, a amigos, etc... Porém como resulta do que acima se referiu às crianças foi imposta a lei da rolha pelo que, mesmo que algo volte acontecer, agora já não podem contar porque as cuidadoras próximas (mãe e madrinha) lhe impuseram o silêncio.
36. Perante a certeza da Senhora perita do INML de que a criança estava a falar com verdade e que as crianças lhe deviam ser retiradas a progenitora não mais levou as crianças às perícias, não obstante para isso duas vezes notificada e logo contratou uma psicóloga que elaborou o documento, sendo certo que mesmo antes da elaboração do referido relatório a progenitora já deu conta do resultado do mesmo à Senhora Técnica gestora do caso.
37. Nos termos do Regime Jurídico das Perícias Médico-Legais e Forenses as perícias têm de ser ordenadas pelas autoridades judiciárias e judiciais.
38. O artigo 6.º, n.º 1, do Regime Jurídico das Perícias Médico-Legais e Forenses refere que ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciária competente, nos termos da lei, (artigo 6.º n.º 1). Mas, como se viu a progenitora porque não gostou do que a perita lhe disse obstou à conclusão das perícias não mais levando as crianças às mesmas e contratou uma psicóloga particular.
39. Para a realização das perícias e no exercício das suas funções periciais, os médicos e outros técnicos têm acesso à informação relevante, nomeadamente à constante dos autos, a qual lhes é facultada pelas entidades competentes por forma a permitir a indispensável compreensão dos factos e uma mais exaustiva e rigorosa investigação pericial ( artigo 10.º, n.º 1 ). Ora, como resulta claro dos autos a Senhora Psicóloga subscritora do documento junto pelos progenitores não teve acesso a qualquer informação do processo sendo a sua única fonte de informação os progenitores (“Para a elaboração do presente relatório, foram efetuadas três entrevistas individuais à AA com o objetivo de averiguar a respeito do alegado abuso sexual de que foi vítima, designadamente a credibilidade desta como testemunha, a veracidade das suas declarações e a existência de sintomatologia associada à experiência traumática. De modo a recolher informação complementar, foram ainda realizadas três entrevistas individuais com a progenitora e contactos via email com o pai e com a Educadora de Infância turma da AA (Prof II)”
40. Ou seja, a Psicóloga para avaliar da eventualidade de ocorrência de abuso sexual por parte do progenitor ouviu este.
41. Não pediu, nem podia pedir porque não era perita nomeada pelo Tribunal, ao processo crime nem a este processo de promoção e proteção qualquer esclarecimento. Mas também nunca deu conhecimento a nenhum destes processos que se encontrava a consultar a criança. Sabedora de que estavam a decorrer perícias no INML e estava pendente processo de promoção e proteção continuou a sua intervenção.
42. Apenas o relatório do INML dá garantias de imparcialidade, sendo a idoneidade técnica da perita certificada pelo instituto oficial em que presta funções (INML), para além de que esta técnica não foi contratada pelos progenitores.
43. Ao longo de todo o recurso os recorrentes defendem que a decisão violou os seus direitos. Mas como acima já se deixou dito no processo de promoção e proteção não existe um verdadeiro conflito de interesses a compor, mas tão só um interesse a proteger, o da criança ou jovem em perigo, muito embora possa existir um conflito de representações ou de opiniões acerca desse mesmo interesse.
44. Perante a constatação de perigo está legitimada a intervenção estadual, nos termos do art.º 3.º, n.º 1 da LPCJP pelo que não assiste razão aos apelantes, pois a douta sentença fez uma correta interpretação do melhor interesse das crianças e o Tribunal “a quo” decidiu da melhor forma com vista a acautelar e proteger esse melhor interesse.
45. No fundo, o que o tribunal recorrido decidiu – tal como promovido pelo MP – é que as crianças se encontravam em perigo pela atuação de ambos os progenitores, perigo esse que necessita ser afastado com aplicação da medida protetiva que o Tribunal aplicou.
46. Na falta de acordo só a aplicação de medida cautelar que foi aplicada era suscetível de afastar o referido perigo, fazendo, assim, uma leitura realista, atualista e proporcional da vivência e relacionamento familiar em apreço, como manda o disposto no art. 4º, al. e), da LPCJP e tal como era proposto pela técnica social que acompanha a situação da criança.
47. Em suma encontra-se corretamente julgada a matéria de facto provada impugnada pelos recorrentes e a decisão proferida é a correta, inexistindo fundamento legal para o presente recurso não tendo a douta decisão sob censura violado qualquer norma legal, adjetiva ou substantiva, a impor a sua alteração ou revogação.
Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto e confirmada a douta decisão recorrida, assim se fazendo
JUSTIÇA.”
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II – OBJETO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes, bem como das que forem conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando realçar que, de todo o modo, o tribunal não está adstrito a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.
Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, cumpre apreciar:
- Se deve ser alterada a matéria de facto fixada na decisão recorrida;
- Se em face do que decidir acerca da peticionada alteração da matéria de facto existe fundamento legal para revogar a decisão recorrida, arquivando dos autos, ou ainda que assim não se entenda, substituindo-a por outra que decida aplicar a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, conforme também pretendido subsidiariamente pelos recorrentes.
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
São os seguintes os factos considerados provados na decisão recorrida:
“1. AA, nasceu a ../../2018 e é filha de DD e de EE.
