I - Os tribunais portugueses, tomados no seu conjunto, relativamente a situações jurídicas que apresentam elementos de conexão com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, podem receber competência internacional por efeito de aplicação de normas de regulamentos europeus, de normas de outros instrumentos internacionais ou de normas de direito interno, sendo que aquelas, por força do disposto no artigo 8º, nºs 3 e 4 da Constituição da República, no seu campo específico de aplicação, prevalecem sobre as normas processuais portuguesas, nomeadamente sobre as normas reguladoras da competência internacional constantes do Código de Processo Civil.
II - Quando se esteja em presença de um contrato plurilocalizado celebrado entre uma sociedade portuguesa e uma sociedade italiana, será aplicável o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial (também denominado Regulamento Bruxelas I bis), contanto que a ação respeite a um litígio que se enquadre no respetivo âmbito material (cfr. art. 1º), temporal (cfr. arts. 66º e 81º), territorial (cfr. art. 68º) e subjetivo ou espacial (cfr. arts. 3º, nº 1 e 63º).
III - À luz desse Regulamento, não resultando dos termos do contrato que as partes tenham celebrado convenção sobre o foro competente, a ação tanto pode ser intentada no lugar do domicílio do demandado domiciliado no território de um Estado-Membro (art. 4º), como no do lugar do cumprimento da obrigação (art. 7º, nº 1).
IV - O referido Regulamento adotou um conceito autónomo de lugar do cumprimento para as ações fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço).
V - Nessa tarefa qualificativa o Tribunal de Justiça da União Europeia vem recorrentemente entendendo que, para o efeito do artigo 7º, nº 1, al. b) do Regulamento, devem ser catalogados como de «venda de bens» os contratos cujo objeto é a entrega de bens a fabricar ou a produzir, mesmo que o comprador tenha formulado determinadas exigências a respeito da obtenção, da transformação e da entrega dos bens, sem que os materiais tenham sido por ele fornecidos, e mesmo que o fornecedor seja responsável pela qualidade e pela conformidade do bem com o contrato.
VI - Como assim, os tribunais portugueses carecem de competência internacional para a preparação e julgamento de um litígio emergente de contrato celebrado entre uma sociedade portuguesa e uma sociedade italiana, tendo esse negócio por objeto a produção ou fabrico de calçado pela primeira, segundo especificações e instruções da segunda, que os encomendou àquela para vender a terceiros, mercadoria essa a entregar nas instalações da demandada, sitas em Itália.
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. António Mendes Coelho
2ª Adjunta Desª. Teresa Sena Fonseca
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I – RELATÓRIO
“A..., Ldª”, com sede na Rua ..., ..., ... ..., intentou a presente ação declarativa sob a forma comum contra “B...”, com sede Via ..., ... ... a ..., Itália, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 161.774,58 €, acrescida de juros de mora, contados desde a data de vencimento de cada uma das faturas até efetivo e integral pagamento.
Para substanciar tal pretensão alegou, em síntese, que desenvolveu, fabricou e entregou à ré, sob encomenda, especificações e instruções desta, que recebeu daquela, calçado no valor de €170.707,11.
Acrescenta que, apesar de ter recebido a mercadoria e de não ter reclamado de nenhum defeito ou inexatidão da mesma, a ré apenas procedeu ao pagamento da quantia de €8.932,53, mostrando-se por liquidar a sobredita importância de €161.774,58.
Regularmente citada, a ré não contestou, vindo, contudo, a apresentar requerimento autónomo no qual invoca a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses, porquanto, tendo as partes celebrado um contrato de compra e venda, e uma vez que quer o seu domicílio, quer o local de cumprimento relevante (lugar da entrega dos bens) se situam em Itália, serão os tribunais desse país os competentes para a preparação e julgamento da presente ação, à luz do disposto nos arts. 4º, nº 1 e 7º, nº 1, al. a) do Regulamento (EU) nº 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012.
Respondeu a autora argumentando que o contrato firmado entre as partes assume natureza de contrato de prestação de serviços e não de compra e venda, razão pela qual, de acordo com as regras vertidas no referido instrumento normativo, os tribunais portugueses são dotados de competência internacional para a apreciação da demanda, por se situar no nosso país o local onde foi prestado o serviço de fabrico do calçado.
