I - Excetuando o caso da verificação de nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia (artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil), da existência de questão de conhecimento oficioso (artigos 608º, nº 2, 2ª parte e 663º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil), do conhecimento de questões prejudicadas (artigo 665º, nº 2, do Código de Processo Civil), da alteração do pedido, em segunda instância, por acordo das partes (artigo 264º do Código de Processo Civil) ou da mera qualificação jurídica diversa da factualidade articulada (artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil), os recursos destinam-se à reponderação de questões que hajam sido colocadas e apreciadas pelo tribunal recorrido, não se destinando ao conhecimento de questões novas.
II - O risco no contrato de seguro de crédito não existe desde a aceitação pela seguradora de cobertura desse risco, mas sim apenas com o nascimento do crédito segurado, ou seja, com a celebração do negócio de que emerge o crédito objeto do seguro.
III - Acordando as partes em contrato de seguro de crédito que a não declaração à seguradora das operações passíveis de serem seguradas determina a automática exclusão da garantia e provando-se que a segurada não declarou a operação que pretende estar garantida pelo seguro, forçosa é a conclusão de que essa operação não está coberta pelo seguro.
Sumário do acórdão proferido no processo nº 210/23.2T8AVR.P1 elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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1. Relatório
Em 31 de janeiro de 2023, com referência ao Juízo Local Cível de Ovar, Comarca de Aveiro, A..., Lda. instaurou ação declarativa sob forma comum contra B..., S.A. pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 15.968,70, acrescida dos juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento.
Para sua sustentar as suas pretensões a autora alegou, em síntese, que se dedica à fabricação e comercialização de estruturas metálicas para placas de gesso e à importação e exportação de materiais para a construção civil, enquanto a ré é seguradora de crédito, tendo celebrado com esta um contrato de seguro titulado pela apólice nº ...; no âmbito do referido contrato de seguro, em 14 de julho de 2020, a autora solicitou um seguro de crédito sobre a sua cliente C..., SARL, Cliente B...: ..., no valor máximo de € 20.000,00, tendo a ré aceite a solicitação da autora; nessa sequência, a autora forneceu à C..., SARL, Cliente B...: ... os bens constantes da sua fatura nº ..., emitida em 14 de dezembro de 2020, no montante de € 16.792,62 e com vencimento em 14 de março de 2021; a C..., SARL, Cliente B...: ... não procedeu ao pagamento da fatura nº ... no prazo concedido, tendo a autora comunicado esse facto à ré em 07 de abril de 2021; a ré recusou o pagamento do valor contratado alegando não terem sido declaradas as vendas; porém, a autora atuou como sempre fez no que respeita às declarações de vendas mensais, sejam vendas para território nacional, para Espanha ou países extracomunitários; o sistema em que a autora inseria os dados das vendas não discrimina o território do seu cliente; nos termos contratados entre a autora e a ré, foi estabelecida uma franquia de € 500,00 e acordado que o seguro cobria apenas 90% do valor.
Citada, a ré contestou identificando-se como D..., S.A. de Seguros y Reaseguros – Sucursal em Portugal e excecionando a caducidade do direito de ação da autora em virtude desta não ter sido interposta no prazo de um ano após a decisão de recusa do sinistro por parte da ré; alegou ainda que aquando da participação do aviso de ameaça de sinistro, se apercebeu que a autora não tinha declarado a totalidade das vendas que havia efetuado, nomeadamente a que foi objeto do aviso de ameaça de sinistro, o que, nos termos das condições gerais do contrato de seguro, determina a exclusão das garantias relativamente às operações não declaradas; conclui pela procedência da exceção de caducidade e pela sua consequente absolvição do pedido e, caso assim não se entenda, pela total improcedência da ação com a sua total absolvição de todos os pedidos formulados pela autora.
Adrede notificada para o efeito, a autora ofereceu réplica alegando que no decorrer das negociações tendentes à celebração do contrato de seguro e mesmo posteriormente nunca lhe foram remetidas, explicadas ou sequer exibidas as condições gerais da apólice, sendo por isso nula a cláusula que estabelece a caducidade arguida pela ré, concluindo pela procedência da ação.