2. BB, nasceu a ../../2019 e é filha de DD e de EE.
3. CC, nasceu a ../../.... de 2022 e é filho de DD e de EE.
4. Por sinalização, a 19.6.2023, do Agrupamento de Escolas ..., a que pertence o equipamento educativo que a criança AA frequenta (Jardim de Infância ...), foram iniciados os presentes autos por suspeita da mesma ser vítima de abusos sexuais e de maus tratos psicológicos, permanecendo muito tempo calada, por vezes com o semblante triste e com sinais de sono inusuais para uma criança da sua idade.
5. A suspeita assenta em relatos da menor sobre contactos físicos de cariz sexual por parte do pai.
6. Por decisão negociada de 20.7.2023 foi aplicada às crianças a medida protectiva de apoio junto dos pais, na pessoa da mãe.
a. Entre o mais, foi acordado que o regime de convívios do pai com os filhos AA, BB e CC, ocorreria no CAFAP, mediante horário e periodicidade acordada pelas partes; e
b. O progenitor deveria manter-se afastado da morada de família e não manter qualquer tipo de contacto com os menores até concretização das visitas a ocorrer no CAFAP, quer através de telefone ou outros meios tecnológicos, até ordem contrária;
7. Em 19.3.2024 foi, após advertências à progenitora, mantida a medida protectiva aplicada a 20.7.2023.
8. A 10.4.2024 foi aplicada, provisoriamente, a medida de apoio junto de outro familiar, na pessoa dos avós maternos, FF e GG por se entender que quer o progenitor, quer a progenitora não só incumpriram aquilo a que se tinham obrigado, mas mantinham contacto das crianças com o pai e a mãe obstava à instrução do processo.
9. A 10.7.2024 foi a medida protectiva de apoio junto de outro familiar, na pessoa dos avós maternos mantida.
10. Os factos comunicados pelo Agrupamento escolar deram lugar à abertura do inquérito criminal n.º 1823/23...., entretanto incorporado no inquérito criminal n.º 3747/23.....
11. No dia 22.6.2023 os progenitores das crianças, perante a Polícia Judiciária e no âmbito do inquérito criminal n.º 1823/23.... assinaram declaração individual concordando com o afastamento do progenitor da residência e com a cessação imediata de contactos entre o, lá arguido, e os filhos até tomada de decisão pelo Tribunal.
12. Antes da notícia dos factos, a criança AA costumava adormecer com o pai no sofá.
13. Identifica, com exactidão, a zona genital feminina como “pipi ou pita” e a zona genital masculina como “pila”.
14. AA conhece o pénis do pai por o ter visto quando sai do banho, quando vai dormir e na casa de banho.
15. O progenitor de AA acompanhava-a no banho, lavando o cabelo e a zona genital.
16. Perante a Polícia Judiciária, a 22.6.2023, AA afirmou que: a. “…vi o pai a fazer chichi e vi a minha irmã a lamber a pila do meu pai e ela disse-me que ele tinha uma ferida e ela estava a curá-lo”;
b. “…nunca mexi (no pénis do pai) e nunca fiz ao pai o que a mama fez, mas a BB já meteu o dedo no buraquinho e puxou a pele da pila do pai para trás”.
c. O pai lhe lambeu a vagina e explicou que o motivo para o fazer era porque ela tinha “…bichinhos e era preciso lavar para tirá-los, então o pai lambeu o meu pipi e engoliu os bichinhos.
17. AA não queria que o pai o tivesse feito e não gostou do sucedido.
18. AA concretizou que certa feita “…a mamã estava a vestir-me as meias e o papá chegou e quis vestir-me ele. A mamã saiu e o pai lambeu-me o pipi, eu não gostei e a minha mãe não viu”.
19. Mais concretizou que “…uma noite acordei o pai tinha-me tirado as cuecas e encostou a pila dele na minha pita e fez força”, abrindo as pernas e apontando com o dedo na direcção da sua zona vaginal.
20. AA, referindo-se ao pénis do pai disse que “crescia”, demonstrando e exemplificando com as mãos a posição e tamanho do pénis, primeiro com o dedo indicador em direcção ao chão, assim como o crescimento do pénis, afastando as mãos.
21. AA verbalizou perante a Polícia Judiciária que “…o pai pediu segredo, deu-me chocolates e pediu para eu não contar nada à mãe.”.
22. AA verbalizou perante a Polícia Judiciária que a sua irmã BB lhe disse que colocou o dedo no orifício do pénis do pai e puxado a pele para trás.
23. A criança AA perante a Sr.ª Perita do INML manteve uma atitude pouco colaborante, evitando responder às questões que lhe foram colocadas. Esta recusa foi mais evidente na segunda perícia justificando “não posso dizer o que acontece em casa, a madrinha e a mãe disseram que o que acontece em casa não se pode contar”. A descrição dos fatos ocorridos foi pouco espontânea».
24. AA afirmou: “vi a pilinha do pai, é grande e tem pelo”; “o pai lambeu onde tinha bichinhos [aponta para a vulva].
25. Em relação ao comportamento de silêncio que a progenitora e a madrinha lhe impuseram AA diz: «“…a mentira estraga a família. Nós não podemos dizer que o nosso pai faz alguma coisa... o que se passa em casa não é para dizer a ninguém. A mãe disse que eu tenho de chorar para tu me mandares embora”. Continua “a mãe não me deixa dizer segredos”. Refere ainda “alguém pediu para dizer que era tudo mentira, eu vi na televisão”.».