Foi, então, prolatada sentença na qual se afirmou a competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento do litígio, condenando-se igualmente a ré no pedido formulado pela autora.
Inconformada com o aludido ato decisório veio a ré interpor o presente recurso, admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
A. A factualidade dada como provada nos presentes autos corresponde – e esgota-se –, nos factos sob os artigos 1.º a 9.º da P.I.
B. A origem da matéria prima usada pela Autora no fabrico/produção do calçado não foi alegada pela Autora e/ou objeto de prova pela Autora e/ou valorizada pelo Tribunal a quo.
C. O presente recurso jurisdicional vem interposto da Sentença do Tribunal a quo que julgou os Tribunais Portugueses internacionalmente competentes para julgar a presente causa.
D. Entendeu o Tribunal a quo, em suma, que, à luz do critério especial e alternativo de competência, previsto na segunda parte, da alínea b), do número 1, do artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2012, (doravante abreviadamente designado de “Regulamento UE 1215”), o tribunal do lugar onde “os serviços foram ou devam ser prestados” (Portugal) é – a par do tribunal do domicílio da Ré (Itália) –, internacionalmente competente para conhecer da presente ação.
E. A fundamentar a atrás referida decisão, está o entendimento do Tribunal a quo, em como, na situação dos autos, a relação estabelecida entre Autora e Ré reúne todos os elementos típicos do contrato de empreitada, modalidade dos contratos de prestação de serviços, que o Regulamento UE 1215 não define e que, como tal, deverá aferir-se através da aplicação do nosso direito interno, em concreto através das definições estabelecidas nos artigos 1207.º e 1155.º do Código Civil português.
F. Sucede que, e conforme posição unanime da jurisprudência nacional e comunitária, a classificação de uma relação contratual como de “prestação de serviços” ou de “compra e venda” – e consequente determinação do lugar do cumprimento para efeitos do referido número 1, do artigo 7.º do Regulamento UE 1215 –, não deve ser feita a partir das disposições e/ou da aplicação do nosso direito interno, mas antes a partir da aferição da caraterística-nuclear e relevante da obrigação tal como prevista e contratada pelas partes.
G. Ou seja, o julgador-intérprete, em vez de partir para a identificação da relação contratual à luz do seu direito interno, qualificando-a, de imediato, como de prestação de serviços ou de compra e venda, deve, antes, aferir da caraterística-nuclear e relevante da obrigação tal como prevista e contratada pelas partes e só depois determinar se, para efeitos de aferição do lugar de cumprimento no âmbito do Regulamento UE 1215, deverá relevar o lugar onde foram prestados ou o lugar onde foram entregues.
H. Revertendo ao caso em apreço, o Tribunal a quo julgou como provado que a Autora se obrigou, mediante solicitação e encomenda da Ré, a produzir e a entregar a esta certa quantidade de calçado, o que fez, tendo o calçado sido fabricado e entregue à Ré, em Itália.
I. A caraterística-nuclear e relevante da obrigação, tal como prevista e contratada pelas partes, e dada como provada pelo Tribunal a quo é, assim, a venda de bens, pelo que, nos termos e para efeitos de aplicação dos critérios de competência previstos artigo 7.º do Regulamento UE 1215, enquanto conceitos autónomos, aferidos exclusivamente no âmbito do Regulamento UE 1215 e demais normativos comunitários, que não o nosso direito interno, releva, tão-só, o lugar de cumprimento da obrigação de entrega, in casu, Itália.
J. Neste sentido, decidiram, meramente a título de exemplo, o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 10/12/2020, no âmbito do processo n.º 1608/19.6T8GMR.G1.S1, ou, ainda, o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 18/12/2018, no âmbito do processo n.º 2513/17.6T8PNF.P1 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt.).
K. E ainda, e por todos, o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 14/12/2017, no âmbito do processo n.º 143378/15.0YIPRT.G1.S1, (igualmente disponível em www.dgsi.pt.), que decidiu, em termos que não deixam dúvidas, o seguinte:
“V - A interpretação autónoma da al. b) do n.º 1 do art. 7.º do Regulamento n.º 1215/2012, tal como se entendia à luz de idêntico preceito constante do art. 5.º, n.º 1, al. b), do Regulamento n.º 44/2001, com a finalidade de identificar a obrigação característica dos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, deve fazer-se “à luz da génese, dos objetivos e da sistemática do regulamento”.
