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PROCESSO DE INVENTÁRIO
IMPUGNAÇÃO DAS DECLARAÇÕES DO CABEÇA DE CASAL
TESTAMENTO
TEMPESTIVIDADE
REMESSA DAS PARTES PARA OS MEIOS COMUNS
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Sumário
1 - Tendo o cabeça de casal declarado a inexistência de testamento efetuado pelo inventariado, a afirmação da sua existência e a sua junção aos autos de inventário por outro interessado é ainda possível após o decurso do prazo para impugnação daquelas declarações, atento o disposto no art.º 568.º, alínea d), do C. P. Civil, 2 - Apresentado o testamento, se for questionada a capacidade do testador, a apreciação dessa questão permite a aplicação do disposto no art.º 1092.º do C. P. Civil e não o disposto no art.º 1093.º do mesmo diploma. 3 - Não pretendendo qualquer dos interessados questionar a validade desse testamento, como expressamente afirmaram, não podem os autos de inventário prosseguir sem que tal testamento seja considerado.
Texto Integral
Relator: Paula Ribas
1ª Adjunta: Maria Amália Santos
2ª Adjunta: Margarida Alexandra de Meira Pinto Gomes
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I – Relatório:
Os autos principais reportam-se ao inventário aberto por morte de AA e BB, e que se iniciou por requerimento de CC e DD, em 23/03/2023.
Exerce as funções de cabeça de casal CC (despacho de 17/04/2023), uma vez que a herdeira mais velha, EE, renunciou ao exercício dessas funções.
Foram prestadas as declarações de cabeça de casal, afirmando este que os inventariados haviam falecido sem deixar testamento.
A interessada EE foi citada por carta recebida em 16/04/2023.
Nada tendo sido requerido, foi proferido despacho que ordenou a notificação dos interessados nos termos do art.º 1110.º, n.º 1, alínea b), do C. P. Civil.
EE veio então, em 12/10/2023, apresentar requerimento através do qual, entre outros aspetos que aqui não relevam, impugnou as declarações do cabeça de casal, alegando que o inventariado BB havia realizado testamento, alegando que apenas na “presente data” havia tomado conhecimento da sua existência.
Juntou o testamento de onde se retira que, em 11/10/2023, foi efetuado o averbamento no documento relativo ao óbito do inventariado.
Pugnou assim pela alteração das declarações do cabeça de casal no que à inexistência de testamento se reporta.
O cabeça de casal pronunciou-se, em 25/10/2023, alegando, no que à questão do testamento diz respeito, que a impugnação das declarações do cabeça de casal e a junção do testamento foi efetuada de forma extemporânea, podendo a interessada ter localizado o testamento se antes tivesse efetuado qualquer busca para o localizar.
Mais alegou que o inventariado não tinha capacidade para testar na data em que o testamento foi elaborado.
Por despacho de 30/10/2023, o Tribunal, após julgar intempestiva a reclamação efetuada pela interessada EE quanto aos bens a partilhar, relativamente à junção do testamento determinou o seguinte:
“É que, mal ou bem, sucede que foi junto aos autos, em 12.10.2023, um testamento pelo qual o inventariado institui herdeira da sua quota disponível EE e, em 25.10.2023, vem o cabeça de casal impugnar esse testamento. Ora, a discussão da validade/invalidade do testamento pelo qual o inventariado institui herdeira da sua quota disponível EE junto aos autos em 12.10.2023 que, nitidamente, influi na partilha, ou seja, como o diz a interessada EE, sem a discussão do testamento, a partilha cuja forma se tinha determinado que as partes propusessem, perderia sempre utilidade prática é, a nosso ver, uma questão prejudicial complexa (vide, nomeadamente, os já requeridos meios de prova acerca da temática) a ser discutida nos meios comuns, suspendendo-se a instância, tudo nos termos do art. 1093.º, n.ºs 1 e 2 do CPC. Assim, determino se notifiquem o cabeça de casal e demais interessados para se pronunciarem quanto à eventual remessa para os meios comuns nos termos supra aflorados”.
Notificados nestes termos, veio a interessada EE pugnar pela não remessa dos interessados para os meios comuns, devendo o testamento ser considerado atenta a sua natureza de documento autêntico.