26. «AA na segunda perícia recusou-se falar “não posso dizer o que acontece em casa, a madrinha e a mãe disseram que o que acontece em casa não se pode contar”. Manteve silêncio em relação a qualquer pergunta, jogo ou tentativa de conversa».
27. A criança BB, perante a Sr.ª Perita do INML «Convidada a relatar os fatos em apreço diz, de forma espontânea “o meu pai mordeu o meu pipi, e a mãe pôs gelo, só uma vez. Não gostei, chorei”. Questionada diz que já viu adultos nus “faziam muitas asneiras”, questionada diz que batiam no corpo. Continua, “vi o rabo do nosso pai, é gordo (...), a pila do pai às vezes fica muito maior. Eu já vi muito maior”. BB diz “eu fiz miminhos na pila do pai, foi o pai que pediu [exemplifica com a mão, fazendo uma caricia].
Questionada se tocou com mais alguma parte do corpo, “já, com a boca”.».
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Não foram dados como não provados quaisquer factos.
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A primeira questão que os recorrentes suscitam quanto ao depoimento prestado pela sua filha AA no âmbito do processo crime e os factos relatados pelas suas filhas AA e BB à perita do INML (no âmbito da perícia realizada) prestadas no âmbito do processo crime em que o progenitor foi constituído arguido por alegado crime de abuso sexual em que figuravam como vítimas precisamente as suas descendentes, é que as mesmas não foram advertidas de que podiam recusar a esse mesmo depoimento, nos termos do art. 134.º do Código de Processo Penal.
Em primeiro lugar, embora estejamos a dizer o óbvio, quanto à perícia realizada no INML trata-se de uma perícia psicológica médico-legal, e não a prestação de um depoimento, não sujeita a qualquer constrição nos termos de as menores poderem poder recusar a colaboração na perícia que tinha por legítimo objeto a:
- Identificação de alegados abusos de natureza sexual de que as menores tenham sido vítimas e identificação do agente agressor, forma como ocorreram os mesmos e localização temporal;
- Se são capazes de relatar os fatos relativos ao abuso sexual;
- Se o relato que deles fazem é com uso de linguagem apropriada para a sua idade e níveis cognitivos das mesmas, ou se de alguma forma se denota terem sido induzidos por terceira pessoa; bem como indicadores de credibilidade ou não do relato que desses abusos sexuais faz;
- Se as menores se encontram de alguma forma afetadas por esses fatos.
O art. 134.º do Código de Processo Penal reporta-se à possibilidade de recusa de depoimento como testemunhas de determinadas pessoas, o que manifestamente não é o caso, pelo que mesmo no âmbito do processo penal, não têm qualquer sentido as considerações feitas pelos recorrentes.
Quanto ao depoimento da criança AA, de cinco anos de idade, também não assiste razão aos recorrentes.
Efetivamente, sendo filha do arguido, pareceria que a mesma deveria ser advertida da faculdade de recusar o depoimento, nos termos do art. 134.º, n.º 1 al. a) e 2 do Código de Processo Penal, o que efetivamente não foi feito, aquando da sua audição como testemunha por duas Inspetoras da Polícia Judiciária.
Sucede que dada a sua tenra idade não permitia que a mesma pudesse ou possa compreender o sentido de tal advertência, antes servindo a prática de tal ato para confundir uma criança de cinco anos, pelo que é completamente destituído de sentido proceder a tal advertência.
Numa situação em tudo idêntica à presente escreveu-se o seguinte no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09/04/2024 (consultável em www.dgsi.pt), que sufragamos, na íntegra:
“Ora, no caso dos autos estamos perante uma situação em que objetivamente o menor AA, de cinco anos de idade, por falta de maturidade, conhecimento, capacidade de compreensão, inabilidade, não reúne condições para de qualquer forma usar da faculdade de se recusar a depor, para alcançar as razões e consequências de uma decisão que teria de tomar perante uma advertência que não entende.
E a tal não obsta o facto de o menor AA também poder ser um dos ofendidos da imputada conduta do arguido seu pai, uma vez que, à partida, nada impede que possa ser ouvido como testemunha nos autos, sendo certo que nada indica que se tenha constituído assistente ou deduzido pedido de indemnização civil (art. 133º, nº 1, do CPP). Sendo certo que, atendendo à literalidade das normas aplicáveis (artigos 134.º e 145.º ambos do CPP) e ao elemento sistemático, o privilégio familiar opera no âmbito da prova testemunhal e por declarações (do assistente e da parte civil). Cfr. Ob e autor cit. Pág. 110)
De tudo o exposto o que resulta é que perante esta realidade o menor está impossibilitado, por motivos que o transcendem, de ver cumprido o direito de garantia da efetiva liberdade no seu exercício, de depor ou se recusar, através do esclarecimento prévio a que alude o art.º 134º, nº 2, do CPP.
É claro que o art. 131º, nº 1, do CP, não exclui a capacidade para ser testemunha aos menores de idade, o único caso de incapacidade aí consagrado reporta-se às pessoas que se encontrem interditas por anomalia psíquica.
