ARRENDAMENTO
VENDA EXECUTIVA
CLÁUSULA CONTRATUAL
Sumário


I - Não sendo possível, em face da factualidade provada, extrair o sentido da vontade real dos outorgantes do contrato de arrendamento, há que fazer apelo das normas relativas à interpretação das declarações negociais, previstas nos artigos 236º a 238º do Código Civil, valendo, em principio, a declaração com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, atribuiria a tal declaração, devendo procurar-se também o sentido juridicamente relevante, no contexto negocial global, atendendo à letra, às circunstâncias de lugar e tempo e, bem assim, às finalidades prosseguidas com a declaração negocial em causa.
II - A cláusula contratual, inserida num contrato de arrendamento, aceite por locador e locatário, que prevê a cessação automática do contrato de arrendamento em caso de venda do imóvel objecto do mesmo, destina-se a proteger os interesses do locador, tendo em vista evitar que venha a ser confrontado com a recusa do locatário em entregar o prédio, afectando o valor de transacção do mesmo, e não a salvaguardar interesses de terceiros, nomeadamente os decorrentes da aquisição em acção executiva.
III - Este é o sentido da declaração negocial que um normal declaratário, colocado na posição do real declaratário, no contexto negocial em causa, atribuiria à declaração, pois entenderia tal declaração como referindo-se à “normal” venda voluntária, que é o sentido com que normalmente se fala de venda, e não à venda coerciva.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Recurso de Apelação n.º 1360/22.8T8FAR.E2

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – Relatório
1. Banco Santander Totta, S.A. intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo que:
a) A Ré seja condenada no pagamento à autora do valor total de € 69.000,00, a título de indemnização devida pela ocupação ilícita do imóvel entre 13/03/2020 e 24/01/2022, acrescida de juros de mora até efectivo e integral pagamento; subsidiariamente:
b) A Ré seja condenada a pagar à autora a quantia de €12.600,00, acrescida de juros de mora, contados desde a data da interpelação (30.11.2021) até efectivo e integral pagamento, a título de rendas vencidas e não pagas, e correspondente indemnização legal; e,
c) A Ré seja condenada a pagar a quantia de € 2.000,00 pelo atraso na restituição do imóvel, entre 31/11/2021 e 24/01/2022, acrescida de juros de mora, contados desde a data de interpelação (30/11/2021) até efectivo e integral pagamento.

2. Para tanto, alegou, em síntese, que adquiriu o imóvel no âmbito de processo de execução, o qual havia sido objecto de contrato de arrendamento celebrado pela anterior proprietária e a R., e que por força de cláusula acordada caducou com a venda judicial, sendo devida indemnização no valor de € 69.000,00 pela ocupação ilícita que a R. realizou desde a data dessa venda, 13/03/2020, até à data da entrega do imóvel, 24/01/2022, correspondente ao valor locativo não inferior a €3.000,00.
Caso assim não se entenda, alegou não ter recebido qualquer renda por parte da R. e que se opôs à renovação do contrato de arrendamento, o qual cessou em 30/11/2021, mantendo a R. a ocupação até 24/01/2022, pelo que lhe é devido o valor das rendas e a indemnização correspondente a 20% daquele valor.

3. A R. contestou, invocando a excepção dilatória de caso julgado, em face da decisão proferida no âmbito do processo de execução em que se considerou que o contrato de arrendamento não caducou com a venda judicial, e, caso assim não se entenda, invocou a autoridade de caso julgado dessa decisão.
Mais alegou que a A. nunca lhe comunicou que passava a ser o senhorio e que lhe devia passar a pagar as rendas, o que continuou a fazer à anterior proprietária, actuando a A. em abuso de direito.
Impugnou o valor locativo indicado pela A. e aceita pagar o devido pela ocupação desde a data da cessação do contrato de arrendamento até à data da entrega.