VI - Ambos os Regulamentos se afastaram do regime definido pela Convenção de Bruxelas de 1968, relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, ao tomar como referência, quanto aos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, já não a obrigação controvertida na ação, mas antes a obrigação característica do contrato, impondo uma definição autónoma do “lugar de cumprimento enquanto critério de conexão ao tribunal competente em matéria contratual”.
VII - O TJUE já foi confrontado por mais de uma vez com a necessidade de encontrar critérios de qualificação, nomeadamente para situações nas quais se combinam, num mesmo contrato, fornecimento de bens com prestação de serviços pelo fornecedor, relativos à produção dos próprios bens, como sucede no caso dos autos.
VIII - Estando em causa nos autos contratos que têm como objeto a venda de bens a produzir ou fabricar pelo vendedor, segundo modelos ou protótipos, definidos pela ré, que os encomendou à autora para vender a terceiros, a entregar em Espanha, os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para julgar a presente acção pois, quer o domicílio (sede) da ré, quer o local de cumprimento relevante – lugar da entrega dos bens – se situam em Espanha, (n.º 1 do art. 4.º, non.º 1 do art. 5.º e na al. b), segundo travessão, do n.º 1 do art. 7.º do Regulamento n.º 1215/2012).” (sublinhado e realce nosso).
L. Daqui decorre, pelos fundamentos supra expostos, que a relação jurídica entre a Autora e Ré – para efeitos do Regulamento UE 1215 –, deve ser equiparada a um contrato de compra e venda, pelo que, e também ao abrigo do critério especial e alternativo de competência disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 7.º do Regulamento UE 1215, o lugar do cumprimento é, in casu, o “lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues”, ou seja, em Itália.
M. Em razão do exposto, errou o Tribunal a quo ao julgar competentes os Tribunais Portugueses para decidir a presente ação, sendo manifesto o erro de julgamento perpetrado na sentença recorrida relativamente à interpretação e aplicação do critério de determinação do lugar de cumprimento da obrigação previsto na alínea b), número 1, do artigo 7.º, do citado Regulamento UE 1215.
N. Em termos que ditam a necessária revogação da sentença recorrida, com a sua substituição por outra que declare a incompetência internacional dos Tribunais portugueses para julgar a presente ação, absolvendo, consequentemente, a Ré da instância, tudo nos termos e ao abrigo dos artigos 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1 e 278.º, n.º 1, alínea a), todos do C.P.C.
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, a questão solvenda traduz-se em saber se, in casu, os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes para a preparação e julgamento da presente ação.
III- FUNDAMENTOS DE FACTO
A materialidade a atender para efeito de apreciação do objeto do presente recurso é a que dimana do antecedente relatório, sendo que em resultado da ausência de contestação da ré, por mor do disposto no art. 567º, nº 1 do Cód. Processo Civil, consideram-se provados os seguintes factos:
1º
A Autora dedica-se ao fabrico de calçado de couro e pele.
2º
No exercício da sua atividade, a Autora desenvolveu, fabricou e entregou à Ré, sob encomenda, especificações e instruções desta, que recebeu daquela, o calçado melhor discriminado nas seguintes faturas:
- Fatura n.º 281 de 15/10/2021 no valor de 11.632,53 €;
- Fatura n.º 329 de 26/11/2021 no valor de 26.556,29 €;
- Fatura n.º 333 de 06/12/2021 no valor de 27.126,54 €;
- Fatura n.º 344 de 13/12/2021 no valor de 42.177,89 €;
- Fatura n.º 353 de 22/12/2021 no valor de 6.161,27 €;
- Fatura n.º 58 de 22/02/2022 no valor de 19.002,06 €;
- Fatura n.º 89 de 31/03/201 no valor de 19.797,85 €;
- Fatura n.º 101 de 04/04/2022 no valor de 9.746,68 €;
- Fatura n.º 20 de 28/06/2022 no valor de 4.822,50 €; e
- Fatura nº 21 de 28/06/2021 no valor de 3.683,50 €.