De qualquer forma, como se prevê no nº 2 do mesmo preceito legal, a autoridade judiciária verifica a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso for necessário para avaliar da sua credibilidade e puder ser feito sem retardamento da marcha normal do processo.
Mas, essa capacidade para prestar testemunho ou declarações, para narrar os factos que presenciou e observou, não pressupõe necessariamente a capacidade para compreender o significado da faculdade que a lei lhe confere de recusar o depoimento. Ou seja, uma coisa é a pessoa ser capaz de descrever aquilo que viu, outra substancialmente diferente é percecionar, entender, que tem o direito a recusar responder ao que lhe for perguntado, as razões pelas quais esse direito lhe é conferido e as repercussões que a sua decisão poderá acarretar, no presente e no futuro, tanto para si como para o núcleo familiar a que pertence.
Manifestamente que num caso como o vertente, em que nos deparamos com um menor de tenra idade, com cinco anos de idade, salvo o devido respeito por entendimento diferente, essa capacidade para conscientemente tomar uma opção sobre depor ou não depor, para exercer, ou não, a prerrogativa que a lei processual penal lhe concede, não se verifica. Não obstante o entendimento de que a simples menoridade da pessoa cujo depoimento se pretende só por si não acarreta essa incapacidade, ou inabilidade.
Efetivamente, é comummente aceite, designadamente no âmbito penal, que uma criança de tão tenra idade ainda não tem as suas faculdades intelectuais suficientemente desenvolvidas para compreender o alcance de uma decisão de tal importância, nomeadamente quando os interesses em jogo se desenvolvem à volta da sua família, concretamente do seu pai.
«É, manifestamente, o que se passa com menores de tenra idade cuja imaturidade, embora não os impeça de narrar os factos que presenciaram, pode, porém, inibi-los de compreender o significado e transcendência do exercício da faculdade de recusar o depoimento.
Assim, por exemplo, um menor de 5 ou 6 anos de idade, em princípio é plenamente capaz de relatar em tribunal aquilo que viu o arguido, seu pai, fazer a uma irmã do menor, a uma colega desta, ou à sua mãe, mas não é capaz de exercer conscientemente a faculdade de recusar depor contra seu pai, acusado da prática de um crime de abuso sexual de crianças ou de um crime de violência doméstica. (Des. Cruz Bucho, ob. Cit. Pág. 152).
(…)
Assim sendo, sendo manifesto que a tomada de declarações requerida visa, em última instância, obter provas contra o pai do menor, não vislumbramos que este, com cinco anos de idade, ainda que assistido por representante legal, por curador ou por defensor, possa de alguma forma, com o mínimo de consciência, optar por prestar ou não prestar declarações nos termos do artigo 134.º do CPP, constituindo desde logo uma violência confrontá-lo com a realidade de que as suas declarações poderão ser prejudiciais para o arguido seu pai.”.
Mais, ainda que assim não fosse, como é, a verdade é que a prestação de depoimento sem que ao depoente tenha sido feita a advertência a que alude o artigo 134.º n.º2 do Código de Processo Penal não constitui prova proibida nos termos conjugados do artigo 126.º n.º3 do Código de Processo Penal e 32.º n.º8 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que tal prova não foi obtida com violação de qualquer dos direitos que constituem o núcleo fundamental que a Constituição erigiu como limite inultrapassável na obtenção de provas em processo penal.
Tal omissão constitui, antes, nulidade sanável, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 134º nº2 e 120º, n.º4.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal (cfr. neste sentido v.g. o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães 20/03/2023 e a vasta doutrina e jurisprudência aí citada para a qual se remete sob pena de a reprodução se tornar fastidiosa e enfadonha), sendo certo que, tal é inclusivamente uma questão lateral uma vez que as regras do processo penal e do processo tutelar, designadamente a este respeito, são distintas.
Mas regressando a este conspecto processual penal, temos que ainda que existisse qualquer nulidade, que não existe de todo, a mesma teria que ser arguida nos termos do art. 120.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, o que não foi feito, pelo que o ato se teria por convalidado.
Ou seja, em suma, nem no processo penal existiria qualquer vício nos atos em causa, pelo que evidentemente temos que tais elementos probatórios poderiam e deveriam ter sido considerados no processo tutelar, maxime na decisão recorrida.
Mas ainda que assim não fosse, ou seja ainda que tais provas não pudessem ser consideradas no processo penal, a verdade é que ainda assim as perícias e o depoimento da criança AA deveriam ser consideradas no processo tutelar.
Conforme ressalta do art. 100.º do RPJCP, o processo judicial de promoção dos direitos da criança e jovens em perigo é de jurisdição voluntária.
“Os princípios e as regras gerais dos processos de jurisdição voluntária mostram-se previstas nos arts. 986.º a 988.º do Código de Processo Civil, destacando-se:
– a prevalência do princípio inquisitório sobre o princípio dispositivo (artigo 986.º, n.º 2), permitindo que o tribunal investigue livremente os factos e determine os meios de prova (artigo 986º nº 2 do Código de Processo Civil), afastando-se o principio da alegação e prova, pelo que o tribunal pode conhecer de todos os factos que apure, mesmo dos que não tenham sido alegados pelas “partes”) cfr Regime do Processo Tutelar Cível Anotado, Rossana Martins Cruz, julho 2021, pag 24.