4. A A. apresentou resposta, na qual concluiu pela improcedência das excepções invocadas.

5. Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual a A. pronunciou-se acerca da excepção peremptória de autoridade do caso julgado.
As partes foram notificadas que os autos reuniam elementos para conhecer parcialmente do mérito da causa e para se pronunciarem, o que fizeram, nos termos constantes da gravação.
Foi proferido saneador-sentença, em 24/10/2022, no qual se decidiu julgar procedente a excepção de autoridade de caso julgado e, em consequência, foi a R. absolvida do pedido principal.
Os autos prosseguiram para conhecimento do pedido subsidiário, tendo sido fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, sem que tenha sido apresentada reclamação.
Realizada a audiência final veio a ser proferida sentença, em 29/04/2023, que julgou os pedidos [subsidiários] parcialmente procedentes e condenou a ré a pagar à autora a quantia de €12.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, contados desde 30/11/2021 em relação às rendas vencidas em data anterior e a partir dessa data para as vencidas posteriormente até efectivo e integral pagamento, e no pagamento da quantia de € 2.000,00, a que acrescem juros de mora, à taxa de juros civis, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento. [Desta decisão foi interposto recurso, cujo conhecimento veio a ser julgado prejudicado, face à prolação do acórdão da Relação, adiante referido, que revogou a despacho saneador e determinou o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido principal – despacho de 18/10/2023]

6. Foi interposto recurso do despacho saneador-sentença, que havia julgado procedente a excepção de autoridade de caso julgado, vindo a ser proferido o acórdão de 28/06/2023, que considerou procedente o recurso e, revogando a decisão recorrida [saneador-sentença de 24/10/2022], determinou o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido principal.

7. Realizada a audiência prévia, foram as partes notificadas de que os autos reuniam elementos para conhecer de mérito do pedido principal formulado, vindo a A. pronunciar-se pela sua procedência e a R. pela improcedência.
Após, veio a ser proferida sentença, em 01/02/2024, na qual se decidiu “julgar o pedido principal formulado pela autora improcedente, por não provado, absolvendo a ré do mesmo.”