As partes foram advertidas da intenção de o tribunal recorrido dispensar a realização de audiência prévia e para, querendo, tomarem posição.
A ré pronunciou-se favoravelmente quanto à dispensa de realização da audiência prévia, desde que fosse facultada às partes a possibilidade de reclamarem por escrito do despacho saneador e da enunciação dos temas da prova e bem assim de alterarem os seus requerimentos probatórios.
Dispensou-se a realização de audiência prévia, fixou-se o valor da causa no montante de € 15.968,70, proferiu-se despacho saneador, relegando-se para final o conhecimento da exceção de caducidade, identificou-se o objeto do litígio, enunciaram-se os temas da prova, concedendo-se às partes dez dias para, querendo, manterem ou reformularem os seus requerimentos probatórios e para reclamarem da fixação do objeto do litígio e dos temas da prova.
A ré reclamou contra a enunciação dos temas da prova, reclamação que foi indeferida.
Designado dia para realização da audiência final, esta realizou-se em duas sessões, sendo em 14 de março de 2024 proferida sentença[1] que julgou improcedente a exceção perentória de caducidade invocada pela ré e bem assim a ação totalmente improcedente, absolvendo a ré de todos os pedidos.
Em 26 de abril de 2024, inconformada com a sentença cujo dispositivo precede, A..., Lda. interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“a) Salvo o devido respeito, não pode a Apelante concordar com a decisão proferida na parte em que julgou a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a ré D..., S.A. DE SEGUROS Y REASEGUROS – SUCURSAL EM PORTUGAL de todos os pedidos formulados pela autora A..., LDA, com Custas pela autora.
b) Entendeu pois o juiz “a quo”, que, em suma, que devido ao facto de a Autora, não ter individualizado na comunicação das vendas realizadas, a descriminação/ sub - descriminação pelo Pais de Marrocos, e ao invés de ter incluído tal venda no País de Espanha, se verificou uma
causa de exclusão da responsabilidade.
c) O tribunal “a quo”, teve em consideração, os factos dados como provados (cfr., factos provados n.ºs 15 e 16) e não provados (cfr., alíneas a. a c. da materialidade dada como não provada), em que verificou que o pressuposto, o da declaração de vendas totais por parte da autora, por países, não resultou provado, pelo que a acção tem necessariamente de soçobrar.
d) No mais, no que respeita aos factos provados n.ºs 13 e 14, 15 e 16 e 17 a 19 e conexas alíneas a. e c. e b., da materialidade dada como não provada, o Tribunal ateve-se, desde logo, no depoimento da testemunha AA- prestado no dia 27.02.2024, das 13:51 ás 14:57, profissional de seguros, tendo trabalhado em regime de exclusividade, por conta da ré, nos anos 2013 a julho de 2020.
e) Ora, a referida testemunha, num depoimento coeso, sustentado e equitativo (basta atentar que apelidou, ao longo do seu depoimento, por várias vezes, o comportamento da autora como “erro de simpatia”), admitiu recordar-se do contrato de seguro ajuizado e celebrado entre a autora e a ré, tendo sido o mediador de seguros.
f) A referida testemunha quanto ao motivo da recusa da ré em indemnizar a autora, a testemunha aludiu a “erro de simpatia”, tendo confirmado, com sustentação, que informou a autora que as vendas tinham de ser declaradas por país, utilizando a expressão “as vendas tinham de ser compostas por mercados, por países”, acrescentando ainda que, acha, que até essa altura a autora apenas tinha declarado as vendas para a Península Ibérica.
g) Quanto à testemunha BB- depoimento prestado na audiência do dia 14.02.2024, das 13:51 ás 14:57, refere que não havia nenhum motivo para não terem individualizado as vendas em Marrocos, tendo inserido as vendas desse cliente no campo Espanha.
h) Acrescentou que no início do contrato com a ré apenas havia clientes em Portugal e em Espanha (internacionais), tendo Marrocos sido o primeiro cliente fora da Península Ibérica.
i) Aludiu que não havia nenhum motivo para não terem individualizado as vendas em Marrocos, tendo inserido as vendas desse cliente no campo Espanha.
j) Acrescentou que no início do contrato com a ré apenas havia clientes em Portugal e em Espanha (internacionais), tendo Marrocos sido o primeiro cliente fora da Península Ibérica.