– o predomínio da equidade sobre a legalidade (artigo 987º do Código de Processo Civil): a decisão a proferir está sujeita a critérios de conveniência e oportunidade e não a critérios de legalidade estrita, devendo ser adotada em cada caso a solução que se apresente mais conveniente e oportuna na prossecução dos interesses que se visa salvaguardar com o processo.
- A revogabilidade das decisões se surgirem circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração (artigo 988º do Código de Processo Civil).”. Cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/12/2023, consultável em www.dgis.pt.
Ora, no processo tutelar não há qualquer entrave da jaez do processo penal quanto à audição do menores beneficiários do mesmo, bem pelo contrário, as suas declarações devem ser prestadas sem as referidas quaisquer constrições.
Como se referiu no processo do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/01/2024 (consultável em www.dgsi.pt), curiosamente citado pelos recorrentes, mas que em nada beneficia a sua tese:
“No processo penal, o protegido é o arguido. Neste processo de promoção e proteção, é o menor.
(…)
O princípio da presunção de inocência é um princípio que vigora no processo penal, mas não neste processo de promoção e protecção. Aqui, recordemos, o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna”.
Podiam e mais que isso, deviam, como foi feito ser consideradas as declarações prestadas pelas crianças AA e BB quer nas entrevistas realizadas nas perícias, quer o depoimento que a primeira prestou perante as Inspetoras da Polícia judiciária.
Referem ainda os recorrentes que desconhecem as circunstâncias em que os depoimentos foram prestados, designadamente se as crianças estavam capazes de compreender o significado do seu depoimento; se as crianças compreenderam o teor das perguntas; se as perguntas foram efetuadas de forma direta ou indutiva; se foi garantida as crianças a estabilidade emocional na sua audição e se as crianças efetivamente disseram o que resulta dos seus depoimentos. Dizem ainda que se desconhece a genuinidade do “depoimento” das crianças, bem como a existência de eventuais pressões ou manipulações prejudiciais à descoberta da verdade material, desconhece-se o ambiente em que tais “depoimentos” foram prestados; desconhece-se a capacidade das crianças distinguir realidade de fantasia, verdade da mentir. E remata dizendo que tais dúvidas, porque sérias e inultrapassáveis, afetam irremediavelmente a credibilidade de tais “depoimentos”, pelo que, desacompanhados de prova bastante que os confirme, não podem ser considerados.
Como é também ostensivo, sem quebra do respeito devido, tal não faz qualquer sentido e mais não é que um mero exercício de retórica especulativa sem qualquer arrimo factual ou legal, visando tão só que tais meios probatórios sejam desconsiderados mas sem qualquer suporte.
O que se pode dizer, em contraponto é que nada se apurou ou se mostra vertido nos autos que as crianças não estavam capazes de compreender o significado do seu depoimento; que as crianças não compreenderam o teor das perguntas; que as perguntas foram efetuadas de forma direta ou indutiva; que não foi garantida as crianças a estabilidade emocional na sua audição e que as crianças não disseram o que resulta dos seus depoimentos. Que nada se apurou quanto à falta da genuinidade do depoimento das crianças, bem como a existência de eventuais pressões ou manipulações prejudiciais à descoberta da verdade material. Que nada se apurou de negativo quanto ao ambiente em que tais depoimentos foram prestados. E que quanto à capacidade das crianças distinguir realidade de fantasia, verdade da mentira, o relatório pericial é concludente a tal respeito. Ora, tendo as crianças sido ouvidas na forma que a lei prescreve e sem que se encontre qualquer vício na sua audição, bem pelo contrário, a credibilidade conjugada de tais declarações é notória, pelo que mesmo desacompanhados de outra prova que os confirme, devem ser considerados como foram na decisão recorrida, com cuja motivação estamos, pois, genericamente de acordo, nada havendo assim que alterar quanto à factualidade provada.
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Dizem ainda os recorrentes que a matéria probatória recolhida no processo crime que serviu de base à decisão proferida não foi sujeita ao contraditório no processo crime nem no processo tutelar.
Desconhecendo nós o que consta na íntegra do processo crime, não nos pronunciaremos sobre essa matéria, nem sobre as especificidades do processo crime, pois que para os presentes autos tal nada interessa.
Concretamente e no aqui importa considerar, no processo tutelar não se vislumbra qualquer inobservância do princípio do contraditório.
Estamos, como se disse num processo de jurisdição voluntária, que quanto à tramitação contém algumas regras próprias, designadamente a do art. 85.º da LPCJP, que estabelece que:
“1- Os pais, o representante legal e as pessoas que tenham a guarda de facto da criança ou do jovem são obrigatoriamente ouvidos sobre a situação que originou a intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção.
2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior as situações de ausência, mesmo que de facto, por impossibilidade de contacto devida a desconhecimento do paradeiro, ou a outra causa de impossibilidade, e os de inibição do exercício das responsabilidades parentais.”.
Ora, foi precisamente o que foi feito na diligência de 30/09/2024, agendada inicialmente a 13/09/2024, que precedeu a apreciação do pedido da cessação da medida cautelar de apoio junto dos avós, formulado pelos progenitores/recorrentes, em 12/09/2024.