8. É desta decisão, que julgou improcedente o pedido principal, que vem interposto pelo A. o presente recurso, no qual pede a revogação da sentença de 01/02/2024, e que se ordene o prosseguimento dos autos para produção de prova relativa aos prejuízos sofridos pelo BST em resultado da ocupação ilícita realizada pela R., nos termos e com os fundamentos que condensou nas seguintes conclusões:
A) Mediante a sentença agora recorrida, foi julgado improcedente o pedido principal formulado pelo BST.
B) A tese da sentença recorrida é, em síntese, a seguinte:
“Na verdade, recorrendo às regras de interpretação dos contratos, plasmadas nos artºs 236.º a 238.º do Código Civil, a interpretação mais conforme da referida alínea b), da cláusula 3ª será considerar que tal cláusula foi inserida no contrato apenas para salvaguardar os interesses da Locadora que, caso pretendesse alienar voluntariamente o prédio em questão, não seria confrontada com a recusa da Locatária em entregar o prédio, escudada no contrato de arrendamento.
Ou seja, trata-se de uma cláusula manifestamente protectora dos direitos da Locadora, aceite pelas partes livremente, no âmbito da autonomia da vontade, que não teve em vista ou consideração eventuais direitos de terceiros, como o caso da aqui autora.
….
O que leva a concluir que o contrato de arrendamento não caducou e a ré AA dispunha de título válido para manter a ocupação do prédio adquirido pela autora.
Donde, soçobra a pretensão da autora formulada a título principal, com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento celebrado com a ré”. – vd. págs. 12 e 13 da sentença.
C) Ora, salvo o devido respeito, que é muito, julga-se que, ao decidir da forma como o fez, a sentença recorrida incorreu em ilegalidade, o que impõe a sua revogação.
D) Resulta da matéria de facto provada que o BST é dono e legítimo proprietário do imóvel em causa nos autos.
E) E que, tal imóvel foi adquirido pelo BST a 13.03.2020, mediante escritura outorgada na sequência do processo de execução n.º 731/18.9T8LLE, instaurado contra a entidade então devedora, EMP01... Limited.
F) Está igualmente provado que a dita EMP01..., no tempo em que era proprietária do referido imóvel, celebrou, relativamente ao mesmo, um contrato de arrendamento com a ora R.
G) Nos termos deste contrato, ficou prevista a cessação automática do arrendamento, caso se verificasse a venda do imóvel objecto do mesmo – vd. cláusula 3.ª b) do Contrato de Arrendamento.
H) O que, como vimos, na sequência da aquisição judicial pelo BST, efectivamente aconteceu em 13.03.2020.
I) Pelo que, ocorreu então a caducidade daquele contrato, e a consequente obrigação de entrega do locado ao BST pela R.
J) O que deveria ter acontecido logo naquela data de 13.03.2020, tudo ao abrigo e com fundamento na citada cláusula 3.ª b).
K) Sucede que, a R. não entregou o imóvel locado ao BST em tal data.
L) Pelo que, a partir de então, passou a ocupar ilicitamente o dito imóvel.
M) De facto, resulta cristalino do contrato de arrendamento o seguinte: “O presente contrato cessará automaticamente em caso de venda do imóvel objecto do mesmo” – vd. cláusula 3.ª b) do Contrato junto.
N) Ora, como se notou, o BST, em 13.03.2020, adquiriu o imóvel mediante venda por negociação particular, o que fez através de escritura pública.
O) Que foi precisamente o que as partes acautelaram com a cláusula 3.ª b) sobredita, ou seja, assegurar que caso a propriedade do bem se transmitisse, o arrendamento caducaria automaticamente.
P) Tanto que não foi colocada sobre esta cláusula qualquer reserva ou condicionante – para o efeito seria aliás suficiente colocar venda voluntária, o que não sucedeu,
Q) Pelo que, qualquer interpretação limitativa da referida cláusula, ultrapassa, em muito, o que foi a declaração negocial das partes.
R) Neste sentido, qualquer interpretação que exclua a venda judicial do escopo da cláusula 3.ª b), traduzir-se-á numa violação das normas legais aplicáveis, muito em particular o art.º 236.º n.º 1, e o art.º 238.º n.ºs 1 e 2, do Código Civil, na medida em que se trata de um negócio formal.
S) A esse respeito, aliás, transcreve-se nesta sede o n.º 1 do art.º 238.º do CC: “Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.”
T) Vale por dizer: não se pode admitir, sob pena de violação das normas legais supra citadas, que a cláusula 3.ª b), que unicamente refere “venda do imóvel”, afinal quisesse referir venda voluntária, não judicial e/ou qualquer outra expressão equivalente.
U) Sendo, salvo o devido respeito, totalmente abusiva, designadamente porque não fundada em qualquer prova que tenha sido produzida a esse efeito, a conclusão da sentença recorrida (na qual a mesma se fundou para julgar improcedente o pedido principal) de que “a interpretação mais conforme da referida alínea b), da cláusula 3ª será considerar que tal cláusula foi inserida no contrato apenas para salvaguardar os interesses da Locadora que, caso pretendesse alienar voluntariamente o prédio em questão, não seria confrontada com a recusa da Locatária em entregar o prédio, escudada no contrato de arrendamento”.
V) Face ao exposto, julga-se inequívoco que o contrato de arrendamento em análise caducou na data da venda do imóvel ao BST, ou seja, em 13.03.2020.
W) Pelo que, desde essa data, a R. ocupou de forma ilícita o imóvel, na estrita medida em que o fez sem qualquer título jurídico que a habilitasse a fazê-lo e, não menos relevante, contra a vontade expressa do BST.
X) Assim sendo, a R. está obrigada a indemnizar o BST pelo seu comportamento ilícito, in casu traduzido na ocupação ilícita do imóvel, entre 13.03.2020 e 24.01.2022.
Y) Indemnização esta que o BST alegou ser no valor de € 69.000,00.
Z) Ao entender diversamente, a sentença recorrida incorreu em violação da lei, designadamente dos artºs 236.º n.º 1, e 238.º n.ºs 1 e 2, do Código Civil, o que impõe a sua revogação.
AA) Deve, pois, ser proferido acórdão que revogue a sentença recorrida, e que ordene o prosseguimento dos autos para produção de prova relativa aos prejuízos sofridos pelo BST em resultado da ocupação ilícita realizada pela A.

