I – No contrato-promessa de compra e venda o sinalagma reporta-se à obrigação recíproca de ambos os contraentes outorgarem o prometido contrato de compra e venda.
II – Assim, num contrato-promessa de compra e venda em que as obrigações recíprocas dos contraentes com vista à celebração do contrato prometido têm, por sua natureza, de ser cumpridas simultaneamente, não podem os promitentes-vendedores vir invocar a exceção de não cumprimento do contrato, prevista no art. 428º do Cód. Civil, apoiando-a no não pagamento por parte da promitente-compradora de prestações de condomínio e de despesas com obras em partes comuns também convencionadas nesse contrato-promessa.
III – Porém, se a promitente-compradora obtivesse a execução específica do contrato-promessa de compra e venda sem que procedesse ao pagamento daquelas prestações e despesas a que se vinculara estar-se-ia a gerar uma situação de abuso do direito, tanto mais que o montante global de tais prestações e despesas, já pagas pelos promitentes-vendedores, supera a importância correspondente ao preço das frações prometidas vender.
Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Lousada
Apelação
Recorrente: “A..., S.A.”
Recorridos: AA e mulher BB
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Ramos Lopes e Alexandra Pelayo
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
A autora “A..., S.A.”, com sede no Lugar ..., Avenida ..., freguesia ... e ..., ..., ..., intentou a presente ação declarativa de condenação contra os réus AA e mulher BB, residentes na Rua ..., ..., ..., peticionando a declaração judicial a seu favor da titularidade da propriedade plena de três frações imobiliárias que descreveu, produzindo-se por sentença os efeitos da falta de declaração negocial dos réus, com a condenação destes a pagar-lhe a quantia de 5.000,00€ a título de indemnização devida pelos danos sofridos, decorrentes da expectativa gerada, e a quantia de 4.000,00€ a título de cláusula penal pelo incumprimento.
Invocou para o efeito ter celebrado com os réus um contrato-promessa de compra e venda referente a três frações, negando-se os réus a celebrar o negócio definitivo, como lhes incumbia, invocando o não pagamento de despesas de condomínio, que incluiriam pagamentos por conta de obras efetuadas, e Imposto Municipal de Imóveis, cujo pagamento caberia, de acordo com a posição dos réus, à autora, negando esta a legitimidade de tal imputação. Apelou assim ao incumprimento do pacto pelos réus, à sua responsabilização pela cláusula penal e à frustração de expetativas.
Devidamente citados, foi apresentada contestação pelos réus, que, em suma, negaram o alegado pela autora, a quem atribuíram a responsabilidade pelo sucedido, porquanto depois da celebração do contrato-promessa teria ficado incontactável, não permitindo aos réus proceder à marcação da escritura. De acordo com a cláusula quinta, ponto dois, desse contrato, seria a autora responsável pelo pagamento dos montantes demandados pelos réus.
Pretende assim a improcedência do peticionado, e também a condenação da autora em sede reconvencional no pagamento dos montantes relativos àquelas despesas, de 15.899,71€, como também no da cláusula penal pelo incumprimento e ainda numa indemnização pelos danos de ordem moral que lhes foram causados na importância de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros).
Qualificou ainda a litigância da autora como sendo de má-fé.
Respondeu a autora, negando a posição dos réus e rejeitando a imputação de má-fé que lhe foi dirigida.
Foi proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Por fim, realizou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo, tendo-se admitido a ampliação do pedido formulada pelos réus, que peticionaram o IMI pago no ano de 2022, de 525,18€ e o de 2023, de 350,12€, e as prestações de condomínio vencidas entre julho de 2021 e outubro de 2023, no total de 1.293,04€, bem como as que se vencerem até à sentença.
Seguidamente, proferiu-se sentença que julgou a ação parcialmente procedente, “determinando-se declarar judicialmente a aquisição pela autora da propriedade das frações autónomas descritas em 2, suprindo a omissão da declaração da sua venda pelos réus, com a eficácia desta declaração condicionada ao pagamento pela autora aos réus dos montantes devidos a título de despesas com o condomínio e com as obras realizadas nas partes comuns do edifício onde se encontram as frações, vencidas desde abril de 2018 até à prolação da presente sentença, por força da exceção invocada pelos réus.”
No mais foram a autora e os réus absolvidos dos restantes pedidos contra si formulados.
Inconformada com o decidido, a autora interpôs recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. A Douta Sentença decidiu que “não se tendo celebrado a escritura definitiva, deverá a autora proceder ao pagamento dos montantes em causa atinentes ao condomínio e obras nas partes comuns – e não ao IMI, que não tem previsão contratual.”
II. Na realidade a cláusula constante do contrato promessa em que a autora assume que as frações em discussão fazem parte integrante as respetivas prestações de condomínio ou quaisquer outras quantias que ao mesmo hajam de ser entregues, designadamente a título de reservas ou obras, sejam elas de carácter ordinário ou extraordinário, apenas foi aceite pela autora porque desconhecia que o prédio onde se situam as frações iria sofrer obras de reabilitação.
