LEI Nº 38-A/23 DE 02.08
PERDÃO
INDEMNIZAÇÃO
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
ERRO
Sumário

I- A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto(LAJMJ), veio estabelecer um perdão de penas e amnistia de infracções por ocasião da realização da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) em Portugal, estipulando no seu art.º 3.º n.º 1, o perdão de 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, encontrando-se excepcionados de tal beneficio pelo art.º 7.º da referida Lei, entre outros, os Crimes de violência doméstica e de maus-tratos, previstos nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal e os Crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal.
II- O perdão, sendo um ato de clemência e de graça, atribuído por lei cuja aplicação é imperativa “ope legis” encontra-se porém, sujeito às condições resolutivas previstas no art.º 8.º da LAJMJ, que são de aplicação obrigatória e automática, entre elas, no n.º 2, a condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado, devendo a mesma ser cumprida nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para o efeito (n.º 3).
III- A indemnização relacionada com o mal do crime é um efeito jurídico da prática do crime, sendo este o fundamento da condenação no pagamento da indemnização ao ofendido, tendo em vista a sua reparação ou compensação, sendo ditada por razões de justiça e de política criminal.
IV- Em caso de incumprimento pelo condenado da condição resolutiva referida em II, não importa aos tribunais indagar das condições de vida do condenado, da sua culpa, ou formular juízos sobre os fins das penas.
V- A LAJMJ, estipula no seu art.º 3.º, n.º4 que em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única, devendo ser entendido que tal preceito reporta-se aos casos em que essa pena única resulta de cúmulo de penas parcelares, todas elas passíveis de perdão, e quando tal não ocorre, por a pena única abranger penas parcelares passíveis e não passíveis de perdão, a regra é a do n.º 3 do art.º 7 da referida Lei, que estipula que a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.
VI- Assim, em caso de condenação em cúmulo jurídico exclusivamente de crimes que beneficiem, todos eles, de perdão, este aplica-se uma única vez e exclusivamente à pena única, e não várias vezes, a cada uma das parcelares que a compõem.
VII- Em caso de condenação em cúmulo jurídico, como o caso dos autos, envolvendo penas parcelares, uma delas beneficiando de perdão (condução sem habilitação legal) e as outras não (crimes de violência doméstica e de violação), impunha-se desfazer o cúmulo jurídico e aplicar depois o perdão à pena de prisão pela prática do crime de condução sem habilitação legal, sem sujeição da condição referida em II.
VIII-Não foi esse, porém, o entendimento exarado na decisão proferida em 09/11/2023 que aplicou o perdão à pena única, transferindo para esta a condição do pagamento da quantia indemnizatória à vítima, decorrente da prática dos crimes de violação e de violência doméstica, decisão que não foi objecto de recurso, nomeadamente pelo arguido, tendo transitado em julgado, consolidando esse entendimento no processo em causa, ficando imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz, nos termos do art.º 613.º, do CPC, aplicável por força do art.º 4.º do CPP.
IX- O art.º 616.º, n.º 2 al. a) do CPC que prevê a reforma da sentença quando tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos na sentença não é aplicável ao processo penal, na medida em que não havendo lacuna, não há que lançar mão do art.º 4.º, do CPP, porquanto o CPP contém previsão específica no art.º 380.º, aplicável quer à sentença quer aos actos decisórios previstos no art.º 97.º, do CPP.
X- Na previsão do referido art.º 380.º, do CPP o erro que pode ser corrigido respeita a um erro de escrita ou um erro material, um erro que seja evidente, patente, indiscutível, não sendo aplicável a erros de julgamento, nem a erros de direito, nem a erro cuja eliminação importe apreciação do mérito da causa ou modificação essencial, quer no que tange à decisão quer à fundamentação, estando vedado ao Juiz, a pretexto da correcção de um acto decisório, qualquer intromissão no conteúdo da decisão.
XI- O entendimento exarado na decisão de 09/11/2023, transitado em julgado, esgotou o poder jurisdicional quanto à forma de aplicação do perdão à pena única e à condição resolutiva a que ficou sujeito, não permitindo o art.º 380.º, do CPP a rectificação ou modificação do determinado através do despacho recorrido de 02/05/2024, porquanto importa modificação essencial do decidido, sendo nulo por excesso de pronuncia, à luz do disposto no art.º 615º, n.º 1 al. d), do CPC. aplicável por força do art.º 4.º, do CP, impondo-se a sua revogação.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
No âmbito do processo n.º 7/20.1PSLSB, que corre os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 1, foi proferido em 02/05/2024 o seguinte despacho (transcrição):
Ofício com a refª Citius 39025284 de 09/02/2024 e requerimento com a refª Citius 38375791 de 05/02/2024:
No âmbito dos presentes autos foi realizado cúmulo jurídico das penas aqui aplicadas ao arguido AA, com as penas em que havia sido condenado no processo nº 749/20.1PASNT do Juízo Central Criminal de Sintra, J3, tendo o arguido sido condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos e 10 meses de prisão, além das penas acessórias e indemnizações que já lhe haviam sido impostas nas anteriores condenações (cfr. acórdão na refª Citius 421683698 de 05/01/2023). Atenta a entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, foi ponderada a aplicação do perdão aí previsto, tendo sido decidido aplicar o perdão de um 1 ano de prisão à pena única, passando o arguido a cumprir a pena única de 6 anos e 10 meses de prisão (cfr. despacho com a refª Citius 430154086 de 09/11/2023).