k) Disse, por fim, que a ré, após a autora lhe ter comunicado que o cliente C... não tinha pago, solicitou à autora novos documentos (guia da alfandega e do IVA), tendo a autora entregue toda a informação documental solicitada pela ré.
l) A testemunha CC, responsável pelos sinistros por conta da ré há 22 anos, confirmou as datas quer do sinistro quer do aviso de sinistro por parte da autora, acrescentando que interpretou o comportamento da autora como ocultação das vendas realizadas em Marrocos, em dezembro de 2020.
m) Acrescentou que a autora, posteriormente, poucos meses depois, já declarou as vendas para Marrocos e a ré, nessa sequência, indemnizou a autora.
n) Ora considerou o tribunal “a quo”, que o escopo da ré, constata-se que a análise de risco prende-se, necessariamente, com os clientes dos segurados em países concretos, com mercados específicos, pelo que a justificação apresentada pela autora (separação entre vendas nacionais e internacionais) para ter (alegadamente) declarado as vendas feitas para o seu cliente em Marrocos, no campo de Espanha, para além de não encontrar respaldo na demais prova produzida, não se afigura coerente com a normalidade do acontecer.
o) De facto, está dado como provado de que a Autora, teria de separar as vendas de entre vendas nacionais e internacionais e tais por país, o que não o fez.
p) Apenas e só, é alegado pela Apelada, para não proceder ao pagamento da indemnização devida, o erro de a Autora, ao não ter discriminado a venda efetuada para Marrocos, no País Marrocos e não, como o fez, incluído no País Espanha.
q) Dos factos dados como provados, a aludida venda para Marrocos, foi a primeira venda, exta Espanha e Portugal.
r) O contrato em crise, já perdurava à mais de 4/5 anos e durante todos esses 48/60 meses, a Apelante sempre efetuou da mesma maneira.
s) O seu modo de procedimento foi sempre idêntico- discriminada as vendas apenas por Portugal e Espanha.
t) E ao contrário do que parece crer o tribunal “a quo”, não existiu um agravamento do risco por parte da Ré ora Apelada, ou sequer intenção de não comunicar o que quer que fosse.
u) Se a Autora, tivesse na quadrícula respetiva- leia-se país Marrocos, colocado o valor (que inseriu no somatório do país Espanha) então não se verificaria qualquer causa de exclusão de responsabilidade.
v) De facto, a Apelante, em momento anterior ao fornecimento à Cliente C... Sarl, solicitou à Apelada, um seguro de crédito, no valor máximo de €20.000,00.
w) Seguro este que lhe fora concedido pela Apelada.
x) O risco já existia e foi ajuizado pela Apelada quando comunicou a sua autorização à Apelante para e com o valor máximo de €20.000,00, fornecer á sua cliente.
y) Pelo que em momento algum, o facto de a aludida venda ter sido, erradamente, comunicada, no País Espanha, quando deveria ter sido comunicada no país Marrocos, agravou o Risco do que quer que fosse.
z) O erro que a Apelante cometeu, e fraseamento das palavras da testemunha AA, foi apenas e só um “erro de simpatia”, cometido pelo funcionário da Apelante, Sr. BB.
aa) No entanto, e como o mesmo explicou - sempre tinha actuado daquela forma, estava convicto que a discriminação das vendas teria de ser, em Nacional e Internacional.
bb) Sendo que para si, internacional, eram todas as vendas fora Portugal.
cc) Que nunca lhe disseram que teria de discriminar as vendas por Países.
dd) E principalmente se tivesse conhecimento ou consciência de que teria de individualizar as vendas por Países o teria feiro.
ee) E que após ter sido instada pela Apelada, remeteu à mesma toda a documentação por a mesma solicitada relativa à venda reclamada.
ff) Assim sendo, o lapso, erro, cometido pela Apelante, só pode ser considerado um mero erro de simpatia, e desculpável.
gg) Erro este que não lhe pode ser assacada os efeitos gravoso que o tribunal “ a quo”, lhe pretende atribuir.
hh) Erro este que terá de ser desculpável, em face dos factos concretos:
- a verificação do erro em nada agravou o Risco
- o risco já existia e foi ajuizado e concedido pela Apelada quando comunicou a sua autorização à Apelante para e com o valor máximo de €20.000,00, fornecer á sua cliente.
