SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
CAMINHO PÚBLICO
Sumário


1- Em face do Assento de 19-04-1989 e da jurisprudência posterior emanada pelo STJ que aplicou e interpretou a jurisprudência uniformizadora, a qualificação de um caminho como público pode basear-se no seguinte:
- no facto do mesmo ser propriedade de entidade de direito público e estar afeto à utilidade pública;
- ou no seu uso direto e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, visando a satisfação de interesses coletivos relevantes, ou seja, interesses coletivos de certo grau ou relevância;
- ou, no caso, do caminho não integrar nenhuma propriedade privada, desde que se prove o uso imemorial pela população.
2. Não é de classificar como caminho público um trajeto que apenas é usado pelos proprietários dos terrenos que por ele são servidos por faltar o requisito «utilização pelo público» ou pela «população», pressuposto que tem de se verificar em qualquer uma das três situações referidas em 1.
3. Tendo os Autores logrado provar a constituição, por usucapião, de uma servidão de passagem de pé, animais e de carro sobre um troço de um caminho e não tendo ficado provado que os Réus, proprietários do prédio serviente, tenham justificação legal bastante para impedir os Autores de aceder ao prédio dominante através do referido caminho, utilizando para o efeito também o troço onerado com a referida servidão de passagem, devem os Réus ser condenados a absterem-se de praticar qualquer ato que impeça os Autores de utilizar o referido caminho em toda a sua extensão.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Processo n.º 45/20.4T8PTG.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: TJ Comarca Local 1, Juízo Local Cível Local 1 – J...
Apelante: AA
Apelado: BB e outros

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO[1]
Ação
Declarativa de condenação, sob a forma de processo comum.
Autores
1.º- BB
2.ºs - CC e mulher, DD
3.ª - EE
Réus
1.º- AA e mulher, FF
2.ºs- GG e marido, HH
3.ºs- II e marido, JJ (falecido na pendência da ação tendo sido habilitados os seus herdeiros).
Pedidos
Principais:
1- seja declarado que os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio rústico sito e denominado “Nome 1”, inscrito sob o artigo ...1, secção H, da matriz predial rústica da freguesia Local 2, concelho Local 3, composto por uma parcela de “cultura arvense e sobreiros”, com a área de 0,45000ha, a confrontar a norte com KK (artigo ...4 Secção H – atualmente se encontra inscrito a favor dos Réus-, sul e nascente com LL (artigo 55 secção H) e poente com MM (artigo 52 Secção H – atualmente se encontra inscrito a favor dos Réus-, registado na Conservatória do Registo Predial Local 3, sob a apresentação ...98;
2- seja declarado que os Réus são donos e legítimos possuidores do prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo ...2, secção H, da freguesia Local 2, concelho Local 3, em comum e sem determinação de parte ou direito, assim registado na Conservatória do Registo Predial Local 3, sob a apresentação n.º ...97, sito e também denominado “Nome 1”, constituído por duas parcelas cadastrais, uma de cultura arvense, sobreiros e castanheiros e uma parcela cadastral de cultura arvense, confronta a norte e poente com NN (artigos 51 e 50 Secção H – que atualmente se encontram inscritos a favor dos Autores), sul com OO (artigo 56 secção H), nascente com herdeiros de PP (artigo 55 secção H) e servidão particular;[2]
3- sejam os Réus condenados a reconhecer que o caminho com piso de terra batida, ladeado por muros de pedra secular, com origem na estrada municipal que liga as localidades de Local 4 e Local 5, que ao chegar à extrema sul do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo ...4.º da secção H, da freguesia Local 2, concelho Local 3, prossegue, praticamente em linha reta ao longo de aproximadamente 70 metros, no final da qual (de tal linha reta) descreve uma curva em direção a poente, a qual (curva) se prolonga por aproximadamente mais 30 metros, confrontando sempre de um lado com o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...4, secção H, e do outro lado com o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...5, secção H, ambos da freguesia Local 2, concelho Local 3, situando-se o prédio dos Autores e descrito em 1.º (o artigo ...1 da secção H) no final de tal caminho e imediatamente em frente ao mesmo, e o prédio dos Réus descrito em 3.º (o artigo 52 secção H) ligeiramente à esquerda do terminus do mesmo, melhor identificado no mapa anexo junto como documento 10, constitui uma área social da secção H, freguesia Local 2, concelho Local 3, afeta à utilização pelo público em geral, que constitui um caminho público municipal, de livre acesso a todos quantos por aí pretendam circular, que dá acesso, entre outros, ao prédio dos Autores melhor descrito em 1.º;
4- sejam os Réus condenados a deixar livre, em toda a sua extensão, o dito caminho, abstendo-se de aí colocar todos e quaisquer obstáculos, designadamente, cancelas, portões ou quaisquer outras estruturas fixas e/ou amovíveis, que visem impedir ou limitar por qualquer forma o acesso ao prédio dos Autores;
Pedidos subsidiários (caso o pedido principal não proceda):
5- seja declarado constituído a favor dos Autores o direito de passagem descrito e identificado nos artigos 11, 28 a 32 da petição inicial, por usucapião;
6- sejam os Réus condenados a deixar livre, em toda a sua extensão, o dito caminho, abstendo-se de aí colocar todos e quaisquer obstáculos, designadamente, cancelas, portões ou quaisquer outras estruturas fixas e/ou amovíveis, que visem impedir ou limitar por qualquer forma o acesso ao prédio dos Autores, descrito em 1.º;
ainda, subsidiariamente (caso os pedidos subsidiários anteriores improcedam),
7- seja declarada constituída uma servidão legal de passagem, sobre o troço de que os Réus se arrogam donos e legítimos possuidores, melhor descrito nos artigos 5, 10, 11, 21, 22, 23, 24 e 25 da petição inicial, em benefício do prédio dos Autores, melhor identificado no artigo 1.º;
8- sejam os Réus condenados a deixar livre, em toda a sua extensão, o dito caminho, abstendo-se de aí colocar todos e quaisquer obstáculos, designadamente, cancelas, portões ou quaisquer outras estruturas fixas e/ou amovíveis, que visem impedir ou limitar por qualquer forma o acesso ao prédio dos Autores, descrito em 1.º;
em qualquer caso,
9- sejam os Réus condenados a indemnizar os Autores em quantia a arbitrar pelo Tribunal, em montante não inferior a €6.000,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, quantia acrescida dos respetivos juros de mora até integral e efetivo pagamento, bem como da quantia que vier a apurar-se a título de danos patrimoniais, ainda não contabilizados, que vierem a apurar-se e a liquidar-se em sede de execução e liquidação de sentença.

Causa de pedir
Alegam, em síntese apertada, que são donos e legítimos possuidores do prédio rústico sito e denominado “Nome 1”, inscrito sob o artigo ...1, secção H, da matriz predial rústica da freguesia Local 2, concelho Local 3, que não tem acesso à via pública.
Que há mais de 35 anos por si e através dos seus antecessores, para acederem ao aludido prédio, a pé, de carro e de trator, utilizam de forma ininterrupta um caminho imemorial, delimitado e murado, à vista de todas pessoas, sem oposição de ninguém e convencidos que por esse caminho se pudesse aceder ao seu prédio e os Réus ao deles (artigo matricial ...2, secção H).
Porém, os Réus colocaram uma cancela com cadeados no caminho impedindo-os de utilizar o caminho.
O que deu origem à instauração de um procedimento cautelar que correu termos sob o número 698/19.6T8PTG do Tribunal Judicial da Comarca Local 1 – Juízo Local Cível Local 1 J..., onde foi ordenado que a cancela fosse retirada.
O que se deve manter, permitindo o acesso ao prédio dos Autores por o caminho ser público.
Subsidiariamente, para o caso do caminho se encontrar em parte no prédio dos Réus, alegam que deve ser reconhecida uma servidão de passagem constituída por usucapião, por há mais de 30 anos, eles, e antes, os seus ante possuidores, utilizarem o caminho à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ininterruptamente, na convicção de estarem a exercer um direito próprio sem lesarem terceiros.
Caso assim, não se entenda, também subsidiariamente, alegam no sentido da constituição de uma servidão legal de passagem por o seu prédio se encontrar encravado.
Mais alegam que a conduta dos Réus lhes provocou os danos não patrimoniais que descrevem e cuja ressarcibilidade peticionam.[3]

Contestação
Por exceção, os Réus invocaram a sua ilegitimidade (por os prédios inscritos na matriz predial sob os artigos ...2... e ...4.º ambos da secção H, da freguesia Local 2, concelho Local 3, serem pertença da herança indivisa aberta por óbito de QQ, na qual são interessados) e, ainda, a ineptidão da p.i.
Por impugnação defenderam a improcedência da ação.

Resposta às exceções
Responderam os Autores, alegando, em síntese, que os Réus são parte legitima, conforme comprova a inscrição registral a seu favor, por aquisição derivada de sucessão hereditária, em comum e sem determinação de parte ou direito, e que a p.i. é perfeitamente inteligível e compatível, mormente no que concerne aos pedidos e causa de pedir.

Audiência Prévia
No que ora releva, foram julgadas improcedentes as exceções supra referidas.
Mais foi decidido:
«Pelo exposto, decide o tribunal julgar oficiosamente verificada a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir, e em consequência, ao abrigo do disposto nos artigos 287.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 2, e 578.º, todos do NCPC, absolvem-se os RR. da instância relativamente aos pedidos formulados nas alíneas a) e b) do petitório.»
Foi admitida a realização de inspeção judicial requerida pelos Autores.

Sentença
Julgou a ação nos seguintes termos:
a) JULGAR totalmente procedente, por provada, a presente acção e, em consequência,
Ø DECLARAR e RECONHECER que o caminho que, em toda a sua extensão tem um piso de terra batida, com largura variável e delimitado por muros de pedra secular, com origem na estrada de alcatrão que liga as localidades de Local 4 e Local 5 e que ao chegar à extrema sul do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo ...4, secção H, da freguesia Local 2, concelho Local 3 (pertencente aos Réus) faz uma bifurcação para a esquerda, confrontando de um lado com o prédio correspondente ao inscrito na matriz predial sob o artigo ...4, secção H, da freguesia Local 2 e, de outro com parte da extrema norte do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...5, secção H, da freguesia Local 2, pertencente a herdeiros de RR, omisso na Conservatória do Registo Predial Local 3, descrevendo no final uma curva apertada à direita, em direcção a poente, que contorna um afloramento granítico aí existente até, depois, alcançar os prédios rústicos inscritos na respectiva matriz predial sob os artigos ...1... e ...2.º, onde termina tem natureza pública.
Ø DECLARAR e RECONHECER que a favor do prédio identificado em 1.º a) está constituída, por usucapião, uma servidão de passagem de pé, animais e de carro, com cerca de 9 m de comprimento e 3,8m de largura, entre o novo muro e o tanque, com início no local onde iniciava a curva apertada à direita que contornava o afloramento granítico e em direcção ao prédio dominante, devidamente delimitado por um muro de pedra seca antiga e, que onera o prédio rústico melhor identificado em 4.º b).

b) CONDENAR os Réus a manterem o caminho público e a servidão de passagem livre de qualquer obstáculo que impeça ou dificulte o direito de passar dos Autores e a absterem-se de praticarem qualquer acto que dificulte ou impeça o direito de passagem dos Autores;
c) CONDENAR os Réus a pagarem, solidariamente, aos autores, a título de indemnização por danos não patrimoniais, o valor total de € 1.200,00, sendo € 300,00 para cada um dos Autores,

d) ABSOLVER os Réus no mais peticionado.