Por sua vez, o cabeça de casal e o interessado DD pugnaram também pelo prosseguimento dos autos, afirmando que os demais interessados no inventário decidiram que, não obstante a prova por si recolhida, não iriam impugnar judicialmente o testamento.
Foi então proferido despacho, em 02/12/2023, que remeteu as partes para os meios comuns e determinou a suspensão desta instância de inventário, nos seguintes termos.
“Pese embora, no requerimento que antecede, o cabeça de casal escrever que não irá impugnar o testamento junto aos autos pela interessada EE através do requerimento de 12.10.2023, reitera, naquele requerimento de 16.11.2023, que se encontra “convicto[s] que o testamento não foi outorgado por iniciativa do seu pai aqui testador” e invoca “conseguir[em] reunir prova bastante para impugnarem o testamento”, já tendo junto, na adiantada fase processual em que se encontram estes autos de inventário (forma à partilha e marcação de conferência de interessados), inúmeros requerimentos probatórios (plúrimas testemunhas a inquirir, sendo que, até aqui, nenhuma fora indicada) constantes do requerimento entrado em juízo em 25.10.2023 que não podem, agora, ser deferidos (cfr. arts. 1105.º, n.º 2 e 598.º, n.º 2 a contrario do CPC). Os factos mencionados pelo cabeça de casal nos requerimentos de 25.10.2023 e 16.11.2023, terão de ser sustentados de forma consistente em juízo, carecendo de prova que não foi, nem agora o pode ser, nestes autos de inventário produzida pois, como exarado no despacho de 20.09.2023, não foram apresentadas quaisquer oposições, impugnações ou reclamações nos prazos legalmente fixados e inexiste retificação das declarações do cabeça de casal. O litígio em torno da validade/invalidade do testamento tardiamente junto (cfr. requerimento de 12.10.2023), está bom de ver, é uma questão fáctica complexa que exige uma instrução probatória (cfr., v.g., requerimento de 25.10.2023) e um cumprimento de procedimentos de contraditório (e ónus de alegação) que se não compadecem com os termos abreviados dos incidentes em inventário, pois levantam delicadezas - vide a necessidade de apurar o estado de saúde do inventariado aquando da outorga do testamento, o invocado alcoolismo do inventariado e sua invocada incapacidade cujo aprofundamento, segundo as soluções plausíveis da questão de direito, se impõe para a descoberta da verdade e a realização da justiça - apenas apreciáveis condignamente em instância autónoma. A decisão dessa questão, por incidente, neste processo teria por resíduo a preclusão de prerrogativas de defesa (designadamente no que tange aos prazos concedidos para assunção de posições materiais no processo, prazos que, in casu, se encontram decorridos) e de instrução (considerando que, já que inexistiu, neste processo, reclamação à relação de bens tempestivamente apresentada – cfr. art. 1104.º, n.º 1 do CPC e despacho de 30.10.2023 – e resposta à reclamação não apresentada – cfr. art. 1105.º, n.º 1 do CPC e despacho de 30.10.2023 – requerer o depoimento de testemunhas, até aqui nenhuma indicada, já não é possível – cfr. arts. 1105.º, n.º 2 e 598.º, n.º 2 a contrario do CPC, ao contrário do que o fizeram interessada EE e o cabeça de casal), em face da rigidez da tramitação incidental, impositiva de termos simplificados e pressupondo questões de resolução elementar, que em nada se compatibilizam com os especiais cânones de direito adjetivo presentes na impugnação de testamentos, questão, crê-se, pré-judicial aos termos do inventário e que não pode ser convenientemente decidida por via incidental no seu interior. Não dispõe este Tribunal dos elementos factuais que permitam definir, com segurança, a questão em apreço, entendendo não ser suficiente a prova até agora produzida (como se vê, meramente documental e junta tardiamente). Nestes termos e com estes fundamentos, relativamente à controvérsia que reporta ao testamento tardiamente junto a estes autos, ou seja, após a notificação dos interessados prevista pelo art. 1110.º, n.º 1, al. b) do CPC, determinada no despacho de 20.09.2023, abstenho-me de decidir a validade/invalidade do testamento junto aos autos em 12.10.2023 e remeto as partes para os meios comuns, nos termos do art. 1093.º, n.