III. Existiu tradição da coisa porque a autora já estava a ocupar o espaço na qualidade de inquilina e, por isso, não faria sentido não ser clausulada a tradição da coisa.
IV. Os réus nunca se preocuparam em comunicar à autora que estavam a ser discutidas a realização de obras no prédio.
V. Nem mesmo quando foram convocados para a assembleia em que constava da ordem de trabalhos a análise, discussão e aprovação da realização de obras.
VI. Os réus fizeram-se representar na assembleia e nunca informaram a autora do que se passava, nem aquando da celebração do contrato promessa, momento em que já tinham conhecimento que estava em discussão a realização de obras em breve, nem aquando da convocatória para a respetiva assembleia.
VII. A autora em 2021 comunicou aos réus a sua pretensão em celebrar a escritura definitiva.
VIII. Os réus negaram-se a tal exigindo o pagamento de cerca de €15.000,00, valor referente a IMI, quotas ordinárias de condomínio e quotas extraordinárias respeitantes a obras na fachada do prédio.
IX. Até ao dia 25 de junho de 2021 nunca os réus comunicaram à autora a existência dos pagamentos que reclama nem a realização de obras.
X. Os réus, durante 3 anos, nada fizeram para resolver a situação, o que poderiam ter providenciado, quer através duma notificação judicial avulsa, quer através duma ação para obrigar ao cumprimento contratual ou arguir o incumprimento, e nem sequer para celebrar a escritura definitiva, sendo certo que segundo a cláusula quinta do contrato promessa, era obrigação dos réus providenciar o agendamento da escritura, comunicando à autora dia, hora e local.
XI. Foi a autora quem interpelou os réus para se proceder à celebração da escritura definitiva de compra e venda.
XII. Apenas nesse momento, depara-se com as exigências dos réus.
XIII. É a autora, em 2022, quem instaura a presente ação para suprir a falta de celebração da escritura definitiva.
XIV. O Tribunal considerou, mal, no entendimento da autora, que esta, na prática, deveria ter assumido os encargos com o condomínio, o que não fez.
XV. O administrador do condomínio, SR. CC, afirmou, conforme supra descrito, que tinha conhecimento que havia um negócio apalavrado. O que leva a concluir que os réus também nunca deram conhecimento ao condomínio, de modo formal, [d]o negócio.
XVI. Aliás continuaram a ser convocados para as assembleias de condóminos e continuaram a fazer-se representar, assumindo as suas responsabilidades.
XVII. Nunca sequer informaram a autora acerca das assembleias nem procuraram meios para o fazer na impossibilidade de contactar a autora.
XVIII. Por estes motivos não pode o Tribunal socorrer-se da exceptio. Até porque o próprio Tribunal reconhece que a conduta dos réus também pode ser alvo de censura, por alguma passividade na concretização do negócio prometido, mas que estes têm à sua alçada o mecanismo da exceptio, traduzindo-se num desequilíbrio de posições jurídicas excessivo, abusivo da boa fé que cumpre afastar.
XIX. A autora peticionou também a condenação dos réus ao pagamento da quantia de €4.000,00 a título de cláusula penal pelo incumprimento, de acordo com o disposto na cláusula sexta do contrato promessa.
XX. Ora, atendendo que os réus não diligenciaram pelo agendamento de dia, hora e local para a realização da escritura definitiva, não comunicaram à autora a previsibilidade de realização de obras, nem fizeram qualquer esforço para evitar todo este incómodo à autora, e obrigando-a a instaurar a presente ação afim de conseguir suprir a falta de declaração negocial dos réus. Entende a autora que os réus devem ser condenados a pagar esta quantia.
Nestes termos (…) deverá ser concedido provimento ao presente recurso, sendo a decisão ora recorrida anulada ou revogada e substituída por outra, declarando a final procedentes os pedidos efetuados pelo Apelante na Petição Inicial (…).
Os réus apresentaram contra-alegações, nas quais se pronunciaram pela confirmação do decidido.