Recurso
Apelaram os Réus pugnando pela revogação da sentença, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«1.º Vem a presente apelação interposta da sentença que julgou parcialmente procedente a ação por provada e em consequência condenou os Recorrentes a cumpri-la.
2.º Se o inter cognitivo do Julgador tivesse sido concluído da forma expectável com que conduzia a sua fundamentação de direito, nada haveria a reclamar. Mas o desenlace da decisão demonstra uma total contradição quer com o elenco dos factos provados, quer com a própria fundamentação, tornando-a obscura e contraditória, devendo a mesma ser revogada. Com efeito,
3.º O Tribunal a quo declarou como público um caminho com recurso à imemoriabilidade de um uso de acesso aos prédios X e Y.
4.ºA premissa da imemorialidade foi sustentada pelo Tribunal a quo única e exclusivamente pelo facto 15º: “O troço do caminho descrito em 6º a 10º existe há mais de 50, 60, 70, 80, 90 e mais anos” Ora,
5.º O facto 15º corresponde á alegação vertida no artigo 30 da petição inicial
6.º O tribunal não fundamentou, nem especificou qual a prova concreta em que se baseou para dar como provado o facto 15
7.º Impunha-se ao tribunal que especificasse fundamentadamente a qual a duração concreta do uso imemorial do caminho
8.º De toda a prova carreada para os autos não se retira a imemorialidade uso de acesso aos prédios, sendo certo que a prova documental é inadmissível para prova de tal facto e da testemunhal remonta a 35 anos como sustentado na sentença.
9.º Por inexistência de prova deverá tal facto n.º 15º ser retirado do elenco dos factos provados.
10.º A sentença é nula quanto ao preenchimento do pressuposto da imemoriabilidade de uso de acesso aos prédios, por absoluta falta de fundamentação de facto e de direito devendo ser declarada a nulidade com as consequências legais.
11.º Caso assim não se entenda, sempre se dirá que por insuficiência de prova deve o facto 15.º deve ser dado como não provado.
12.º A “imemoriabilidade de um uso de acesso aos prédios X e Y” não se pode retirar de quaisquer documentos datados anteriormente ao cadastro de 1957 no concelho Local 1, como referido pela testemunha SS,
13.º Embora os documentos juntos possam evidenciar um trajecto entre prédios afigura-se impossível identificar neles os limites dos prédios rústicos anteriores ao cadastro de 1957 impossibilitando assim a prova de que o trajecto existia em 1937 como explica a testemunha SS dos minutos 00.30.10 ao minuto 00.33.14; dos minutos 00.33.15 aos minutos 00:34:26 e dos minutos 00.36.27 aos minutos 00:37:10 na sessão de julgamento do dia 25/05/2023.
14.º Devendo, também por este argumento, ser retirado do elenco dos factos provados o número 15º
15.º Toda a Jurisprudência é unanime em avaliar, em casos idênticos, o preenchimento cumulativo dos requisitos de uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais e a sua afectação à utilidade pública.
16.º Não se provou que o percurso estivesse no uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais e com afectação à utilidade pública porquanto conforme consta do relatório pericial tal itinerário serve apenas os prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos matriciais ...1 e ...2.
17.ºDe toda a prova resultou que o trajeto serve única e exclusivamente a soma de interesses privados que se deslocam para aqueles prédios rústicos, não consubstanciado afetação da coisa / caminho à utilidade pública, na satisfação de necessidades coletivas.
18.º o alegado “caminho” dos autos não tem as características de via pública e como tal deverá ser declarado por esse Tribunal ad quem revogando a sentença
19.º A Sentença recorrida olvidou o novo sentido de interpretação dado pelo Ac. uniformizador de jurisprudência do STJ de 18.10.2018 ao Ac. do STJ de 28/5/2013, decidindo não ser de aplicar a interpretação utilizada pelo Ac. 28/5/2013 aos casos dos caminhos utilizados apenas pelos proprietários dos prédios a que dão acesso, que é precisamente o caso dos presentes autos.
20.º O Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação da evolução Jurisprudencial incorrendo em manifesto erro de aplicação de direito sobre os requisitos para determinar a natureza de um caminho como público, devendo ser revogada.
21.º Não alegaram, nem provaram os AA. nos termos do art.º 342º do CC, de quem é o dominus da parcela de terreno afecta ao trajecto in casu (privado ou público),
22.º Limitando-se o cadastro predial a identificar os prédios existentes no nosso País e não das pessoas que são titulares de algum direito sobre eles, quando muito “área social de secção” mais não integrará do que um “nullius rei”, nada significando (ex vide SS na sessão de audiência de julgamento do dia 25/05/2023 do minuto 00:08:58 ao minuto 00:09:42).
23.º Tendo os Recorridos sustentado a sua pretensão de acesso ao caminho na natureza pública dele por referência à sua inclusão no conceito de “área social da secção” e nada mais tendo alegado ou provado, deveria o Tribunal a quo indeferido a pretensão daqueles.
24.º o Tribunal a quo interpretou erroneamente o Ac. de 28/05/2013, descurando a concreta situação nele analisada que nada tem a ver com a dos presentes autos descartando os interesses de ordem colectivos relevantes e necessários para poder presumir a dominialidade pública necessária para qualificar tal natureza à parcela/caminho em discussão, incorrendo em manifesto erro de aplicação de direito devendo ser revogada.
25.º Pretendendo os AA. a atribuição da natureza pública a tal caminho, forçosamente teria o Tribunal de aferir se todo o percurso desde o seu início até ao seu terminus serviria interesses públicos.
26.º Sendo do senso comum que um caminho terá de se iniciar nalgum ponto e finalizar noutro, atento os factos provados 6.º e 8º correspondentes à pretensão dos AA e à totalidade do caminho em discussão.
27.º Entendeu o Tribunal a quo que se apurou interesse colectivo público nesse caminho (factos 6.º e 8.º) e porque não o indicou, nem fundamentou tendo-se bastado com a sua integração em área social e existência de um uso imemorial discordaram os Recorrentes desse entendimento.
28.º A variante referida no facto 16.º está incluída nos factos 6.º e 8.º sobre o qual o Tribunal a quo entendeu fundamentadamente e com recurso à interpretação restritiva do Assento de 1989, que inexiste qualquer pressuposto que permita qualificá-lo de natureza pública.
29.º Resultando do exposto não só uma contradição entre os factos provados 6.º e 8.º, 15.º, 16.º e 24.º a 28.º e o não provado A, bem como uma contradição insanável entre a fundamentação da Sentença e a decisão, que acarreta a sua nulidade.
30.º Pela impossibilidade de considerar o caminho em apreço como público – materialidade cujo ónus de comprovação apenas sobre os AA. impendia, deverá esse Venerando Tribunal revogar a Sentença com as legais consequências.
31.º Resulta dos depoimentos prestados no dia 03.07.2023 das testemunhas TT depoimento prestado na sessão de julgamento de dia 03.07.2023 dos minutos 00:07:29 aos minutos 00:07:34, aos minutos 00:12:59 aos 00:13:20, minutos 00:14:01 aos 00:14:25, Registo sonoro - Sessão de 03-07-2023 das 12:23 às 12:28, minuto 00:00:00 a 00:03:30; UU dos minutos 00:05:10 ao minuto 00:05:50; VV dos minutos 00:06:30 aos minutos 00:07:20; WW depoimento prestado na sessão de julgamento no dia 03.07.2023 dos minutos 00:18:56 aos minutos 00:20:06: que as mesmas demonstram um conhecimento sobre a passagem.
32.º Conhecimento de uma passagem não é equivalente, nem permite concluir que os AA. circulavam no local, mesmo por interposta pessoa para aceder ao seu prédio.
33.º Pelo que, os AA. não lograram demonstrar os actos materiais prolongados no tempo que consubstanciam o conceito de “corpus” necessário ao preenchimento da sua posse.
34.º Resultando do depoimento da testemunha TT que o acesso ao prédio dos AA. também podia ser realizado por um outro caminho que dava igual acesso ao prédio da testemunha
35.º Face ao documento n.º 22 junto com a petição inicial (contrato de cessão de pastagem datado de 9 de Janeiro de 2017), a testemunha WW passou a circular nesse trajecto, isto é há 3 (três) anos atenta a data de interposição da acção, arrastando consigo o conhecimento detido pela testemunha VV.
36.º Os RR. exploraram o prédio dos AA., no entanto, tais actos de posse dos RR. sobre o caminho não podem ser imputados aos AA., atendendo que estes por si ou pelos seus antecessores sempre circularam por toda a área dos seus prédios.
37.ºPelo que os factos 22.º a 28.º e 30.º não podem ser dados como provados, com as consequências legais.
38.º Fixou a Sentença proferida no processo n.º 698/19.6T8PTG Juízo Local Cível J..., que a abertura que permite a entrada de veículos motorizados ou de tração animal de e para o prédio dos AA. no aludido percurso, com as dimensões mencionadas no relatório pericial, foi alargada em 20 de Março de 2019 sendo inexistente até àquele momento em que foi realizada a inspecção judicial no âmbito daquele processo cautelar.
39.º Sendo certo que a testemunha XX esclareceu o Tribunal que desconhece qualquer meio de transporte aos AA.
40.º Por inexistência de qualquer corpus traduzidos em actos materiais de circulação de veículos naquele trajecto praticados pelos AA para acederem ao seu prédio, impedido estava o Tribunal a quo de ter declarado a constituição de servidão de carro por usucapião a favor dos AA., pelo que deverá a mesma ser revogada
41.º Caso assim não se entenda e se considere como o Tribunal a quo entendeu, o que não se concede, que os AA. lograram produzir prova suficiente na demonstração de actos que materialização o corpus terá de se concluir que não se apresentaram suficientes para a decisão.
42.º As testemunhas são unanimes no conhecimento do local onde se situa o trajecto, não se deslocando ao mesmo de forma reiterada, mas apenas em momento isolados.
43.º A aquisição por escritura pública de prédios não consubstancia atos de posse sobre determinado caminho pelo que não tendo sido qualquer prova destes atos pelos AA. BB e EE incorreu a Sentença em erro de apreciação da prova.
44.º De toda a prova carreada para os autos (testemunhas e conhecimento esporádico dos prédios e documental supra referida na conclusão anterior) e da sua conjugação permitirá concluir de uma forma segura, salvo o devido respeito, de que os AA. não almejaram produzir prova suficiente e para a demonstração de quaisquer actos de posse sobre o prédio dos RR.
45.º Atento o exposto, por insuficiência de prova, deverão ser retirados do elenco dos factos provados os factos n.ºs 22.º a 28.º e 30.ºda sentença.
46.º Pelo que deverá esse Tribunal ad quem decidir que os requisitos necessários à aquisição por usucapião não foram devidamente provados pelos aqueles, revogando a sentença em crise também neste segmento.
47.º Para prova da existência de danos não patrimoniais aos AA. socorreu-se o Tribunal a quo do depoimento de uma única testemunha YY, dando, assim, como provado o facto n.º 38.
48.º Tal facto é apenas mencionado uma única vez pelo Tribunal a quo, para efeitos de aplicação do regime de responsabilidade civil, não fundamentando devida e especificadamente em que prova se baseou para dar como provado tal facto, pelo que por falta de fundamentação deverá ser decretada a nulidade da sentença.
49.º A única menção a tal dano constante da Sentença encontra-se na página 25, no resumo do depoimento da testemunha YY, estando em oposição com o que a mesma depôs na sessão de julgamento realizada em 03-07-2023, disse a testemunha quanto a esta concreta matéria o seguinte aos minutos 00:10:35 a 00:11:00 e dos minutos 00:13:40 a 00:14:28.
50.º Não se compreende qual o raciocínio logico dedutivo do Tribunal a quo seguiu para dar como provado que os AA. ficaram “extremamente indignados e revoltados”, com base no depoimento desta testemunha.
51.º Pelo que e mais uma vez, é inexistente o facto ou a fundamentação que permitiu concluir, como concluiu o Tribunal, apresentando-se tal depoimento insuficiente para dar como provado tal facto n.º 38 e a motivação de matéria de facto constante da Sentença inexistente.
52.º É consabido na jurisprudência entendimento comum e indiscutível que os danos não patrimoniais devem revestir gravidade para que possam ser ressarcíveis. Mas não só, para além da gravidade devem ser devidamente concretizados.
53.º Nem a Sentença fundamenta qual a gravidade do dano sofrido pelos AA., nada contendo para além de excertos de doutrina e preceitos legais.
54.º O Tribunal a quo confunde o pressuposto da responsabilidade civil “nexo causalidade” com o pressuposto “dano”.
55.º Por tudo mais quanto exposto, não só tal facto deve ser dado como não provado, como consequentemente deve cair o pedido indemnizatório dos AA., por inexistência de quaisquer danos.»

Resposta ao recurso
Os Recorridos defenderam a improcedência da apelação e a confirmação da sentença.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar, sucessivamente:
- Nulidades da sentença;
- Impugnação da decisão de facto;
- Mérito da sentença recorrida: se o caminho em causa é um caminho público; se está constituída uma servidão de passagem através do prédio dos Réus na «variante» do caminho referida nos factos provados; se devem os Autores ser indemnizados a título de danos não patrimoniais.