ºs 1 e 2 do CPC. Uma vez que esta complexa questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha que se encontrava em curso, nos termos do n.º 2 do art. 1093.º do CPC e dos arts. 269.º, n.º 1, al. c) e 272.º, n.º 3 do mesmo diploma legal, declaro, como aventado através de despacho de 30.10.2023, por 30 dias, a suspensão desta instância por existência de questão (validade/invalidade do testamento) suscetível de nela influir, designadamente, na forma da partilha, na conferência de interessados, nos quinhões de cada interessado e no mapa da partilha, deixando uma eventual sentença homologatória da partilha em suspenso de uma hipotética reabertura do inventário, com prejuízo da segurança e certezas jurídicas dos interessados e do comércio jurídico em geral. Advertem-se as partes que, nos termos do n.º 2 do art. 1093.º do CPC e dos arts. 269.º, n.º 1, al. c) e 272.º, n.º 3 do mesmo diploma legal, dispõem do prazo de 30 dias para instauração da competente ação declarativa comum. Mais se advertem as partes de que, caso a sua instauração não seja documentalmente comprovada nos presentes autos no referido prazo de 30 dias, se determinará o prosseguimento dos presentes autos de inventário para partilha do único bem relacionado”.
Notificados deste despacho por comunicação eletrónica datada de 05/12/2023, veio a interessada EE, em 14/12/2023 requerer a sua aclaração no sentido de se saber se o entendimento do Tribunal era o de que os autos prosseguiriam considerando os efeitos emergentes do testamento, e, portanto, aceitando-o, tendo sido proferido despacho em 06/03/2024 que declarou que se depreendia do referido despacho que o prosseguimento dos autos decorreria tal como se encontravam antes da invocação do testamento, determinando ainda o prosseguimento dos autos e fazendo, assim, cessar a suspensão da instância.
Foi deste despacho que foi interposta a presente apelação, tendo a interessada EE apresentado as seguintes conclusões:
“1ª A recorrente perfilha o entendimento, salvo melhor opinião, de que o testamento junto por si aos autos aquando do requerimento com a proposta de forma à partilha, deve produzir os seus efeitos na partilha dos bens da herança do testador; 2º Tal testamento apenas foi apresentado nesse momento dado ser o mesmo desconhecido, pela apresentante, até essa data – apenas foi aberto e selado a 11-10-2023 e junto aos autos a 12-10-2023; 3 – Da mesma forma, não foi apresentado pelo cabeça de casal, aquando das suas declarações, tendo o mesmo invocado processualmente o seu desconhecimento. 4 – A junção “tardia” de tal documento, pode, no entender da recorrente ser efetuada ao abrigo das normas insítas nos artigos 423 e 424 do Código de Processo Civil, tendo inclusive a sua apresentante requerido a não condenação em multa dado alegar não ter conhecimento anterior do referido documento (o que se extrai, s.m.o. da própria data de abertura do testamento constante do averbamento do óbito do testador); 5 – Considerando que o testamento foi apresentado no prazo de proposta da forma à partilha, essa apresentação ocorre antes de qualquer diligência probatória nos autos, pelo que deve relevar a sua oportunidade de apresentação. 6 – O despacho da Mma. Juíza (antecedente) que remete para as partes os meios comuns tem apenas por objeto: a sindicância da (in)validade do testamento, ou seja a apreciação quanto à vontade do testador/ vícios da vontade; 7 – Não tendo sido apresentada nos autos qualquer notícia dessa sindicância (ou seja o recurso aos meios comuns no fixado prazo de 30 dias) o testamento vale enquanto documento autêntico - cfr. artigos 362º, 363º /1 e 2, 364º, 369, 370 e 371 conjugados com o artigo 2205º todos do Código Civil. 8 – Não foi impugnada a genuinidade do documento, nos termos previstos no artigo 444 do Código de Processo Civil; e também não foi arguida por nenhum dos interessados a “falta de autenticidade ou a falta de força probatória do testamento. 9 – E daí que sendo o testamento junto aos autos um documento que influi diretamente na partilha, não perceba a recorrente como pode a Mma. Juíza DEPREENDER do despacho anterior que os autos prosseguiriam com a sua desconsideração! 10 – Tanto mais que a sua junção ocorreu na pendência do processo de inventário, e antes de apresentada a proposta de forma à partilha - (a qual, diga-se, não mereceu qualquer oposição pelos demais interessados e inclusive declararam nos autos ser sua decisão: não impugnar o testamento (como se disse, quanto a eventuais vícios da vontade). 