Formularam as seguintes conclusões:
1. O Tribunal recorrido decidiu julgar parcialmente procedente a ação e, em consequência: “declarar judicialmente a aquisição pela autora da propriedade das frações autónomas descritas em 2, suprindo a omissão da declaração da sua venda pelos réus, com a eficácia desta declaração condicionada ao pagamento pela autora aos réus dos montantes devidos a título de despesas com o condomínio e com as obras realizadas nas partes comuns do edifício onde se encontram as frações, vencidas desde abril de 2018 até à prolação da presente sentença, por força da exceção invocada pelos réus.”;
2. Fundamentou a sua decisão num conjunto de factos que deu como provados e que aqui se dão por integralmente reproduzidos por razões de economia processual;
3. A recorrente pretende, antes de mais, a modificação da matéria de facto dada como provada;
4. Dispõe o preceituado no art.º 640º do CPC, em conjugação com o que se dispõe no art.º 662º do mesmo diploma legal, que é permitido ao Tribunal da Relação julgar a matéria de facto;
5. Salvo melhor opinião, a recorrente não cumpre todos os ónus impostos pelo art.º 640º do CPC, não sendo, desse modo, possível conhecer deste fundamento de recurso;
6. A recorrente nada refere acerca dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
7. Não refere quais os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre a matéria de facto cuja impugnação pretende;
8. Para alterar a matéria de facto dada como provada ou como não provada na sentença, é necessário demonstrar concretos meios de prova que existam no processo ou no registo da gravação, que imponham decisão diversa da constante na sentença e não alegar convicção diversa da convicção do Tribunal;
9. Assim sendo, nesta parte, nenhuma alteração pode ser introduzida na decisão recorrida, uma vez que se mostra adequada e correta face à factualidade apurada e aos normativos aplicáveis;
10. A falta destes elementos não pode conduzir a outra decisão que não a rejeição do presente recurso, o que se aqui expressamente se requer;
11. Na eventualidade de assim não se entender, sempre se dirá que a pretensão da recorrente com os presentes autos, foi a de obter a execução específica do contrato promessa de compra e venda celebrado com os recorridos;
12. Nessa sequência, os recorridos vieram invocar a exceção de não cumprimento, dada a falta de pagamento por parte da recorrente das verbas constantes no nº 2 da cláusula quinta do citado contrato promessa;
13. Ficou demonstrado nos autos, que por documento particular datado de 7 de Março de 2018, a recorrente celebrou com os recorridos um “contrato promessa de compra e venda”, em que estes prometiam vender e aquela prometia comprar três frações prediais, mediante o pagamento pela mesma do preço convencionado de 12.000,00€.
14. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 410.º do Código Civil, à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato, são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido (...), sendo certo que a compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa (...) mediante um preço -cf. artº 874.º do C.C.;
15. O preço convencionado pela aquisição das frações dos autos foi efetivamente pago, tendo este força de sinal até celebração do contrato definitivo;
16. A recorrente, por via do referido contrato promessa obteve efetivamente a tradição da coisa, motivo pelo qual se estabeleceu que “Com a celebração do presente contrato e em face da posse das frações objeto deste contrato conferida pelos primeiros outorgantes à segunda, esta assume perante o condomínio do imóvel de que as frações sub judice fazem parte integrante as respetivas prestações de condomínio ou quaisquer outras quantias que ao mesmo hajam de ser entregues, designadamente a título de reservas ou obras, sejam elas de caráter ordinário ou extraordinário”;
17. Deste clausulado, não subsistem dúvidas de que, não tendo sido celebrado contrato definitivo/escritura pública, deverá a recorrente proceder ao pagamento dos montantes decorrentes das prestações de condomínio vencidas e das obras realizadas nas partes comuns;
18. Ou seja, com a assunção da utilização das frações dos autos e atento o referido clausulado, é razoável que à recorrente lhe seja exigível, mormente atentos os ditames da boa fé, que a mesma provesse pela assunção dessa responsabilidade perante o próprio condomínio, ao invés de serem os recorridos a fazerem-no;
19. Ao se escusarem a celebrar a escritura pública de compra e venda, os recorridos pretenderam somente amparar a sua pretensão, garantindo que o estabelecido entre as partes seria integralmente cumprido - pagamento das prestações de condomínio e obras -, daí terem deitado mão da exceção de não cumprimento prevista no art.º 428.º do C.C.;
20. A este propósito, os recorridos corroboram integralmente o contido no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 06-09-2016 (processo 6514/12.2TCLRS.L1.S1, in www.dgsi.pt), a que o Tribunal recorrido aludiu em sede de sentença;
21. “A exceção do não cumprimento do contrato é própria dos contratos bilaterais, sendo que, para que a exceção se aplique, não basta que o contrato crie obrigações para ambas as partes, sendo também preciso que as obrigações sejam correspetivas, correlativas ou interdependentes, isto é, que uma seja sinalagma da outra;
22. Com a celebração do contrato dos autos, resultaram obrigações para ambas as partes, obrigações que estão patentemente ligadas entre si por uma relação de interdependência, por um nexo de causalidade ou de correspetividade. Uma justifica a outra e vice-versa, pelo que a exceção do não cumprimento do contrato deve atuar.”;
23. Como resulta do artº 428º do C.C., a exceção do não cumprimento do contrato não nega a qualquer das partes o direito ao cumprimento da obrigação nem enjeita o dever de a outra cumprir a prestação. O que resulta ou origina a excetio é a possibilidade de recusa da prestação por uma das partes enquanto a outra não efetuar a que lhe cabe, ou seja, tem somente um efeito dilatório, o de realização da prestação no momento (ulterior) em que receba a contraprestação;
24. Atentas as circunstâncias factuais demonstradas, atendendo a que o interesse do credor não é insignificante ou irrisório, mas pelo contrário, relevante, face aos princípios da proporcionalidade e da boa fé, cremos que os recorridos tinham toda a legitimidade para usarem da referida faculdade, o que, de resto fizeram, pelo que a pretensão da recorrente nunca poderia ter provimento;
25. Em suma, bem andou o Tribunal a quo, ao considerar que fazer impender sobre os recorridos as consequências do suprimento da declaração negocial em falta, com a transferência de propriedade, sem que estes tenham a possibilidade de se socorrer do mecanismo da exceptio, perante uma obrigação monetária incumprida pela recorrente que supera o preço das frações e que tiveram de suportar, e detendo aquela o uso e fruição das frações, faria transbordar um desequilíbrio de posições jurídicas excessivo, abusivo da boa fé, que à luz do previsto no art.º 334.º do Código Civil deve ser afastado;
26. Improcedendo a pretensão da recorrente supra mencionada, não subsiste qualquer razão para que sejam os recorridos condenados no pagamento da cláusula penal do montante de €4.000,00, dada a prevalência da excetio pelos mesmos invocada e reconhecida, devendo, também no que a esta questão diz respeito, improceder o recurso interposto pela recorrente;
27. Por todo o exposto, é de considerar totalmente infundada a pretensão da recorrente, pelo que dever-se-á manter a decisão em crise.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Cumpre então apreciar e decidir.