B- De Facto
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
Factos Provados
«1.º - Os Autores são donos e legítimos proprietários de três prédios rústicos sitos no denominado “Nome 1”, freguesia Local 2, concelho Local 3, concretamente:
a) o prédio rústico inscrito sob o artigo ...1, secção H, da matriz predial rústica da freguesia, composto por uma parcela de “cultura arvense e sobreiros”, com a área de 0,450000ha, a confrontar a norte com KK (artigo ...4 Secção H - que actualmente se encontra inscrito a favor dos Réus), sul e nascente LL (artigo 55 secção H), e poente NN (artigo 50 secção H – que actualmente se encontra inscrito a favor dos Autores) e MM (artigo 52 Secção H - que actualmente se encontra inscrito a favor dos Réus), registado na Conservatória do Registo Predial Local 3, sob a apresentação n.º ...02;
b) o prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...0.º Secção H, constituído por uma parcela de prado natural e uma parcela de cultura arvense, com a área de 1,300000 ha, o qual confronta a norte com KK (Art.24 Secção H - que actualmente se encontra inscrito a favor dos Réus), a sul com ZZ (Artigo 56 secção H), a nascente com NN (artigo ...1 secção H - que actualmente se encontra inscrito a favor dos Autores) e MM (artigo 52 Secção H – que actualmente se encontra inscrito a favor dos Réus) e a poente com NN (Artigo 49 secção H - que actualmente se encontra inscrito a favor dos Autores), registado na Conservatória do Registo Predial Local 3, sob a apresentação número ...02;
c) prédio inscrito sob o artigo ...9, da secção H, na matriz predial rústica, constituído por uma parcela de prado natural, com a área de 1,000000 ha, o qual confronta a norte com AAA e Câmara Municipal Local 3, a sul com ZZ e BBB, a nascente com KK e NN, e a poente com CCC, registado na Conservatória do Registo Civil Local 3, sob a apresentação n.º ...02.
2.º - (…) que foram adquiridos pelos Autores por compra a DDD e mulher, EEE, por escritura pública outorgada em 26 de Março de 1987 no Cartório Notarial Local 3.
3.º - A 9 de Janeiro de 2017, os Autores BB e CC cederam a WW as pastagens dos prédios n.º ...1, ...0 e ...9, para neles apascentar as ovelhas da sua exploração, pelo período de um ano, renovável por iguais períodos.
4.º - Os Réus são donos e legítimos proprietários de dois prédios rústicos sitos no denominado “Nome 1”, freguesia Local 2, concelho Local 3, concretamente:
a) o prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo ...2, secção H, e registado na Conservatória do Registo Civil Local 3, sob a apresentação número ...97, constituído por duas parcelas cadastrais, uma de cultura arvense, sobreiros e castanheiros e uma parcela cadastral de cultura arvense, que confronta a norte e poente com NN (Artigos 51 e 50 Secção H – que actualmente se encontram inscritos a favor dos Autores), a sul com OO (Artigo 56 Secção H), a nascente com herdeiros de PP (Artigo 55 Secção H) e servidão particular e,
b) o prédio inscrito sob o artigo ...4, da secção H, na matriz predial rústica, constituído por um olival e solo subjacente e cultura arvense em olival, cultura arvense e sobreiros, com a área de 2,325000 ha, o qual confronta a norte com baldio municipal, a sul com caminho público, e NN, a nascente com caminho público e a poente com NN, registado na Conservatória do Registo Civil Local 3, sob a apresentação número ...28.
5.º - (…) os quais advieram à esfera jurídica dos Réus, em 14 de Maio de 2008, por sucessão hereditária de MM e de QQ.
6.º - Na freguesia Local 2, concelho Local 3 existe um caminho que, em toda a sua extensão tem um piso de terra batida, com largura variável e delimitado por muros de pedra secular, com origem na estrada de alcatrão que liga as localidades de Local 4 e Local 5 e que ao chegar à extrema sul do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo ...4, secção H, da freguesia Local 2, concelho Local 3 (pertencente aos Réus) faz uma bifurcação,
7.º - (…) para a direita até alcançar o prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ...5.º;
8.º - (…) e para a esquerda até alcançar os prédios rústicos inscritos na respectiva matriz predial sob os artigos ...1... e ...2.º.
9.º - Este último troço do caminho e melhor descrito em 8.º, confronta desde a bifurcação, de um lado com o prédio correspondente ao inscrito na matriz predial sob o artigo ...4, secção H, da freguesia Local 2 e, de outro com parte da extrema norte do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...5, secção H, da freguesia Local 2, pertencente a herdeiros de RR, omisso na Conservatória do Registo Predial Local 3,
10.º - (…) descrevendo no final uma curva apertada à direita, em direcção a poente, que contorna um afloramento granítico aí existente até, depois, alcançar os prédios referidos em 8.º, onde termina;
11.º - O prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...1.º detém, na extrema sul, entrada que permite o acesso de carro e de alfaias agrícolas, delimitada por uma cancela de ferro;
12.º - O troço do caminho referido em 8.º e 9.º é de terra batida em terreno rochoso e estável, com cerca de 120m e largura que varia entre os 2,5m e os 3m, sendo sempre ladeado por muros de pedra seca, antiga e irregular, com alturas variáveis entre os 0,50m e 1,2m de altura e,
13.º - (…) apresenta-se limpo e calcado e evidencia marcas de passagem a pé e de rodeiras de veículos automóveis e máquinas agrícolas;
14.º - O troço do caminho descrito em 8.º a 10.º integra a área social da secção cadastral H da freguesia Local 2, concelho Local 3;
15.º - O troço do caminho descrito em 6.º a 10.º existe há mais de 50, 60, 70, 80, 90 e mais anos;
16.º - No início da década de 80 do século passado, de modo a evitar a transposição do afloramento granítico referido em 10.º, MM permitiu o derrube do muro original e a criação, numa parcela de terreno do prédio rústico inscrito sob o artigo ...4, de uma variante ao referido caminho, e que termina na entrada do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...1.º, devidamente delimitado por um novo muro de pedra seca antiga;
17.º - (…) e esta variante tem cerca de 9m de comprimento e 3,8m de largura, entre o novo muro e o tanque e,
18.º - (…) apresenta-se limpo e calcado e evidencia marcas de passagem a pé e de rodeiras de veículos automóveis e máquinas agrícolas.
19.º - No troço do caminho original e referido em 10.º foi edificada uma barraca,
20.º - (…) onde MM guardava a carroça puxada por animais.
21.º - O acesso aos prédios inscritos na matriz predial rústica da freguesia Local 2, sob os artigos ...1 e ...2 sempre se fez unicamente por meio do indicado caminho em 6.º a 10.º e, desde a construção da variante identificada em 16.º e 17.º através desta;
22.º - Inexiste qualquer outro caminho de acesso aos prédios inscritos na matriz predial rústica da freguesia Local 2, sob os artigos ...1 e ...2
23.º - Os Autores BB, CC e mulher, por si ou por intermédio das pessoas a quem cedem as pastagens e, antes os antecessores DDD e mulher, e antes destes o antecessor NN, sempre cuidaram, lavraram e cultivaram o prédio inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ...1, e colheram os frutos dessa actividade,
24.º - (…) a que sempre acederam pelo caminho referido em 6.º, 8.º e 9.º, 16º e 17.º, desde há 35 anos, ininterruptamente, a pé, de carro ou tractor e/ou com animais;
25.º - (…) o que fazem, como sempre fizeram, à vista de todas as pessoas.
26.º - (…) sem a oposição de quem quer que fosse, designadamente de MM e QQ, imediatos antecessores proprietários e possuidores do prédio pertencente aos Réus e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...2.º e dos próprios Réus;
27.º - (…) na convicção de que tal caminho, assim foi delineado, delimitado e murado, para que especificamente se pudesse aceder aos prédios inscritos na respectiva matriz predial rústica sob os artigos ...1... e ...2.º;
28.º - (…) e sem lesarem o direito de quem quer que seja.
29.º - O Réu JJ, no período em que deteve a cedência das pastagens dos prédios rústicos dos Autores, acedia ao prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo ...1 através do supra referido caminho;
30.º - Por tal caminho circulavam livremente, como sempre circularam, pessoas e animais que pretendiam deslocar-se de e para os prédios rústicos inscritos sob os artigos ...1 e ...2 da freguesia Local 2;
31.º - Os antecessores dos Réus, a dada altura, colocaram a meio do dito caminho uma cancela, presa por arame zincado, com a justificação de que o faziam para que o gado não fugisse;
32.º - (…) sendo aberta e fechada livremente por todos quantos por ali passavam, e se dirigiam aos prédios inscritos na respectiva matriz predial rústica sob os artigos ...1... e ...2.º, encontrando-se, na maioria das vezes, aberta e encostada à parede.
33.º - Há sensivelmente dois anos, o Réu AA começou a explorar o prédio inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ...2.º e colocou de um lado do caminho um ferro vertical, que enterrou parcialmente no chão de terra batida, onde colocou vários arames que atou à cancela e, que do outro lado continuava a estar aberta, por forma a que todos quantos os que desejassem acedessem aos prédios inscritos na respectiva matriz predial rústica sob os artigos ...1... e ...2.º;
34.º - No decurso do mês de Março de 2019, o Réu AA colocou um cadeado na cancela, para que os Autores deixassem de por ali passar, e passassem a utilizar uma suposta entrada do seu prédio situada a norte, que veio a retirar.
35.º - No dia 30 de Abril de 2019, o cessionário das pastagens quando se deslocou ao prédio inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ...1.º, deparou-se com a cancela fechada, de ambos os lados, presa com correntes metálicas, e fechada com vários cadeados também de ambos os lados;
36.º - A cancela foi retirada, após o dia 18 de Julho de 2019, na sequência da decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar que correu termos sob o número 698/19.6T8PTG do Tribunal Judicial da Comarca Local 1 – Juízo Local Cível Local 1 J... e que assim o determinou;
37.º - O Réu AA, ao colocar uma cancela, fechada a cadeado a meio do caminho de acesso ao prédio dos Autores, privou-os a si pessoalmente e ao cessionário das pastagens, contra a vontade dos mesmos, do exercício e fruição, e da possibilidade de continuarem a exercer e fruírem, do prédio, através do caminho de acesso supra melhor descrito, como vinham fazendo há mais de trinta anos;
38.º - Os Autores sentiram-se profundamente indignados e revoltados com a conduta do Réu, que bem sabendo que acesso ao prédio dos Autores sempre se fez por meio do dito caminho, não se coibiu de agir nos moldes descritos.
39.º - O prédio inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ...1.º é cultivado essencialmente pelo Autor CC, reformado, nascido a ../../1946, que aí planta todos os produtos hortícolas essenciais à sua subsistência e do seu agregado familiar, constituído por si e pela Autora DD, nascida a ../../1947, reformada e consigo residente.
40.º - É aí que plantam todos os produtos hortícolas que consomem no seu dia a dia, como sejam, as batatas, as couves, o feijão, as cebolas, as alfaces, e subsistem essencialmente da horta e do que dela colhem.
41.º - No pequeno lugar onde residem não existe qualquer loja ou supermercado, não tendo os Autores CC e DD qualquer meio de transporte, dependendo de terceiros para se deslocar, onde que que seja.»

Factos Não Provados
«A - O caminho identificado nos factos provados está em toda a sua extensão afecto à utilização directa, imediata, e sem oposição de quem quer que seja, do público em geral, isto é, de todos quantos aí pretendam deslocar.
B - Os Autores CC e DD, de condição humilde e modesta, auferem unicamente as suas reformas, respectivamente no valor de 439,77€, e de 281,00€, com as quais têm de prover a todas as suas despesas e encargos mensais;
C – Os Autores careciam diariamente de se deslocarem ao prédio inscrito sob o artigo ...1.º para cuidarem da horta, sem o que todas as plantas acabariam por secar.
D - Os Autores temeram não só, pela vida dos animais que se encontravam no prédio e não lhe pertenciam, como pela sua própria subsistência, considerando que a horta do prédio identificado em 1.º se encontrava cultivada com bens essenciais;
E – (…) e temeram não poder daí retirar tais bens destinados ao seu consumo e sustento;
F – Os Autores foram obrigados a passar por prédios vizinhos, pulando paredes, para evitar que os bens cultivados no prédio secassem;
G – No prédio dos Autores, estavam à época, 16 ovelhas e 7 crias;
H - Os Autores tiveram que assumir perante o dono dos animais que se encontravam a ser apascentados no prédio inscritos sob o artigo ...1.º, o pagamento do valor correspondente ao preço dos animais, cujo valor comercial rondava os € 1.500,00.
I – Os Autores foram forçados a chamar as autoridades à sua propriedade por várias vezes por causa da cancela que aí colocou o Réu AA;
J – Os Autores foram alvo de provocações e ameaças quanto à sua integridade física, por parte do Réu AA;
K - A conduta do Réu AA importou custos e acarretou para os Autores despesas que estes não teriam que suportar se não fosse a prática da mesma.»

C- Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
1- Nulidades da sentença
Alegam os recorrentes que a sentença é nula.
Na Conclusão 10.º arguem a nulidade da sentença por falta absoluta de fundamentação da decisão de facto e de direito em relação ao pressuposto da imemorialidade do uso do caminho de acesso ao prédio dos Autores.
Na Conclusão 29.º invocam a nulidade da sentença por a mesma incorrer em contradição entre os factos provados 6.º e 8.º, 15.º, 16.º e 24.º e o facto não provado A, e, ainda, por existir uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
Na Conclusão 48.º invocam a nulidade da sentença por faltar a fundamentação especificada em relação ao meio de prova em que se baseou para dar como provado o facto provado 38.º, aduzindo, ainda, que a única prova referida – o depoimento da testemunha YY – está em oposição com o dado como provado.
Vejamos, então, se a sentença é nula.
Realçando-se, desde já, que os apelantes não enquadram juridicamente as alegadas nulidades da sentença, nem na motivação, nem nas Conclusões.
Todavia, atento o disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, e se bem percebemos a razão da arguição, afigura-se-nos que estarão em causa as nulidades da sentença previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC.
Estipulando este normativo que a sentença é nula quando:
«b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;».