- a atuação da Apelante nos 48/60 meses anteriores sempre fora idêntica, o que originou a interiorização de um determinado comportamento.
- passados alguns meses, a Apelante efetuou em tudo idêntico ao fornecimento em causa, a comunicação em relação ao cliente E..., mas já comunicou tal venda, individualizando o País Marrocos.
ii) Ou seja, o erro “de simpatia”, de não colocar ou individualizar, por País, não pode ser considerado como causa de exclusão da responsabilidade.
jj) Não pode tal lapso, que se frise não agravou ou diminuiu o risco, ser causa de não pagamento da indemnização devida pela Apelada à Apelante.
kk) A sentença proferida violou os artigos 246º e 249º do Código Civil.”
D..., S.A. de Seguros y Reaseguros – Sucursal em Portugal respondeu ao recurso pugnando pela sua total improcedência e, para a eventualidade de assim não suceder, requereu a ampliação do âmbito do recurso, oferecendo para este efeito as seguintes conclusões:
“XXVI. Nos termos do art.º 636, n.º 1 do Código de Processo Civil: “No caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhecerá do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
XXVII. Porque assim é impõe-se à Recorrida prevenir, na hipótese de a apelação vir a ser julgada procedente – o que não se consente e apenas por mera de hipótese de raciocínio se admite –, a apreciação do fundamento em que decaiu, nomeadamente quanto à caducidade.
XXVIII. Analisada a matéria de facto não provada, constata-se que a Meritíssima Juíza a quo considerou não provado que: (i) A autora e a ré acordaram, no âmbito do contrato descrito no ponto 3, que o direito de acção caduca no prazo de um ano a contar da data em que poderia ser exercido, nos termos da cláusula 12.ª, n.º 8.1 das condições gerais da apólice do contrato descrito no poto 3; (ii) A ré deu conhecimento, informou e esclareceu a autora relativamente à referida cláusula do contrato descrito no ponto 2, através do mediador AA.
XXIX. Para fundamentar a referida decisão de considerar tal matéria como não provada, referiu a Meritíssima Juíza a quo na sentença que “a testemunha AA admitiu não ter negociado nem informado e explicado a referida cláusula à autora.”
XXX. O que motivou a que o tribunal a quo tivesse considerado a referida cláusula 12.ª, n.º 8.1 como excluída nos termos do Decreto-lei n.º 446/85.
XXXI. Ora, não concordamos com o referido entendimento.
XXXII. A apólice de segura encontra-se junta aos autos (fls. 29 a 53) não tendo sido impugnada pela Recorrente.
XXXIII. A referida apólice de seguro encontra-se assinada e rubricada em todas as suas folhas pelo legal representante da Recorrente, que em sede de depoimento reconheceu a sua assinatura.
XXXIV. Em face do depoimento da testemunha AA, do minuto 36:10 ao minuto 37:55, do minuto 38:15 ao minuto 40:20, do minuto 40:42 ao minuto 41:15 e do minuto 41:42 ao minuto 47:00; e do depoimento da testemunha DD, à data da celebração do contrato, legal representante da Recorrente, do minuto 23:00 ao minuto 23:10; e do minuto 29:40 ao minuto 30:33; resulta de forma clara que o mediador se deslocou por diversas vezes às instalações da Recorrente, que teve várias reuniões presenciais antes da celebração da apólice, nos termos das quais o conteúdo da apólice – os principais direitos e obrigações – foram explicados ao Recorrente.
XXXV. O mediador de seguros referiu no seu depoimento que aconselhou e aconselhava sempre a leitura da apólice antes da sua assinatura;
XXXVI. Tendo a testemunha DD, à data representante legal da Recorrente, confirmado que assinou de cruz, que não teve interesse em ler nem colocou qualquer questão.
XXXVII. Perante todas as referidas evidências, parece-nos que andou mal o tribunal a quo a considerar a matéria dos pontos d) e e) como não provados.