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
I. Apurar se houve da parte da autora/recorrente impugnação da matéria de facto com observância dos ónus previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil;
II. Apurar se os réus podiam ter invocado nos presentes autos a exceção de não cumprimento do contrato.
(Da petição)
1. A autora é uma sociedade comercial que dedica a sua atividade comercial à compra e venda de imóveis, revenda dos adquiridos para os referidos fins e arrendamento de bens imobiliários.
2. Em 7 de Março de 2018, a autora celebrou com os réus um “contrato promessa de compra e venda” em que os réus prometiam vender e a autora prometia comprar o seguinte:
a. Fração autónoma designada por letra “F”, correspondente a uma loja, sita na Rua ..., pertencente à União de Freguesias ... e ... (...), concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.º ...82... e inscrita na respetiva matriz predial sob o atual artigo ...56-F (com origem no artigo ...22...-F);
b. Fração autónoma designada por letra “E”, correspondente a uma loja, sita na Rua ..., pertencente à União de Freguesias ... e ... (...), concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.º ...82... e inscrita na respetiva matriz predial sob o atual artigo ...56-E (com origem no artigo ...22...-E);
c. Fração autónoma designada por letra “D”, correspondente a uma loja, sita na Rua ..., pertencente à União de Freguesias ... e ... (...), concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.º ...82... e inscrita na respetiva matriz predial sob o atual artigo ...56-D (com origem no artigo ...22...-D).
3. As ditas frações autónomas foram prometidas vender, livre de ónus ou encargos, pelo preço total de 12.000,00€ (doze mil euros), sendo o valor de cada fração do montante de 4.000,00€ (quatro mil euros).
4. Como sinal e princípio de pagamento a Autora entregou aos Réus, o valor de 3.600,00€ (três mil e seiscentos euros), na data da outorga do contrato promessa de compra e venda, através de numerário.
5. O remanescente do preço, ou seja, 8.400,00€ (oito mil e quatrocentos euros) foi posteriormente pago, tendo sido seis cheques pós-datados no montante de 1.400,00€ (mil e quatrocentos euros), que foram entregues pelo legal representante da autora aos réus.
6. Os réus conferiram à ora autora a utilização exclusiva das frações supramencionadas desde então.
7. De acordo com o pacto referido em 2, a escritura pública seria realizada até ao dia 31 de agosto de 2018.
8. Acontece que, chegados ao dia 31 de agosto de 2018, a escritura de compra e venda não se realizou, no interesse recíproco de ambas as partes.
9. Pelo que, em outubro de 2021, a autora comunicou aos réus, de uma nova pretensão na celebração da escritura.
10. Nesta sequência, os réus informaram a autora que tal só seria possível se esta procedesse:
a. Ao pagamento do IMI desde 7 de março de 2018, até ao momento;
b. Ao pagamento do condomínio do respetivo prédio desde 7 de março de 2018 até ao momento;
c. Ao pagamento de cerca de 15.000,000€ que os Réus suportaram em obras na fachada do prédio.
11. Foi reagendada a escritura para o dia 24 de setembro de 2021, pelas 15 horas, onde compareceram as partes intervenientes, autora e réus.
12. Neste dia, a autora já tinha pago os impostos inerentes à celebração da escritura, mais concretamente, o pagamento de imposto de selo e IMT respetivos, demonstrando a intenção total de realizar a mesma.
13. Naquela ocasião, os réus voltaram a exigir à autora o pagamento de cerca de 15.000,00€, negando-se assim a outorgar a escritura.