Ora, as causas de nulidade da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do no n.º 1 do artigo 615.º do CPC e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
A falta de fundamentação a que alude o n.º 1, alínea b) do artigo 615.º, do CPC, está em consonância com o dever de fundamentação as decisões, consagrado na CRP e na lei ordinária (artigo 205.º, n.º 1, da CRP, artigos 154.º, n.º 1 e 607.º, n.º 4, do CPC).
Porém, como tem sido entendido de forma consensual, a arguida nulidade só ocorre quando a falta de fundamentação for absoluta, o que não se verifica quando haja insuficiente ou errada fundamentação de facto e/ou de direito, vícios para os quais a lei tem remédios diversos que não passam pela declaração de nulidade do decidido (cfr., assim, artigos 639.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), 640.º e 662.º, n.º 1 e 2, alíneas c) e d), todos do CPC).
Estipula o artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, primeira parte, que a decisão é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. Já a segunda parte prescreve que a sentença é nula quando for ambígua ou obscura de tal modo que a torne ininteligível.
Conforme é comumente aceite, a nulidade prevista na primeira parte da alínea c), verifica-se quando haja uma contradição lógica no processo de decisão, ou seja, quando os fundamentos invocados devam conduzir logicamente ao resultado oposto ao que veio a ser expresso na decisão.[4] Este vício formal não se reporta a situações em que se parte de pressupostos errados (por exemplo, apreciação e interpretação dos factos ou do direito), caso em que existe um vício de conteúdo (error in judicando), mas não nulidade da decisão.[5]
Já a ambiguidade ou obscuridade da sentença reporta-se à sua parte decisória e apenas ocorre quando gera ininteligibilidade, ou seja, quando um declaratário normal, nos termos do artigo 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1 do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.[6]
Na situação em apreço, não se verifica a nulidade prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, porquanto a sentença elenca os factos provados e não provados em resultado do julgamento, fundamenta a decisão de facto assente nos meios de prova produzidos e convoca o regime legal que julgou aplicável, pelo não existe falta total e absoluta de fundamentação, seja de facto, seja de direito.
Coisa diversa é saber se ocorreu erro de julgamento quanto à matéria de facto, o que deve ser analisado em sede de impugnação da decisão de facto ou erro de julgamento quanto à aplicação do direito aos factos, a analisar em termos de apreciação do mérito do decidido.
Ainda assim, cabe referir que em relação ao ponto 15.º dos factos provados, embora na decisão de facto não venha o mesmo expressamente mencionado, basta ler a fundamentação da decisão de facto para se perceber como o tribunal a quo formou a sua convicção em relação a esta matéria. Remetemos, pois, por razões de economia processual, para o segmento da motivação inserido nas páginas 29 a 31 da sentença donde resulta para um declaratório normal (cfr. artigos 236.º e 238.º do Código Civil), que se encontra justificado em face da análise crítica da prova produzida, que o caminho descrito nos pontos 6.º a 10.º dos factos provados existe há mais de 50, 60, 70, 80 e 90 e mais anos.
Se tal convicção assentou num erro de julgamento ao nível da apreciação das provas, é uma questão que releva em sede de apreciação da impugnação da decisão de facto, mas não interfere com a validade formal da sentença.
Em relação à nulidade prevista na alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, é de afastar in limine tal vício no que se refere ao último segmento da norma (ambiguidade, obscuridade e ininteligibilidade), porquanto a parte do dispositivo da sentença é perfeitamente clara e tem um sentido perfeitamente compreensível por qualquer destinatário.
Já em relação à alegada contradição insanável, como decorre da fundamentação apresentada, os apelantes entendem, por um lado, que a nulidade em causa decorre da conjugação do que ficou provado nos pontos 6.º e 8.º, 15.º, 16.º, 24.º e 28.º e o facto não provado A. e, por outro lado, de um erro de direito relativo à aplicação do Assento de 1989 que determinou a declaração da natureza pública do caminho em causa nos autos.
Ora, nenhum dos fundamentos aduzidos se acomoda na previsão normativa do preceito acima referido. A contradição insanável entre factos provados e não provados gera um erro ao nível do julgamento de facto, e o erro de direito determina a alteração do decidido, mas nenhum deles determina a nulidade da sentença.
Nestes termos, improcede a arguição de nulidades apostas à sentença.

2- Impugnação da decisão de facto
Os apelantes impugnam a decisão de facto em relação alguns dos factos provados e em relação à alínea A. dos factos não provados.
Compete à Relação no âmbito dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do CPC, desde que preenchidos os requisitos do artigo 640.º do mesmo Código quando a prova tenha sido gravada, reapreciar a decisão de facto, em ordem a formar uma convicção própria com base na análise global e crítica da prova carreada para os autos, à luz do seu valor probatório, mas também das regras da experiência e da plausibilidade, aferindo desse modo da correta valoração dos meios de prova produzidos e dos respetivos ónus de prova, levando em conta a fundamentação da decisão de facto, bem como as razões da discordância invocadas pelos impugnantes.
Posto isto, apreciemos, então, a impugnação da decisão de facto.
Facto provado 15.º
«15. O troço do caminho descrito em 6.º a 10.º existe há mais de 50, 60, 70, 80, 90 e mais anos; »
Pretendem os recorrentes que esta factualidade seja dada como não provada.
Alegam, em suma, a não concretização do lapso temporal e a insuficiência de prova para a demonstração do facto.
Assim, embora admitam que os documentos até podem demonstrar a existência de trajeto entre prédios, não concedem que esta factualidade tenha sido provada por dos documentos anteriores ao cadastro de 1957 do concelho Local 1, como referido pela testemunha SS, não ser possível identificar os limites dos prédios rústicos anteriores ao dito cadastro, o que impossibilita a prova que o trajeto existia em 1937.
Ademais, dizem que a prova testemunhal remonta apenas a 35 anos antes.
Vejamos, então, se a decisão de facto merece a censura que lhe foi aposta.
Auditados os meios de prova juntos aos autos, tendo-se procedido à audição integral da prova gravada e à sua concatenação com a prova documental, formamos convicção que acompanha a do tribunal a quo, não nos merecendo a decisão de facto quanto a este ponto qualquer censura.
Desde logo, a não menção a uma concreta data resulta da natureza do facto em apreciação, pois a indagação probatória recuou no tempo até à data dos documentos onde se encontra assinalada a existência do trajeto/caminho e que, considerando a data da p.i. (2020), recuou 88 anos (mapa cadastral geométrico de 1932), 86 anos (carta militar da freguesia Local 2 de 1934) e 64 anos (mapa cadastral de 1956), como também consta do Relatório Pericial e esclarecimentos escritos e prestados em audiência pelo Sr. Perito.
Como também se teve em consideração a memória dos que vieram depor sobre a existência e utilização do caminho para se aceder aos prédios que hoje são dos Autores (matriz predial ...1) e dos Réus (matriz predial ...2), o que resultou de vários depoimentos, destacando-se:
- Depoimento de parte da Ré II, à data das declarações com 60 anos, que produziu declarações em conformidade com o conhecimento que lhe advinha da utilização que os donos do prédio ...1 faziam do caminho (Autores e seus antecessores) e que deu origem à assentada que consta da ata de audiência de discussão e julgamento do dia 25-05-2023;
- Do testemunho de YY, à data do depoimento com 55 anos, que conhecia os prédios há 39 anos, desde que iniciou o namoro com a mulher, e do modo como os sogros usavam o caminho para aceder ao prédio ...1;
- Do depoimento de TT, à data do depoimento com 86 anos, natural de Local 5, que identificou o caminho e a utilização que os Autores e antes deles os anteriores proprietários/ou rendeiros, para acederem ao prédio ...1;
- Do depoimento de UU, à data do depoimento com 63 anos, natura de Local 5, que há mais de 30 anos se deslocou ao prédio ...1, na altura com o Sr. DDD, para ir buscar azeitona usando um trator que passou no referido caminho;
- Do depoimento de VV, à data do depoimento com 89 anos, natural de Local 4, que disse que o «caminho dos vales existe de toda a vida»;
- Do testemunho de WW, à data do depoimento com 63 anos, natural de Local 4, que tem explorado a pastagem do prédio ...1, e que já conhecia o caminho há muitos anos, referindo-se a factos praticados pelo pai do Réu AA;
- Do depoimento de XX, filho dos Réus AA e FF, à data do depoimento com 48 anos, que, apesar de negar que os Autores e seus ante possuidores acedessem ao prédio ...1 através do dito caminho, referiu de forma clara e inequívoca a existência do mesmo;
- Do depoimento de FFF, filho dos Réus HH e GG, à data do depoimento com 38 anos, que também não negou a existência do caminho, bem pelo contrário, pois confirmou que o avô faleceu há mais de 20 anos, mas a testemunha WW passava no caminho de carro há mais de 15 anos para aceder ao prédio ...1;
- Do testemunho de GGG, à data do depoimento com 85 anos, que, apesar de terem passado uns 60 anos desde a última vez que foi ao caminho, descreveu-o, falando das paredes muradas e das propriedades que pegavam com o caminho público.
Ora, estas testemunhas, algumas já de provecta idade (o que, só por si, afasta o argumento da média de idades invocado pelos recorrentes), revelaram de forma clara e inequívoca que o caminho em discussão nos autos existe e é utilizado desde há muitos anos em conformidade com o facto dado como provado, embora não se consiga concretizar, nem por via documental, nem através da memória dos vivos ouvidos em julgamento, uma data precisa que situe no tempo o início da sua existência, pelo que nada há a criticar ao modo como a factualidade referente à existência do caminho vem referenciada no facto provado 15.º.
Quanto à questão suscitada de não ser possível justapor os elementos cadastrais atuais com os cadastros anteriores e cartas militares, o que decorre do depoimento da testemunha SS, chefe de finanças de Local 1, é que não é possível fazer uma identificação dos prédios rústicos por referências aos números das matrizes, dado os diferentes critérios que ao longos daqueles anos foram usados desde 1932 até ao registo cadastral de 1956, sendo que este registo cadastral não estabeleceu uma relação com o cadastro de 1937.
Mas também disse que é possível fazer uma identificação dos prédios em face das declarações dos interessados e da sobreposição das configurações dos terrenos reveladas nos documentos, conseguindo-se, assim, identificar as alterações morfológicas dos terrenos.
E em relação ao caminho em causa nos autos, a testemunha foi muito assertiva ao dizer que o mesmo já estava assinalado nos documentos mais antigos, dizendo inclusivamente que no cadastro de 1957 os «pontinhos» assinalados pelo topógrafo e que ladeiam o trajeto do caminho, correspondem a uma linha imaginária que separa os vários prédios entre si, encontrando-se o trajeto do caminho assinalado com esses «pontinhos».
Portanto, ao contrário do alegado pelos recorrentes, da conjugação dos documentos juntos aos autos e melhor referenciados na fundamentação da decisão de facto, conjugados com os depoimentos prestados em sede de julgamento, pode-se extrair probatoriamente, com elevada segurança e razoabilidade, que o caminho descrito nos factos provados 6.º a 10.º dos factos provados existe desde há mais de 50, 60, 70, 80 e 90 anos, pelo que improcede a impugnação da decisão de facto em relação ao ponto 15.º dos factos provados.

Contradição entre os factos provados 6.º e 8.º, 15.º, 16.º e 24.º a 28.º e o facto não provado em A.
A factualidade provada em causa tem o seguinte teor:
«6.º - Na freguesia Local 2, concelho Local 3 existe um caminho que, em toda a sua extensão tem um piso de terra batida, com largura variável e delimitado por muros de pedra secular, com origem na estrada de alcatrão que liga as localidades de Local 4 e Local 5 e que ao chegar à extrema sul do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo ...4, secção H, da freguesia Local 2, concelho Local 3 (pertencente aos Réus) faz uma bifurcação,»
«8.º - (…) e para a esquerda até alcançar os prédios rústicos inscritos na respectiva matriz predial sob os artigos ...1... e ...2.º.»
«15.º - O troço do caminho descrito em 6.º a 10.º existe há mais de 50, 60, 70, 80, 90 e mais anos;»
«16.º - No início da década de 80 do século passado, de modo a evitar a transposição do afloramento granítico referido em 10.º, MM permitiu o derrube do muro original e a criação, numa parcela de terreno do prédio rústico inscrito sob o artigo ...4, de uma variante ao referido caminho, e que termina na entrada do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...1.º, devidamente delimitado por um novo muro de pedra seca antiga;»
«24.º - (…) a que sempre acederam pelo caminho referido em 6.º, 8.º e 9.º, 16º e 17.º, desde há 35 anos, ininterruptamente, a pé, de carro ou tractor e/ou com animais;
«25.º - (…) o que fazem, como sempre fizeram, à vista de todas as pessoas.
«26.º - (…) sem a oposição de quem quer que fosse, designadamente de MM e QQ, imediatos antecessores proprietários e possuidores do prédio pertencente aos Réus e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...2.º e dos próprios Réus;»
«27.º - (…) na convicção de que tal caminho, assim foi delineado, delimitado e murado, para que especificamente se pudesse aceder aos prédios inscritos na respectiva matriz predial rústica sob os artigos ...1... e ...2.º;»
«28.º - (…) e sem lesarem o direito de quem quer que seja.»
Facto não provado - alínea A.
«A - O caminho identificado nos factos provados está em toda a sua extensão afecto à utilização directa, imediata, e sem oposição de quem quer que seja, do público em geral, isto é, de todos quantos aí pretendam deslocar.»