XXXVIII. Aquele que parece ser o entendimento do tribunal a quo – e que não nos parece correto, salvo o devido respeito – é o de que todas e quaisquer cláusulas terão que ser explicadas detalhadamente pelo mediador sob pena de se considerarem como excluídas.
XXXIX. Mesmo por aplicação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais – que entendemos não ser de aplicar ao presente caso – nem assim vemos como fundamentada a decisão em apreço.
XL. É que, não é pelo facto de a Recorrida - através do seu mediador – não ter explicado expressamente a existência da cláusula de caducidade que será suficiente para que a mesma seja declarada nula ou excluída.
XLI. Decidindo-se assim está-se a imputar à Recorrida o desmazelo e incúria da própria Recorrente na celebração do contrato de seguro em causa nos presentes autos.
XLII. O comportamento de um contraente diligente pressupõe que o mesmo leia as condições contratuais, tire dúvidas, e só depois de devidamente esclarecido, se vincule ao texto do contrato.
XLIII. Cremos, efectivamente, que para se considerar que foi violado o dever de informação seria necessário demonstrar que a Recorrente tivesse solicitado a prestação de esclarecimentos à Recorrida, o que não se verificou, nem tão pouco foi alegado, antes pelo contrário.
XLIV. O dever de comunicação constante do art. 5.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, existe para possibilitar ao aderente o conhecimento antecipado da existência de cláusulas contratuais gerais que irão integrar o contrato singular, bem como o conhecimento do seu conteúdo, exigindo-lhe, para esse efeito, também a ele, um comportamento diligente.
XLV. À Recorrida cabia informar a Recorrente de todos os aspectos compreendidos nas cláusulas contratuais gerais cuja aclaração se justifique; razão pela qual
XLVI. Parece-nos assim que andou mal o tribunal a quo ao considerar a referida cláusula como excluída por não lhe ter sido especificamente explicada.
XLVII. Mesmo por aplicação do regime as cláusulas contratuais gerais, parece-nos que o dever de informar não compreende toda e qualquer cláusula, mas antes aquelas cuja aclaração se justifique; e
XLVIII. Num contrato de seguro de crédito, é por demais evidente que as cláusulas de maior relevância são aquelas que impõem ao Segurado determinadas obrigações – tais como as de comunicar as faltas de pagamento dos seus clientes, os avisos de ameaça de sinistro etc – e as consequências do seu incumprimento;
XLIX. E não, salvo melhor opinião, cláusulas do tipo o foro competente, a lei aplicável ou também a cláusula que estipula prazos de caducidade.
L. Em face do que vem exposto, andou mal o tribunal a quo ao ter considerado os pontos d) e e) como não provados;
LI. Devendo os mesmos, atenta a prova produzida, transitar para a lista de factos dados como provados.
LII. Assim se decidindo quanto à matéria de facto, terá igualmente que se considerar que o direito da Recorrente caducou.
LIII. Isto porque, nos termos do disposto no artº. 12.º, n.º 8.1 das condições gerais da apólice, o direito de acção derivado do contrato caduca no prazo de um ano a contar da data em que poderia ser exercido.
LIV. Conforme ficou provado, no dia 09.04.2021 a Recorrida, por carta, transmitiu à Recorrente a recusa do sinistro participado quanto ao cliente C... – cfr. Ponto 20 dos factos dados como provados;
LV. Tendo a presente acção sido interposta em 31.01.2023 e a Recorrente citada em 03.02.2023.
LVI. Nos termos do contrato subscrito, a Recorrente teria o prazo de um ano a contar da data em que o direito podia ser exercido para intentar a presente acção.
LVII. Nesta conformidade, considerando-se que o prazo começa a correr a partir da recusa do sinistro por parte da Recorrida, o eventual direito da Recorrente já teria caducada à data da instauração da presente acção.
LVIII. A Recorrente teria que ter interposto a presente acção judicial, sob pena de caducidade, sempre até 09.04.2022 – o que efectivamente não ocorreu.
LIX. Pelo que o direito de exigir qualquer indemnização decorrente do presente contrato de seguro caducou.
Sem prescindir,
LX. Por outro lado, não acompanhamos o tribunal a quo quanto ao enquadramento jurídico que fez do contrato de seguro celebrado.