3º
O preço global do calçado confecionado e entregue pela Autora à Ré, e por esta recebido, ascendeu ao montante global de 170.707,11 €.
4º
Todo o calçado foi fabricado pela Autora de acordo com as especificações fornecidas pela Ré e conforme as amostras confecionadas pela Autora e aprovadas pela Ré,
5º
sendo certo que foram inspecionados e aceites pela Ré, quer quanto à quantidade, quer quanto à qualidade e nenhum defeito ou inexatidão foi por aquela reclamado à Autora.
6º
A Ré recebeu o referido calçado, que comercializou e de onde retirou proventos,
7º
sendo certo que a Ré apenas pagou à Autora o montante de 8.932,53 €, por conta da fatura nº 281, de 15 de outubro de 2021.
8º
A Ré, apesar de reconhecer o valor em dívida à Autora, não se dignou efetuar o seu pagamento, apesar de instada por variadíssimas vezes.
IV– FUNDAMENTOS DE DIREITO
Tendo em conta a forma como nela se mostram definidos os elementos subjetivos e objetivos da instância, a presente ação apresenta conexão com duas ordens jurídicas distintas - a portuguesa e a italiana - colocando-se, pois, uma questão de competência internacional para a sua preparação e julgamento a dirimir nos termos previstos nos arts. 59º, 62º e 63º, do Cód. Processo Civil.
Dispõe o art. 59º que «[s]em prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63 ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º.»
Em consonância com o transcrito normativo, os tribunais portugueses, tomados no seu conjunto[1], relativamente a situações jurídicas que apresentam elementos de conexão com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, podem receber competência internacional por efeito de aplicação de normas de regulamentos europeus, de normas de outros instrumentos internacionais ou de normas de direito interno, sendo que aquelas, por força do disposto no art. 8º, nºs 3 e 4 da Constituição da República, no seu campo específico de aplicação, prevalecem sobre as normas processuais portuguesas, nomeadamente sobre as normas reguladoras da competência internacional constantes do Código de Processo Civil.
A competência internacional dos tribunais portugueses depende, assim, e em primeira linha, do que estipulem as convenções internacionais ou os regulamentos europeus.
No caso, estando-se em presença de um contrato plurilocalizado celebrado entre uma sociedade portuguesa e uma sociedade italiana, é aplicável o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial [também denominado Regulamento Bruxelas I bis], posto que a presente ação respeita a um litígio que se enquadra no respetivo âmbito material[2] (cfr. art. 1º), tal como se enquadra no seu âmbito temporal[3], territorial (cfr. art. 68º) e subjetivo ou espacial (cfr. arts. 3º, nº 1 e 63º).
Este instrumento normativo de direito comunitário estabelece, como regra, para determinar a competência internacional do tribunal, a do domicílio, dispondo o nº 1 do seu art. 4º que «[S]em prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado».
Essa regra, contudo, não é absoluta, prevendo o Regulamento critérios especiais de determinação da competência, que podem afastar a regra geral do domicílio, como resulta do seu art. 5º, nº 1, onde se prescreve que «[A]s pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro só podem ser demandadas perante os tribunais de outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo».
Dentre essas regras importa considerar, no que ao caso releva, a que se mostra plasmada no art. 7º (Secção 2), nos termos do qual «[A]s pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: 1. a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão; b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será: - no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues; - no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados; c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)”.
Significa isto que, não resultando dos termos do contrato que as partes tenham celebrado convenção sobre o foro competente, a ação tanto pode ser intentada no lugar do domicílio do demandado domiciliado no território de um Estado-Membro (art. 4º do Regulamento), como no do lugar do cumprimento da obrigação (no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, e no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados). Portanto, esses critérios especiais são concorrentes (ou alternativos) com o critério geral do domicílio do réu.
Na espécie, o decisor de 1ª instância, convocando o disposto no citado art. 7º, nº 1, al. b), 2º travessão, afirmou a competência internacional dos tribunais portugueses para a preparação e julgamento da presente ação por considerar que, assumindo o negócio firmado entre as partes natureza de contrato de prestação de serviços, o local onde estes foram prestados se situa no nosso país.
