I - A impugnação da decisão da matéria de facto incide, por definição, sobre matéria de facto e, por outro lado, tem uma função instrumental, no sentido de mediante a alteração da decisão da matéria de facto pretendida o impugnante ter suporte para uma pretendida alteração da decisão de direito, à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito decidendas.
II - Se um dos pontos de facto impugnados pelo recorrente integra uma conclusão a que se chega interpretando deliberações da assembleia de condóminos, porque se trata de uma operação eminentemente jurídica a levar a cabo em sede de fundamentação jurídica da decisão deve esse ponto impugnado ser removido dos fundamentos de facto.
III - Sendo o conteúdo da deliberação impugnada pelo recorrente mera confirmação do que anteriormente havia sido deliberado com o seu voto favorável e estando em causa matéria na disponibilidade das partes, não se verifica abuso do direito na deliberação cuja validade é questionada.
Sumário do acórdão proferido no processo nº 6602/22.7T8PRT.P1 elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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1. Relatório[1]
Em 06 de abril de 2022, com referência ao Juízo Local Cível do Porto, Comarca do Porto, AA, casado sob o regime da separação de bens com BB instaurou ação declarativa com processo comum contra o Condomínio do Edifício ..., sito na Rua ..., no ..., representado pelo seu administrador, CC, pedindo que:
a) se declare a anulabilidade da deliberação da assembleia de condóminos tomada em 15 de fevereiro de 2022, que denega a realização dos trabalhos pretendidos pelo autor, consistentes na aplicação de um sistema de isolamento térmico pelo exterior, tecnicamente designado por ETICS e vulgarmente conhecido por “capoto”, nos frontispícios poente e norte da fração identificada no artigo 1º da petição inicial;
b) se reconheça que as paredes exteriores da fração identificada no artigo 1º da petição inicial integram necessariamente as fachadas do prédio onde a (fração) se insere;
c) se condene o réu, representado pelo seu administrador, a cumprir as deliberações tomadas nas assembleias de 17 de novembro de 2014 e de 14 de maio de 2021, fazendo executar a aplicação de um sistema de isolamento térmico pelo exterior, tecnicamente designado por ETICS e vulgarmente conhecido por “capoto”, também nos frontispícios poente e norte da fração identificada no artigo 1º da petição inicial e a cumprir as deliberações tomadas.
Em síntese, para fundamentar as suas pretensões o autor alegou que é dono de um apartamento destinado à habitação de tipo T4, correspondente à fração AR, sito no 8º andar esquerdo do prédio sito à Rua ..., no ..., integrante do condomínio demandado; as frações do oitavo – último – andar do referido prédio têm a fachada mais recuada em relação ao restante edifício e são dotadas de um terraço até à empena do imóvel; o edifício está a ser alvo de obras de intervenção geral das fachadas, com a aplicação de um sistema de isolamento térmico pelo exterior, tecnicamente designado por ETICS[2] e vulgarmente conhecido por “capoto”; essas obras estão a ocorrer de forma faseada, atento o esforço financeiro para os condóminos que tal operação envolve; a primeira parte da intervenção ocorreu na fachada poente do imóvel, por deliberação da assembleia de condóminos, aprovada por unanimidade; todavia, na execução de tal empreitada, o construtor apenas aplicou o “ETICS” até ao 7º piso; nessa altura o autor reclamou junto da administração do condomínio, por a fachada poente da sua identificada fração não ter sido beneficiada, tendo-lhe sido assegurado que essa situação seria solucionada aquando da intervenção da fachada seguinte; em 14.05.2021, foi aprovada a intervenção na fachada seguinte, por a maioria dos condóminos entender, entre o mais, que tal obra melhoraria o seu conforto; na mesma assembleia, de 14.05.2021, o autor reclamou da situação da sua fachada, alertando que a sua fração estava a sofrer infiltrações; perante tal reclamação, o Administrador do condomínio afirmou que “conhecia bem o problema do 8º esq. uma vez que foi o responsável pela respetiva análise exaustiva, e cuja resolução era da responsabilidade do condomínio. Descreveu o problema atual da habitação, referindo ainda que a mesma necessitava de uma intervenção no revestimento exterior das fachadas poente e norte, sucedendo que a fachada poente não fora intervencionada aquando da reabilitação que teve lugar no ano de 2015.”; no ponto 2 dessa reunião de condóminos referiu-se que havia sido solicitado “ao Sr. DD a inclusão no orçamento da sua empresa, sem alteração do valor do mesmo, não só da intervenção anteriormente referida na habitação do condómino AA, como da reabilitação das juntas de dilatação existentes na fachada norte”; a assembleia de condóminos deliberou então pela concretização urgente da obra, com 96,00% de votos a favor; 1,83% contra e 2,16% de abstenções e o autor ficou convencido de que a omissão da sua fração quanto à aplicação do ETICS estava ultrapassada; porém, a intervenção nas paredes exteriores da sua identificada fração restringiram-se à calafetação de fissuras e à pintura, em contraponto com as obras realizadas nas habitações inferiores que levaram isolamento térmico – ETICS (capoto), conferindo a essas frações um grau de conforto e de eficiência energética muito superior; o autor contactou por diversas vezes e várias formas o administrador exigindo o cumprimento das referidas deliberações da assembleia de condóminos e um tratamento igualitário relativamente a todos os outros moradores, reiterando que o seu apartamento, embora recuado, não deixava de integrar a fachada do edifício; entretanto o Administrador referiu que, apesar de ter insistido com o empreiteiro, este não aceitou colocar ETICS na fachada da fração do A. sem alteração do preço da empreitada, pelo que apenas foram reparadas as fissuras da fachada reclamada; para justificar a não colocação de isolamento na fração do autor o Administrador alegou que, ao contrário do restante edifício, a fachada do recuado era em “monomassa”, pelo que não havia risco de desprendimento de qualquer material cerâmico, tendo o autor replicado que não existia nenhuma razão técnica que impedisse ou desaconselhasse a aplicação do mesmo revestimento usado no restante edifício e que esse era o meio mais eficaz para resolver as patologias existentes, além de beneficiar a fração em termos de conforto térmico, como acontecia com as demais; o autor, por intermédio do mandatário, solicitou que o administrador levasse o assunto da sua fachada à discussão na assembleia de condóminos ordinária, assembleia que se realizou no dia 15 de abril de 2022[3]; no final da ordem de trabalhos desta assembleia de condóminos – ponto 7.3 – abordou-se esta questão, referindo-se que o autor “não se encontra satisfeito com a obra realizada na sua habitação pois pretende que seja colocado nas paredes do exterior o ETICS (capoto)” e mencionou-se que tal “não está incluído no mandato atribuído à administração do condomínio na assembleia em que a realização da obra foi aprovada”; ora, resulta das atas da assembleia de condóminos de 17 de novembro de 2014 e 14 de maio de 2021 que foram tomadas deliberações no sentido da colocação de ETICS (capoto) na fachada, sendo que as paredes exteriores da fração do autor integram necessariamente a fachada do prédio; a intervenção reclamada pelo autor, colocada à votação, teve 97,07% de votos contra; o autor contribuiu, com as suas quotas extraordinárias, para a colocação de “capoto” nas paredes exteriores das habitações dos restantes condóminos e estes recusam-se contribuir para a colocação desse mesmo material nos frontispícios da fração daquele.