LXI. Na verdade, o tribunal a quo entendeu que a cláusula deveria ser excluída do contrato por não ter sido expressamente explicada à Recorrente – já vimos, sem qualquer fundamento quanto à prova produzida – ao abrigo do regime das cláusulas contratuais gerais.
LXII. Sucede que, ao contrário daquele que foi o entendimento do tribunal a quo, a verdade é que o contrato de seguro celebrada entre Recorrente e Recorrida não deverá ser qualificado como contrato de adesão.
LXIII. Na verdade, o contrato de seguro de crédito, enquanto seguro de grandes riscos, é um contrato amplamente taylor made adapatado e negociado com cada cliente de forma individual.
LXIV. Tal como resulta das condições particulares e especiais, as mesmas reflectem precisamente aquilo que foi negociado com a Recorrente de acordo com as necessidades desta e das especificidades do seu negócio;
LXV. O que foi confirmado pelas testemunhas: tanto o mediador como o, à data, legal representante da Recorrente, confirmaram que nas reuniões que antecederam a celebração do contrato estiveram a negociar os termos do contrato;
LXVI. Da prova produzida resultou, assim, que o contrato de seguro de crédito, embora parta de uma base preestabelecida – as condições gerais – pode ser adaptado, derrogando-se essas disposições tanto nas condições particulares como nas condições gerais.
LXVII. Ora, assim sendo, parece-nos que não se afigura correta a qualificação do referido contrato como de adesão, pois que este tipo de contratos visa precisamente a mera adesão sem qualquer possibilidade de negociação entre as partes;
LXVIII. O que manifestação não foi o caso dos presentes autos – cfr. art. 1.º do Decreto-lei n.º 446/85, de 25 Outubro,
LXIX. Da prova produzida resultou precisamente o inverso e a Recorrente não alegou (e nem provou) que pretendeu negociar e alterar o disposto na referida cláusula 12.º, n.º 8 das condições gerais e que a Recorrido não permitiu, imponde-lhe tal redacção;
LXX. Pelo que sequer pelo n.º 2 do disposto no art. 1.º do Decreto-lei n.º 446/85, de 25 Outubro, se poderá qualificar tal cláusula como de adesão.
LXXI. Resulta do exposto que não sendo o contrato de seguro celebrado entre as partes um contrato de adesão, não lhe é aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais e, consequentemente, o regime do disposto no art. 8.º do diploma em apreço;
LXXII. Razão pela qual a cláusula n.º 12.º, n.º 8.1 das condições gerais da apólice deverá considerar-se perfeitamente válida e eficaz;
LXXIII. E, nessa sequência, considerar-se o direito que a Recorrente aqui pretende exercer como caduco, nos termos atrás expostos.
LXXIV. Pelo exposto, a decisão recorrida violou o disposto nos 1.º e 8.º do Decreto-lei n.º 446/85, de 25 Outubro e o art. 329.º do Código Civil.
LXXV. Em face de tudo quanto ora se expôs, deverá o recurso improceder, confirmando-se a douta sentença proferida, na parte objeto do presente recurso e, caso assim não se entenda – o que não se admite – deverá a ampliação do objeto de recurso ser julgada procedente, revogando-se aquela decisão na parte que considerou como não verificada a excepção da caducidade”.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil) e, se necessário, a ampliação do âmbito do recurso requerida pela recorrida, tudo por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da apelação:
2.1.1 Da falta de consciência da declaração e do erro de escrita da segurada na não individualização das vendas por país.
2.2 Da ampliação do âmbito do recurso:
2.2.1 Da impugnação das alíneas d) e e) dos factos não provados;
2.2.2 Da não qualificação do contrato objeto dos autos como contrato de adesão;
2.2.3 Da não violação pela seguradora dos deveres de comunicação e de informação das cláusulas contratuais à segurada.
3. Fundamentos de facto exarados na sentença recorrida e que não foram impugnados pela recorrente[2], não se divisando fundamento legal para a sua alteração oficiosa
3.1 Factos provados
3.2 Factos não provados
4. Fundamentos de direito
Do erro de escrita da segurada na não individualização das vendas por país
A recorrente pugna pela revogação da sentença recorrida e consequente procedência integral da ação alegando que apenas cometeu um erro na não discriminação das vendas por país, incluindo, por mero lapso, o crédito objeto do sinistro nas vendas para Espanha, não gerando tal lapso qualquer agravamento do risco, risco que já existia desde a comunicação da apelada à apelante da aceitação de segurar o aludido crédito.