14. E frustrou-se a expectativa da autora adquirir então as frações que já utilizava.
15. Prevê a cláusula sexta do pacto referido em 2 que:
“Caso a escritura de compra e venda não se realize até à data fixada na cláusula anterior, por facto imputável a qualquer uma das partes, o outorgante faltoso obriga-se ao pagamento ao outro, a título de cláusula penal pelo incumprimento, do montante de €4.000,00 (quatro mil euros).”
(Da contestação)
16. De acordo com a cláusula quinta, parágrafo 2, do pacto mencionado em 2:
“Com a celebração do presente contrato e em face da posse das frações objeto deste contrato conferida pelos primeiros outorgantes à segunda, esta assume perante o condomínio do imóvel de que as frações sub judice fazem parte integrante as respetivas prestações de condomínio ou quaisquer outras quantias que ao mesmo hajam de ser entregues, designadamente a título de reservas ou obras, sejam elas de caráter ordinário ou extraordinário.”
17. Após o pacto referido em 2, os réus pagaram a título de prestações de condomínio, Imposto Municipal sobre Imóveis (IMT) e obras relativas às partes comuns do edifício onde se integram as frações, até ao mês de junho de 2021, o montante global de 15.899,61€ (quinze mil oitocentos e noventa e nove euros e sessenta e um cêntimos), descriminados do seguinte modo:
a. IMI pago nos anos de 2019, 2020 e 2021, reportado aos anos de 2018, 2019 e 2020, no montante de 1.559,91€;
b. Condomínio de abril de 2018 a junho de 2021, no montante de 1.762,02€;
c. Obras de reabilitação, no valor de 12.577,68€.
18. Os réus remeteram no dia 25 de junho de 2021 à autora um email referindo os valores suportados a título de despesa de condomínio, obras e IMI relativos às frações, após contacto telefónico recebido no dia 23 de junho anterior de DD, pessoa que acompanhou o legal representante da autora nos contatos havidos e reuniões.
19. Os réus sofreram incómodos com o sucedido.
20. Até à ocasião referida em 18 não haviam sido comunicados pelos réus à autora a existência dos pagamentos a que alude em 17 e a realização das obras no edifício.
21. Os réus pagaram IMI no ano de 2022, de 525,18€, de 2023, no montante de 350,12€, e as prestações de condomínio vencidas entre julho de 2021 e outubro de 2023, no total de 1.293,04€.
A. Que após a data referida em 8, para além do supra descrito como provado, os réus pretenderam agendar a escritura pública de compra e venda, mas a autora deixou de estar contactável, não respondendo às tentativas de contacto, quer telefónicas, quer pessoais levadas a cabo pelos réus.
B. Que os réus se deslocaram pessoalmente às frações objeto dos autos no intuito de encontrar alguém que pudesse intermediar o contacto dos mesmos com o legal representante da autora, mas sempre encontraram as frações em causa fechadas.
C. Que foram mantendo uma busca do paradeiro da autora e seu legal representante.
I. Apurar se houve da parte da autora/recorrente impugnação da matéria de facto com observância dos ónus previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil
1. Estatui-se o seguinte no art. 640º do Cód. Proc. Civil:
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)»
Conforme afirma ABRANTES GERALDES (in “Recursos em Processo Civil”, 7ª ed., págs. 200/201), a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
E logo de seguida escreve o mesmo Juiz Conselheiro (ob. cit., págs. 201/202):
“As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto, como instrumento de realização da justiça.
(…)
Contudo, importa que não se exponenciem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.”
2. De retorno aos autos, verifica-se que na motivação do seu recurso a autora/recorrente transcreve passagens do depoimento de parte da ré BB e dos depoimentos das testemunhas DD e CC, donde decorrerá a sua intenção de proceder à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Porém, em parte alguma da motivação do recurso e depois nas conclusões, a recorrente especifica, conforme lhe é imposto pelo art. 640º, nº 1, al. a) do Cód. Proc. Civil, quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
Ou seja, não indica qualquer ponto da matéria de facto – provada ou não provada – que considere ter sido mal julgado, nem indica qualquer facto que entenda dever ser aditado à factualidade assente.
Com efeito, após a transcrição daqueles excertos, limita-se a tecer considerações sobre a forma como a causa foi julgada, entendendo que a 1ª Instância sustentou incorretamente que a autora deveria ter assumido o pagamento dos encargos com o condomínio.
Deste modo, porque de forma manifesta não foram respeitados os ónus previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil, não se procederá à reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto, que assim se tem por definitivamente fixada.
1. Com a presente ação a autora pretende obter a execução específica do contrato-promessa de compra e venda celebrado com os réus em 7.3.2018 e que assim seja proferida sentença judicial que produza os efeitos da declaração negocial em falta destes últimos.