Citado, o condomínio contestou suscitando a sua ilegitimidade passiva, impugnou alguns dos factos alegados pelo autor, referindo que na assembleia de condóminos realizada em 14 de maio de 2021, foi aprovado por unanimidade, incluindo o voto favorável do autor, que a intervenção na fachada fosse concretizada de forma diferente consoante o revestimento em causa existente, isto porque, o revestimento em monomassa não apresentava qualquer risco de desprendimento (como sucedia com o material cerâmico); no 8º andar, onde se localiza a fração do autor, o revestimento é em monomassa, pelo que a intervenção deliberada era através de pintura com impermeabilização e não do sistema ETICS; em toda a fachada onde não existia cerâmico, e tal não sucede apenas na fração do autor, nem sequer apenas no 8º andar, mas em todo o prédio, foi efetuada a calafetação de fissuras, impermeabilização e pintura; conclui pela sua absolvição da instância e, não se entendendo assim, pela improcedência da ação.
Notificado para, querendo, responder à exceção de ilegitimidade passiva arguida pelo réu, o autor pronunciou-se pugnando pela improcedência dessa exceção.
Realizou-se audiência prévia fixando-se o valor da causa no montante de € 7 286,38; proferiu-se despacho saneador julgando-se improcedente a exceção de ilegitimidade passiva arguida pelo réu; identificou-se o objeto do litígio; enunciaram-se os temas da prova; conheceu-se dos requerimentos probatórios das partes e designou-se dia para realização da audiência final.
A audiência final realizou-se em quatro sessões e em 23 de janeiro de 2024 foi proferida sentença[4] que julgou totalmente improcedente a ação.
Em 11 de março de 2024, inconformado com a sentença cujo dispositivo precede, AA interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1ª – O presente recurso vem interposto da Sentença de fls., que julgou a acção improcedente absolvendo o Réu do pedido, e põe em causa a improcedência da acção, sobre o mais, ante a matéria que foi dada como provada e não o devia ter sido.
2ª - Impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto, o ora Apelante considera que foram incorrectamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto dada como provada na Sentença, e que não o devia ter sido, em concreto:
a) Foi aprovado que a intervenção na fachada fosse concretizada de forma diferente consoante o revestimento em causa existente (ponto 24 da matéria de facto provada);
b) O capoto foi utilizado nas zonas revestidas a cerâmica (ponto 26 da matéria de facto provada).
3ª – O recurso invoca ainda a nulidade da Sentença, por os escassos fundamentos dela estarem em oposição com a Decisão.
4ª – Independentemente de proceder ou não a alteração da matéria de facto impugnada, sempre tem de proceder a presente acção ante a matéria de facto dada como provada;
5ª – Relativamente à impugnação da matéria de facto, e quanto à que foi considerada como provada e não o devia ter sido, não é verdade que tenha sido aprovado ou deliberado que a intervenção na fachada fosse concretizada de forma diferente consoante o revestimento existente, como por exemplo colocar capoto só nas zonas das fachadas revestidas a cerâmica, ou que fosse só colocado nas zonas das fachadas revestidas em monomassa – como é referido no ponto 24 da matéria de facto provada.
6ª – O ora Apelante impugna-a, devendo ser dada como não provada.
7ª – Para se analisar o que foi decidido nas Assembleias sobre a intervenção nas fachadas do edifício, não se pode fazer tábua rasa como, salvo o devido respeito, fez o Tribunal “a quo”, do início da história das intervenções nas fachadas, nomeadamente das deliberações tomadas na Assembleia de 27.10.2014 (acta 32), a qual tem de ser considerado e ponderado.
8ª – Dessa consideração e ponderação resulta que se verifica por banda da Sentença recorrida uma gritante violação das deliberações tomadas nas Assembleias de Condóminos de 17.11.2014 e de 14.05.2021, que o Condomínio Réu deve ser condenado a cumprir.
9ª – A alegada concretização da intervenção nas fachadas ser de forma diferente consoante o revestimento em causa, é uma versão que só surgiu com a Contestação aos presentes autos: de que só seria colocado capoto nas zonas das fachadas que tivessem cerâmicos ou azulejos.
10ª – Tal versão não é verdadeira – desde logo porque o capoto não só foi colocado sobre as zonas de cerâmicos ou azulejos, como também em zonas de monomassa –, impugnando assim o Apelante a matéria de facto provada no número 24 da Sentença, a qual deve ser considerada como não provada.