9. Não se mostram juntas contra-alegações.

10. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, a questão essencial a decidir consiste em saber se com a venda do imóvel no processo executivo ocorreu a cessação automática do contrato de arrendamento, por aplicação da clausula contratual 3ª, b), com as legais consequências.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. A sociedade EMP01... Limited celebrou com a ré AA acordo escrito, datado de 01.12.2013, através do qual acordou ceder-lhe para fim habitacional o prédio urbano, sito em Local 1, Local 2, freguesia Local 3, descrito na Conservatória do Registo Predial Local 4, sob o n.º...91, inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias Local 5 e Local 6, sob o art.º ...40, mediante o pagamento de uma contrapartida mensal de €500,00 (cf. doc. de fls.10/11, cujo teor se dá por reproduzido).
2. Desse acordo escrito constam as seguintes cláusulas, com relevo para a decisão:
“3ª
a) O presente contrato vigora pelo prazo de 5 anos, com início em 01 de Dezembro de 2013, e fim em 30 de Novembro de 2018, renovando-se automaticamente por períodos de 3 anos, caso não seja denunciado por nenhum dos outorgantes.
b) O presente contrato cessará automaticamente em caso de venda do imóvel objecto do mesmo” (cf. doc. de fls.10/11, cujo teor se dá por reproduzido).
3. A autora tem inscrita a seu favor, pela ap. ...10 de 13.03.2020, a aquisição do prédio urbano, sito em Local 1, Local 2, freguesia Local 3, descrito na Conservatória do Registo Predial Local 4, sob o n.º...91, inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias Local 5 e Local 6, sob o art.º ...40 (cf. doc. de fls.9vº, cujo teor se dá por reproduzido).
4. O qual adquiriu por escritura pública datada de 13.03.2020, no âmbito do processo de execução n.º 731/18.9T8LLE, em que era exequente e a executada a sociedade EMP01... Limited (cf. doc. de fls.42/54, cujo teor se dá por reproduzido).
5. Em 04.01.2021 foi proferido despacho, no referido processo de execução, com o seguinte teor:
“Na sequência do nosso despacho que indeferiu o requerido pela senhora Agente de Execução no que tange à autorização para requisitar o auxílio da força pública para entregar ao exequente o prédio adquirido pelo mesmo no âmbito da presente execução, veio o exequente “Banco Santander Totta, S. A” (Refª CITIUS 36545067), requerer que o Tribunal dê sem efeito o dito despacho, substituindo-o por outro que defira a autorização do auxílio da força pública com vista à entrega efectiva do imóvel ao exequente.
Para tanto alegou, em suma, que a questão em causa, não é questão suscitada pelo Tribunal, ou seja, se o contrato de arrendamento caducou com a adjudicação do imóvel ao exequente ou se ao invés, se mantém até ao termo previsto, ou seja, 30 de Novembro de 2021, uma vez que a cláusula terceira do contrato de arrendamento, para além da alínea a), tem uma alínea b) que estipula que o contrato de arrendamento cessa automaticamente em caso de venda do imóvel objecto do mesmo, pelo que nos termos desta alínea, acordada livremente entre as partes, o contrato de arrendamento caducou na data do imóvel ao exequente, ou seja, no dia 13 de Março de 2020.
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Respondeu a Interveniente Acidental, AA (Ref CITIUS 36729684), pugnando pelo indeferimento do requerido pelo exequente, alegando, em suma, que o contrato de arrendamento é válido até Dezembro de 2021, encontrando-se em vigor e esta não é a acção, nem a instância correcta para se discutir a validade ou cessação de um contrato de arrendamento, destinando-se esta acção apenas a proceder à cobrança executiva de uma dívida da executada ao exequente, devendo o exequente lançar mão de um processo especifico para discutir a validade do contrato de arrendamento em vigor.
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O exequente voltou a pronunciar-se (Refª CITIUS 37246484), requerendo que o Tribunal defira, com carácter de urgência, a autorização do auxílio da força pública com vista à entrega efectiva do imóvel ao exequente.
Para tanto, e para além do já alegado no requerimento anterior, alegou, em suma, que AA foi notificada do requerimento apresentado pelo exequente para se pronunciar no prazo de 10 dias, tendo recepcionado tal notificação no pretérito dia 25/09/2020, obtendo a notificação resposta de um ilustre advogado no dia 8 de Outubro, por isso, já depois de expirado o prazo de 10 dias, tendo protestado juntar procuração a seu favor, o que não foi feito até à presente data e volvidos que estão quase 2 meses sobre este requerimento (extemporâneo e sem mandato) o exequente continua impedido de tomar posse do prédio de que é proprietário, ocupado por alguém que não tem qualquer título para o ocupar e quem vem utilizando manobras dilatórias para impedir a entrega efectiva do bem, e o prédio em questão não é nem foi casa de morada de família.