11 – Nem sequer havia ocorrido qualquer conferência de interessados ou adjudicação. 12 - Entende a recorrente que não se depreende do despacho (que remeteu para os meios comuns) que os autos decorreriam tal como se encontravam antes da invocação do testamento, ou seja, desconsiderando a sua existência. 13 - Antes pelo contrário: depreende-se que inexistindo processo para discussão da alegada questão prejudicial, o inventário prosseguiria com o testamento, por não ter a sua junção sido indeferida, e por tal junção encontrar abrigo nos artigos 423 e 424 do Código de Processo Civil (e não encontrar oposição no processo de inventário: o qual configura uma abertura ainda mais extensiva dado permitir, mesmo após o trânsito em julgado, a emenda da partilha). 14 - Entende a recorrente que os presentes autos de partilha devem considerar o testamento junto. A contrário, a vontade do testador seria totalmente cilindrada, por desconsideração do seu testamento na partilha dos seus bens. 15 - Por conseguinte: deve o despacho recorrido ser revogado, e ser declarado por V/ Exas, Srs Desembargadores, que deverão prosseguir os autos considerando-se o testamento outorgado pelo inventariado e relevar a forma à partilha apresentada pela requerente /aqui recorrente (a qual contemplou o referido testamento). 16 - O despacho recorrido violou as seguintes normas: 423 e 424 e 443 do Código de Processo Civil., quanto à junção processual dos documentos; artigos: 2050, 2056, 2059/1 (quanto a atos de aceitação a herança), 2179 (testamento). artigos 362º, 363º /1 e 2, 364º, 369, 370 e 371 conjugados com o artigo 2205º todos do Código Civil”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação, foi determinado que os mesmos regressassem à 1.ª Instância, tendo em vista a fixação do valor da ação, considerando a interposição de recurso.
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Fixado o valor da ação, o recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Questões a decidir:
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente – arts.º 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por C. P. Civil) -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as de saber se pode ordenar-se a remessa dos interessados para os meios comuns tendo em vista a apreciação da questão relativa à validade / invalidade do testamento, intimando-se as partes a propor a ação respetiva e, na ausência de tal propositura, determinar o prosseguimento dos autos sem que o testamento junto e realizado por um dos inventariados seja considerado nos termos da partilha a realizar.
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III - Do objeto do recurso:
A apreciação da questão suscitada nestes autos de recurso de apelação exige que este Tribunal reflita sobre duas questões prévias.
A primeira prende-se com natureza do despacho proferido em 06/03/2024 e que motivou a apresentação da apelação.
Ao determinar o prosseguimento dos autos, este despacho, embora de forma claramente implícita, fez cessar a suspensão da instância determinada por despacho de 02/12/2023, tendo ainda esclarecido em que termos é que tal prosseguimento se faria, desconsiderando o testamento apresentado pela interessada recorrente.
A suspensão da instância e a cessação dessa suspensão não são colocadas em causa pelo recurso interposto.
Porém, ao esclarecer o que se depreendia do anteriormente determinado, o despacho proferido é uma resposta ao pedido de aclaração efetuado pela apelante por requerimento de 14/12/2023 (e, assim, efetuado tempestivamente).
Embora também de forma implícita, sem que efetivamente o tivesse afirmado, ao esclarecer o que entendia que se depreendia do despacho anteriormente proferido, assumiu o Tribunal que o que agora esclarecia depreender-se não constava do despacho proferido e, nesse sentido, aclarou-o (embora em sentido divergente ao que era indicado pela interessada agora recorrente).
Ora, o despacho que aclara o que foi decidido em 02/12/2023 integra o despacho com esta data, como resulta do disposto no art.º 617.º do C. P. Civil, aplicável ex vi 613.º, n.º 3, do C. P. Civil.