11ª – O Apelante impugna, também, o facto dado como provado no número 26, e que deve ser havido como não provado.
12ª – Funda essa impugnação na prova documental e na testemunhal, nomeadamente nos depoimento do Engº EE, Engº Arqtº FF, Drª GG, Engº HH, DD, e Arqtº II.
13ª - Não resulta de qualquer das deliberações das obras a realizar nas fachadas poente (2014) e norte (2021) qualquer diferenciação na intervenção das fachadas, ou a exclusão de algum dos pisos do prédio na colocação do capoto – cfr. mesmas actas 33 e 44 – pontos 6 e 8 da matéria de facto dada como provada.
14ª – Relativamente à deliberação na Assembleia de 15.02.2022, pelos depoimentos prestados ficou provado que a Assembleia não percebeu o que estava em causa, tendo sido passada a ideia de que o Autor pretendia um tratamento de privilégio relativamente aos demais Condóminos, acrescentando uma testemunha que votou contra devido a esse pressuposto errado, e que quando posteriormente percebeu que o capoto estava a ser aplicado em todo o prédio, teria votado de forma diferente;
15ª – A deliberação tomada nessa Assembleia foi-o com base em pressupostos falsos, como se o Autor, ora Recorrente, pretendesse a colocação de Etics ou Capoto nas fachadas da sua fracção e que essa solução seria uma excepção porque alegadamente as demais fachadas não beneficiavam da aplicação do mesmo capoto.
16ª – Essa deliberação é ilegal pois vem contrariar frontalmente deliberações anteriores, e aprova um tratamento desigual e discriminatório do Autor, uma vez que as fachadas são partes comuns do prédio, e não se podem aplicar soluções diferentes nas fachadas sem qualquer justificação, nomeadamente técnica – é objectivamente contrária à lei.
17ª - Nos termos do disposto na parte final da alínea a) do número 1 do artigo 1421º do Código de Processo Civil, são partes comuns do prédio as paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio, sendo por isso as fachadas partes comuns do prédio, pelo que as paredes/fachadas do 8º andar do prédio, onde se inclui a fracção do Autor são partes comuns do prédio; de resto, conforme consta na Sentença ora posta em crise: “Nos autos o Réu não contesta, em momento algum, que as paredes exteriores da fracção do Autor integram as fachadas do prédio – parte comum.”, nem podia, pois tal é uma evidência que resulta da Lei.
18ª – Foi dado como provado em 4 dos factos provados na Sentença, que o edifício está a ser alvo de obras de intervenção nas fachadas, com a aplicação com um sistema de isolamento térmico pelo exterior, tecnicamente designado por Etics e vulgarmente conhecido por “capoto”.
19ª – Nas paredes/fachadas dos 7 pisos inferiores foi aplicado Etics ou capoto – números 7 e 12 dos factos provados na Sentença -, excluindo por isso partes das achadas que também são partes comuns do prédio.
20ª – Se foi deliberado colocar/revestir as paredes/fachadas do prédio a capoto, que são partes comuns do prédio, as paredes do 8º andar também teriam de ser revestidas a capoto.
21ª – A deliberação tomada na Assembleia de 15.02.2022 sempre é contrária à Lei, por isso que deve declarar-se a anulabilidade da mesma.
22ª – Tendo sido provado que o capoto foi colocado nas partes comuns só até ao 7º piso, obviamente que há um tratamento discriminatório do Autor e também viola o princípio constitucional da igualdade.
23ª – Independentemente do que foi aprovado, em qualquer caso sempre é ilegal a colocação de capoto numas partes comuns do prédio, gastando-se centenas de milhares de euros, excluindo outras partes comuns do prédio, isto sem qualquer justificação técnica, tendo ficado provado exactamente o contrário – pontos 13 e 18 dos factos provados na Sentença - não existia razão técnica que impusesse ou desaconselhasse a aplicação do mesmo revestimento usado no restante edifício, sendo o meio mais eficaz para resolver as patologias existentes na fracção do Autor e de beneficiar a sua fracção em termos de conforto térmico.
24ª - Verifica-se pois uma situação de abuso de direito que sempre deve ser declarada.
25ª – Verifica-se ainda que os fundamentos estão em oposição com a Decisão, sendo por isso nula a Sentença – alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, nulidade que aqui expressamente se invoca, para os devidos efeitos legais, e com as legais consequências.
26ª - Foram violados nomeadamente os artigos 1421º, nº 1, a) parte final, 1433º nº 1, 615º, nº 1, c) e 334º, todos do Código Civil, e o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
27ª - Termos em que procedendo a alteração da matéria de facto requerida, e restante parte do recurso, deve ser revogada a Sentença proferida, e substituída por outra que julgue procedente a acção, declarando-se a anulabilidade da deliberação tomada na Assembleia de Condóminos de 15.02.2022, e condenando-se o Réu a cumprir as deliberações tomadas nas Assembleias de .17.11.2014 e 14.05.2021, e o Condomínio condenado a colocar ETICS, vulgarmente conhecido por Capoto, nas fachadas do 8º piso do edifício, onde se situa da fracção do Autor, por serem partes comuns do prédio a que não podia ser dado um tratamento desigual das restantes fachadas do prédio, assim fazendo Vossas Excelências Justiça.”