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Cumpre apreciar e decidir.
Em primeiro lugar, diga-se que o Tribunal quando proferiu o despacho datado de 16/09/2020 leu com atenção todo o contrato de arrendamento junto aos autos, nomeadamente a alínea b), da cláusula 3ª que tem a seguinte redacção “O presente contrato cessará automaticamente em caso de venda do imóvel objecto do mesmo”, de resto como é seu dever.
A questão que se coloca é saber se tal cláusula que vincula as partes outorgantes do contrato, a saber: a executada “EMP01... Limited”, na qualidade de locadora e a Interveniente Acidental, AA, na qualidade de locatária, tem aplicação no caso de venda forçada, como sucedeu (venda no âmbito de um processo de execução, efectuada pelo Tribunal).
A nosso ver, salvo o devido respeito por opinião contrária, o contrato de arrendamento em causa cessaria automaticamente, caso a Locadora, a aqui executada “EMP01... Limited” vendesse voluntariamente o prédio objecto do contrato, sendo uma cláusula manifestamente protectora dos direitos da Locadora, aceite pelas partes livremente, no âmbito da autonomia da vontade, mas não se nos afigura que as partes(Locadora e Locatária) quando inseriram tal cláusula no contrato tenham previsto a venda forçada do imóvel, pretendendo com a inserção da mesma no contrato salvaguardar interesses de terceiros, nomeadamente adquirente no âmbito de uma acção executiva.
A nosso ver, do que se trata é de interpretar o contrato celebrado, nomeadamente a referida alínea b), da cláusula 3ª e a nosso ver, a interpretação mais conforme, será considerar que tal cláusula foi inserida no contrato apenas para salvaguardar os interesses da Locadora que caso pretendesse alienar voluntariamente o prédio em questão, não seria confrontada com a recusa da Locatária em entregar o prédio, escudada no contrato de arrendamento.
Porque é assim, a nosso ver, tratando-se de uma venda forçada, efectuada pelo Tribunal, no âmbito de uma acção executiva, não tem aplicação o disposto na alínea b), da cláusula 3ª do contrato, no qual não foi o exequente/adquirente, interveniente, pelo que se aplica o regime geral, de acordo com o qual, conforme já se deixou dito no nosso anterior despacho, o contrato de arrendamento não caducou com a adjudicação do prédio ao exequente, sendo o seu termo previsto para 30 de Novembro de 2021, razão pela qual, a Interveniente Acidental AA, dispõe de titulo válido (contrato de arrendamento) para ocupar o prédio, inexistindo qualquer fundamento legal para que seja autorizada a requisição do auxílio da força pública para forçá-la a abandonar o prédio.
Pelo exposto, sem necessidade de mais considerandos, por falta de fundamento legal, infere-se o requerido pelo exequente/adquirente.
Notifique, sendo também a senhora Agente de Execução.” (cf. doc. de fls.42/54, cujo teor se dá por reproduzido).
6. Através de notificação judicial avulsa a autora opôs-se à renovação do contrato de arrendamento, com efeitos a 30.11.2021 (cf. doc. de fls.16/22vº, cujo teor se dá por reproduzido).
7. A autora não recebeu da ré qualquer valor a título de renda.
8. No ano de 2020 a autora solicitou à ré a entrega do prédio urbano identificado em 1.
9. A ré entregou à autora o prédio urbano identificado em 1. no dia 24.01.2022.
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B) – O Direito
1. Como resulta das conclusões do recurso, a questão decidenda consiste em saber se a cláusula constante da alínea b) da cláusula 3ª do contrato de arrendamento – onde se estipulou que “[o] presente contrato cessará automaticamente em caso de venda do imóvel objecto do mesmo”, que vincula as partes outorgantes do contrato [EMP01... Limited, na qualidade de locadora e AA, na qualidade de locatária] –, tem aplicação no caso de venda forçada, como sucedeu com a venda no âmbito do processo de execução.
A esta questão responderam negativamente, não só o Tribunal da execução, como se dá nota no ponto 5 dos factos provados, como esta Relação, que, por acórdão de 17/06/2021 (proc. n.º 731/18.9T8LLE-B.E1), disponível como os demais citados, sem outra referência, em www.dgsi.pt, confirmou aquela decisão, sendo que a sentença agora aqui sob recurso seguiu idêntica fundamentação.
O recorrente discorda, aduzindo argumentação, no essencial, idêntica à invocada no dito processo de execução, onde foi proferida a primeira decisão quanto a esta questão, que, no entanto, como decidido no acórdão de 28/06/2023, não constituiu caso julgado material, pois, estava em causa decisão de questão incidental, “… e, como tal, não obsta a que se discuta nos presentes autos a caducidade do contrato de arrendamento, enquanto pressuposto constitutivo do pedido de indemnização pela ocupação ilícita do imóvel, formulado pelo Autor a título principal.”