Por outro lado, ainda que o processo tenha carácter reservado, os pais ou a sua Advogada podiam consultar o processo, em consonância com o plasmado no art. 88.º, n.º 3 do mesmo diploma legal, sendo certo que a sua Mandatária tem inclusivamente acesso ao processo através do “citius”, podendo por isso previamente à realização das diligências ou em qualquer outro momento consultar todo o processo e expediente aí incluído ou noutra qualquer altura que lhe aprouver e assim, como foi fazendo por diversas vezes ao longo do processo, apresentar os requerimentos que entender e na diligência em causa requerer ou pronunciar-se nos termos que quiser.
Acresce que inclusivamente nos procedimentos urgentes, conforme resulta dos arts. 91.º e 92.º, a decisão cautelar pode ser proferida sem qualquer contraditório, embora não seja essa a situação em análise.
O art. 104.º, ainda do mesmo diploma que tem como epígrafe “contraditório”, estabelece que:
“1 - A criança ou jovem, os seus pais, representante legal ou quem tiver a guarda de facto têm direito a requerer diligências e oferecer meios de prova.
2 - No debate judicial podem ser apresentadas alegações escritas e é assegurado o contraditório.
3 - O contraditório quanto aos factos e à medida aplicável é sempre assegurado em todas as fases do processo, designadamente na conferência tendo em vista a obtenção de acordo e no debate judicial, quando se aplicar a medida prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º.”
Ora no caso dos autos, foi escrupulosamente observado o contraditório, pois estando nós ainda perante uma medida cautelar foi convocada uma diligência tendo em vista a obtenção do acordo que não foi possível e a audição dos progenitores, avós e técnicas, encontrando-se presente a Advogada dos recorrentes, que teve intervenção ativa nessa mesma conferência, sendo certo que inclusivamente previamente à sua realização já havia requerido a alteração da medida, pronunciando-se assim a tal propósito sobre tudo o que entendeu a esse respeito. Acresce que na diligência em apreço foi concedida a palavra à Mandatária dos progenitores para alegar, o que fez.
Relativamente aos documentos que foram extraídos do processo crime, mais especificamente o auto de declarações da criança AA e os relatórios periciais dir-se-á o que a seguir se produz.
A cópia do auto de inquirição da criança AA e o auto de declarações do seu pai foram juntos aos presentes autos em 30/06/2023, não tendo nessa altura os progenitores mandatário constituído, apenas tal tendo ocorrido em 13/07/2023, com a junção aos autos de procuração por parte da Dra. JJ e consulta do processo nessa mesma altura, tendo-se inteirado do que constava dos autos, sendo que nessa esteira, em 19/07/2024 se pronunciou sobre a medida proposta pelo .... A 20/07/2023, em diligência marcada também para o efeito, por acordo, foi aplicada em benefício dos menores a medida de apoio cautelar junto dos pais, a executar junto da mãe. Ou seja, desde esta altura não lhe faltou tempo nem oportunidade para se pronunciar sobre o auto de inquirição em causa que já estava nos autos antes de os recorrentes terem constituído mandatária, pelo que nenhuma omissão foi praticada.
Quanto aos relatórios periciais, os mesmos foram juntos aos autos em 11/06/2024, não tendo efetivamente sido notificados os recorrentes dos mesmos. Mas logo após foram notificados (os recorrentes e a sua Mandatária), em 20/06/2024 para alegarem nos termos do aludido art. 85.º da LPCJP:
“Fica por este meio notificado, para, no prazo de 10 dias dizer o que tiver por conveniente, nos termos do artº 85º da Lei nº 147/99 sobre a aplicação de revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção.
O relatório poderá ser consultado nesta secretaria.”
Ou seja, poderiam logo nesta altura ter tomado conhecimento dos relatórios periciais, mas se o não fizeram, podiam desde logo ter tomado conhecimento dos relatórios, bastando deslocar-se a Tribunal ou através da consulta do citius feita pela sua Mandatária. O certo é que com toda a certeza tomaram conhecimento da existência dos mesmos pelo menos em 12/09/2024, pois em requerimento apresentado pela Mandatária dos progenitores nessa data refere-se expressamente a esses relatórios, pelo que ainda que existisse uma irregularidade devido a notificação deficiente a mesma mostrava-se sanada pela possibilidade de conhecimento e mesmo pelo conhecimento efetivo que os recorrentes tiveram do relatório sem que tivessem oportunamente arguido essa irregularidade nos termos do art. 199.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Improcede também esta linha recursiva esgrimida no sentido da revogação da decisão recorrida.
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Quanto apelidado erro de julgamento, que se consubstancia na impugnação da matéria de facto, há que considerar o que dispõe o art.º 640.º do Código de Processo Civil, que estabelece que:
“1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) (…);
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Há, assim, que primeiramente sindicar se os recorrentes cumpriram os requisitos de ordem formal que permitam apreciar a impugnação que faz da matéria de facto, designadamente se indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente analisados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões, se especifica na motivação dos meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, impõem uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
Abrantes Geraldes em “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª edição, 2018, Almedina, págs. 165 e 166, resume as obrigações impostas ao recorrente que impugne a matéria de facto nos seguintes termos:
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) O recorrente pode sugerir à Relação a renovação da produção de certos meios de prova, nos termos do art. 662.º, n.º 2, al. a), ou mesmo a produção de novos meios de prova nas situações referidas na al. b).(…);
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.”.