O Condomínio do Edíficio ... ofereceu contra-alegações pugnando pela total improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos dos restantes membros do coletivo, cumpre agora apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da nulidade da sentença recorrida por oposição dos fundamentos com a decisão;
2.2 Da impugnação dos pontos 24 e 26 dos factos provados;
2.3 Da anulabilidade da deliberação da assembleia de condóminos tomada em 15 de fevereiro de 2022 por violação das deliberações de 17 de novembro de 2014 e de 14 de maio de 2021;
2.4 Da invalidade da deliberação da assembleia de condóminos de 15 de fevereiro de 2022 por abuso do direito.
3. Fundamentos
3.1 Da nulidade da sentença recorrida por oposição dos fundamentos com a decisão
O recorrente suscita a nulidade da sentença recorrida por oposição dos fundamentos com a decisão, referindo para tanto que “[f]ica por explicar o facto de o Sr. Administrador ter referido por escrito que o empreiteiro aceitou a condição estabelecida na Assembleia para a adjudicação respectiva, e ter sido dado como provado nos autos em 16 da matéria de facto provada que o mesmo Administrador informou que o empreiteiro não aceitou colocar ETICS na fachada do Autor sem alteração do preço da empreitada…” e que “[n]esta conformidade, verifica-se que os fundamentos estão em oposição com a Decisão, sendo por isso nula a Sentença – alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, nulidade que aqui expressamente se invoca, para os devidos efeitos legais, e com as legais consequências.
Cumpre apreciar e decidir.
O artigo 615º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil prevê que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
O vício previsto na primeira parte da alínea em análise verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da sentença proferida apontam num certo sentido e, depois, inopinadamente, surge um dispositivo que de todo não se coaduna com as premissas, sendo assim um vício na construção da sentença, um vício lógico nessa peça processual distinto do erro de julgamento que ocorre quando existe errada valoração da prova produzida, errada qualificação jurídica da factualidade provada ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis.
Ora, no caso em apreço, as razões invocadas pelo recorrente para integrar a nulidade da sentença por contradição dos fundamentos com a decisão cingem-se a considerações sobre o julgamento da matéria de facto, concretamente, a oposição entre o teor do documento nº 4 por si oferecido em 27 de abril de 2023 relativamente ao acordo com uma empreiteira quanto a uma condição contratual exigida para a aceitação do orçamento dessa entidade e o conteúdo do ponto 16 dos factos provados e do qual resultaria que afinal a aludida condição contratual não foi aceite.
Salvo melhor opinião, tal como os fundamentos da nulidade da sentença recorrida são “construídos” pelo recorrente, não existe qualquer contradição entre os fundamentos da decisão recorrida e a decisão, mas apenas e eventualmente, uma inverdade contida no aludido documento nº 4, inverdade denunciada pelo referido ponto 16 dos factos provados e isto desde que se possa afirmar, com segurança, que a aludida condição era a colocação do sistema ETICS na fração do recorrente, sem alteração do valor do orçamento.
Assim, face ao exposto, improcede esta arguição de nulidade suscitada pelo recorrente.
3.2 Da impugnação dos pontos 24 e 26 dos factos provados
O recorrente impugna os pontos 24 e 26 dos factos provados, pretendendo que a matéria neles contida seja julgada não provada, indicando, para tanto, as provas documentais e pessoais que sustentam a sua impugnação, localizando temporalmente na gravação os segmentos das provas pessoais que abonam as suas pretensões recursórias.
Cumpre apreciar e decidir.
Os pontos de facto impugnados pelo recorrente têm o seguinte teor:
- Foi aprovado que a intervenção na fachada fosse concretizada de forma diferente consoante o revestimento em causa existente (ponto 24 dos factos provados);
- O capoto foi utilizado nas zonas revestidas a cerâmica (ponto 26 dos factos provados).
A impugnação da decisão da matéria de facto incide, por definição, sobre matéria de facto e, por outro lado, tem uma função instrumental, no sentido de mediante a alteração da decisão da matéria de facto pretendida o impugnante ter suporte para uma pretendida alteração da decisão de direito, à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito decidendas.
A nosso ver, no ponto 24 dos factos provados determina-se o sentido, o alcance das deliberações em que foi decidida a intervenção nas fachadas do imóvel de que o recorrente é condómino. Essa determinação implica necessariamente a interpretação dessas deliberações[5], operação eminentemente jurídica a levar a cabo em sede de fundamentação jurídica da decisão.
Assim sendo, o ponto 24 dos factos provados deve ser extirpado dos fundamentos de facto, já que a determinação do que foi aprovado nas deliberações é algo que se obtém interpretando-as, ficando assim prejudicada a impugnação do recorrente deduzida contra este ponto de facto.
Vejamos agora o ponto 26 dos factos provados.
O recorrente pretende que seja julgado não provado este ponto de facto porque, na sua perspetiva, resulta de prova pessoal que localiza na gravação que o “capoto” não foi apenas aplicado nas zonas revestidas a cerâmica, tendo sido também aplicado nalgumas partes da fachada do prédio revestidas a monomassa.
Salvo melhor opinião, esta impugnação do recorrente assenta no equívoco de que no pronto 26 dos factos provados se dá como assente que o “capoto” apenas foi aplicado nas zonas revestidas a cerâmica, quando o que dele resulta é que nas zonas revestidas a cerâmica foi aplicado “capoto” e nada mais do que isso.
Atento o real alcance do ponto 26 dos factos provados, a impugnação do recorrente é destituída de qualquer utilidade, já que lhe imputa um alcance que de facto não tem, sendo além disso e de antemão a sua pretensão votada ao insucesso já que nem ele próprio nega que o capoto foi aplicado nas zonas revestidas a cerâmica.
Neste contexto, a impugnação do ponto 26 dos factos provados é destituída de conteúdo útil, traduzindo-se na prática de um ato inútil, por isso proibido (artigo 130º do Código de Processo Civil), razão pela qual se indefere a impugnação deste ponto de facto.
Improcede assim esta questão recursória.
No entanto, tendo em conta que existe matéria de facto relativa aos orçamentos aprovados nas assembleias de condóminos realizadas em 17 de novembro de 2014 e 14 de maio de 2021 que tem o acordo das partes e que tal matéria é relevante para a boa decisão da causa à luz das variadas questões de direito e especialmente para a interpretação das deliberações de 17 de novembro de 2014 e de 14 de maio de 2021, ao abrigo do disposto no artigo 607º, nº 4, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 663º, nº 2, do mesmo diploma legal deve integrar-se essa matéria na factualidade provada.