Daí que o recurso interposto verse sobre o despacho de 02/12/2023, embora, quanto a este, a recorrente se insurja contra os termos em que foi ordenado o prosseguimento dos autos, como consequência daquela remessa dos interessados para os meios comuns, decorridos que foram os trinta dias de suspensão da instância, depois de o cabeça de casal e a interessada impugnante terem afirmado nos autos que não iriam propor qualquer ação relativa à validade / invalidade do testamento.
A segunda questão prévia que cumpre esclarecer é que o Tribunal a quo não se pronunciou diretamente sobre a questão da tempestividade da apresentação do testamento e, com esta, sobre a tempestividade da impugnação das declarações do cabeça de casal (este declarou que o inventariado não tinha deixado testamento e a interessada recorrente veio alegar, para além do prazo de impugnação daquelas declarações, que este existia, juntando-o e alegando factos relativos à tempestividade da sua junção, sobre os quais nenhum despacho recaiu).
Porém, a partir do momento em que o Tribunal entendeu como relevante para estes autos a existência do testamento, remetendo as partes para os meios comuns e suspendendo a instância, ainda que a termo, para que se apreciasse a sua validade / invalidade, também de forma implícita e embora sem qualquer fundamentação estava a atende-lo para a tramitação destes autos.
Considerando a reclamação apresentada à relação de bens dos autos como extemporânea, relativamente ao testamento, limitou-se a afirmar que “mal ou bem” foi junto o testamento e que este “influi na partilha” (despacho de 30/10), o que é o mesmo que dizer que o Tribunal iria considera-lo nestes autos de inventário, apesar do momento em que foi apresentado e os termos em que o foi (sendo certo que não apreciou a sua tempestividade, perante a alegação da recorrente de apenas então dele ter tido conhecimento).
O testamento só pode influir na partilha se aqui for considerado e, para tal, necessário se torna saber se foi “bem” apresentado nos autos, não o podendo ser se, na data em que foi junto, não fosse já tempestiva a sua junção.
É inequívoco que, quando foi apresentado, já havia decorrido o prazo para que a interessada EE apresentasse impugnação às declarações apresentadas pelo cabeça de casal na parte em que este declarou inexistir testamento outorgado pelo inventariado (art.º 1104.º, n.º 1, alíneas c), do C. P. Civil).
É também inequívoco que a falta de impugnação das suas declarações tem hoje, no processo de inventário, efeito preclusivo.
“Uma vez citados, os interessados têm o ónus de invocar e de concentrar uma única peça todos os meios de defesa que considerem oportunos, em face dos factos alegados no requerimento inicial ou do que foi complementado pelo cabeça de casal, incluindo a pronúncia sobre as suas declarações e sobre os documentos apresentados. Tal corresponde a um verdadeiro ónus e não uma mera faculdade”, nas palavras de António dos Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, fls. 603. Neste sentido, vide também o recente Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 16/05/2024, da Juiz Desembargadora Fernanda Proença Fernandes, proc. 172/22.3T8CBT-A.G1, in www.dgsi.pt
Dir-se-ia assim que a requerente EE não estava já em tempo quando colocou em causa as declarações do cabeça de casal quanto à inexistência de testamento realizado pelo inventariado.
No entanto, resulta da lei que este efeito preclusivo tem como exceções o disposto no art.º 568.º do C. P. Civil. Ora, a inexistência de testamento apenas pode ser demonstrada por documento escrito, ou seja, por certidão emitida pela Conservatória dos Registo Centrais, pois que a esta compete organizar um índice geral de testamentos, por ordem alfabética dos nomes dos testadores, com base nas fichas recebidas dos Cartórios (art.º 188.º, n.º 1, alínea a), do DL 207/95, de 14/08, com acesso on line nos termos da Portaria 182/2017, de 31/05).
Com é bom de ver, o cabeça de casal nem sempre saberá com segurança se o inventariado outorgou ou não testamento e, assim, não sabendo se o fez ou não, apenas pode certificar-se se existe ou não registo de ter sido outorgado, agindo em conformidade com o que lhe for certificado.
Na situação dos autos, o cabeça de casal declarou que inexistia testamento, sem que se tenha certificado da sua inexistência e, como tal, sem que tivesse junto aos autos documento que comprovasse a inexistência de testamento.
