EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
FALTA DE ENTREGA
RECUSA
Sumário

No âmbito de um incidente de exoneração do passivo restante, a falta injustificada de entrega de um capital de cerca de €94,000,00, pelos devedores, ao fiduciário, durante o período de cessão, é facto que necessariamente prejudica a satisfação dos créditos da insolvência, sendo apto a motivar a recusa da exoneração.

Texto Integral

PROC. Nº 888/19.1T8STS.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de ...


REL. N.º 925
Juiz Desembargador Rui Moreira
Juiz Desembargador João Proença
Juíza Desembargadora Maria Eiró

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


1 – RELATÓRIO

Em conclusão do incidente de exoneração do passivo restante em que são requerentes AA e BB, foi proferida decisão que, fundando-se na circunstância de durante o período de cessão não terem sido entregues à fidúcia valores que lhe eram devidos, recusou a pretendida exoneração.
Dessa decisão vem interposto o presente recurso, que os insolventes terminam formulando as seguintes conclusões:
CONCLUSÕES:
I – O despacho ora recorrido violou a disposição do artigos 243º e 239.º, do CIRE.
II – Nos termos do artigo 239º do CIRE, pese embora a ocorrência de incumprimento por parte do insolvente, não se achando demonstrado, perante os elementos que decorrem do processo, que do mesmo resultou prejuízo para os créditos sobre a insolvência, não pode ser declarada a cessação do procedimento de exoneração, como se fez na decisão recorrida.
III – A decisão do Tribunal a quo tem-se como uma consequência demasiado gravosa para os Insolventes, quando comparada com o prejuízo mínimo causado aos Credores, violando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente regulado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
IV - Pelo que, impõe-se a revogação do decidido pela 1ª instância.
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Não foi oferecida resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Cumpre apreciá-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, atentas as conclusões acima reproduzidas, importa decidir se a omissão de entrega quantias devidas à fidúcia não revela, de per si, que tenha resultado prejudicada a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Analisadas as alegações dos recorrentes, verifica-se que ali chegaram a mencionar a essencialidade, para a recusa da exoneração do passivo restante, da identificação de dolo ou grave negligência no incumprimento imputado aos devedores. Mas conformaram-se com a imputação, aos devedores, da omissão de entrega de quantias devidas, a título de negligência grave.
Por isso, a questão acima identificada, é efectivamente a única a apreciar.
Para o efeito, é útil ter presente a matéria dada por provada e que constituiu a premissa menor da decisão em crise, a qual não é alvo de qualquer controvérsia. Escreveu-se na sentença:
“- AA e BB, foram declarados insolventes por decisão proferida em 21.05.2019.
- Por decisão proferida em 16.10.2019 foi deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes.
- No 1º ano do período de cessão, foi apurado rendimento disponível no valor de €20.422,94, cfr. requerimento do fiduciário de 01.07.2021.
- No 2º ano do período de cessão, nada tendo sido entregue do 1º ano da cessão, foi apurado rendimento disponível no valor total de €36.429,84, cfr. requerimento do fiduciário de 30.11.2021.
- No 3º e ultimo ano do período de cessão, nada tendo sido entregue dos anos anteriores, foi apurado um rendimento disponivel no valor total de €36.980,52, cfr. requerimento do fiduciário de 06.02.2023, nada tendo sido entregue.
- Os insolventes vieram requerer a prorrogação de prazo por 24 meses para procederem à entrega do valor devido à fidúcia, pelo que, por despacho proferido em 16.03.3023 foi o mesmo deferido por 24 meses a partir da data da notificação daquele despacho, ou seja, até Março de 2025, devendo ser elaborado um plano de pagamento.
- Não tendo sido cumprido o plano de pagamentos, por despacho de 06.10.2023 foi ordenada a notificação dos insolventes para em 10 dias entregarem ao fiduciário a quantia em falta sob pena de recusa da exoneração do passivo restante.
- Por despacho de 28.11.2023, perante a justificação dos insolventes para o não cumprimento, o tribunal entendeu conceder o prazo de 10 dias para juntarem aos autos um plano de pagamentos a iniciar, impreterivelmente, no próximo mês de Dezembro e ser cumprido.
- Em 08.02.2024 foi ordenada a notificação dos devedores para em 10 dias comprovar a entrega da 1ª prestação, com a advertência de que a falta de pagamento de uma das prestações implica o vencimento das restantes e, consequentemente a recusa da exoneração do passivo restante.