Embora o tribunal recorrido tenha incluído na factualidade provada no ponto 23 uma referência a essa matéria, verifica-se que a mesma é genérica, ficando-se sem se saber a que orçamento aprovado se refere e em que deliberação ocorreu essa aprovação.
O réu ofereceu com a sua contestação o documento nº 1, datado de 14 de abril de 2021, da autoria da “A..., Lda.” que teria sido o orçamento aprovado na assembleia de condóminos realizada em 14 de maio de 2021, documento que não foi impugnado pelo autor.
Por outro lado, em consonância com o documento oferecido pela parte contrária a que se acaba de aludir, o autor juntou com o seu requerimento de 27 de abril de 2023, referência citius 35482156, um orçamento, sem data, alegadamente aprovado na deliberação tomada em 17 de novembro de 2014, não tendo essa matéria nem o documento sido impugnado pela parte contrária.
Qualquer dos dois documentos apresenta divergências do valor orçamentado relativamente ao valor mencionado nas referidas atas, mas convergem nos trabalhos orçamentados, estando manuscrito no orçamento mais antigo valor igual ao que consta na ata nº 33.
Assim, face ao exposto, por se achar admitida por acordo, adita-se à factualidade e em substituição da vertida no ponto 23 de factos provados a seguinte matéria de facto:
Na assembleia de condóminos do Edifício da Rua ... – ... realizada no dia 17 de novembro de 2014, foi aprovado um orçamento sem data elaborado por A..., Lda., com referência ao Edifício da Rua ... – ..., com o valor global de € 28 858,21, com um símbolo e números manuscritos fixando esse valor no montante de € 28 277,00, com referência aos seguintes trabalhos, quantidades, valores unitários e globais:
1.1 Recuperação das chapas isotérmicas amassadas, em virtude de não existirem iguais no mercado, propondo o aumento da estrutura de suporte destas | 31,62 m2 | 10,50€ | 332,01€ | ||||
2 Tratamento das chaminés emergentes da cobertura inclinada com reboco delgado armado com rede de fibra de vidro anti-alcalina nos paramentos verticais e reboco delgado armado + Sikalastic 612 com armadura de rede de fibra de vidro anti-alcalina na parte superior, incluindo a sua pintura | 111 m2 | 18,00€ | 1.998,00€ | ||||
3.1.1. Alteração do revestimento exterior em ladrilhos cerâmicos da fachada poente, corpo em balanço, por sistema ETICS – Weber.therm com 4 cm de isolamento em poliestireno e acabamento em Weber.plast decor em cor a definir, incluindo tratamento e reparação das fissuras | 298 m2 | 28,50€ | 8.493,00€ | ||||
3.1.2 Lavagem e aplicação de hidrorepelente nas pedras calcárias e masticagem das caixilharias existentes nesta fachada, assim como aumento das soleiras existentes em perfil de alumínio lacado à cor da caixilharia existente | 21 uni. | 30,00€ | 630,00€ | ||||
4.1 Substituição pontual do revestimento em ladrilhos cerâmicos das fachadas nas áreas adjacentes a infiltrações e nas áreas em que o revestimento se encontre destacado do suporte, incluindo a reparação das fissuras da fachada e aplicação de reboco delgado armado | 267,5 m2 | 15,00€ | 4.012,50€ | ||||
4.2 Lavagem e aplicação de hidrorepelente nas pedras calcárias e masticagem das caixilharias existentes nesta fachada | 16 uni. | 20,00€ | 320,00€ | ||||
5.1 Limpeza e tratamento da fachada do último piso recuado com revestimento de monocamada com pedra projectada, incluindo tratamento de fissuras eventualmente existentes em sistema de ponte, reconstrução de reboco impermeável e pintura geral do recuado | 414,4m2 | 15,50€ | 6.423,20€ | ||||
5.2 Lavagem e aplicação de hidrorepelente nas pedras de calcário existentes nestas zonas | 35 uni. | 20,00€ | 700,00€ | ||||
6. Fornecimento, montagem e desmontagem de andaimes homolugados [sic], nas fachadas, para inspecção e reparação das anomalias referidas nos pontos 3 e 4 | 730 m2 | 4,00€ | 2.920,00€ | ||||
7.1 Descravar, retirar e voltar a aplicar guardas metálicas de protecção ao terraço do 8º piso, | 166 ml | 9,50€ | 1.577,00€ | ||||
7.2 Fornecimento e aplicação de rufo tipo capacete, em alumínio lacado beije, sobre as guardas/platibandas dos terraços do 8º andar, referidos no ponto anterior, com desenvolvimento aproximado de 24 cm, fixo por meio de presilhas e com juntas de dilatação | 166 ml | 8,75€ | 1.452,50€ |
Referência
| Importância
(€) | ||
3 - Revestimento existente
Batimento e sondagem de todo a fachada com revestimento cerâmico, retirada daqueles cerâmicos que denotem problemas causados pela deterioração da base de colagem, para posterior aplicação em futuras intervenções na fachada principal e regularização dessas zonas com reboco hidrofugo. | 2 750,00 | ||
Sondagem do revestimento da fachada em monomassas com remoção do revestimento desagregado e reposição de novo revestimento | 6 150,00
| ||
4 – Novo Revestimento | |||
Fornecimento e aplicação do sistema ETICS sobre o revestimento cerâmico com EPS 100 e 50 mm de espessura, segundo o sistema homologado da VIERO (Vieroquartz Primer + colagem com Adesan CPV cinza + EPS 100 de 20 kg/m2 com 50 mm de espessura + 6 buchas de fixação/m2 + barramento com Adesan CPV cinza e rede anti-alcalina de 160 g + Visolplast RSTF + 1 demão de pintura com Vieroquartz AG), incluindo perfis de arranque e esquineiros em todos os vãos | 31 250,00 | ||