2. Apreciando a questão da caducidade do contrato por via da cláusula contratual em apreço, concluiu-se na decisão recorrida que a venda forçada na execução não estava abrangida pelo âmbito de aplicação da dita cláusula, com a seguinte fundamentação, que parcialmente se transcreve:
«…, ficou apurado que a ré celebrou com a anterior proprietária, a sociedade EMP01... Limited, um contrato de arrendamento, conforme documento junto a fls.10/11, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
A locação, que é apelidada de arrendamento quando incida sobre bem imóvel, é o contrato pelo qual uma das partes de obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição (art.ºs 1022.º e 1023.º do Código Civil).
No caso dos autos, face à data em que foi celebrado o contrato de arrendamento, o mesmo não caducou com a venda judicial (art.º 824.º do Código Civil).
Porém, estatui a alínea b), da cláusula 3ª, deste contrato de arrendamento que “O presente contrato cessará automaticamente em caso de venda do imóvel objecto do mesmo”.
Como se escreveu no despacho proferido no âmbito da acção executiva intentada pela aqui autora contra a Locatária financeira, confirmado pelo Ac. do TRE de 17 de Junho de 2021 junto aos autos, não se afigura que as partes (Locadora e Locatária), quando inseriram tal cláusula no contrato, tivessem em mente a venda forçada do imóvel, pretendendo com a sua inserção a salvaguardar interesses de terceiros, nomeadamente adquirente no âmbito de uma acção executiva.
Na verdade, recorrendo às regras de interpretação dos contratos, plasmadas nos artºs 236.º a 238.º do Código Civil, a interpretação mais conforme da referida alínea b), da cláusula 3ª será considerar que tal cláusula foi inserida no contrato apenas para salvaguardar os interesses da Locadora que, caso pretendesse alienar voluntariamente o prédio em questão, não seria confrontada com a recusa da Locatária em entregar o prédio, escudada no contrato de arrendamento.
Ou seja, trata-se de uma cláusula manifestamente protectora dos direitos da Locadora, aceite pelas partes livremente, no âmbito da autonomia da vontade, que não teve em vista ou consideração eventuais direitos de terceiros, como o caso da aqui autora.
E como ali se refere “(…) tratando-se de uma venda forçada, efectuada pelo Tribunal, no âmbito de uma acção executiva, não tem aplicação o disposto na alínea b), da cláusula 3ª do contrato, no qual não foi o exequente/adquirente, interveniente, pelo que se aplica o regime geral, de acordo com o qual o contrato de arrendamento não caducou com a adjudicação do prédio ao exequente, sendo o seu termo previsto para 30 de Novembro de 2021”.
O que leva a concluir que o contrato de arrendamento não caducou e a ré AA dispunha de título válido para manter a ocupação do prédio adquirido pela autora.
Donde, soçobra a pretensão da autora formulada a título principal, com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento celebrado com a ré.»