Aliás, que não foram juntos com as declarações prestadas todos os documentos que comprovavam os factos alegados e relativos à identificação dos interessados resulta até o despacho de 06/03/2024 em que se ordenou a junção de prova documental relativamente ao regime de casamento dos inventariados e dos interessados.
Ou seja, não obstante as declarações do cabeça de casal relativamente aos regimes de bens dos interessados e inventariados, e ainda que inexistisse qualquer impugnação das suas declarações por parte dos demais interessados, o Tribunal ordenou a junção dos documentos que permitiam a sua prova precisamente porque tais factos apenas poderiam ser demonstrados por prova documental, aplicando-se assim o disposto no art.º 568.º, alínea d), do C. P. Civil e não podendo tais factos considerar-se demonstrados apesar da falta de impugnação.
A alegada inexistência de testamento não estava, assim, comprovada e, por isso, era ainda possível a apresentação de documento que infirmasse aquela declaração, como aconteceu quando se fez a junção do documento.
Mas ainda que assim se não entendesse, alegando a interessada EE ter apenas tomado conhecimento do testamento no dia anterior ao da apresentação do requerimento (a “presente dada” a que esta se reporta no seu requerimento, atento o averbamento constante do testamento), tal apresentação seria ainda possível no enquadramento do articulado superveniente.
Ou seja, esta interessada comunicou aos autos que apenas após o decurso do prazo para a impugnação das declarações do cabeça de casal, tomou conhecimento da existência do testamento.
A aplicação do regime do disposto no art.º 588.º do C. P. Civil resulta do regime do art.º 549.º, n.º1, do mesmo diploma e é expressamente admitida por António dos Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, fls. 606.
Assim, a alegação deste novo facto constitutivo do direito da reclamante seria ainda admissível se este fosse de conhecimento superveniente, como esta alegou.
O cabeça de casal insurgiu-se contra esta alegação, afirmando que esta deveria ter encetado as buscas para localizar o testamento mais cedo. Esta afirmação não colhe, pois que, desde o início destes autos, se apresentou ele próprio como cabeça de casal, sendo suas as declarações que deram início a estes autos e, assim, era a ele que competia ter efetuado essa busca e não à interessada EE, ainda que seja ela a única beneficiária do testamento.
O regime da admissibilidade do articulado superveniente permitiria pois, se de outra forma não pudesse ser considerado, que a interessada apresentasse o testamento outorgado pelo inventariado, dessa forma infirmando as declarações do cabeça de casal quanto à sua inexistência.
Aqui chegados, centremo-nos na questão efetivamente em discussão.
Existe fundamento para remeter as partes para os meios comum, prosseguindo os autos como se o testamento não existisse?
A decisão proferida não tem qualquer sustentação jurídica.
Em primeiro lugar, porque não se verificavam os pressupostos do art.º 1093.º do C. P. Civil.
Alegando uma das interessadas que existia um testamento que a tornava herdeira da quota disponível da herança do inventariado e afirmando o cabeça de casal a sua invalidade por falta de capacidade daquele testador, a dimensão dos direitos sucessórios de cada um dos herdeiros deste inventariado dependia da validade ou invalidade daquele testamento.
E, assim, a norma aplicável é o art.º 1092.º do C. P. Civil e não o art.º 1093.º do mesmo diploma que foi convocado.
Dispõe a primeira norma citada que se na pendência do inventário se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos interesses diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, deve o juiz determinar a suspensão da instância.
A remessa para os meios comuns está reservada, apenas, para outras questões prejudiciais que não respeitem à admissibilidade do processo de inventário ou à definição de direitos dos interessados na partilha, como resulta expressamente do art.º 1093.º do C. P. Civil.
Como dizem António dos Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, fls. 576, relativamente a este art.º 1092.º do C. P. Civil, “a conexão com o art.º 1093.º permite concluir que qualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados diretos na partilha terá de ser decidida no próprio processo, não podendo os interessados ser remetidos para os meios comuns. A lei apenas concede a possibilidade de suspensão da instância do inventário, aguardando o que, com eventuais reflexos na resolução de tais questões, esteja sob discussão noutra ação pendente”.