É precisamente contra esse segmento decisório que se rebela a apelante sustentando que, ao invés do entendimento sufragado pelo juiz a quo, o ajuizado contrato reveste natureza de contrato de compra e venda, razão pela qual, à luz do preceituado no transcrito art. 7º, serão igualmente os tribunais italianos os internacionalmente competentes por se situar em Itália o lugar onde o calçado transacionado deveria ser entregue.
Que dizer?
Tal como o problema se mostra equacionado tudo se resume, pois, em saber que tipo de contrato foi celebrado entre as partes: se um contrato de prestação de serviços (como entendeu o decisor de 1ª instância) ou antes um contrato de compra e venda (como preconiza a apelante), já que, como se deu nota, para determinação do “lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”, relevará, consoante a qualificação que se faça desse negócio, ou o local da entrega dos bens (no caso da compra e venda) ou o do respetivo fabrico (na hipótese de contrato de prestação de serviços).
No ato decisório sob censura operou-se a qualificação jurídica do contrato firmado entre as litigantes tendo por referência as normas de direito interno, concretamente os arts. 874º e 1207º do Cód. Civil.
Ora, conforme vem constituindo entendimento pacífico na jurisprudência, quer do Tribunal de Justiça da União Europeia[4] (TJUE), quer dos tribunais nacionais, mormente do STJ[5]-[6], o Regulamento n.º 1215/2012 (tal como o anterior Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, que aquele revogou), adotou um conceito autónomo[7] de lugar do cumprimento para as ações fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço) e relevantes para fundamentar uma conexão do contrato com um lugar que, por um lado, seja suficientemente forte para justificar a competência alternativa com aquela que cabe ao Estado do domicílio do demandado (cfr. considerando 16 do Regulamento n.º 1215/2012[8]) e, por outro lado e por isso mesmo, suficientemente segura para permitir determinar com certeza qual é o Estado cujos tribunais são competentes para julgar qualquer pretensão resultante do mesmo contrato.
De igual modo a mencionada casuística vem assinalando que a interpretação autónoma da referida alínea b) do nº 1 do art. 7º do Regulamento, com a finalidade de identificar a obrigação caraterística dos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, deve fazer-se “à luz da génese, dos objetivos e da sistemática” desse instrumento normativo, o que, como se enfatiza no acórdão do TJUE de 16 de junho de 2016[9], é imposto por “exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição de direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados-Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União Europeia, interpretação essa que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa”.
Postas tais considerações, revertendo ao caso em apreço, cumpre então determinar se o ajuizado contrato deve, à luz do Regulamento nº 1215/2012 (e não do direito interno, como indevidamente entendeu o decisor de 1ª instância), ser qualificado como compra e venda ou como prestação de serviços, tendo por base o substrato factual que logrou demonstração.
Assim, apelando à materialidade provada, dela resulta estarmos em presença de um contrato que tem por objeto mediato a produção ou fabrico de calçado pela autora, segundo especificações e instruções da ré, que os encomendou àquela para vender a terceiros, mercadoria essa a entregar (como se extrai das faturas juntas com a petição inicial) nas instalações da demandada, sitas em Itália.
Sobre os critérios a atender nessa tarefa qualificativa o TJUE já por diversas vezes foi convocado a pronunciar-se sobre essa temática, nomeadamente para situações, como a presente, nas quais se combinam, num mesmo contrato, fornecimento de bens com prestação de serviços pelo fornecedor, relativos à produção dos próprios bens.
De acordo com a doutrina que adrede vem sendo firmada por esse Tribunal[10], o art. 7º, nº 1, al. b) do Regulamento deve ser interpretado no sentido de que os contratos cujo objeto é a entrega de bens a fabricar ou a produzir, mesmo que o comprador tenha formulado determinadas exigências a respeito da obtenção, da transformação e da entrega dos bens, sem que os materiais tenham sido por ele fornecidos, e mesmo que o fornecedor seja responsável pela qualidade e pela conformidade do bem com o contrato, devem ser qualificados de «venda de bens», na aceção desse normativo.