Sucede que, respondendo a esta pretensão, os réus vieram, como justificação para a sua conduta, invocar a exceção de não cumprimento do contrato por falta de pagamento por parte da autora das verbas referidas no nº 2 da cláusula quinta do referido contrato-promessa.
Ora, na sentença recorrida acolheu-se a invocação da exceptio, conjugando-a com o instituto do abuso do direito, posição que tem a discordância, em via recursiva, da autora que entende não haver fundamento para tal.
Vejamos então.
2. Estabilizada em definitivo a matéria de facto dada como assente pela 1ª Instância, verifica-se estar provado que em 7.3.2018 foi celebrado contrato-promessa de compra e venda entre a autora e os réus, no âmbito do qual estes prometiam vender e aquela prometia comprar três frações, correspondentes todas elas a lojas, pelo preço global de 12.000,00€ (4.000,00€ por cada fração).
À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, sendo sabido que a compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço – cfr. arts. 410º, nº 1 e 874º do Cód. Civil.
O preço convencionado pela aquisição das três frações foi efetivamente pago – nºs 4 e 5 -, tendo este força de sinal até à celebração do contrato definitivo – cfr. art. 441º do Cód. Civil.
Acontece que com a celebração do contrato-promessa, os aqui réus conferiram à aqui autora a posse das frações prometidas vender, com a correspondente entrega das respetivas chaves, de tal forma que desde então teve esta a sua utilização exclusiva – cfr. cláusula quarta do contrato-promessa e nº 6.
Constata-se, pois, que por via do contrato-promessa celebrado ocorreu a tradição da coisa, havendo então que ter em devida conta o que se mostra convencionado no nº 2 da sua cláusula quinta.
Estipulou-se nesta o seguinte:
“Com a celebração do presente contrato e em face da posse das frações objeto deste contrato conferida pelos primeiros outorgantes à segunda, esta assume perante o condomínio do imóvel de que as frações sub judice fazem parte integrante as respetivas prestações de condomínio ou quaisquer outras quantias que ao mesmo hajam de ser entregues, designadamente a título de reservas ou obras, sejam elas de caráter ordinário ou extraordinário.”
Não parece oferecer dúvidas que através da estipulação desta cláusula a autora, tendo a posse das frações desde a data da celebração do contrato-promessa, assumiu o pagamento das respetivas prestações do condomínio e também das obras que hajam de ser realizadas nas partes comuns.
Pagamento que, contudo, a autora não efetuou.
Ora, pretende esta que seja celebrada a escritura de compra e venda, ao que os réus objetam que não a outorgam porquanto a autora não procedeu ao pagamento das prestações do condomínio nem das obras entretanto realizadas.
Ou seja, os réus apoiam o seu incumprimento do contrato, ao não celebrarem a escritura de compra e venda, na invocação da exceção de não cumprimento do contrato prevista no art. 428º do Cód. Civil.
3. Dispõe-se o seguinte neste preceito:
«Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.»
Conforme escreve CALVÃO DA SILVA (in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 4ª ed., pág. 330) “justifica-se a recusa do credor a cumprir, alegando a exceptio non adimpleti contractus, porque a sua prestação é o correlativo da contraprestação do devedor, porque as respectivas obrigações estão ligadas entre si por um nexo de causalidade – uma é o motivo determinante da outra – ou de correspectividade. Logo, se o devedor não cumpre, não quer cumprir ou não pode cumprir, ainda que não imputavelmente, o credor pode suspender o cumprimento da sua obrigação, dada a ausência de contrapartida e reciprocidade que liga causalmente a prestação debitória e a prestação creditória. Sendo as obrigações interdependentes, com uma a constituir a causa determinante da outra, o não cumprimento de uma (que não tem de ser necessariamente imputável a dolo ou culpa do devedor) faz desaparecer a sua contrapartida – causa e razão de ser da outra -, o que legitima a exceptio, meio de conservação do equilíbrio sinalagmático. Pouco importa, por conseguinte, que o devedor não cumpra a sua obrigação por não querer e estar de má fé ou por não poder em virtude, por exemplo, de se encontrar em estado de impotência económica, porquanto aquilo que legitima a exceptio non adimpleti contractus é a ausência de correspondência ou de reciprocidade que está na origem das obrigações (sinalagma genético) e que deve continuar a estar presente no seu cumprimento (sinalagma funcional)”.
No entanto, não se pode ignorar que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, as partes devem proceder de boa-fé – art. 762º, nº 2 do Cód. Civil -, ou seja, com lisura e correção.
Ora, para que a invocação da “exceptio” não seja julgada contrária à boa-fé, JOÃO JOSÉ ABRANTES (in “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato”, Almedina, 3ª ed., págs. 110/112)[1]entende que deverá haver uma tripla relação entre o incumprimento do outro contraente e a recusa de cumprir por parte do excipiente: relação de sucessão, de causalidade e de proporcionalidade entre uma e outra.