Ora, a questão da validade ou invalidade do testamento reporta-se à definição dos direitos interessados na partilha (saber se há ou não que considerar que a quota disponível da herança do inventariado pertence à interessada EE). A ação que versa sobre a anulação do testamento é precisamente um dos exemplos dados pelos autores citados para o preenchimento da alínea b) do n.º 1 do art.º 1092.º do C. P. Civil.
Assim, apenas se poderia ter perspetivado a possibilidade de suspensão da instância e não a remessa das partes para os meios comuns.
Mas ainda que assim não fosse, uma segunda razão imporia decisão diversa daquela que foi tomada, quanto ao prosseguimento dos autos.
Admitamos que se consideraria correta a remessa das partes para os meios comuns, sabendo o Tribunal que nem o cabeça de casal, nem a reclamante pretendiam instaurar, nos meios comuns, a ação em que se discutiria a validade / invalidade do testamento.
Ora, estando junto o testamento, tendo o Tribunal determinado o prosseguimento dos autos, por decisão que não foi colocada em crise por qualquer das partes, tal prosseguimento implica necessariamente que os autos prossigam considerando o testamento que foi efetuado pelo inventariado e que não foi anulado por falta de capacidade do testador, a partir do momento em que foi já declarado que os interessados que beneficiariam dessa anulação não têm interesse em obtê-la.
Não tem nos autos aplicação o disposto no art.º 1105.º, n.5, do C. P. Civil, pois que não está em causa uma reclamação quanto aos bens a partilhar. Só aqui é que, quando as partes são remetidas para os meios comuns relativamente à existência de determinados bens, a partilha prossegue quanto aos demais bens, excluindo-se aqueles sobre os que há discussão.
Pensamos que foi este o raciocínio feito no despacho aclarador, sem consistência lógica ou jurídica, pois que não sendo discutida nos meios comuns a invalidade do testamento, este tem naturalmente que se pressupor válido (e não pode ser, sem mais, excluído do inventário).
Não tendo sido colocada em causa a decisão que declarou a suspensão da instância e determinou a sua cessação (ainda que implícita), pois que nenhuma das partes reagiu quanto a tal decisão, apenas há que apreciar se os autos devem prosseguir e em que termos, não podendo a decisão deixar de ser afirmativa, perante a posição assumida pelo cabeça de casal de não pretender impugnar em ação autónoma o testamento realizado pelo inventariado.
E, prosseguindo, sem que seja proposta ação visando questionar a capacidade do testador, os autos terão de prosseguir pressupondo o testamento realizado pelo inventariado e tempestivamente apresentado nos autos.
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Quanto a custas:
Apesar do vencimento do recurso apresentado pela interessada EE, os demais interessados não apresentaram contra-alegações.
Assim, foi a interessada recorrente quem tirou proveito desta decisão e, assim, as custas da apelação são da sua responsabilidade, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil – vide, neste sentido, a extensa fundamentação constante o Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 01/02/2024, do Juiz Desembargador Gonçalo Oliveira Magalhães, proc. 1615/17.3T8BGC-A.G1, inwww.dgsi.pt.
Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663.º, n.º 7, do C. P. Civil):
1 - Tendo o cabeça de casal declarado a inexistência de testamento efetuado pelo inventariado, a afirmação da sua existência e a sua junção aos autos de inventário por outro interessado é ainda possível após o decurso do prazo para impugnação daquelas declarações, atento o disposto no art.º 568.º, alínea d), do C. P. Civil,
2 - Apresentado o testamento, se for questionada a capacidade do testador, a apreciação dessa questão permite a aplicação do disposto no art.º 1092.º do C. P. Civil e não o disposto no art.º 1093.º do mesmo diploma.
3 - Não pretendendo qualquer dos interessados questionar a validade desse testamento, como expressamente afirmaram, não podem os autos de inventário prosseguir sem que tal testamento seja considerado. IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam as Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto, revogando a decisão proferida na parte em que considerou que os autos prosseguiriam sem atender ao testamento efetuado pelo inventariado BB em 23/06/2008, determinando o seu prosseguimento considerando tal testamento.
Custas pela interessada EE, nos termos referidos na decisão.
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Guimarães, 18/12/2024
(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)