Pintura das zonas revestidas a monomassas com uma demão de primário Silica Fondo SD, da Viero, e duas demãos de Silica Paint, da Viero | 9 431,60 |
TOTAL 129.126,60
Aos valores indicados acresce a taxa do IVA em vigor
(…)
3.3 Fundamentos de facto exarados na sentença recorrida com a alteração decorrente da decisão que precede
3.3.1 Factos provados
1.1 Recuperação das chapas isotérmicas amassadas, em virtude de não existirem iguais no mercado, propondo o aumento da estrutura de suporte destas | 31,62 m2 | 10,50€ | 332,01€ | ||||
2 Tratamento das chaminés emergentes da cobertura inclinada com reboco delgado armado com rede de fibra de vidro anti-alcalina nos paramentos verticais e reboco delgado armado + Sikalastic 612 com armadura de rede de fibra de vidro anti-alcalina na parte superior, incluindo a sua pintura | 111 m2 | 18,00€ | 1.998,00€ | ||||
3.1.1. Alteração do revestimento exterior em ladrilhos cerâmicos da fachada poente, corpo em balanço, por sistema ETICS – Weber.therm com 4 cm de isolamento em poliestireno e acabamento em Weber.plast decor em cor a definir, incluindo tratamento e reparação das fissuras | 298 m2 | 28,50€ | 8.493,00€ | ||||
3.1.2 Lavagem e aplicação de hidrorepelente nas pedras calcárias e masticagem das caixilharias existentes nesta fachada, assim como aumento das soleiras existentes em perfil de alumínio lacado à cor da caixilharia existente | 21 uni. | 30,00€ | 630,00€ | ||||
4.1 Substituição pontual do revestimento em ladrilhos cerâmicos das fachadas nas áreas adjacentes a infiltrações e nas áreas em que o revestimento se encontre destacado do suporte, incluindo a reparação das fissuras da fachada e aplicação de reboco delgado armado | 267,5 m2 | 15,00€ | 4.012,50€ | ||||
4.2 Lavagem e aplicação de hidrorepelente nas pedras calcárias e masticagem das caixilharias existentes nesta fachada | 16 uni. | 20,00€ | 320,00€ | ||||
5.1 Limpeza e tratamento da fachada do último piso recuado com revestimento de monocamada com pedra projectada, incluindo tratamento de fissuras eventualmente existentes em sistema de ponte, reconstrução de reboco impermeável e pintura geral do recuado | 414,4m2 | 15,50€ | 6.423,20€ | ||||
5.2 Lavagem e aplicação de hidrorepelente nas pedras de calcário existentes nestas zonas | 35 uni. | 20,00€ | 700,00€ | ||||
6. Fornecimento, montagem e desmontagem de andaimes homolugados [sic], nas fachadas, para inspecção e reparação das anomalias referidas nos pontos 3 e 4 | 730 m2 | 4,00€ | 2.920,00€ | ||||
7.1 Descravar, retirar e voltar a aplicar guardas metálicas de protecção ao terraço do 8º piso, | 166 ml | 9,50€ | 1.577,00€ | ||||
7.2 Fornecimento e aplicação de rufo tipo capacete, em alumínio lacado beije, sobre as guardas/platibandas dos terraços do 8º andar, referidos no ponto anterior, com desenvolvimento aproximado de 24 cm, fixo por meio de presilhas e com juntas de dilatação | 166 ml | 8,75€ | 1.452,50€ |
Referência
| Importância
(€) | ||
3 - Revestimento existente
Batimento e sondagem de toda a fachada com revestimento cerâmico, retirada daqueles cerâmicos que denotem problemas causados pela deterioração da base de colagem, para posterior aplicação em futuras intervenções na fachada principal e regularização dessas zonas com reboco hidrofugo. | 2 750,00 | ||
Sondagem do revestimento da fachada em monomassas com remoção do revestimento desagregado e reposição de novo revestimento | 6 150,00
| ||
4 – Novo Revestimento | |||
Fornecimento e aplicação do sistema ETICS sobre o revestimento cerâmico com EPS 100 e 50 mm de espessura, segundo o sistema homologado da VIERO (Vieroquartz Primer + colagem com Adesan CPV cinza + EPS 100 de 20 kg/m2 com 50 mm de espessura + 6 buchas de fixação/m2 + barramento com Adesan CPV cinza e rede anti-alcalina de 160 g + Visolplast RSTF + 1 demão de pintura com Vieroquartz AG), incluindo perfis de arranque e esquineiros em todos os vãos | 31 250,00 | ||
Pintura das zonas revestidas a monomassas com uma demão de primário Silica Fondo SD, da Viero, e duas demãos de Silica Paint, da Viero | 9.431,60 |
TOTAL 129.126,60
Aos valores indicados acresce a taxa do IVA em vigor
(…)
3.3.2 Factos não provados
4. Fundamentos de direito
4.1 Da anulabilidade da deliberação da assembleia de condóminos tomada em 15 de fevereiro de 2022 por violação das deliberações de 17 de novembro de 2014 e de 14 de maio de 2021
A recorrente pugna pela anulabilidade da deliberação de 15 de fevereiro de 2022 tomada pela assembleia de condóminos do Condomínio do Edifício ..., sito na Rua ..., ..., deliberação aprovada por maioria e com o seu voto contra.
Cumpre apreciar e decidir.
De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 1433º do Código Civil, são anuláveis as deliberações da assembleia de condóminos contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados, a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado.
Antes de mais, apreciemos se a deliberação de 15 de fevereiro de 2022 é contrária às deliberações de 17 de novembro de 2014 e 14 de maio de 2021.