Dizem os apelantes que a variante referida no ponto 16.º está incluída nos factos 6.º e 8.º (ou seja, no caminho), mas a mesma não tem natureza pública como dito na sentença (por se integrar no prédio ...4 – cfr. facto provado 16.º), o que entra em contradição insanável com os factos provados 6.º e 8.º, 15.º, 16.º e 24.º a 28.º e o facto não provado.
Analisados os factos provados e a factualidade não provada, à luz da análise criteriosa de toda a prova, e sublinhando que nesta fase estamos apenas em sede de consolidação dos factos apurados em termos probatórios no processo e não em termos da sua qualificação jurídica, não descortinamos a alegada contradição insanável.
O que resulta dos factos provados supra referidos é a existência de um caminho com as características referidas nos factos provados 6.º a 20.º, com a alteração referida no facto provado 16.º (a tal variante que entra no prédio ...4 dos Réus) e que o acesso ao prédios X e Y se faz unicamente por esse caminho e que os Autores e seus ante possuidores ou pelas pessoas a quem cederam as pastagens, para cuidarem, lavrarem o prédio ...1 e colherem os respetivos frutos, desde há 35 anos, sempre acederam ao mesmo pelo dito caminho, a pé, de carro ou trator e/ou com animais, à vista de toda a gente, convictos que não lesavam o direito de quem quer que seja, sem oposição de quem quer que fosse, designadamente dos antecessores proprietários e possuidores do prédio ...2, na convicção de que tal caminho, delineado e murado como antes mencionado, se destinava a permitir o acesso ao prédios X e Y.
Não vemos entre estes factos qualquer contradição.
Como não existe entre os mesmos e a alínea A. dos factos não provados, porquanto o que se provou foi que o dito caminho, incluindo a variante, apenas é utilizada pelos proprietários dos prédios ...1, ...0 e ...9 (pertença dos Autores) e ...2 e ...4 (pertença dos Réus) e não que o mesmo em toda a sua extensão é utlizado ou está afeto, sem oposição de quem quer que seja, ao público em geral (que é a matéria que consta do facto não provado).
Nestes termos, também improcede a impugnação da decisão de facto supra referida por não se verificar a alegada contradição.

Factos provados 22.º a 28.º e 30.º:
«22.º - Inexiste qualquer outro caminho de acesso aos prédios inscritos na matriz predial rústica da freguesia Local 2, sob os artigos ...1 e ...2»
«23.º - Os Autores BB, CC e mulher, por si ou por intermédio das pessoas a quem cedem as pastagens e, antes os antecessores DDD e mulher, e antes destes o antecessor NN, sempre cuidaram, lavraram e cultivaram o prédio inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ...1, e colheram os frutos dessa actividade,»
«24.º - (…) a que sempre acederam pelo caminho referido em 6.º, 8.º e 9.º, 16º e 17.º, desde há 35 anos, ininterruptamente, a pé, de carro ou tractor e/ou com animais;»
«25.º - (…) o que fazem, como sempre fizeram, à vista de todas as pessoas.»
«26.º - (…) sem a oposição de quem quer que fosse, designadamente de MM e QQ, imediatos antecessores proprietários e possuidores do prédio pertencente aos Réus e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...2.º e dos próprios Réus;»
«27.º - (…) na convicção de que tal caminho, assim foi delineado, delimitado e murado, para que especificamente se pudesse aceder aos prédios inscritos na respectiva matriz predial rústica sob os artigos ...1... e ...2.º;»
«28.º - (…) e sem lesarem o direito de quem quer que seja.»
«30.º - Por tal caminho circulavam livremente, como sempre circularam, pessoas e animais que pretendiam deslocar-se de e para os prédios rústicos inscritos sob os artigos ...1 e ...2 da freguesia Local 2;»

Pretendem os recorrentes que esta matéria seja dada como não provada.
Para o efeito invocam os depoimentos de TT, de UU, de VV, de WW, dizendo que destes depoimentos resulta que ficou provado que conheciam a existência de uma passagem pelo dito caminho para o prédio ...1, mas que isso não equivale a que os Autores, por si ou por interposta pessoa, acedessem ao prédio ...1 pelo dito caminho e que o faziam, como dito pela testemunha TT, por um outro caminho que também dá acesso ao prédio ...1, acrescentando, ademais, que o contrato de cedência da pastagem à testemunha WW data apenas de 2017.
Na apreciação da impugnação destes pontos de factos e tendo em mente a prova auditada, os impugnantes não têm razão, ou seja, os factos em causa ficaram sobejamente provados nos autos com base na prova testemunhal arrolada pelos Autores e prova por depoimento de parte da Ré II.
Os depoimentos das testemunhas arroladas pelos Autores, analisados à luz das regras da experiência e concatenados entre si, revelaram que as mesmas tinham conhecimento direto do modo como os Autores, por si ou através dos seus antecessores ou através de terceiros a quem cedem a utilização do prédio ...1, sempre utilizaram o caminho para aceder ao prédio ...1.
Relembre-se a este propósito o testemunho de YY, genro do Autores, que conhece o caminho e o uso que é dado ao mesmo pelos sogros, desde há 39 anos, e antes dos sogros pelo anterior proprietário DDD, para acederem ao prédio ...1; o testemunho de TT, de 86 anos, que ali se criou, como disse, e que conhece bem a realidade em discussão, dizendo que desde «gaiato» sempre conheceu o caminho, que descreveu, e a utilização que era feita pelos Réus e antes deles pelos anteriores proprietários; o testemunho de UU que conhece os Local 5 há 44 anos, que trabalhou para o anterior dono do prédio ...1 e há mais de 30 anos foi lá buscar azeitona com um trator usando o caminho em causa para chegar ao referido prédio; o testemunho de VV, com a provecta idade de 89 anos, que disse que conheceu o prédio dos Autores quando tinha 21 anos por causa de um afogamento ali ocorrido, tendo utilizado o referido caminho para aceder ao prédio, que descreveu, dizendo que, naquela época, não tinha cancelas; mais tarde lavrou o terreno com um caterpillar pequeno que entrou pelo caminho; que havia uma cancela, mas não estava fechada; o testemunho de WW, de 63 anos, que, apesar de ter um contrato para cedência de pastagem no prédio ...1 desde data mais recente, utilizava o caminho para ir tratar do gado e que só a partir de 2019 se deparou com uma cancela com um cadeado.
É certo que as testemunhas apresentadas pelos Réus prestaram um depoimento no sentido dos Autores ou antecessores do prédio ...1 não usarem o caminho para aceder ao mesmo prédio.
Porém, os depoimentos não tiveram consistência suficiente para afastar o sentido probatório dos depoimentos testemunhais acima referidos.
Assim, a testemunha XX, de 49 anos, situa o seu depoimento na altura em que tinha 8 a 10 anos, dizendo que via os Autores no prédio ...1 e não os via passar pelo caminho, concluindo que «certamente entravam por outro lado».
Para além do depoimento estar circunscrito em termos temporais (depois dessa altura tudo o que sabia era por conhecimento indireto), a questão que este depoimento coloca é a falta de coerência e lógica no raciocínio.
Dizendo a testemunha que não viu os Autores entrar pelo caminho, embora os visse no prédio ...1, deduziu que entravam por outro lado e não pelo caminho, não prefigurando sequer a hipótese de entrarem pelo caminho ainda que a testemunha não os tivesse visto.
E quando lhe foi perguntado como então acediam os Réus ao imóvel, não conseguiu dar uma explicação credível assente em razão de ciência percetível.
Aliás, a testemunha foi extremamente evasiva nas respostas às concretas perguntas, refugiando-se muitas vezes em respostas que eram dubitativas utilizando o advérbio «provavelmente» ou expressões como: «não lhe sei dizer», «não estou a afirmar que…», «deduzo», «não tenho a certeza», o que, obviamente, retira credibilidade e consistência ao depoimento.
Também a testemunha FFF, de 38 anos de idade, filho dos Réus GG e HH depôs no sentido do caminho pertencer aos Réus, alcançando tal conclusão a partir de um marco ou marcos que diz existir(em) no terreno e que os Réus só passaram a usar o caminho após a morte do seu avô porque antes usavam o terreno da LL numa zona em que a parede está derrubada.
Todavia, a existência dos marcos não foi trazida aos autos por outros meios de prova e a tese da inclusão do caminho murado dentro do terrenos dos Réus após a compra da tapada quando os Réus já eram donos da horta, como disse, e mesmo após a alteração do troço do caminho mais estreito por causa das pedras ali existentes com alargamento para o prédio ...4, realizado pelo avô da testemunha, o caminho continuou a manter-se murado e, pior do que isso, a zona do alargamento também foi murada após essa alteração.
Sendo assim, carecia de ser explicada a razão da manutenção dos muros a ladearem o caminho, incluindo na zona alargada, se o caminho integrava ou passou a integrar o(s) prédio(s) dos Réus.
Dúvidas que a testemunha não soube esclarecer e que revelam a fragilidade da construção da tese em que assenta o seu depoimento.
Finalmente, o testemunho de GGG, de 85 anos, apenas revela o caminho tinha paredes e havia duas propriedades (que não conseguiu identificar) que pegavam com o caminho.
Ora, apesar dos recorrentes transcrevem alguns trechos de depoimentos visando concluir que o conhecimento das testemunhas se encontra situado em determinados momentos temporais, o que inviabilizaria dar-se como provado a prática de atos ininterruptos caraterísticos de uma situação possessória, mencionado o depoimento de WW para enfatizar que este utilizava o caminho apenas desde a data da celebração do contrato de concessão de pastagem, os recorrentes esquecem-se que esta forma sincopada de analisar a prova não pode ser atendida, porquanto os meios de prova devem ser valorados em conjunto e globalmente, o que significa que o juízo probatório é um juízo que, à luz das regras da experiência e da normalidade das coisas, incide sobre a realidade em discussão como um todo.
Ora, no caso, o que resulta da concatenação dos depoimentos das testemunhas supra mencionadas é que os Autores por si ou através dos ante possuidores ou de terceiros a quem cederam o uso do prédio, utilizaram o caminho como forma de aceder ao prédio ...1 nos termos que foram dados como provados.
Consequentemente, nenhuma censura merece a decisão de facto em relação aos pontos impugnados supra referidos, que se mantêm, improcedendo a impugnação.

Facto provado 38.º:
«38.º - Os Autores sentiram-se profundamente indignados e revoltados com a conduta do Réu, que bem sabendo que acesso ao prédio dos Autores sempre se fez por meio do dito caminho, não se coibiu de agir nos moldes descritos.»

Defendem os recorrentes que esta matéria não ficou provada, devendo transitar para os factos não provados, pois sobre a mesma apenas uma testemunha prestou depoimento - YY - e este nem sequer referiu os termos que constam do teor deste ponto de facto.
Da audição deste depoimento decorre de forma clara o estado emocional dos Autores após lhe ter sido cortado o acesso ao seu prédio por via da cancela que os Réus colocaram no caminho, impedindo-o de acederem ao terreno que cultivavam e donde retiraram hortícolas para o seu sustento, colocando-os numa situação difícil por necessitarem do que ali colhiam para a sua sobrevivência.
E esse estado emocional foi descrito como tendo os Réus ficado «mal» porque «andaram toda a vida a passar no caminho e a ir à horta e depois não podiam…», que «são bons de mais, são pessoas dadas», perguntando-se «quem anda contente com uma coisa destas?»
Ora, a testemunha conseguiu expressar de forma simples, mas elucidativa, que os Réus sofreram/sofrem com a situação que têm por injusta, o que vai de encontro ao sentido da alegação que produziram na p.i. e deu origem ao ponto 38.º dos factos provados, que assim se mantém inalterado, improcedente a impugnação da decisão de facto quanto a esta matéria.