Por força da aludida relação de sucessão, não pode recusar a sua prestação, invocando a “exceptio”, o contraente que foi o primeiro a cair numa situação de incumprimento: a recusa de cumprir do excipiente deve ser posterior à inexecução da obrigação da contraparte, deve seguir-se-lhe e não precedê-la.
A relação de causalidade impõe que haja um nexo de causalidade ou de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensão da prestação do excipiente: esta deve ter unicamente por causa tal incumprimento, deve surgir como sua consequência imediata.
Por fim, pelo princípio da equivalência ou proporcionalidade das inexecuções, a recusa do excipiente deve ser equivalente ou proporcionada à inexecução da contraparte que reclama o cumprimento, de modo que, se a falta desta for de leve importância, o recurso à exceção pode até ser ilegítimo.
Também ALMEIDA COSTA (in “Direito das Obrigações”, 11ª ed., pág. 364) alerta no sentido de que o funcionamento da “exceptio” deve ser compaginado com o princípio da boa fé, daí resultando “a exigência de uma apreciação da gravidade da falta, que não pode mostrar-se insignificante, bem como se impõe a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção.”
O mesmo Professor (in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, nº 119, pág. 144)[2] escreve que “seria contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação, só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo. Na mesma linha, surge a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção. Uma prestação significativamente incompleta ou viciada justifica que o outro obrigado reduza a contraprestação a que se acha adstrito. Mas, em tal caso, só é razoável que recuse quanto se torne necessário para garantir o seu direito”.[3]
4. Regressando ao caso dos autos, deverá salientar-se, à semelhança do que se fez na sentença recorrida, que entre a obrigação assumida pelos réus no sentido de celebrarem o contrato de compra e venda, outorgando a respetiva escritura, e a obrigação que foi assumida pela autora de, ao entrar na posse das frações, proceder ao pagamento das prestações de condomínio respetivas e da sua parte nas obras entretanto realizadas, não se nos afigura existir vínculo sinalagmático.
Não se discute que o contrato-promessa de compra e venda em causa nos autos tenha natureza sinalagmática, pois através da sua celebração criou-se para as partes a obrigação recíproca de outorgarem um futuro contrato de compra e venda, como compradora e vendedores, mas a isto se reduz o sinalagma.[4]
Já a cláusula do contrato-promessa que se reporta ao pagamento pela promitente-vendedora, desde então, das prestações de condomínio ou de quaisquer outras quantias que hajam de ser entregues ao condomínio do imóvel, designadamente a título de reservas ou obras, porque não se refere à obrigação principal, que é a celebração da escritura, não se inclui no sinalagma cuja correspetividade e interdependência poderia justificar o recurso à exceção do não cumprimento do contrato.
Por isso, impõe-se concluir que a posição adotada pelos réus ao não celebrarem a escritura de compra e venda, face ao não pagamento por parte da autora das prestações de condomínio e das obras entretanto realizadas, em incumprimento do que havia sido estipulado, por ausência do referido sinalagma, não pode, do ponto de vista dogmático-jurídico, servir de apoio à invocação da figura da exceção de não cumprimento do contrato.
Num contrato-promessa de compra e venda como o presente, as obrigações recíprocas dos contraentes com vista à celebração do contrato prometido têm, por sua natureza, de ser cumpridas simultaneamente, não fazendo sentido admitir que uma das partes possa recusar a sua prestação com fundamento em falta de cumprimento da outra.[5]
Todavia, do afastamento da aplicação do disposto no art. 428º do Cód. Civil, não se segue que a posição dos réus nos presentes autos deva ficar aqui sem tutela jurídica.
5. Com efeito, não se pode perder de vista que a autora, face ao clausulado no contrato-promessa, tem seguramente a obrigação de proceder ao pagamento das despesas que se vêm referindo – prestações de condomínio e obras entretanto realizadas -, sendo que o não efetuou.
Tanto mais que desde a celebração do referido contrato-promessa tem beneficiado da utilização exclusiva das frações.
Assim, pretender a autora que seja proferida sentença que, nos termos do art. 830º, nº 1 do Cód. Civil, produza os efeitos da declaração negocial, em falta, dos réus, com vista à celebração do prometido contrato de compra e venda, sem efetuar o pagamento daquelas despesas, é algo que convoca a aplicação do instituto do abuso do direito previsto no art. 334º também do Cód. Civil.
Estatui este preceito que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.»
Para que haja abuso do direito exige-se que o excesso seja manifesto. Os tribunais só podem, por isso, fiscalizar a moralidade dos atos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. MANUEL DE ANDRADE refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (in “Teoria Geral das Obrigações”, pág. 63) e às “hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição”.
Ora, para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade. Já no que respeita ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei – cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., págs. 298/9.