Considera-se, portanto, que “para determinar a obrigação característica de um contrato cujo objeto é a entrega de bens a fabricar ou a produzir, quando o comprador tenha formulado determinadas exigências a respeito da obtenção, da transformação e da entrega dos bens, o facto de o bem a entregar ter de ser fabricado ou produzido previamente não altera a qualificação do contrato em causa como contrato de compra e venda. Além disso, outros elementos como, por um lado, o não fornecimento de materiais pelo comprador, e, por outro, a responsabilidade do fornecedor pela qualidade e pela conformidade do bem constituem indícios a favor de uma qualificação desse contrato como contrato de venda de bens, não sendo, todavia, elementos essenciais para o efeito”.
Sob esse enfoque, perante o mencionado quadro factual, impõe-se qualificar o contrato celebrado entre autora e ré como contrato de compra e venda, na aceção do art. 7º, nº 1, al. b), primeiro travessão.
Daí emerge que, para os efeitos desse instrumento normativo de direito comunitário (cfr. arts. 4º, nº 1, 5º, nº 1 e 7º, nº 1, als. a) e b), 1º travessão), os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para preparar e julgar a presente ação, porquanto, quer o domicílio (sede) da ré, quer o local de cumprimento relevante – lugar da entrega dos bens – se situam em Itália.
Consequentemente, por incompetência absoluta dos tribunais nacionais, terá a ré/apelante de ser absolvida da instância (arts. 96º, al. a), 99º, nº 1 e 278º, nº 1 al. a), todos do Cód. Processo Civil), impondo-se, por isso, a procedência do recurso.
V- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida, em consequência do que se absolve a ré da instância.
Custas, em ambas as instâncias, a cargo da apelada (art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Processo Civil).
Porto, 11/12/2024.
Miguel Baldaia de Morais
Mendes Coelho
Teresa Fonseca
_____________________________
[1] Por isso, como sublinha TEIXEIRA DE SOUSA (in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1999, págs. 93 e seguinte), as regras sobre a competência internacional “não são, consideradas em si mesmas, normas de competência, porque não se destinam a aferir qual o tribunal concretamente competente para apreciar o litígio, mas apenas a definir a jurisdição na qual se determinará, então com o recurso a verdadeiras regras de competência, qual o tribunal competente para essa apreciação. Dada esta função, as normas de competência internacional podem ser designadas por normas de receção, pois que visam somente facultar o julgamento de um certo litígio plurilocalizado pelos tribunais de uma jurisdição nacional.”
[2] Já que versa sobre incumprimento de um contrato de natureza comercial.
[3] Dado que a presente ação foi intentada em 9 de dezembro de 2022 (cfr. arts. 66º e 81º).
[4] Cfr., entre outros, acórdãos de 3.05.2007 (processo C-386/05, pontos18-26), de 25.02.2010 (processo C-381/08, pontos 30-32) e de 11.03.2010 (processo 19/09, pontos 22-23), acessíveis em www.curia.eu.
[5] Cfr., por todos, acórdãos de 14.12.2017 (processo nº 143378/15.0YIPRT.G1.S1), de 10.12.2020 (processo nº 1608/19.6T8GMR.G1.S1) e de 3.03.2005 (processo nº 05B316), acessíveis em www.dgsi.pt.
[6] Também a doutrina pátria (vide, entre outros, NEVES RIBEIRO, in Processo Civil da União Europeia, Coimbra Editora, 2002, pág. 68, LIMA PINHEIRO, in Direito Internacional Privado, vol. III, Almedina, 2002, pág. 84 e CASTRO MENDES/TEIXEIRA DE SOUSA, in Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL Editora, 2022, págs. 188 e seguinte) vem sublinhando que as razões que estiveram na base dessa opção tiveram como desiderato atenuar os inconvenientes do recurso às regras de direito internacional privado do Estado do foro em resultado das incertezas interpretativas que daí poderiam advir.
[7] Ou seja, trata-se de um conceito que tem um significado e uma leitura no contexto do Direito da União Europeia e não como suporte densificador o Direito Nacional de cada um dos seus Estados-Membros.
[8] Onde se estabelece que «[O] foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele.»
[9] Prolatado no processo C-511/14, acessível em www.curia.eu.
[10] Cfr., v.g., acórdãos de 25.02.2010 (processo C-381/08, pontos 30-32) e de 23.04.2009 (processo C-533/07), acessíveis em www.curia.eu.