3. Mérito da sentença recorrida
3.1. Consolidado o quadro factual nos termos coincidentes com o exarado na decisão sobre a matéria de facto, impõe-se a análise de mérito do decidido, considerando a argumentação jurídica aventada pelos recorrentes e a fundamentação jurídica expressa na sentença.
Assim, a primeira questão a decidir é sobre a qualificação do caminho em causa nos autos, justificando-se que previamente se faça um sucinto enquadramento jurídico da questão.
Como é sabido e disso dá nota a sentença recorrida, os critérios jurídicos para a qualificação de uma determinada parcela de terreno rústico como caminho público, dividiu a jurisprudência e deu azo à prolação do Assento do STJ de 19-04-1989[7] (atualmente com valor de acórdão de uniformização[8]), que fixou a seguinte jurisprudência: «São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do público».
No referido acórdão debateu-se a questão de saber quais os requisitos que devem existir num caminho para este seja considerado como caminho público, estando em confronto duas teses que veiculavam critérios diferentes: uma que defendia «(…) consideram-se públicos os caminhos sempre que eles estejam no uso directo e imediato do publico»; outra, que defendia que «só devem considerar-se caminhos públicos aqueles que, alem de se encontrarem no uso directo e imediato do publico, tenham sido administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito publico e se encontrem sob a sua jurisdição».
A jurisprudência uniformizadora acolheu a primeira tese, com o seguinte fundamento: «(…) entende-se que, quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente.
É suficiente para que uma coisa seja pública o seu uso directo e imediato pelo público, não sendo necessária à sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público.
Assim, um caminho e público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção.
(…) esta orientação é a que melhor se adapta as realidades da vida, visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos, e assim se obstar a apropriação de coisas públicas por particulares, com sobreposição do interesse público por interesses privados.
Basta, portanto, para a qualificação de um caminho como caminho público o facto de certa faixa de terreno estar afecta ao trânsito de pessoas sem discriminação.
E, assim, de manter o acórdão recorrido, que entendeu ser suficiente para um caminho ser considerado público o uso directo e imediato pelo público, não se tornando necessário que ele tenha sido apropriado ou produzido por pessoa colectiva de direito publico e que esta haja praticado actos de administração, jurisdição ou conservação.»
Como se refere no Ac. do STJ de 22-06-2021, «A tese do assento adoptou a primeira solução (critério do uso), pelo que, provado o uso imemorial pelo público, é de presumir que houve apropriação legítima por parte de entidades de direito público, sendo a presunção ilidível por prova em contrário.»[9]
Porém, como se refere neste aresto, a jurisprudência posterior tem vindo a proceder, por um lado, a uma interpretação restritiva do Assento, e, por outro lado, a uma interpretação extensiva.
«A interpretação restritiva do Assento é no sentido da publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, de o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância.
Argumenta-se, nomeadamente, com a circunstância de um dos requisitos essenciais da dominialidade pública ser a afectação à “utilidade pública” que consiste na aptidão das coisas para satisfazer necessidades colectivas. De resto, seguida à letra a doutrina do assento, sem a restrição interpretativa, implicaria que todos os atravessadouros com posse imemorial teriam de ser qualificados como caminhos públicos, com manifesta violação do art.1383 do Código Civil, que os considera abolidos.
Por outro lado, preconiza-se uma interpretação extensiva do Assento, quando afirma que deixou de subsistir, em alternativa o critério segundo o qual é público um caminho pertencente à entidade pública e estar afecto à utilidade pública. Entende-se, nesta perspectiva, ainda que se tenha por revogado o art.380 do Código Civil de 1867, o conceito de coisas públicas aí definidas com as “apropriadas ou produzidas pelo Estado e corporações públicas e mantidas debaixo da sua administração, das quais é lícito a todos (...) utilizar-se (...)”, deve manter-se relevante, tanto mais que o art.84 da CRP indica certos bens como pertencentes ao domínio público.»
Acresce que o acórdão do STJ de 28-05-2013 introduziu uma nova inflexão à interpretação restritiva do Assento ao mencionar que a mesma pressupunha que os caminhos atravessassem propriedades privadas; porém:
«No caso de passagem ou caminho, que não se integra em nenhuma propriedade privada, existente num lugar e que desde tempos imemoriais liga duas ruas desse lugar, a prova do seu uso imemorial pela população basta para se considerar tal caminho como caminho público, não se impondo nenhuma interpretação restritiva do assento».[10]
O afastamento da interpretação restritiva do Assento, ou seja, a não exigência de prova que o uso imemorial vise a satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância, prende-se com o facto da mesma «pressupo[r] o atravessamento de propriedade alheia» (privada), pelo que não se verificando esse pressuposto não existe a necessidade de «encontrar o justo equilíbrio entre os direitos dos particulares e o interesse das populações»[11], bastando, nessa situação, para a qualificação do caminho como público, que se prove o uso público imemorial.
Todavia, o STJ por acórdão de 18-10-2018, considerando a evolução jurisprudencial acima referida, decidiu o seguinte:
«Provando-se que o caminho em causa nos autos era apenas utilizado pelo proprietários de prédios a que dava acesso – uns não identificados e outros os antecessores das partes – e uma vez que a não existência de um acesso aberto a pessoas determinadas ou a um circuito determinado de pessoas é insuficiente para se falar de “utilização pública”, sendo mister a sua utilização por uma generalidade de pessoas, não pode senão concluir-se pela impossibilidade [de] considerar o ajuizado caminho como sendo um “caminho público”.»[12]
Lendo-se na fundamentação: «Ora, e sendo certo que para se falar de “utilização pública” de um caminho não basta – consoante o já datado Ac. da R.E. de 3.2.2000[4] , “a existência de um acesso aberto a pessoas determinadas ou a um círculo determinado de pessoas”; antes se fazendo mister – agora em consonância com o anotado no Código Civil, coordenado por Ana Prata[5], louvando-se no Acórdão deste Supremo de 13.1.2004 [033A433, Silva Salazar] - “uma generalidade de pessoas, como é a hipótese de uma percentagem elevada dos membros de uma povoação”, logo somos levados a concluir pela impossibilidade de considerar esse ora ajuizado caminho como sendo um caminho “público”.»
Efetivamente, já no acórdão de 13-03-2008, o STJ[13] sublinhava que a afetação do uso direto e imediato pelo público em geral para satisfação de relevantes fins de utilização pública, impunha que casuisticamente se cotejasse esse uso com «as circunstâncias e o “modus vivendi” locais», apelando, assim, aos costumes de uma generalidade de pessoas e não apenas de um círculo restrito de utilizadores, e, citando o acórdão de 13-01-2004, proc. 3433/03-6.ª, menciona que bem ali foi decidido que: “Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais.” (…) “para se decidir da relevância dos interesses públicos a satisfazer por meio da utilização do caminho ou terreno para este poder ser classificado como público, há que ter em conta, em primeira linha, por um lado, o número normal de utilizadores, que tem de ser uma generalidade de pessoas, como é a hipótese de uma percentagem elevada dos membros de uma povoação, e, por outro lado, a importância que o fim visado tem para estes à luz dos seus costumes colectivos e das suas tradições e não de opiniões externas.” (cf., no mesmo sentido, o Acórdão de 15 de Junho de 2000 – CJ/STJ, Ano VIII, II, 117).»
Em resumo, em face do Assento de 19-04-1989 e da jurisprudência posterior emanada pelo STJ que aplicou e interpretou a jurisprudência uniformizadora, a qualificação de um caminho como público pode basear-se no seguinte:
- (i) no facto do mesmo ser propriedade de entidade de direito público (Estado, Autarquias Locais e Regiões Autónomas) e estar afeto à utilidade pública (seja porque há alguns bens que o artigo 84.º da CRP indica como pertencentes ao domínio público, seja, por existirem outros previstos na lei ordinária);
- (ii) ou no seu uso direto e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, visando a satisfação de interesses coletivos relevantes, ou seja, interesses coletivos de certo grau ou relevância (interpretação restritiva do Assento);
- (iii) ou, no caso, do caminho não integrar nenhuma propriedade privada, desde que se prove o uso imemorial pela população (afastando-se assim a interpretação restritiva do Assento).
Finalmente, em relação ao requisito do uso imemorial aceita-se, em regra, a noção que «é imemorial a posse, se os vivos não sabem quando começou; não o sabem por observação directa, nem o sabem pelas informações que lhes chegam dos seus antecessores.»[14]
Em termos de lapso temporal necessário para se ter preenchido o referido requisito, sem prejuízo de se atender sempre ao caso concreto, em regra, o uso por mais 50 ou 60 anos tem sido tido como bastante. Assim, e por exemplo, no acórdão do STJ de 18-09-2014 entendeu-se que releva o tempo decorrido desde a data da propositura da ação e que «Considera-se imemorial, para efeitos de classificação de um caminho como público, o uso de um caminho que ocorre há mais de 60 anos.»[15]; no acórdão do STJ de 08-05-2007 o uso imemorial por atos que ocorreram há mais de 50 anos[16], tal como no acórdão do STJ de 13-01-2004.[17]