Para tanto, há que determinar o alcance das deliberações que o recorrente afirma terem sido violadas, isto é, em síntese, se das mesmas resulta que a fachada do condomínio réu no oitavo piso recuado, à semelhança da fachada do mesmo prédio até esse piso tinha de ser revestida com um sistema vulgarmente denominado “capoto”.
Em momento anterior deste acórdão já se deu notícia de que a matéria da interpretação de deliberações não é matéria pacífica[7], advogando alguns que se aplicam ao caso, ao menos por analogia as regras da interpretação do negócio jurídico[8], enquanto outros pugnam pela aplicação também por analogia das regras para interpretação da lei[9].
Não obstante a divergência dogmática de que se acaba de dar notícia, existe uma convergência doutrinal no sentido de a interpretação das deliberações ter de obedecer a critérios essencialmente objetivos, orientação que se nos afigura plenamente justificada, dado que a deliberação é produto de uma pluralidade de votos, com razões que não têm de ser coincidentes, podendo cada um desses votos enfermar de patologias próprias[10] e ainda porque ao contrário da proposta negocial a deliberação não tem um destinatário a que seja endereçada, antes vale por si própria.
Na interpretação da deliberação de 17 de novembro de 2014 (ata nº 33) deve começar por destacar-se que antes da tomada da deliberação diversos condóminos foram tomando posição revelando particular preocupação com o revestimento em cerâmica da fachada poente[11], sendo o revestimento “ETICS” visto como um instrumento para revestir a fachada existente em cerâmica[12] (vejam-se assim, os pontos 1.2, 1.5, 1.6, 1.7, 1.8 desta deliberação, no ponto 3.3.1.6 dos factos provados).
A nosso ver, embora a proposta constante do ponto 1.15 da deliberação de 17 de novembro de 2014 apenas se refira à fachada poente, referência que incluiria necessariamente o oitavo piso constituído por uma fachada recuada em monomassa, afigura-se-nos que esta proposta surge como corolário das precedentes intervenções e por isso teria em vista a substituição de revestimento em cerâmica da fachada poente, revestimento que não existe no oitavo piso do imóvel do condomínio réu.
Esta leitura sai reforçada se se atentar no orçamento que nesta deliberação foi aprovado pelos condóminos presentes, havendo uma nítida diferenciação dos trabalhos a executar na fachada poente revestida a cerâmica, dos trabalhos a executar na fachada do oitavo piso recuado (veja-se o ponto 3.3.1.23 dos factos provados, pontos 3.1.1 e 5.1 do orçamento aprovado).
Assim, ao contrário do que sustenta o recorrente, a deliberação tomada em 17 de novembro de 2014 não foi no sentido de aplicação de capoto em toda a fachada poente do Edifício ..., sito na Rua ..., ..., mas sim apenas na fachada desse imóvel revestida com material cerâmico que vai até ao sétimo piso, excluindo-se desta solução o oitavo piso da mesma fachada, piso que se acha recuado relativamente à restante fachada.
Vejamos agora a deliberação de 14 de maio de 2021.
Esta deliberação não tem referências como a que foi tomada em 17 de novembro de 2014 à substituição do revestimento da fachada do prédio em cerâmica por capoto.
Porém, cremos que esta omissão é compreensível pois estava em causa a continuação de trabalhos já iniciados de substituição do revestimento em cerâmica dos primeiros sete pisos do edifício por capoto, estando os condóminos necessariamente inteirados do que até então havia sido executado.
À semelhança do que se observou relativamente à deliberação de 17 de novembro de 2014, também nesta assembleia de condóminos foi aprovado um orçamento, havendo neste uma nítida diferenciação dos trabalhos a executar na fachada norte e parte da fachada poente revestida a cerâmica, dos trabalhos a executar na fachada do oitavo piso recuado que, como está provado, está revestido com monomassa (vejam-se os pontos 3.3.1.15 e 3.3.1.24 dos factos provados e os pontos 3 e 4 do orçamento aprovado).
Deste modo, à semelhança do que se concluiu relativamente à deliberação de 17 de novembro de 2014, a deliberação da assembleia de condóminos realizada em 14 de maio de 2021 não foi no sentido de aplicação de capoto em toda a fachada norte e parte da fachada poente do Edifício ..., sito na Rua ..., ..., mas sim apenas nas fachadas desse imóvel revestida com material cerâmico e que vão até ao sétimo piso, inclusive, excluindo-se desta solução o oitavo piso das mesmas fachadas, o qual se acha recuado relativamente às restantes fachadas.
Resultando da interpretação que fizemos das deliberações tomadas em 17 de novembro de 2014 e 14 de maio de 2021 uma diferenciação no revestimento da fachada do prédio até ao sétimo piso, inclusive e no revestimento da fachada recuada do oitavo piso do mesmo imóvel, não estando prevista a aplicação de capoto neste último piso, não existe qualquer oposição da deliberação tomada em 15 de fevereiro de 2022 com as referidas deliberações.
Ainda que assim não fosse, face ao disposto no nº 1 do artigo 1433º do Código Civil[13], afigura-se-nos que a violação de uma deliberação anteriormente tomada, desde que não constitutiva de direitos de terceiros ou não tenha sido executada, não determina a anulabilidade de ulterior deliberação que não respeite a anteriormente tomada.
A assembleia de condóminos enquanto órgão deliberativo do condomínio tem sempre o poder de revogar expressa ou tacitamente ou de alterar deliberação anteriormente tomada, desde que para tanto se forme a necessária maioria.
Conclui-se assim pela improcedência desta primeira questão recursória.