- Em 26.03.2024 veio o Sr. Fiduciário informar que os insolventes não depositaram qualquer quantia na conta da fidúcia, requerendo a recusa da exoneração.”
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Reconhecem os apelantes “Na decisão recorrida assinalou-se que os devedores agem com consciência de estar a violar as suas obrigações em prejuízo dos credores e, portanto, com dolo ou, pelo menos, grave negligência, até porque, foram para o efeito notificados por diversas vezes e advertidos com a competente cominação de recusa de exoneração. (…)
Ora, neste segmento, em que o Mmº Juíz “a quo” entende que os insolventes, perante os elementos que constam dos autos, violaram, com dolo ou pelo menos, negligência grave, as obrigações decorrentes daquela alínea, nada temos a censurar à decisão recorrida.”
Porém, nisso fundando o seu recurso, referem: “Só que nesta decisão nenhuma alusão se fez ao prejuízo que teria resultado para os créditos da insolvência em virtude daquele incumprimento.
Entendemos, pois, que, pese embora a ocorrência de incumprimento por parte dos insolventes, não se achando demonstrado, perante os elementos que decorrem do processo, que do mesmo resultou prejuízo para os créditos sobre a insolvência, não pode ser declarado o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, como se fez na decisão recorrida.”
Resulta da sentença, e sem que tal mereça qualquer discordância por parte dos recorrentes, que, ao longo do período de cessão, os insolventes deveriam ter entregue ao fiduciário €20.422,94, €36.429,84 e €36.980,52. Ou seja, nos três anos do período de cessão, os devedores deveriam ter entregue ao fiduciário €93.833,30. Mas nada entregaram.
Findos esses 3 anos, sem nada terem entregue, pediram a prorrogação do prazo por 24 meses, o que lhes foi concedido por despacho de 16/3/2023. Feito um plano de pagamento do valor em dívida, nada foi entregue. Autorizado o cumprimento ao abrigo de um novo plano, nada foi igualmente entregue, até 26/3/2024.
Não está em discussão se tal conduta é insusceptível de censura, por qualquer razão ou conjunto de razões. Isso foi, como acima se assinalou, admitido pelos próprios recorrentes.
Resta, pois, saber se esse incumprimento resultou em prejuízo da satisfação dos créditos sobre a insolvência.
A este propósito, o tribunal descreveu com rigor o regime aplicável: “Dispõe o art. 244º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que “Não tendo havido lugar a cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência”. Acrescenta o nº 2 da mesma norma que “A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior”.
Diz o art. 243º, nº 1, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.”
Mais concluiu o mesmo tribunal: “o facto de não terem entregue as quantias a que estavam obrigados prejudicou objectivamente a satisfação dos créditos sobre a insolvência.”
Constata-se, pois, que ao contrário do afirmado pelos recorrentes, o tribunal considerou expressamente o pressuposto da rejeição da exoneração do passivo dos devedores, constituído pelo prejuízo determinado à satisfação dos créditos sobre a insolvência. Afirmou que esse prejuízo, no caso concreto, era “objectivo”.
Face aos elementos do processo, só podemos concordar com o decidido.
Com efeito, privar a insolvência do capital de €93.833,30 implica necessariamente – ou na expressão do tribunal, “objectivamente” - a possibilidade de aplicação do mesmo à satisfação dos créditos sobre a insolvência.
O art. 241º do CIRE dispõe quanto ao destino dos rendimentos que tenham sido angariados pela fidúcia durante o período da insolvência, prevendo a sua afectação ao pagamento das dívidas da insolvência e dos credores da insolvência, nos termos das diferentes als. do respectivo nº 1.
Ao fazerem seu o valor de €93.833,30, que deveriam ter entregue ao fiduciário, para que os afectasse à satisfação de tais responsabilidades, é óbvio que os devedores prejudicaram a possibilidade de satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Foi, de resto, isso que o tribunal afirmou peremptoriamente, ao afirmar ser uma conclusão objectiva aquela que enunciou: que a falta de entrega de tal montante, que era devido, prejudicou a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Inexiste, em suma, qualquer motivo para critica de decisão recorrida, que cabe confirmar,
Resta negar provimento ao recurso sob apreciação, na confirmação da decisão recorrida.
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Sumário:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento ao presente recurso, com o que confirmam integralmente a decisão recorrida,

Custas pelos apelantes.

Registe e notifique.
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Porto, 11 de Dezembro de 2024
Rui Moreira
João Proença
Maria Eiró