3. E desde já se adianta que se concorda com este entendimento, que se nos afigura ser o único compatível com a letra da cláusula, no contexto em que é inserida, por acordo dos contraentes, e a razão de ser da sua inclusão.
De facto, uma tal cláusula (3.ª-b)), fortemente redutora dos direitos do arrendatário, em derrogação das regras de cessação do contrato legalmente previstas, e não questionando o arrendatário, aqui R., a sua validade face ao regime legal vigente, só se compreende por acordo de ambas as partes intervenientes no contrato, o que, aliás, resulta da contestação.
Porém, da factualidade dada como provada não é possível extrair o sentido da vontade real dos outorgantes do contrato de arrendamento, pelo que há que fazer apelo das normas relativas à interpretação das declarações negociais, previstas nos artigos 236º a 238º do Código Civil:
«Artigo 236.º
(Sentido normal da declaração)
1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Artigo 237.º
(Casos duvidosos)
Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
Artigo 238.º
(Negócios formais)
1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.»

4. Ora, como se refere no acórdão dessa Relação, de 17/06/2021 (proc. n.º 731/18.9T8LLE-B.E1), já referido:
«Rui Pinto Duarte [A Interpretação dos Contratos, 2017, Almedina, pp. 54-55] sintetiza os conteúdos relevantes em matéria de interpretação da seguinte forma:
- Em geral, se se conhecer a vontade real dos declarantes, a declaração vale de acordo com a mesma (artigo 236.º, n.º 2);
- No tocante a negócios formais, o sentido a atribuir à declaração tem de ter um mínimo de correspondência no texto (artigo 238.º, n.º 1), não se aplicando tal exigência se for conhecida a vontade real dos declarantes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a tal validade (artigo 238.º, n.º 2);
- Não se conhecendo a vontade real dos declarantes, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, na posição do real declaratário, atribua à declaração (artigo 236.º, n.º 1);
- Em caso de dúvida, se tratar de negócio oneroso, prevalece o sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações e se tratar de negócio gratuito o sentido que for menos gravoso para o disponente (artigo 237.º).
Como sintetiza Carlos Ferreira de Almeida [Contratos IV, 2018, Almedina, p. 320], no contexto dos preceitos sobre interpretação dos negócios jurídicos, “vontade” não equivale a desejo, propósito ou aspiração, antes tendo o valor de “intenção” significativa de ser relevante e de intenção de ser compreendido”.
Diz-nos ainda Rui Pinto [Obra citada, p. 56] que sendo “o contrato um acordo de vontades (artigo 232.º), há que buscar a “vontade comum”, não apenas a vontade de cada um dos intervenientes” e que se deve ir buscar a chamada vontade real dos contraentes e só se nada apurar quanto à mesma é que se aplicam as restantes regras.»
E, como se refere no mesmo aresto, «[o] STJ tem seguido o critério segundo o qual qualquer elemento de um conjunto deve ser interpretado enquanto tal, isto é, no seu contexto.»
Assim, entre outros, no acórdão de 05/072012 (proc. n.º 1028/09.0TVLSB.L1.S1), entendeu-se que:
«I - Na interpretação de um contrato, ou seja, na fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes, deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo.
II - Em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, é dada prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, mas a lei não se basta apenas com o sentido por este apreendido e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia (art. 236.º do CC).
III - No domínio da interpretação de um contrato há que recorrer, para a fixação do sentido das declarações, nomeadamente à letra do negócio, às circunstâncias que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos, os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento) e a finalidade prosseguida.
IV - Embora não inseridas no objecto do recurso, o STJ pode conhecer excepcionalmente de questões, ainda que adjectivas, se estiverem intimamente ligadas ao mérito, como sucede nas previstas no n.º 3 do art. 729.º CPC. (…)»
E no acórdão de 16/04/2013 (proc. n.º 2449/08.1TBAF.G1.S1), concluiu-se que: «Na interpretação de um contrato, a efectuar de acordo com as normas previstas nos arts. 236.º a 238.º do CC, deve buscar-se não apenas o sentido das declarações negociais separadas e alheadas do seu contexto negocial global, mas procurar-se o sentido juridicamente relevante daquele contexto, atendendo, em especial, à letra do negócio, às circunstâncias de tempo, lugar e outras que antecederam a celebração do contrato ou são contemporâneas das mesmas, às negociações entabuladas pelas partes e às finalidades por elas prosseguidas, ao próprio tipo negocial, à lei, aos usos e costumes, e à posição assumida pelas partes na concretização do negócio.»
Assim, como se refere no citado aresto desta Relação, de 17/06/2021, que aqui vimos seguindo de perto, «… há a considerar que “o sentido relevante da declaração apura-se no seu contexto. A lei não limita, em regra, os elementos ou circunstâncias susceptíveis de serem levados em conta na interpretação. Apenas exige, no caso dos negócios formais, que o resultado interpretativo apurado tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (artigo 238.º). Não se provando o sentido da vontade real dos declarantes aplica-se o critério normativo objectivo do n.º 1 do artigo 236.º, em princípio, a declaração vale como o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, poderia deduzir do comportamento do declarante; ou, numa formulação próxima, vale com o sentido que o declaratário real lhe daria se fosse uma pessoa razoável, diligente de boa fé. O padrão do declaratário normal é o de um declaratário razoável, que se pauta pelos ditames da boa fé, medianamente experiente e informado, inteligente e diligente, do mesmo tipo do declaratário real.” [Evaristo Mendes/Fernando Sá, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, pp. 537 e 540].».