4.2 Da invalidade da deliberação da assembleia de condóminos de 15 de fevereiro de 2022 por abuso do direito
O recorrente pugna pela anulabilidade da deliberação da assembleia de condóminos do Edifício ..., sito na Rua ..., ..., tomada no dia 15 de fevereiro de 2022 porque, na sua perspetiva, os condóminos que votaram favoravelmente a referida deliberação pretendem com esta não reconhecer ao ora recorrente o isolamento térmico da sua fração em termos idênticos ao das frações que não se acham no último piso e, não obstante, o recorrente contribuiu com quotas extraordinárias liquidadas em função da sua permilagem para custear o isolamento dessas frações.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
No caso dos autos, o abuso do direito resultaria de a deliberação impugnada exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé.
Não custa reconhecer que os condóminos do oitavo piso têm em termos de revestimento e isolamento das suas fachadas um tratamento negativamente diferenciado relativamente a todos os outros condóminos, já que o isolamento térmico – ETICS (capoto) confere um grau de conforto e de eficiência energética superior ao revestimento do último piso do prédio.
Embora os elementos de facto constantes dos autos sejam escassos[14] (no entanto, vejam-se os valores unitários no orçamento a que se refere o ponto 3.3.1.23 dos factos provados), tudo indica que os custos do revestimento ETICS são mais elevados do que o custo do revestimento colocado na fachada da fração do recorrente (confrontem-se os pontos 3.1.1 e 5.1 do orçamento antes referido e os preços unitários por metro quadrado de cada revestimento).
Pode assim concluir-se que a fração do recorrente não beneficia de uma solução de isolamento térmico tão eficiente como as frações dos pisos inferiores, mas não obstante isso o recorrente contribui para os custos mais elevados de um sistema de isolamento de que a sua fração não beneficia.
Contudo, esta desigualdade entre condóminos no que respeita ao isolamento das paredes que constituem as fachadas do prédio, contou com o voto favorável do ora recorrente nas assembleias de condóminos realizadas em 17 de novembro de 2014 e 14 de maio de 2021, tendo assim consentido nessa diferenciação de isolamentos aprovando orçamentos que materializavam essa situação.
Está em causa matéria na disponibilidade do recorrente e que este aceitou regular de modo que atualmente repudia, votando duas deliberações da assembleia de condóminos distanciadas temporalmente uma da outra quase sete anos. Desconhece-se por que razão o ora recorrente votou desse modo, nomeadamente, se houve um erro de interpretação da sua parte, se estava distraído ou simplesmente porque essa lhe pareceu então a melhor solução.
Sendo o conteúdo da deliberação impugnada pelo recorrente mera confirmação do que anteriormente havia sido deliberado com o seu voto favorável e estando em causa matéria na disponibilidade das partes, não se verifica abuso do direito na deliberação cuja validade é questionada.
Pelo exposto, improcede também esta questão recursória, improcedendo o recurso e sendo as custas deste da responsabilidade do recorrente por ter ficado vencido (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por AA e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida proferida em 23 de janeiro de 2024 nos segmentos impugnados.
Custas do recurso a cargo do recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
Porto, 11 de dezembro de 2024
Carlos Gil
José Eusébio Almeida
Ana Paula Amorim
____________________________________
[1] Segue-se, com alterações, o relatório da decisão recorrida.
[2] Acrónimo de “External Thermal Insulation Composite System”.
[3] Aliás 15 de fevereiro de 2020, como inequivocamente decorre da ata nº 45 oferecida pelo autor com a petição inicial como documento nº 6 e para prova desta alegação.
[4] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 24 de janeiro de 2024.
[5] Sobre a problemática da interpretação das deliberações sociais, a nosso ver, com similitudes com as deliberações das assembleias de condóminos, vejam-se: Anulação de Deliberação Social e Deliberações Conexas, Atlântida Editora 1976, Vasco da Gama Lobo Xavier, páginas 553 a 572, nº 46.; Deliberações de Sociedades Comerciais, Almedina 2005, Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, páginas 359 a 374.
[6] A data que consta desta ata, oferecida pelo autor com a petição inicial como documento nº 2 é 17 de novembro de 2014.
[7] Embora os autores que citámos se debrucem sobre deliberações sociais de sociedades comerciais, há uma evidente similitude com as deliberações da assembleia de condóminos que justificam este recurso à doutrina comercialística. Neste sentido veja-se A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Almedina 2000, Sandra Passinhas, página 256, ponto 6.
[8] Expressamente neste sentido veja-se Anulação de Deliberação Social e Deliberações Conexas, Atlântida Editora 1976, Vasco da Gama Lobo Xavier, páginas 556 a 557.
[9] Veja-se Deliberações de Sociedades Comerciais, Almedina 2005, Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, páginas 365 a 374.
[10] Neste sentido veja-se Deliberações de Sociedades Comerciais, Almedina 2005, Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, páginas 113 a 115.
[11] Infere-se dos factos provados que esta preocupação resultava do receio de queda de peças cerâmicas da fachada para a via, com o inerente risco de serem atingidas pessoas (veja-se o ponto 3.3.1.25 dos factos provados).
[12] Ao contrário do recorrente não damos relevo ao facto de existirem algumas zonas da fachada do imóvel nos sete primeiros pisos que não se acham revestidas com material cerâmico e que foram revestidas com capoto, solução que se compreende a fim de a fachada apresentar um aspeto uniforme.
[13] Não se desconhece que alguma doutrina sustenta que esta previsão legal não tem natureza taxativa: Veja-se Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, Universidade Católica Editora 2021, coordenação de Henrique Sousa Antunes, anotação I ao artigo 1433º do Código Civil, da responsabilidade de Ana Filipa Morais Antunes e Rodrigo Moreira, página 500.
[14] Escassos e até intrigantes. Repare-se que no ponto 3.1.1 do orçamento referido no ponto 3.3.1.23 dos factos provados, avalia-se o custo da aplicação de “capoto” na fachada poente revestida a cerâmica, tendo como referência uma área de 298 m2, enquanto para o tratamento da fachada do último piso se prevê uma área de 414,4 m2 (ponto 5.1 do mesmo orçamento).