A recorrida sustenta a total improcedência do recurso afirmando para tanto o seguinte:
a) provou-se que a recorrente não comunicou à recorrida a venda para Marrocos que pretende seja garantida pelo contrato de seguro;
b) a recorrente sabia da consequência contratual para o caso de ocultação de vendas;
c) o erro invocado pela recorrente não foi alegado nos articulados;
d) se acaso existisse de facto um erro na declaração das vendas, a apelante tinha que alegar e provar que tinha pedido a retificação dessa declaração;
e) a recorrente não ofereceu qualquer documento que permita concluir pela verificação do alegado erro;
f) a tese do erro nas declarações de venda ora invocada pela recorrente está em total oposição com o que a autora alegou em sede de articulados para justificação da não discriminação do país da sociedade devedora.
Cumpre apreciar e decidir.
Na petição inicial a ora recorrente afirmou que a venda que pretende coberta pelo seguro de crédito celebrado com a ré foi declarada como sempre fez e que o sistema em que as declarações eram realizadas não permitia a discriminação do país do seu cliente.
Agora, em sede de recurso da sentença proferida em primeira instância, a recorrente alega que por mero lapso incluiu a venda cuja cobertura pelo seguro reclama nestes autos nas vendas para Espanha.
Esta alegação é nova e contraditória com a afirmação de que o sistema em que as declarações de venda eram realizadas não permitia a discriminação do país do seu cliente.
A declaração de venda não é uma declaração de vontade integrante de um negócio jurídico, sendo antes uma declaração de ciência[3].
A recorrente invoca a existência de erro de escrita, mas não cuidou de alegar na petição inicial ou no recurso os pressupostos de que depende a atendibilidade desse erro e nem ao menos pediu a aplicação da consequência jurídica que cabe ao erro de escrita.
Por outro lado, alega que a sentença recorrida violou o disposto no artigo 246º do Código Civil, mas nada alegou nos articulados ou no recurso que seja passível de se reconduzir à falta de consciência na declaração, tal como nada pediu em termos de consequência jurídica compatível com esta figura jurídica.
Acresce que a falta de consciência na declaração é incompatível com o erro de escrita na declaração emitida.
Ora, excetuando o caso da verificação de nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia (artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil)[4], da existência de questão de conhecimento oficioso (artigos 608º, nº 2, 2ª parte e 663º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil), do conhecimento de questões prejudicadas (artigo 665º, nº 2, do Código de Processo Civil), da alteração do pedido, em segunda instância, por acordo das partes (artigo 264º do Código de Processo Civil) ou da mera qualificação jurídica diversa da factualidade articulada (artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil), os recursos destinam-se à reponderação de questões que hajam sido colocadas e apreciadas pelo tribunal recorrido, não se destinando ao conhecimento de questões novas[5].
Por isso, por constituir uma questão nova, este tribunal deveria abster-se de conhecer este único fundamento do recurso.
Porém, prevenindo entendimentos díspares sobre a qualificação do objeto do recurso como questão nova, apreciar-se-á o mérito da pretensão recursória da recorrente.
Não há qualquer controvérsia entre as partes sobre a fonte da pretensão acionada pela recorrente, tratando-se de um contrato de seguro de crédito disciplinado pelo decreto-lei nº 183/88 de 24 de maio e ainda pelas normas sobre seguros que não sejam incompatíveis com a natureza desse contrato (veja-se o nº 1 do artigo 1º do citado decreto-lei e o artigo 2º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo decreto-lei nº 72/2008 de 16 de abril).
Os riscos que podem ser cobertos pelo seguro de crédito vêm enunciados no artigo 3º do decreto-lei nº 183/88, sendo um destes riscos a falta ou o atraso no pagamento dos montantes devidos ao credor.
Ao contrário do que afirma a recorrente, o risco no contrato de seguro de crédito não existe desde a aceitação pela seguradora de cobertura desse risco, mas sim apenas com o nascimento do crédito segurado, ou seja, com a celebração do negócio de que emerge o crédito objeto do seguro[6].