3.2. O caso dos autos
Na sentença recorrida foi declarado que o caminho identificado nos factos provados 6.º a 15.º é um caminho público, embora apresente uma variante descrita nos factos provados 16.º e 17.º, que foi implementada num segmento do prédio ...4, prédio este pertença dos Réus, ou seja, de natureza privada, declarando existir nessa variante uma servidão de passagem constituída a favor dos Autores, pelo que condenou os Réus a reconhecerem a natureza pública do caminho e a existência da servidão de passagem e, consequentemente, a manterem o caminho público e a servidão de passagem livre de qualquer obstáculo que impeça ou dificulte o direito de passagem dos Autores e a absterem-se de praticar qualquer ato que dificulte ou impeça o direito de passagem dos mesmos.
Em relação à natureza pública do caminho, exarou-se na sentença recorrida:
«Face a esta factualidade, sumariamente enunciada mas melhor descrita supra III sob os artigos 6.º a 15.º, torna-se manifesto que o “caminho” em questão não é um mero atravessadouro.
Na verdade, ante o conspecto fáctico amplamente apurado, designadamente ao ter resultado apurada uma imemoriabilidade desse uso, pois que de toda a prova documental e testemunha produzida em sede de audiência de discussão e julgamento não se sabe quando começou, não o sabem, as testemunhas por observação directa, nem o sabem pelas informações que lhes chegaram dos seus antecessores e, bem assim que tal caminho não integra qualquer prédio rústico, mas a área social da secção cadastral H da freguesia Local 2, concelho Local 3.
Ora, seguindo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Maio de 2013, relatado Salazar Casanova, «[n]o caso de passagem ou caminho, que não se integra em nenhuma propriedade privada, existente num lugar e que desde tempos imemoriais liga duas ruas desse lugar, a prova do seu uso imemorial pela população basta para se considerar tal caminho como caminho público, não se impondo nenhuma interpretação restritiva do assento», precisamente porque nesta situação não há que efectuar qualquer ponderação entre os direitos dos particulares cujos terrenos são atravessados pelos aludidos caminhos e os das populações, de molde a considerar-se que estando em causa interesses de ordem colectiva relevantes (como o acesso a escolas, creches, equipamentos etc), deve ceder o direito de propriedade em benefício daqueles.
Assim, aquela interpretação restritiva apenas se justifica para distinguir caminhos públicos de atravessadouros, mas já não quando o reconhecimento da natureza pública de um caminho, por este não atravessar qualquer propriedade privada, não implica a compreensão de qualquer direito ou interesse particular, conforme se pode ler, também, no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20 de Fevereiro de 2024, proferido no processo n.º 522/17.4BELLE.E1, relatado por Isabel de Matos Peixoto Imaginário.
Destarte, e considerando que o aludido caminho não atravessa qualquer prédio particular, mormente pertencente aos Réus, verificamos que se encontram provados os pressupostos dos quais depende a qualificação de um caminho como pertença do domínio público, a saber a imemoriabilidade de tal uso de acesso aos prédios inscritos na respectiva matriz predial sob os artigos ...1... e ...2.º.
Deste modo, conclui-se que o caminho aludido, com as características e localização referidas nos factos provados, é pertença do domínio público.»
Em relação à fundamentação sobre a exclusão da natureza pública da variante, ficou escrito:
«Todavia, já não resultou provado que o aludido caminho esteja em toda a sua extensão, mormente na zona da variante (que é que agora nos interessa), afecto à utilização directa, imediata, e sem oposição de quem quer que seja, do público em geral, isto é, de todos quantos aí pretendam deslocar.
Ora, tomando em consideração todas as considerações supra expendidas, atento que a aludida variante ao caminho público original supra identificado foi edificada numa parcela de terreno do prédio rústico inscrito sob o artigo ...4, e como tal num prédio rústico privado.
Destarte, inexistem dúvidas que, na vertente situação, teremos que lançar mão da interpretação restritiva que deve ser dada ao Assento 19 de Abril de 1989, ou seja, torna-se necessário que o fim visado com a utilização de tal caminho não seja a soma de um conjunto de interesses individuais, mas que o mesmo seja relevante e seja comum à generalidade dos seus utilizadores, de modo a que se possa concluir pela sua afectação pública.
A este respeito, não há dúvida possível acerca do não preenchimento de dois dos requisitos fundamentais para a figura do caminho público: não se provou o uso directo e imediato pela generalidade das pessoas que integram certa colectividade, nem o carácter prolongado e reiterado de tal utilização, provinda e mantida desde tempos imemoriais.
Acresce que inexiste qualquer utilidade pública na afectação do caminho ao domínio público, dado que o caminho em causa não tem saída e se destina apenas ao acesso aos prédios ali existentes - os prédios rústicos inscritos sob os artigos matriciais n.ºs ...1 e ...2-inexistindo qualquer equipamento público que careça de ser acedido por aquele caminho.
Assim, o caminho em causa não tem afectação a fins de utilidade pública, ou seja, a passagem não visa a satisfação de interesses colectivos de certo grau de relevância.
Por fim, tal utilização ocorre, apenas desde o início da década de 80 do século passado, ou seja, há cerca de 40 anos e, por isso, inexiste um uso imemorável,
Destarte, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, fica afastada a possibilidade de se declarar que esta variante do caminho original se qualifica como caminho público.»
Na sequência deste raciocínio, em relação à dita variante, ficou plasmado o seguinte:
«Mas não tendo, a variante ao caminho original natureza pública, deverão os Autores ser impedidos de circularem pelo mesmo para acederem ao seu prédio inscrito sob o artigo matricial n.º ...1, tal como vêm fazendo nos últimos 35 anos?
A título subsidiário, peticionam os Autores que seja reconhecida, desde logo, a servidão de passagem, a favor daquele supra identificado prédio rústico.
Assim, importa, desde logo, analisar a natureza jurídica e o conteúdo do direito de servidão de passagem.
(…) resultando da factualidade provada e acima transcrita, que a passagem em causa, sobre o prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia Local 2, sob o artigo ...4 e a favor do prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia Local 2, sob o artigo ...1 tem origem junto ao afloramento granítico que era contornado através de uma curva apertada pelo caminho público original, ao tanque aí edificado, com cerca de 9m de comprimento e 3,8m de largura, entre o muro e o tanque, era utilizada para passagem a pé, de animais e dos veículos agrícolas, faixa essa calcada e bem revelada no solo do prédio dos Réus, inscrito sob o artigo ...4, por sinais visíveis e permanentes dos pés das pessoas e dos cascos de animais, das rodas e rodados de carros de bois e carroças, carros e tractores, culminando na entrada do prédio rústico dos Autores, inscrito sob o artigo ...1.º, que é delimitada por uma cancela de ferro, então não há dúvidas de que estamos perante uma servidão aparente, logo susceptível de ser adquirida, desde que verificados os seus pressupostos, por usucapião.
Mais lograram os autores demonstrar que, por si e antepossuidores e pelas pessoas que detêm a cedência das pastagens do prédio, têm passado a pé, com carros de bois e carroças, com carros, tractores e outras máquinas agrícolas pelo prédio inscrito sob a matriz predial rústica n.º ...4, na faixa de terreno acima indicada, concretamente com 9m de comprimento e 3,8m de largura desde o muro do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...4 até ao tanque, orientada desde o afloramento granítico até à entrada do prédio dos Autores e inscrito sob o artigo ...1, calcada e bem revelada no solo por sinais visíveis e permanentes dos pés das pessoas e dos cascos de animais, das rodas e rodados de carros de bois e carroças, carros e tractores, o que fazem há mais de 35 anos, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição e violência, sem hiatos ou interrupções e na convicção de exercerem um direito próprio de aí passar e não lesarem direitos de outrem.
Donde resulta, em face dos factos provados, a demonstração da posse por parte dos os autores relativamente à passagem sobre o prédio dos réus, inscrito sob a matriz predial rústica sob o artigo ...4, pois que os mesmos demonstraram o seu corpus e animus, estes entendidos nos termos acima gizados.
Por outro lado, em face das características da posse dadas como provadas - mormente que os autores praticavam os factos dados como provados à vista de toda a gente, sem qualquer oposição e violência, sem hiatos ou interrupções, na convicção de que exerciam um direito próprio de aí passarem e que não lesavam direitos de outrem - a mesma consubstancia-se, nos dizeres legais, numa posse de boa fé, pública e pacífica, tal como consagrada nos artigos 1260º, 1261º e 1262º, ambos do Código Civil.
Na ausência de registo do título ou da mera posse - como acontece no caso vertido nos autos - a posse tem de se prolongar no tempo por mais de quinze anos, quando de boa-fé, ou vinte anos se de má-fé. Ora, e neste particular, demonstrou-se que os autores têm praticado os actos dados como provados sobre o prédio inscrito sob o artigo ...4 da freguesia Local 2, por si e antepossuidores e pelas pessoas que detêm a cedência das pastagens do prédio rústico inscrito sob o artigo ...1 da freguesia Local 2, há mais de 35 anos, sem hiatos ou interrupções, pelo que se verifica igualmente preenchido o requisito que se prende com o prazo da posse, de acordo com o preceituado nos artigos 1296º, 1252º n.º 2 e 1257º n.º 2, todos do Código Civil.
Assim, e sem necessidade de outros considerandos, na medida em que os autores lograram demonstrar - como inequivocamente lhes competia, de acordo com o n.º 1 do artigo 342º do Código Civil - os pressupostos de depende a verificação da aquisição da servidão de passagem, por usucapião, sobre o prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia Local 2, sob o artigo ...4 e com as características também dadas como provadas, e a favor do seu prédio rústico inscrito na matriz predial rústica da freguesia Local 2, sob o artigo ...1, por usucapião, então importará concluir pela procedência da sua pretensão, reconhecendo-se que está constituída, por usucapião, a favor do seu prédio rústico inscrito na matriz predial rústica da freguesia Local 2, sob o artigo ...1, uma servidão de passagem de pé e de carro, com o conteúdo dado como assente.»
Concluindo:
«Consequentemente, e em conformidade com a natureza pública do caminho original e da servidão de passagem da variante àquele caminho a reconhecer, mais serão os réus condenados a permitir que os autores transitem, de forma livre e desimpedida, no leito do caminho público e da servidão da passagem dada como provada., abstendo-se de praticarem qualquer acto que impeça ou dificulte tal fruição.»
Os recorrentes discordam, argumentando, em suma, que os Autores não provaram o uso imemorial do caminho, nem a afetação do uso à utilidade pública, pois apenas se provou que o caminho serve os prédios X e Y, fazendo a sentença errada interpretação do Assento de 19-04-1989, em conformidade com a interpretação do Ac. STJ, de 28-05-2013 aos casos dos caminhos utilizados apenas pelos proprietários dos prédios a que dão acesso, como é o caso dos autos. Para além disso, não provaram quem é o dominus da parcela de terreno afeto ao trajeto (privado ou público).
Por outro lado, alegam que a «área social de secção» do cadastro predial não identifica quem são os titulares de algum direito sobre os imóveis que a integram e que a variante está incluída no caminho, mas apesar do tribunal ter considerado que o caminho é público, já não assim entendeu em relação à variante. Ademais, também não provaram os requisitos da posse boa para usucapir.
Vejamos, então.
Em relação ao requisito do uso imemorial o mesmo ficou demonstrado em face do que ficou exarado nos pontos 15.º a 28.º e 30.º dos factos provados onde consta que os Autores, por si ou por meio de terceiros, bem como os seus antecessores, desde há mais de 50, 60, 70, 80 e 90 anos usam o caminho identificado nestes factos para acederem ao prédio ...1.
Este lapso temporal enquadra-se perfeitamente naquele que a jurisprudência tem considerado como preenchendo o referido requisito, como acima se mencionou, porquanto o mesmo permite concluir que o início do uso remonta a um período tão antigo que já não está memória direta ou indireta dos vivos.
A sentença recorrida estribou-se precisamente neste requisito para o eleger como sendo o definitivo para classificar o caminho como público.
Como acima dito, o critério do uso imemorial é essencial para se aferir da natureza pública de um caminho em face da jurisprudência uniformizadora, seja na interpretação literal do Assento de 19-04-1989 (que exige o uso imemorial direto e imediato por parte do público), seja da interpretação restritiva do mesmo (que aduz àqueles requisitos o da afetação a utilidade pública com o objetivo de satisfazer interesses coletivos de certo grau ou relevância), seja na interpretação veiculada pelo acórdão de 28-05-2013 (que exige, mesmo para caminhos que não atravessem propriedades privadas, a prova do uso imemorial pela população).
Porém, não se pode corroborar o decidido na sentença quanto à classificação do caminho como público por outra razão que, salvo o devido respeito, foi descurada na análise da questão.
É que seja qual for a interpretação a que se atenda das acima referidas em relação ao preenchimento dos requisitos para classificar um caminho como público, em todas se exige que o uso imemorial possa ser tido como correspondendo a uma «utilização pública», significando este termo que a utilização tem de ser feita pela «população», pelo «público», ou seja, o uso imemorial tem de verificar-se em relação a uma generalidade de pessoas, como sucede, por exemplo, com um elevado membros de uma povoação ou de determinado lugar, o que exclui as situações em que o acesso em causa, ainda que usado de forma imemorial, seja feito em prol de pessoas determinadas ou a um círculo de pessoas determinadas.
O acórdão do STJ de 18-10-2018 supra citado no trecho extratado, em consonância com outros arestos anteriores do mesmo Colendo Tribunal, excluiu a classificação de um determinado caminho como público por o mesmo apenas ser utilizado pelos proprietários dos prédios a que dava acesso, não se podendo, assim, falar de uma «utilização pública» de modo a determinar a dominialidade do caminho.
Critério que é essencial para distinguir caminhos de atravessadouros, como expressamente é referido no sumário do acórdão do STJ de 21-01-2014: «O uso comum do caminho público destina-se à satisfação da utilidade pública e não apenas a uma soma de utilidade individuais de vizinhos como acontece com os atravessadouros».[18]
No caso dos autos, os Autores não lograram provar, como lhes competia (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil) que a uso ao longo dos anos referidos no facto provado 15.º foi feito pela população em geral das localidades vizinhas, pois o que ficou provado foi apenas que os Autores e os Réus, e antes deles os seus antecessores, respetivamente, acediam aos prédios X e Y através do caminho.
O que está, assim, provado é que vários proprietários usam o caminho para acederem aos seus imóveis, o que revela um uso circunscrito e subordinado a interesses de caráter meramente privatístico, logo não público.
Deste modo, não se encontrando preenchido um dos requisitos essenciais para a classificação do caminho em causa nos autos como público, fica arredada a classificação do caminho como público, sublinhando-se que se alcança esta conclusão independentemente da interpretação que seja feita em relação ao referido Assento.
Acrescentando-se que também não se colhe argumento em sentido contrário do que ficou provado no ponto 14.º dos factos provados onde consta que o troço do caminho descrito nos factos provados 8.º a 10.º integra a área social da secção cadastral H da freguesia Local 2, concelho Local 3.
Ora, convém precisar o que significa um terreno/prédio estar integrado na secção social de um cadastro predial.
Como colhe, nomeadamente, do documento junto com a p.i. provindo do Instituto Geográfico Português, intitulado «Especificações Técnicas para a Informatização do Cadastro Geométrico da Propriedade Rústica (cfr. fls. 71 e ss do processo físico), o cadastro predial tem como objetivo a georreferenciação e caraterização do prédio, ou seja, permite o conhecimento da localização dos prédios rústicos, a sua configuração geométrica, confrontações e áreas. Para além desta finalidade, também tem uma finalidade pública relacionada com a fiscalidade (recolhe de impostos sobre a terra).
Porém, não fornece informações sobre os proprietários nem sobre a natureza pública ou privada de terrenos/caminhos ou sobre servidão de caminhos para prédios encravados.
O cadastro geométrico pode ser organizado por «secções» (cfr. por exemplo, o artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 172/95, de 18-07 - Cadastro Geométrico da Propriedade Rústica – CGPR -, atualmente revogado pelo Decreto-Lei n.º 72/2023, de 23-08, que instituiu o Novo Regime Jurídico do Cadastro Predial, em vigor desde 21-11-2023), que correspondem a representações de plantas topográficas cadastrais. A secção social, com era definida no artigo 1.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 172/95, reportava-se à área social que correspondia a «toda a área existente no interior de um prédio destinada a utilização pelo público e que dele não faz parte».
Todavia, e como se disse, ainda que determinada parcela de terreno/caminho esteja inserida na secção social de determinada folha cadastral, daí não resulta em termos jurídicos a sua classificação como parcela de terreno/caminho público, porquanto essa classificação obedece aos requisitos legais que temos vindo a mencionar.
Assim, ou estamos perante terrenos que se enquadram nos termos do artigo 84.º da CRP no domínio público, ou tal classificação pode emergir de um diploma legal infraconstitucional, ou, então, poderá tal classificação resultar do facto do terreno ser propriedade de entidade de direito público (Estado, Autarquias Locais e Regiões Autónomas) e estar afeto à utilidade pública, ou, finalmente, não se verificando nenhuma dessas situações, se resultarem provados em sede judicial os requisitos da dominialidade a que nos vimos referindo e que se resumem, essencialmente, ao uso imemorial direto e imediato do público para satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância, pode ser classificado como terreno/caminho público.
No caso em apreço, não se tendo provada a natureza pública do caminho em causa nos autos pelas razões supra referidas, procede a apelação nesse segmento, o que significa que improcede o pedido principal formulado sob o número 3., impondo-se a absolvição dos Réus desse pedido e a revogação da sentença nessa parte.
Vejamos, agora, a questão relativa à servidão de passagem de pé, animais e carro, constituída por usucapião sobre a variante do caminho, descrita nos pontos 16.º a 18.º dos factos provados.
Nesta parte, a sentença não merece qualquer crítica considerando que ficaram provados os pressupostos da constituição da dita servidão de passagem, atento o disposto nos artigos 1543.º, 1544.º, 1547.º, n.º 1, 1287.º, 1294.º, 1548.º, a contrario, e 1293.º, alínea a), do Código Civil.
Decorre do artigo 1287.º do Código Civil que a posse do direito de propriedade, ou de outro direito real de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação.
«A usucapião, que é uma forma de constituição de direitos reais e não de transmissão, baseia-se numa situação de posse – corpus e animus – exercida em nome próprio, durante os períodos estabelecidos na lei e revestindo os caracteres que a lei lhe fixa, pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé.» [19]
Para o possuidor poder adquirir por usucapião têm de estar verificados os dois elementos: o corpus, ou seja, a relação material com a coisa, e o animus, o elemento psicológico, a intenção de atuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.
O corpus da posse traduz-se no «poder de facto» manifestado pela atividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigos 1251.º e 1252.º, n.º 2 do Código Civil).
Atividade que não carece, aliás, de ser sempre efetiva, pois uma vez adquirida a posse, o corpus permanece como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (artigo 1257.º, n.º 1 do Código Civil).
Embora seja necessário o corpus e o animus, face ao disposto no n.º 2 do artigo 1252.º do Código Civil, o exercício daquele fará presumir a existência deste. Determina este preceito legal que «Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º».[20]
No que concerne à usucapião, conforme resulta do artigo 1287.º do Código Civil, a sua verificação depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo.
Para conduzir à usucapião, a posse tem de revestir sempre duas características: ser pública e pacífica; as restantes características (boa-fé ou má-fé, titulada ou não titulada) influirão, apenas, no prazo.[21]
A posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artigo 1262.º do Código Civil); a posse pacífica, a adquirida sem violência (artigo 1261.º do mesmo diploma).
Quanto ao lapso temporal, varia consoante a posse é de boa ou má-fé, titulada ou não titulada, sendo considerada não titulada quando o negócio jurídico donde resultou a situação de posse é nulo por vício de forma, já que a lei prescinde apenas da validade substancial do negócio jurídico, não presumindo o título, cuja existência deve ser provada por aquele que o invoca (artigo 1259.º do Código Civil).
A posse diz-se de boa-fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, ou seja, quando o possuidor ao começar a gozar a coisa atua na convicção de que não está a prejudicar outrem, presumindo-se a posse não titulada de má-fé, sendo o momento em que deve existir a boa-fé o da aquisição da posse (artigos1260.º do Código Civil).
Por força do artigo 1296.º do Código Civil, se não houver registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa-fé, e de vinte anos, se for de má-fé.
Apesar dos recorrentes defenderem que os Autores não lograram provar o corpus da posse, a matéria de facto provada nos pontos 16.º a 18.º, 22.º a 28.º e 30.º a 35.º e 37.º evidencia que os Autores, por si, por intermédio de terceiros, e pelos seus antecessores, desde a feitura da variante do caminho, nos anos 80, de forma ininterrupta, à vista de todos e sem oposição de ninguém (até aos acontecimentos referidos no ponto 34.º dos factos provados, que ocorreram em março de 2019), portanto há mais de 35 anos, sempre acederam a pé, de carro ou trator e/ou com animais ao prédio ...1, através do caminho referido nos factos provados usando a referida variante, na convicção de não estarem a lesar direitos de outrem, ficou, assim, demonstrado o corpus, presumindo-se o animus.
Desta forma, bem andou a sentença ao julgar procedentes os pedidos subsidiários formulados sob os n.ºs 5 e 6 do petitório.
Sendo que os pedidos subsidiários formulados sob os n.ºs 7 e 8 encontram-se, consequentemente, prejudicados na sua apreciação (artigo 608.º, n.º 2, do CPC).
Ora, chegados a esta conclusão impõe equacionar como articular o decidido, ou seja, por um lado, não se provou que o caminho em causa nos autos (descrito no ponto 12.º dos factos provados) seja um caminho público, mas, por outro lado, provou-se que um troço específico desse mesmo caminho (identificado como variante descrita no ponto 17.º dos factos provados, implantado no prédio ...4, pertença dos Réus), se encontra onerado com uma servidão de passagem a favor do prédio ...1, propriedade dos Autores.
Importante também considerar que, se não se provou que o referido caminho era público, também não ficou provado que, em toda a sua extensão, estivesse implantado em terreno privado. Como se disse, apenas em relação à dita variante ficou provado que foi constituída no prédio ...4, pertença dos Réus.
Afigura-se-nos que numa situação como a configurada nos autos, os Autores não podem ser privados de usufruir da servidão de passagem que beneficia o seu prédio ...1 (prédio dominante), onerando o prédio ...4 dos Réus (prédio serviente), usando-a para aceder ao prédio ...1.
Porém, para esse efeito terão também de poder usar a parte restante do caminho que se provou não ser um caminho público, mas que também não se provou pertencer aos Réus. Repare-se que os Réus nunca deduziram tal pretensão nos autos.
Nesta situação, não se pode concluir que os Réus têm inscrito na sua esfera jurídica o direito de obstarem à utilização do caminho por parte dos Autores.
Não se tendo provado que o caminho é público, nem que esteja implantado na propriedade os Réus (exceto a variante), nem o inverso, não se pode excluir que o mesmo caminho possa pertencer a outros sujeitos (públicos ou privados) que não tiveram intervenção neste processo, ou, até que pertença, em regime de compropriedade, a todos os proprietários dos prédios por ele servidos, ou seja, Autores e Réus, questão que também não foi colocada nestes autos.
Sendo assim, temos por justo e adequado em resultado da prova produzida nos autos, que os Réus não se podem opor a que os Autores utilizem o caminho descrito nos autos para acederem ao prédio ...1, usando nesse trajeto, a servidão de passagem constituída sobre a variante referida nos factos provados.
Nestes termos, ainda que por fundamentos jurídicos diferentes, procede o pedido formulado sob o n.º 4 do petitório.