Sobre a interpretação do artigo 640.º do Código de Processo Civil, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2015, perfilhado pelo Acórdão desta Relação, de 19/01/2023, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, o seguinte:
“Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão”.
Diz-se também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 2015, acessível em www.dgsi.pt, que:
“(...), a exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto”. (...) Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, serve sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no nº 1 do artigo 662º do CPC”. (…) É, pois, em vista dessa função, no tocante à decisão de facto, que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afetada, nos termos do artigo 640º, nº 1, proémio, e nº 2, alínea a), do CPC. (…) “…Não sofre, pois, qualquer dúvida que a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1 do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada.”.
Acresce salientar que a crítica de quem impugna a convicção do Tribunal, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência, não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção sobre a prova produzida. Ou seja, não basta afirmar ou transcrever aquilo que foi afirmado pelas testemunhas, para se concluir que um determinado facto foi ou não incorretamente julgado. Na verdade, a parte que impugne a decisão da matéria de facto não está dispensada de efetuar a análise crítica da prova, já que pretendendo contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal terá de apresentar razões objetivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados (Cfr. neste sentido o Acórdão da Relação de Guimarães de 11/07/2017, e o Acórdão da Relação de Lisboa de 26/09/2019, consultáveis em www.dgsi.pt).
Analisadas as alegações e conclusões dos recorrentes, verifica-se que formalmente observaram os requisitos constantes do art. 640.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, nomeadamente no sentido que a jurisprudência e a doutrina lhe vêm conferindo, pois que referem de forma assertiva quais os factos que pretendem sejam decididos de forma diversa, fundamentando a sua alegação em concretos meios probatórios que entendem permitir concluir no sentido por si propugnado, sendo que concomitantemente pretendem a supressão de meios probatórios que foram considerados na decisão recorrida.
Prescreve o art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que:
“A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”.
Interpretando este dispositivo legal, diz-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/10/2023, consultável em www.dgsi.pt, que:
“A reapreciação da prova pela 2ª Instância, não visa obter uma nova e diferente convicção, mas antes apreciar se a convicção do Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência comum e da lógica, atendendo aos elementos de prova que constam dos autos, aferindo-se, assim, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto.
De todo o modo, necessário se torna que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, conforme a parte final da al. a) do nº 1 do artº 640º, do Código de Processo Civil.
Competirá assim, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, atendendo ao conteúdo das alegações do recorrente, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”.
Ora, verificamos que visão probatória dos recorrentes se mostra desde logo cerceada, nesta fase da análise do recurso, pois como vimos os meios de prova considerados na decisão recorrida, maxime o auto de inquirição da criança AA e os relatórios médico-legais extraídos do processo crime em que o progenitor aqui recorrente foi arguido, são perfeitamente válidos como prova nos presentes autos, tendo tais elementos sido decisivos na convicção do julgador de primeira instância.
Analisada a detalhada motivação do Tribunal recorrido, ao contrário do que se refere nas alegações de recurso, verifica-se que analisou todos os meios probatórios, estribando a prova dos itens 16 a 27 dos factos provados no depoimento da criança AA, onde descreve os abusos sexuais de que foi alvo tal como a sua irmã por parte do seu progenitor com uma precisão, que é incongruente com a mentira numa criança de 5 anos de idade. Relevam-se igualmente os relatórios perícias médico-legais de avaliação psicológica feito às crianças AA e BB, sendo que nas entrevistas relatam os abusos de que foram alvo, mais se concluindo pela veracidade das declarações prestadas pela BB e que não podem ser consideradas falsas as declarações da AA e que, ressaltando ainda de tais relatórios a instrumentalização das crianças por parte da progenitora, que as industriou a não revelarem o sucedido. Acresce que a criança AA não pôde sequer concluir a perícia por sua progenitora a ter obrigado a faltar aduas entrevistas, condicionado assim o relatório pericial:
“AA recusa-se a falar no segundo relato, e não o pudemos confirmar por faltar duas vezes às perícias (terceira perícia sugerida). Sugere que a progenitora e a mãe sugeriram não falar, ou chorar, para terminar rapidamente a perícia o que condicionou o relato e a avaliação, o que condiciona a avaliação dos indicadores de credibilidade uma vez que não temos dados de confirmação do relato. No entanto, considerando o tempo
que decorreu desde as duas perícias, consideramos que não faria sentido, além de correr o risco de se recusar novamente a falar.”
Bem andou, pois, a decisão recorrida ao considerar tais sólidos elementos probatórios, não relevando já a negação que as crianças fizeram da ocorrência dos factos aquando da prestação de declarações para memória futura perante Juiz de Instrução, justificando tal de forma coerente, com a manipulação que designadamente a progenitora fez das crianças para que estas não contassem o sucedido, o que veio, por agora, a ter sucesso, uma vez que para efeitos criminais, o Ministério Público entendeu não existir prova.