5. Com relevância para a decisão importa, pois, considerar as cláusulas contratuais 3ª e 12ª do contrato de arrendamento em causa, que têm o seguinte teor [em destaque a cláusula em apreciação]:
“3ª
a) O presente contrato vigora pelo prazo de 5 anos, com início em 01 de Dezembro de 2013, e fim em 30 de Novembro de 2018, renovando-se automaticamente por períodos de 3 anos, caso não seja denunciado por nenhum dos outorgantes.
b) O presente contrato cessará automaticamente em caso de venda do imóvel objecto do mesmo.
“12ª
Senhoria e Inquilina, caso pretendam denunciar o contrato no seu termo, poderão fazê-lo através dos meios legalmente previstos para o efeito, desde que observem o prazo mínimo previsto na legislação aplicável, à excepção da situação prevista na alínea b) da cláusula 3ª, caso em que o contrato cessará automaticamente sem necessidade de pré-aviso”.
Ora, apelando às regras acima enunciadas de interpretação da vontade negocial das partes, não se concebe que, com o referido clausulado, se pretendesse abarcar a venda forçada, no caso em processo executivo, do imóvel.
Com tal cláusula, temos por manifesto que se pretendeu dar de arrendamento o imóvel acautelando-se a possibilidade da sua venda futura, desonerado do arrendamento celebrado, que lhe diminuiria o seu valor.
Trata-se de cláusula, aceite pelas partes, no âmbito da autonomia da vontade, fortemente protectora dos interesses do locador, que tem em vista evitar que, em caso de venda do imóvel, seja o locador confrontado com a recusa do locatário em entregar o prédio, escudando-se no contrato de arrendamento, não se nos afigurando que, quando as partes inseriram a referida cláusula no contrato, em 01/12/2013, tenham sequer previsto a venda forçada do imóvel, pretendendo com a inserção da mesma salvaguardar interesses de terceiros, nomeadamente os decorrentes da aquisição em acção executiva.
Este é o sentido da declaração negocial que um normal declaratário, colocado na posição do real declaratário atribui à declaração, pois entenderia tal declaração como referindo-se à “normal” venda voluntária, que é o sentido com que normalmente se fala de venda, e não de venda coerciva.
E não se argumente que esta interpretação não tem correspondência no texto, pois a cláusula refere-se à caducidade do arrendamento em caso de “venda” e esta tem que ser entendida no contexto do contrato de arrendamento em causa e em face da intenção protectora da posição do locador, como referindo-se à “normal” e comum venda voluntária, e não à venda coerciva.

6. Por conseguinte, a cláusula de caducidade da alínea b) da cláusula 3ª do contrato de arrendamento não se aplica à venda forçada do locado, pelo que o arrendamento não caducou com a venda judicial [não tendo também caducado por via da aplicação do artigo 824º do Código Civil, face à data em que foi celebrado, como se diz na sentença recorrida, questão esta que não está em discussão no presente recurso], não tenho o A., por esta via, direito a ser indemnizado pela ocupação “indevida” do locado, como pretendia.
Deste modo, improcede a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
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Évora, 16 de Dezembro de 2024
Francisco Xavier
Elisabete Valente
Mário Branco Coelho
(documento com assinatura electrónica)