Por outro lado, a indicação do país em que está estabelecido o devedor não é inócua, relevando desde logo para a aferição do concreto risco inerente à operação proposta e, consequentemente, na determinação do prémio[7].
No caso dos autos provou-se que a autora e a ré acordaram, no âmbito do contrato descrito no ponto 3. [3.1.3], que a não declaração à ré das operações passíveis de serem seguradas, ou a sua declaração fora dos prazos estabelecidos para o efeito se o risco já se encontrar agravado, determina a automática exclusão da garantia, nos termos da cláusula 11.ª, n.º 4 das Condições Gerais da apólice do contrato descrito no ponto 3. [3.1.3] (ponto 3.1.12 dos factos provados).
Mais se provou que no mês de dezembro de 2020, a autora declarou à ré as vendas realizadas em Portugal e Espanha e que não declarou à ré as vendas realizadas em Marrocos, inerentes ao cliente da autora C..., SARL, com sede na ..., em ..., Marrocos (pontos 3.1.15 e 3.1.16 dos factos provados).
A factualidade provada que se acaba de recordar evidencia que não houve qualquer lapso na identificação do país na declaração da venda, mas antes uma omissão de declaração, omissão que contratualmente implica a automática exclusão da garantia do seguro (veja-se o ponto 4.1 da décima primeira cláusula das condições gerais do contrato de seguro[8]).
Assim, a tese da recorrente de ter ocorrido um mero lapso na declaração de venda é frontalmente contrariada pela factualidade provada não impugnada pela recorrente.
Tanto basta para com toda a segurança concluir pela improcedência do recurso, ficando deste modo prejudicado o conhecimento da ampliação do âmbito do recurso.
As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente pois que improcedeu totalmente a sua pretensão recursória (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por A..., Lda. e, em consequência, confirmar a sentença recorrida proferida em 14 de março de 2024, nos segmentos impugnados, ficando prejudicado o conhecimento da ampliação do âmbito do recurso requerido por D..., S.A. de Seguros y Reaseguros – Sucursal em Portugal.
Custas a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
Porto, 11 de dezembro de 2024
Carlos Gil
Teresa Fonseca
Jorge Martins Ribeiro
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[1] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 14 de março de 2024.
[2] A recorrente quer nas alegações, quer nas conclusões das alegações faz variadas referências ao conteúdo de diversos depoimentos testemunhais, mas não se insurge contra qualquer facto provado ou não provado, nem requer a ampliação da decisão da matéria de facto. Ao invés, a recorrida impugnou as alíneas d) e e) dos factos não provados, em sede de ampliação do âmbito de recurso, impugnação que apenas será conhecida na eventualidade da procedência da apelação, já que este instrumento processual tem natureza subsidiária.
[3] Não obstante, as disposições dos negócios jurídicos são aplicáveis às declarações de ciência, na medida em que a analogia das situações os justifique (veja-se o artigo 295º do Código Civil).
[4] Em rigor, na eventualidade de suprimento da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, ex vi artigo 665º, nº 1, do Código de Processo Civil, o tribunal ad quem não conhece de uma questão nova, antes conhece de uma questão que foi suscitada junto do tribunal recorrido e de que este não conheceu.
[5] Sobre esta matéria vejam-se, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, Almedina 2022, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 139 a 142, anotação 5 ao artigo 635º do Código de Processo Civil; Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, Almedina 2009, Fernando Amâncio Ferreira, páginas 153 a 158.
[6] Neste sentido veja-se Seguro de Crédito, Prime Books 2004, último parágrafo da página 136.
[7] Atente-se que a cobertura para Marrocos é inferior à que seria se estivesse em causa uma venda para Espanha (veja-se a página 2 das condições particulares, relativa às condições por mercado e da qual resulta que Marrocos se incluiu nos países do Grupo 2).
[8] Esta previsão contratual tem o seguinte teor: “A não declaração à Companhia das operações passíveis de serem seguradas, ou a sua declaração fora dos prazos estabelecidos para o efeito se o risco já se encontrar agravado, determinará a automática exclusão de garantia das operações afectadas.”