3. 3. Indemnização por danos não patrimoniais
A sentença condenou os Réus a indemnizarem os Autores, a título de danos não patrimoniais no valor total de €1.2000,00 (€300,00 por cada um dos Autores).
Lendo-se na sentença para fundamentar a condenação, tendo em consideração o disposto no artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, o seguinte:
«Na verdade, lograram os autores demonstrar, em 38., que em consequência da actuação dos Réus os Autores ficaram extremamente indignados e revoltados com a conduta do Réu, que bem sabendo que acesso ao prédio dos Autores sempre se fez por meio do dito caminho, não se coibiu de agir nos moldes descritos.
(…) somos de entendimento que os danos provocados aos autores são, sem dúvida, de molde a merecer a tutela do direito, pois que não se pode olvidar que a conduta dos réus causou os danos acima elencados aos aqui autores, não se podendo olvidar que essa conduta violou um direito dos autores, que os mesmos consideravam pacífico e de cuja violação lhes advieram os danos dados como provados.»
Alegam os recorrentes que a factualidade provada não revela a gravidade exigida pelo referido normativo para sustentar a condenação na indemnização fixada.
Salvo o devido respeito, não se pode concordar com os recorrentes.
Os Réus, sem fundamento legal bastante, violaram o direito dos Autores quanto à utilização do caminho nos termos que vinham fazendo há longos anos, impedindo-os de acederem livremente à sua propriedade. Este comportamento dos Réus gerou nos Autores indignação e revolta, que correspondem a estados anímicos e emocionais que despoletaram intranquilidade e transtorno no normal desenrolar da vida destas pessoas, pelo que, objetivamente, são danos graves, merecendo a tutela do direito nos termos do artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil.
A quantificação dos mesmos tem de ser ajustada à realidade do que ficou provado, segundo o critério previsto no n.º 4, 1.ª parte, do mesmo normativo legal. Atento o valor fixado não nos merece qualquer crítica o decidido quanto a esta questão.
Assim, em relação a este segmento recursivo, improcede a apelação.

4. Responsabilidade tributária
Dado o recíproco decaimento, as custas ficam a cargo dos apelantes e dos apelados, na respetiva proporção (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
I. Revogam a sentença na parte em que declarou e reconheceu que o caminho em causa nos autos tem natureza pública, absolvendo os Réus do pedido principal formulado sob o n.º 3 do petitório;
II. Mais decidem, condenar os Réus no pedido principal formulado sob o n.º 4 do petitório ainda que por fundamento jurídico diferente;
III. Confirmam a sentença na parte em que declarou e reconheceu existir a favor do prédio ...1 dos Autores, sobre o prédio ...4 dos Réus, uma servidão de passagem, constituída por usucapião, condenando os Réus, nos termos em que foram formulados os pedidos sob os n.ºs 5 e 6 do petitório;
IV. Mais decidem julgar prejudicado o conhecimento dos pedidos subsidiários formulados sob os n.ºs 7 e 8 do petitório;
V. Confirmam a sentença na parte em que condenou solidariamente os Réus a pagarem aos Autores danos não patrimoniais no montante global de €1.200,00 (Mil e duzentos euros), sendo €300,00 (Trezentos euros) para cada um deles, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento.
VI. No mais, decidem confirmar a absolvição dos Réus do pedido.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 16-12-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Ricardo Miranda Peixoto (1.º Adjunto)
Francisco Xavier (2.º Adjunto)
__________________________________________________
[1] Mencionando apenas o processado estritamente necessário para o conhecimento do objeto do recurso.
[2] Estes pedidos foram objeto de apreciação no despacho saneador e os Réus foram absolvidos da instância.
[3] Na p.i., também foi de deduzido pedido de intervenção principal do lado ativo, ao abrigo do artigo 311.º do CPC, do Município Local 3, que foi indeferido (despacho de 09-12-2020 – fls. 167 do processo físico).
[4] Cfr. Ac. STJ, de 09-03-2022, proc. nº 4345/12 (Rel. Isaías Pádua), em www.dgsi.pt (sendo esta a fonte da jurisprudência citada, exceto se outra for indicada).
[5] Cfr. Ac. STJ, de 03-03-2021, proc. n.º 3157/17 (Rel. Leonor Cruz Rodrigues).
[6] LEBRE DE FREITAS et al., Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 3.ª ed., 2017, Vol. 2.º, p. 735 (2).
[7] Proferido no proc. 073284 (Rel. Solano Viana), disponível em www.dgsi.pt e também publicado no DR, I, de 02-06-1989).
[8] Cfr. n.º 2 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 329.º-A/95, de 12 de Dezembro.
[9] Proferido no proc. 56/17 (Rel. Jorge Arcanjo).
[10] Acórdão proferido no proc. 3425/03 (Rel. Salazar Casanova),
[11] Citando o Ac. RP, de 19-12-2012, proferido no proc. 3425/03 (Rel. Francisco Matos).
[12] Acórdão proferido no proc. 1334/11 (Rel. Helder Almeida).
[13] Acórdão proferido no proc. 08A542 (Rel. Sebastião Póvoas).
[14] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. III, 1972, p. 255.
[15] Proferido no proc. 44/1999 (Rel. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza).
[16] Proferido no proc. 07A981 (Rel. Sebastião Póvoas).
[17] Proferido no proc. 03ª3433 (Rel. Silva Salazar).
[18] Proferido no proc. 6662/09 (Rel. Moreira Alves).
[19] Cfr. Ac. STJ, de 14-12-1994, in CJ/STJ, 1994, III, p.183.
[20] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ob. cit., Vol. III, p. 8 (2), a propósito deste preceito referem que “estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus) salvo se não foi o iniciador da posse (referência ao n.º 2 do art. 1257.º)”. Cfr., ainda, acórdão do STJ (uniformização de jurisprudência), de 14-05-96, proc. n.º 085204, www.dgsi.pt e publicado em DR II Série, de 24/06/96, p. 55. Também MOTA PINTO, “Direitos Reais”, 1970, p. 91, em relação ao n.º 2 do artigo 1252.º do Código Civil, escreveu: «Como a prova do “animus” poderá ser muito difícil, para facilitar as coisas, ao possuidor a lei estabelece uma presunção. Diz que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto. Daqui decorre que, sendo necessário o corpus e o animus, o exercício daquele faz presumir a existência deste».
[21] HENRIQUE MESQUITA, “Direitos Reais”, Coimbra Editora, 1966/67, p. 112.