O fim económico e social de um direito traduz-se, essencialmente, na satisfação do interesse do respetivo titular no âmbito dos limites legalmente previstos. O agir de boa-fé envolve a atuação nas relações em geral e em especial no quadro das relações jurídicas, honesta e conscienciosamente, isto é, numa linha de correção e probidade, não procedendo de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável tolera. Os bons costumes são, por seu turno, o conjunto de regras de comportamento relacional, acolhidas pelo direito, variáveis no tempo e, por isso, mutáveis conforme as conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade em determinado tempo.
O abuso do direito constitui, pois, uma fórmula tradicional para exprimir a ideia do exercício disfuncional de posições jurídicas. Funciona como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica.
No abuso do direito há uma atuação humana estritamente conforme com as normas imediatamente aplicáveis, mas que, tudo visto, se apresenta ilícita por contrariedade ao sistema, no seu todo - Cfr. MENEZES CORDEIRO, “Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “in Agendo””, Almedina, 2006, pág. 33.
Por seu lado, para ALMEIDA COSTA (in “Direito das Obrigações”, Almedina, 11º ed., pág. 83) o princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, aos efeitos da rígida estrutura das normas legais. Ocorrerá tal figura de abuso quando um determinado direito – em si mesmo válido – seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social.
6. No caso “sub judice” não restam dúvidas de que a pretensão da autora, no sentido de ser proferida sentença, nos termos do art. 830º do Cód. Civil, destinada a produzir os efeitos da declaração negocial dos réus com vista à celebração do contrato de compra e venda, merece acolhimento.
Mas se a autora vê satisfeita esta sua pretensão e simultaneamente não se reconhece nestes autos, como é reclamado pelos réus, que ela tem a obrigação, conforme foi convencionado no contrato-promessa, de proceder ao pagamento das prestações do condomínio e de despesas com obras entretanto realizadas, posteriores à data da celebração daquele contrato-promessa (7.3.2018), estar-se-ia a permitir que a autora exercesse o seu direito à execução específica do contrato em manifesta violação dos ditames da boa-fé, ou seja, em abuso do direito.
Na verdade, não se pode ignorar que a autora se encontra em incumprimento relativamente ao pagamento das prestações condominiais e despesas referidas no nº 2 da cláusula quinta do contrato-promessa de compra e venda e que o valor total destas prestações e destas despesas, já pagas pelos réus (nº 17), supera, inclusive, a importância correspondente ao preço das três frações, sendo sempre de salientar que é a autora que desde o dia 7.3.2018 beneficia da sua utilização exclusiva.
Neste contexto, como forma de evitar o desequilíbrio das respetivas posições jurídicas, ofensivo do princípio da boa-fé, entendemos que a solução seguida pela 1ª Instância, mesmo que dela se afaste a possibilidade de invocação da exceptio por parte dos réus pelos motivos atrás expostos em 4., se mostra ajustada e equitativa, apoiando-se no art. 334º do Cód. Civil.
Isto é, a declaração judicial no sentido da aquisição das três frações por parte da autora fica condicionada ao pagamento por esta aos réus dos montantes correspondentes às prestações do condomínio e às despesas com as obras realizadas nas partes comuns do imóvel onde se integram as frações, vencidas desde abril de 2018.
7. Deste modo, tendo-se em atenção a factualidade dada como assente na sentença recorrida – e que não foi objeto de impugnação válida –, a argumentação expendida pela autora nas suas alegações de recurso, que em certos trechos parece basear-se em matéria fáctica diversa da fixada, não pode ser acolhida, assinalando-se ainda que, no contexto factual apurado e de acordo com a solução decidida para o litígio fundada no respeito pelo princípio da boa-fé, não se visualiza fundamento para a condenação dos réus no pagamento da cláusula penal a que se refere a cláusula sexta do contrato-promessa.
Impõe-se assim a improcedência do recurso interposto e a consequente confirmação da sentença recorrida.
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Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela autora “A..., S.A.” e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas, pelo seu decaimento, a cargo da autora/recorrente.
Porto, 11.12.2024
Eduardo Rodrigues Pires
João Ramos Lopes
Alexandra Pelayo
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[1] Adaptando ao sistema jurídico português ensinamento de Giovanni Persico (“L’Eccezione d’inadempimento”, pág. 141).
[2] Apud Ac, Rel. Porto de 12.5.2015, relator FERNANDO SAMÕES, proc. 1012/12.7.TJPRT.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. também o Ac. STJ de 6.9.2016, p. 6514/12.2 TCLRS.L1.S1, relator GARCIA CALEJO, disponível in www.dgsi.pt., citado na sentença recorrida e nas contra-alegações.
[4] Cfr. ANA PRATA, “O Contrato-Promessa e seu Regime Civil”, Almedina, págs. 586/7; Ac. STJ de 27.5.2003, p. 03A1232, relator ALVES VELHO, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. ANA PRATA, ob. cit., pág. 587; Ac. Rel. Évora de 19.1.2012, p. 5002/06.0 TBSTB.E.L1, relator FRANCISCO MATOS, disponível in www.dgsi.pt.