Ao contrário, do que pretendem os recorrentes, tal decisão de arquivamento, que não é uma jurisdicional, proferida no âmbito de um inquérito criminal em nada vincula o Tribunal, pelo que as consideração realizadas a tal respeito se revelam deslocadas. Acresce que o despacho de arquivamento foi proferido com base no principio in dubio pro reo, algo que não tem qualquer aplicação no processo tutelar, em que primordial é o superior interesse da criança, conforme decorre do art. 4., al. a) da LPCJP, como critério basilar e nuclear a orientar qualquer decisão relativamente a crianças ou jovens. A intervenção deve, assim, “atender prioritariamente, aos interesses e direitos da criança, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade de interesses presentes no caso concreto.”.
Note-se, inclusivamente que do despacho de arquivamento ressuma o seguinte:
“Em face dos elementos de prova constantes dos autos e, particularmente, apreciando o teor das declarações para memória futura produzidas nos autos pelas crianças AA e BB, conclui-se que inexistem elementos de prova que possibilitem a dedução de acusação pública.
Tendo em consideração o teor das declarações das crianças em sede de declarações para memória futura não foi possível indicar, com a força probatória necessária, que o progenitor tenha efectuado contactos de natureza sexual com aquelas.
Nestas circunstâncias, e na ausência de outros meios de prova, forçoso se torna, em decorrência do que foi exposto supra quanto às exigências de indícios, e atendendo ao princípio in dubio pro reo, concluir em favor do arguido. No entanto, atendendo à divergência de testemunhos apresentados pelas crianças no decurso do inquérito e em face da possibilidade dos seus testemunhos poderem ter sido contaminados por intermédio de instrumentalização da narrativa das crianças por parte do seu agregado familiar (cfr. informação da APAV de fls. 97), cumpre referir o arquivamento destes autos apenas resulta de, neste momento, inexistirem elementos de prova que permitam deduzir acusação pública, podendo o inquérito ser reaberto caso surjam novos elementos de prova que infirmem o teor deste despacho.”
Ora, o que sucedeu foi como o depoimento e as declarações das crianças não podiam em sede de processo crime serem valoradas em sede de audiência julgamento, uma vez que não foram prestadas perante Juiz foi determinado o arquivamento do inquérito, mas podendo ser reaberto novamente caso existam novos elementos de prova.
Ou seja, conclui-se apenas pela impossibilidade de valoração da referida prova produzida em sede de inquérito é que não foi deduzida acusação. Ora, como vimos, tal não sucede no processo tutelar, podendo e devendo ser valorado o depoimento prestado pela criança AA e o que ambas as crianças declararam na perícia médico-legal, como, repete-se, muito bem foi feito na decisão recorrida.
Quanto ao suposto relatório pericial de natureza privada solicitado e apresentado pelos recorrentes, o mesmo é absolutamente inócuo, gerando as perplexidades que se surpreendem na decisão recorrida, em nada beliscando os bem fundamentados relatórios médico-legais realizados por entidade independente e sem qualquer ligação às partes, daí que se desconsidere em absoluto como se fez na decisão recorrida.
Finalmente e quanto ao relatório do CAPAF do Porto de 26/09/2024 do mesmo resulta efetivamente que existe sofrimento emocional associado ao afastamento, que há grande relação de afeto e proximidade entre o pai e as crianças, que pai demonstra competências parentais sólidas, que as crianças denotam dificuldade em se separar dos pais, que é visível o exercício de uma parentalidade positiva por parte do pai, que a família tem uma notável capacidade de adaptação, que a família mantem laços de afeto e proximidade e que aguardam pacientemente pela resolução do assunto.
Cumpre, no entanto, relembrar, que estamos na presença de uma decisão cautelar, e não de uma decisão final (com a relatividade própria de um processo de jurisdição voluntária), em se destina provisoriamente a tomar medidas tendentes a acautelar a situação de risco em que as crianças se encontram derivadas do risco de abuso sexual por parte do pai e da conivência da mãe nessa situação de risco, procurando inclusivamente obstaculizar o apuramento dos atos passados. Ora, assim sendo, pelo menos para esta decisão cautelar, irreleva tal factualidade (sendo que alguma dela é inclusivamente conclusiva) para a decisão proferida. Ou seja, a decisão seria exatamente a mesma caso se acrescentasse a factualidade em causa, expurgada naturalmente da parte conclusiva
De todo o exposto, somos a concluir que os factos provados aqui sob impugnação devem manter-se como provados e nenhum outros factos devem acrescentar-se aos provados, improcedendo totalmente a impugnação da matéria de facto.
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Mostrando-se rejeitada a impugnação da matéria de facto, incumbe verificar se a solução alcançada na decisão recorrida é de manter.
A pretendida alteração da decisão, na parte da matéria de direito, dependia totalmente da alteração da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, o que se não sucedeu.
Nestes termos, levando em conta disposto pelo art. 608.º n.º 2 aplicável por virtude do n.º 2, do art. 663.º, ambos do Código de Processo Civil, e não se nos impondo o escrutínio da decisão primeira instância no âmbito da subsunção dos factos às normas legais correspondentes, temos que a apelação terá de soçobrar, mantendo-se a decisão recorrida.
Improcede, pois, o recurso.
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Sumário:
I – Os depoimentos e mesmo as declarações prestadas no âmbito de perícia-médico legal em sede de inquérito criminal, podem ser consideradas como prova em sede de processo tutelar para fundamentar a aplicação de medida cautelar nos termos da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo.
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V- DECISÃO
Face ao exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas.