EXECUÇÃO DE SENTENÇA
REIVINDICAÇÃO
EXECUÇÃO PARA ENTREGA DE COISA CERTA
Sumário

A uma execução para entrega de coisa certa cujo título executivo é uma sentença que condenou o réu, ora executado, a entregar ao proprietário o imóvel que habitava sem qualquer título, não pode o executado opor relação de arrendamento anterior à ação declarativa.

Texto Integral

Acordam os abaixo identificados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
«AA», executado no processo que lhe foi movido pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I.P., abreviadamente, IHRU (instituto que sucedeu ao Instituto de Gestão do Património Habitacional do Estado, IGAPHE), notificado do despacho de indeferimento liminar dos embargos que deduziu à execução, e com esse despacho não se conformando, interpôs o presente recurso.

O título dado à execução é uma sentença condenatória, transitada em julgado, que declarou reconhecido o direito de propriedade do autor (ora exequente, embargado e recorrido) sobre o prédio urbano para habitação, sito na Praceta …, …, Seixal, e condenou os réus (entre os quais o ora executado, embargante e recorrente) a reconhecerem tal direito e a entregar ao autor o referido prédio livre e devoluto de pessoas e bens.
Os réus foram, ainda, condenados a pagar ao autor, a título de indemnização, a quantia de 856€ (correspondente a rendas que o autor poderia ter recebido entre junho e outubro de 2005 se o imóvel não estivesse ocupado pelos réus), acrescida de juros de mora desde a citação, calculados à taxa legal, e, a contar dessa data, a quantia mensal de 171,24€, até efetiva entrega do prédio.
A ação declarativa que culminou com a sentença ora dada à execução é uma ação de reivindicação, que correu termos no 3.º Juízo Cível da Comarca do Seixal, sob o n.º …/05.7TBSXL, intentada pelo então IGAPHE contra «BB», solteira, desempregada, titular do BI n.º …, contribuinte fiscal n.º …, e «AA», solteiro, vendedor ambulante, contribuinte fiscal n.º …, ambos a residir no imóvel do autor sito na Praceta …, …, Seixal, desde data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 15 de junho de 2005, altura em que arrombaram a porta da propriedade do autor e se instalaram na mesma, nela passando a viver.
Pessoal e regularmente citados, os réus não contestaram aquela ação, que terminou com a sentença ora em execução.
A sentença está junta ao processo executivo, a seguir ao requerimento executivo inicial, que deu entrada no Juízo Local Cível do Seixal - Juiz 1, e deu origem ao apenso …/05.7TBSXL-A. A mesma sentença transitou em julgado em 03/09/2007, conforme declaração de 05/02/2024, aposta no processo …/05.7TBSXL-A, aquando da sua remessa para distribuição por transferência eletrónica à Unidade Central de Almada, na qual veio a receber o n.º …/24.4T8ALM.

O executado «AA» deduziu os presentes embargos alegando, em síntese, que:
- Viveu em economia comum com a sua madrinha CC, arrendatária, durante os cinco anos que antecederam o óbito da mesma;
- Em 2004, essa vivência em economia comum com a arrendatária foi comunicada ao embargado, que aceitou que o embargante, a sua companheira e dois filhos viviam no locado;
-  Não trabalha e vive do RSI;
- O tribunal é absolutamente incompetente, cabendo a competência para a causa aos tribunais administrativos, por o embargado ser um instituto público;
- Os despachos e sentenças devem ser fundamentados [sem que se perceba a que despacho ou sentença imputa falta de fundamentação];
- Existe direito à proteção da habitação, proteção da casa de morada de família, e a benfeitorias [alegações genéricas];
- A execução deve suspender-se, sem prestação de caução.
Termina pugnando pela procedência dos embargos, e que seja:
a) ordenado ao embargado IHRU que se abstenha de impossibilitar ou dificultar a permanência do embargante na casa de morada de família;
b) notificado o embargado da revogação da ordem de despejo/desobediência qualificada já efetuadas, pois o embargante não tem outra habitação, tem 2 filhos menores e não tem onde guardar o cão.
c) supletivamente, diferido o despejo para um prazo superior a 6 meses após o trânsito em julgado da decisão que venha a recair sobre os presentes embargos, atenta a comprovada falta de meios e os riscos para a saúde do agregado familiar, notificando-se a Santa Casa da Misericórdia do Seixal e a Câmara Municipal do Seixal para atribuírem uma casa condigna ao ora embargante, sendo que só após tal atribuição efetiva o despejo poderá prosseguir, condenando-se, ainda, o embargado em custas e condigna procuradoria.

Em 01/07/2024, foi proferido despacho que indeferiu liminarmente os embargos à execução.

O embargante não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1.ª A competência em razão da matéria é manifesta hipótese a ser alegada a todo tempo.
2.ª Resulta evidente que o contrato dos autos respeita a uma habitação social abrangida pelo DL n.º 797/96, 16/11, sujeitava a atribuição dos fogos a critérios de legalidade estrita. Logo, por força da al. f) do Art. 4.º do ETAF o pleito é da competência exclusiva dos Tribunais Administrativos.
3.ª Recorde-se que o Embargante e ora Recorrente alegou na PI que antes de 2004, data do óbito da titular do arrendamento, Sra. CC, que celebrou o contrato de arrendamento no âmbito de um concurso na década de 80/90, abrangido pela legislação administrativa, nos últimos 5 anos viveu em economia comum com a titular do arrendamento.
4.ª Tal versão do Embargante não foi minimamente apreciada pelo Tribunal, que se limitou a acreditar na versão do IHRU de que se tratava de uma ocupação.
5.ª Como é possível acreditar que se tratava de uma ocupação quando foi alegada a vivência em economia comum com a titular do arrendamento que faleceu em 2004, sendo assim inaceitável que se considere que o Embargante, que alega que reside no locado desde 1999 possa ser enquadrável na situação de ocupação em 2024, data da instauração da Ação de Reivindicação pelo IHRU?
6.ª O que andou o IHRU a fazer nos últimos 20 anos e qual a concreta motivação do Tribunal para acreditar em tamanha mentira, pois que desde 2004 que o IHRU está ciente de que quem mora é o Embargante, a companheira e os filhos, desconhecendo-se, e nem sequer foi alegada qualquer factualidade da qual pudesse ocorrer que o Embargante ocupou de forma abusiva o locado e que o IHRU nada tenha feito ao longo de 20 anos.
7.ª Naturalmente que a passividade ao longo de duas décadas, em várias áreas do Direito tem um alcance jurídico que no caso é de consentimento e deferimento da transmissão, tendo assim o Embargante um título legítimo para residir no locado.
8.ª Logo, a competência é exclusiva do Tribunal Administrativo, devendo os presentes autos serem remetidos para o TAF de Almada.
9.ª O alegado de 1.º ao 7.º fundamenta a transmissão do arrendamento, de forma automática, atenta a lei vigente na data da celebração, que, recorde-se, era o Código Civil, com base em economia comum de 1999 a 2004, e não de 2004 a 2009, pois que ninguém vive em economia comum com uma pessoa já falecida.
10.ª É, pois, inaplicável o NRAU visto que na data da celebração do contrato de arrendamento pela madrinha com o IHRU, no âmbito de um concurso, ainda nem sequer era imaginável que uma década depois pudesse ser publicado um NRAU.
11.ª No que respeita ao conhecimento pelo IHRU da presença no locado do Embargante, visto que se afigura intempestiva a qualificação ab initio de ocupação, sem disso se fazer prova, não tendo o IHRU uma posição de não parte.
12.ª Acresce que o efeito da citação na Ação Declarativa em 2005 faz prova plena de que o IHRU sabia logo em 2005 que o Embargante residia no locado. Se nem a citação é atendida para efeitos de prova do conhecimento por parte do IHRU, perguntar-se-á para que serve o processo e se foi ou não repristinada a denominada Lei Cristas que contemplava o despejo administrativo, sem precedência de decisão judicial, o que desde 01/09/2016 é absolutamente proibido.
13.ª Se o decurso do tempo não tem efeito nas situações jurídicas concretas, estamos perante uma afirmação que vai contra os mais elementares princípios, inclusive o de usucapião/prescrição.
14.ª Se alguém reside numa qualquer habitação durante mais de 20 anos com o conhecimento e passividade do proprietário, temos de convir que pelo decurso do tempo passou a ter um título legítimo de aí continuar a residir, sendo certo que ao peticionar a Declaração de Transmissão, como sucedeu, não é necessário assinar um novo contrato, basta que o IHRU se disponibilize a receber a renda e a emitir recibos.
15.ª Abuso de direito é precisamente instaurar e tentar prosseguir com uma execução cujo título executivo já tem mais de 17 anos. A finalidade é apenas a de despejar e quando tal finalidade é prosseguida pela entidade que a nível nacional tem a obrigação de atribuir casas aos pobres, perguntar-se-á qual o fundamento para não se considerar que se trata efetivamente de um abuso do direito de ação.
16.ª Naturalmente que residir no locado há mais de 20 anos, 5 em economia comum como o titular, enquanto vivo, não pode constituir abuso de direito, pois que se trata de uma utilização lícita e não de uma inventada ocupação.
17.ª O Embargante e o respetivo agregado, tal como resulta do impresso de apoio judiciário, tem no locado a sua casa de morada de família.
18.ª A falta de outra habitação é evidente, sendo que o Tribunal nem sequer se dignou inquirir as testemunhas para que fosse produzida prova a esse respeito, sendo certo que não são apenas os fundamentos do art.º 729.º do CPC que são passíveis de serem deduzidos embargos; a existência de título legítimo, tal como já demonstrado, impede o prosseguimento da execução para despejo.
19.ª No dia 25/26 de junho de 2024, o Embargante e ora Recorrente não abandonou voluntariamente o locado, pois que não se enquadra nesse conceito a presença de uma carga policial, no locado e nas proximidades com o impacto daí decorrente que exclui pura e simplesmente a vontade individual de sair do locado.
20.ª Afinal a presença da PSP no despejo, no entendimento do Tribunal, apenas seria para formular um convite simpático ao despejando no sentido de lhe ser perguntado se por  hipótese quer sair da habitação de forma absolutamente voluntária, não se acreditando que quem não tem outra habitação tenha a validade de voluntariamente se colocar a dormir ao relento com a companheira, com os filhos menores, como se de uma ou outra diligência se tratasse.
21.ª Implícito em tal entendimento está a teoria de que atenta a etnia do Recorrente, e já que o mesmo não fez uso da força contra os agentes da PSP, tendo se presumido que saiu voluntariamente. Nada mais inverdade!
22.ª Que a diligência do despejo põe em risco a vida da pessoa e dos filhos menores, os quais não têm de sofrer de doença de um foro gravíssimo para se concluir que a vida dos menores a dormir na rua está em causa. A factualidade foi alegada e, se o Tribunal recusou a produção da prova, parece que não pode ser invocada a falta de prova contra o Recorrente.
23.ª Por último, no que respeita às concretas obras e despesas feitas no imóvel, é natural que o Tribunal poderia em sede de Inspeção Judicial ao local poderia aferir da existência de obras ou não a indemnizar ao Embargante, tanto mais que o IHRU nunca disse que fez obras no locado ao longo de 25 anos e resulta claro da Lei de Bases que na ausência de obras ao longo de 20 anos por parte do senhorio, o mesmo nem sequer pode proceder a qualquer alteração da renda, e naturalmente, não pode despejar.
24.ª Acresce ainda que quanto à inconstitucionalidade na situação em concreto, a mesma foi alegada, foram arroladas testemunhas e concluir a inexistência do que não foi possível demonstrar, afigura-se ilegal.»

Não foram oferecidas contra-alegações.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) O tribunal é materialmente incompetente?
b) O embargante tem a qualidade de arrendatário por lhe ter sido transmitido o direito ao arrendamento, em 2004?
c) O embargante adquiriu o direito de viver no imóvel, por aí residir há mais de 20 anos, com conhecimento e aquiescência do embargado?
d) O recurso do embargado à execução é abusivo?
e) A consumação da execução implica risco de vida para si e para os seus filhos?
f) O embargante tem direito a que os embargos sigam para apreciação de benfeitorias?

II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes são os que constam do relatório.

III. Apreciação do mérito do recurso
1. Da competência do tribunal
O embargante, ora recorrente, suscitou nos seus embargos a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal no qual a execução foi instaurada.
Em seu entender, seriam competentes para a tramitação da execução os tribunais administrativos.
Vejamos.
A execução foi instaurada tendo por título a sentença proferida na ação de reivindicação que correu termos no 3.º Juízo Cível da Comarca do Seixal, sob o n.º …/05.7TBSXL, intentada pelo então IGAPHE contra os ora executados que, em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 15 de junho de 2005, arrombaram a porta da casa do autor sita na Praceta …, …, Seixal, e ali passaram a viver, contra a vontade do proprietário. A referida sentença transitou em julgado em 03/09/2007.
Para a execução de sentenças condenatórias proferidas pelos juízos cíveis dos tribunais judiciais são competentes os juízos de execução da mesma ordem de tribunais (judiciais).
Com efeito, nos termos do disposto no artigo 129.º da LOSJ (Lei da Organização do Sistema Judiciário, instituída pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, na sua versão vigente), compete aos juízos de execução exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no Código de Processo Civil.
A orgânica judiciária alterou-se entre a instauração da ação que deu origem à sentença que constitui título executivo nos presentes autos e o momento da instauração da execução. Presentemente existe um Juízo de Execução de Almada, cuja área de competência territorial abrange o município do Seixal (v. Mapa III do DL 49/2014, de 27 de março, que regulamenta a LOSJ), para o qual transitou a presente execução, assim que instaurada, no presente ano.
Não há qualquer dúvida sobre a competência do tribunal a quo (Juízo de Execução de Almada), não sendo em caso algum competentes os tribunais administrativos para a execução de sentenças judiciais. Os tribunais administrativos são apenas competentes para a execução das suas próprias decisões (v. artigos 4.º, n.º 1, a contrario sensu, 37.º, n.º 1, al. d), 38.º, n.º 1, al. e), 49.º, n.º 1, al. e) v), todos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro)
Bem andou o tribunal a quo ao julgar improcedente a arguida exceção de incompetência material.

2. Da transmissão do direito ao arrendamento, em 2004
Invoca o embargante que estaria na casa por força da transmissão de um contrato de arrendamento de que era arrendatária uma sua madrinha, falecida em 2004.
A ter existido o ora alegado arrendamento e uma eventual transmissão do mesmo em 2004, tais factos teriam de ter sido alegados em sede de contestação à ação de reivindicação instaurada contra o ora embargante e recorrente, em 2005. Não tendo tal acontecido, os factos alegados pelo autor naquela ação consideraram-se confessados e foi proferida a sentença que constitui título executivo nos presentes autos. A dita sentença decidiu o mérito da causa (reivindicação de imóvel que os réus usavam sem título e contra a vontade do autor), transitou em julgado, e a respetiva decisão sobre a relação material controvertida ficou a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele (artigo 619.º do CPC), o que legitima a presente execução.
Nesta, o embargante não pode invocar factos que podia ter oposto à petição da ação declarativa, nomeadamente não pode invocar factos impeditivos do direito do autor na ação declarativa, anteriores àquela ação, como seria o caso de uma relação de arrendamento constituída em 2004.
Fundando-se a presente execução para entrega de coisa certa numa decisão judicial condenatória, os únicos fundamentos de oposição são os elencados no artigo 729.º, ex vi artigo 860.º, por sua vez aplicável por via do artigo 626.º, n.º 3, todos do CPC. Percorrendo as várias alíneas daquele artigo, nelas não encontramos acolhimento para o ora pretendido pelo embargante.

3. Da aquisição por usucapião do «direito de habitar o imóvel»
Nas alegações de recurso, o embargante invoca a aquisição por usucapião de um direito de habitar o imóvel. Com esta conformação, a questão é nova, não foi alegada nos embargos, logo não foi apreciada em primeira instância, pelo que não pode ser agora suscitada.
Com efeito, os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão, mas não para obter decisão de questões novas, ou seja, de questões que não foram suscitadas perante o tribunal recorrido (sobre o tema e neste sentido, exemplificativamente, o Acórdão do STJ de 08/10/2020, proc. 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, bem como os demais aí indicados na nota 1 – Ac. STJ de 7/1/193, CJASTJ 1993, I, p. 5, Ac. TRL de 7/10/93, CJ 1993, IV, p. 142, Ac. TRL 7/5/87, CJ 1987, III, p. 78, Ac. TRL 2/11/95, CJ 1995, V, p. 98,  Ac. TRL 27/11/81, CJ 1981, V, p. 158, Ac. TRP 4/6/87, CJ 1987, III, p. 182 e Ac. TRE 7/5/87, CJ 1987, III, p. 265).
As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos: reapreciação de questões e não a decisão de questões novas; a apreciação de uma questão nova conduziria à supressão da possibilidade de recurso pela parte que nessa questão viesse a ficar vencida ou, pelo menos, à supressão de um grau de recurso (v. citado Ac. STJ de 08/10/2020).
Na oposição por embargos, e com alguma afinidade com a usucapião só em recurso invocada, o embargante alegou, sim, que viveria no imóvel desde 2009 com autorização do exequente, parecendo retirar daí um direito a continuar a fazê-lo ou um abuso do exequente ao retirar essa autorização.
A este propósito, urge repetir o que do despacho recorrido consta: o direito de propriedade é imprescritível (artigo 298.º, n.º 3, do CC), pelo que a execução da sentença decorridos 17 anos sobre a sua prolação, desacompanhada da alegação pelos executados de algum comportamento do IHRU que, objetivamente, revelasse reconhecê-los como arrendatários ou lhes permitisse residirem no imóvel, não traduz abuso do direito de ação. Abuso, isso sim, foi cometido pelos executados, que ocuparam ilicitamente o imóvel desde 2004 e, em 2024, aquando da instauração da execução, ainda aí permaneciam.

4. Do abuso de direito
Após discorrer em termos gerais sobre o instituto do abuso de direito, o embargante afirma na sua oposição: «Efetivamente, promover o despejo de um agregado familiar que reside numa habitação social, sem qualquer proteção da habitação afigura-se contra o direito e levado a cabo por uma entidade gestora do património de habitação social ainda mais grave se apresenta».
Desta sua conclusão resulta manifesto o errado pressuposto da sua oposição: ter sido promovido um «despejo». O despejo pressuporia que o embargante tivesse sido inquilino, arrendatário da casa que ocupa. Assim não é. Como está definitivamente julgado, o embargante é apenas um ocupante sem título que, durante vinte anos, residiu, contra a vontade do proprietário, em casa alheia e pela qual nada alguma vez pagou.
O único abuso que se vê neste processo é o do embargante, que usa os meios judiciais para tentar obter uma situação privilegiada a que não tem direito: habitar na Praceta …, …, Seixal. De acrescentar que, com o seu comportamento, o embargante está a impedir que a casa, que é destinada a habitação social, seja efetivamente alocada, nos termos da regulação em vigor, a quem dela necessita.

5. Do risco de vida
Invoca, ainda, o embargante, que a execução da sentença de 2007 implica ir viver sem abrigo, com risco de vida para si para os seus filhos.
O proprietário que exerce e executa o seu direito de reivindicar imóvel nunca será responsável por o ilegítimo ocupante e/ou os filhos deste ir(em) viver sem abrigo. Desde logo, inexiste nexo de causalidade adequada entre a conduta daquele proprietário e a falta de alternativa habitacional do ocupante.
Acresce que, como se afirma no despacho objeto de recurso e aqui livremente se reescreve, a falta de residência alternativa do executado e respetivo agregado não constitui fundamento relevante, no quadro dos fundamentos admissíveis, de embargos à execução de sentença (artigo 729.º, n.º 1, do CPC), não podendo ser imputada ao IHRU a responsabilidade de albergar ocupantes ilícitos de imóveis seus. Quando muito, poderia fundamentar um incidente de diferimento de desocupação (nos termos do artigo 863.º, n.ºs 3 a 5, ex vi artigo 861.º, n.º 6, ambos aplicáveis por via do artigo 626.º, n.º 3, todos do CPC), mas não fundamentou. Tão pouco a alegação do embargante condiz com os fundamentos daquele diferimento. Por força das citadas disposições legais, o agente de execução podia ter suspendido as diligências executórias, se lhe tivesse sido apresentada declaração médica que atestasse que a diligência punha em risco de vida a pessoa do embargante (ou de um dos filhos ali residentes), por razões de doença aguda, e que indicasse fundamentadamente o prazo durante o qual se devia suspender a execução. Nada disso aconteceu, nem o embargante alega os fundamentos do recurso a estas normas e que são os acabados de indicar.
A diligência de entrega do imóvel ao exequente ocorreu, como reportado pela agente de execução, no dia 26 de junho de 2024, pelo que nada mais há a decidir a esse respeito.

6. Das benfeitorias
Finalmente, nas alegações de recurso, o embargante reporta-se a obras, despesas e benfeitorias. Já na oposição à execução por embargos o havia feito, mas sempre em termos genéricos, sem invocar uma única obra ou despesa que tivesse realizado e que se pudesse reconduzir ao conceito de benfeitoria.
Por força do disposto no artigo 860.º, n.º 3, do CPC, baseando-se a execução em sentença condenatória, como sucede no caso em apreço, a oposição com fundamento em benfeitorias não é admitida quando o executado não haja oportunamente feito valer o seu direito a elas. O executado não o fez, pois tão-pouco contestou a ação declarativa.
Em todo o caso, como afirmado, não foi alegado um único facto referente a benfeitorias, e também não foi formulado qualquer pedido relacionado com elas, pelo que as referências a aspetos jurídicos gerais e abstratos das mesmas sempre seria totalmente inócua, como bem notou o tribunal a quo.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando o despacho objeto de recurso.

Custas pelo embargante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

Lisboa, 05/12/2024
Higina Castelo
Laurinda Gemas
Paulo Fernandes da Silva