Como decorre da fundamentação da decisão que aplicou o perdão, o mesmo assentou na circunstância de uma das penas parcelares ter sido a pena de 1 ano e 4 meses de prisão pelo crime de condução sem habilitação legal - não excluído do âmbito de aplicação da medida de clemência -, pois que as demais penas parcelares (de 2 anos e 8 meses, 3 anos e 6 meses e 3 anos e 6 meses, de prisão) correspondiam a crimes expressamente excluídos pelo artigo 7º, nº 1, da citada Lei nº 38-A/2023 (dois crimes de violência doméstica e um crime de violação).
A decisão que aplicou o perdão declarou que o mesmo ficaria sujeito à condição resolutiva de o arguido/condenado não praticar qualquer infracção dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei, ou seja, até ao dia 01/09/2024 (como decorre do disposto no artigo 8º, nº 1, da aludida Lei), bem como ficaria condicionado ao pagamento das quantias indemnizatórias à vítima BB, no prazo de 90 dias contados a partir da notificação ao arguido/condenado para esse efeito, prazo esse que já decorreu (cfr. certidão de notificação na refª Citius 37979728 de 22/12/2023).
Veio, entretanto, o arguido/condenado requerer autorização para fazer o pagamento das indemnizações em “prestações pequenas”, pois que o único rendimento de que actualmente beneficia é o que resulta da sua ocupação laboral no Estabelecimento Prisional, solicitando consequentemente que o perdão concedido não seja revogado.
O Ministério Público opõe-se a tal pretensão, com o fundamento de que o legislador fez depender o perdão de uma cláusula objectiva de paz social com a vítima, independente de qualquer juízo de culpa no eventual incumprimento.
Decidindo.
Desde já dizemos que, em abstracto, concordamos com os argumentos expendidos pelo Digno Magistrado do Ministério Público, no sentido de a cláusula de (não) revogação do perdão, nos termos do disposto no artigo 8º, nºs 2 e 3 da referida Lei, ser uma cláusula objectiva, cujo incumprimento leva à revogação, independentemente de qualquer juízo de culpa do condenado.
Porém, e como diz o Tribunal Constitucional, «A indemnização encontra a sua justificação na prática do crime. É a prática do acto ilícito criminalmente que constitui causa ou fundamento jurídico da condenação do arguido no pagamento da indemnização ao ofendido. Nesta medida, ela é também um efeito jurídico da prática do crime, tal como o é a condenação na pena criminal. É claro que a pena visa satisfazer, essencialmente, interesses do Estado, de reconstituição da paz jurídica entre a comunidade social e o criminoso, conseguida através de medida funcionalizada para a prevenção geral e para a sua ressocialização, e que a indemnização pretende “reparar um dano” provocado ao ofendido, procurando reconstituir a situação que existiria se não fora a verificação do “evento que obriga à indemnização” (cf. art.ºs 483.º e 562.º do Código Civil).
Nesta perspectiva, trata-se de efeitos jurídicos autónomos. Só que a condenação em indemnização não deixa de corresponder a uma concreta decorrência, ainda, da ilicitude (criminal) do facto praticado e de reacção do sistema jurídico, aqui, em protecção ou favor do lesado. Ela mantém uma conexão íntima com a prática do crime.
Essa relação intrínseca entre a prática do crime e o dever de reparar o dano provocado é, de resto, assumida, expressamente, pelo Código Penal quando determina, no art.º 71.º, que se relevem as consequências do crime e a conduta destinada a repará-las para efeitos de determinação da medida da pena (…) Nessa medida, bem se compreende que o órgão competente (Assembleia da República) do titular do poder de clemência e, simultaneamente, do “ius puniendi” - o Estado - possa considerar que a paz jurídica só ficará, em caso de perdão de pena, totalmente satisfeita se o condenado também em indemnização pela prática do crime reparar efectivamente o dano provocado ao lesado.
Sendo o perdão uma medida de clemência que extingue, total ou parcialmente, a pena do crime pelo qual o arguido foi condenado, mas não extinguindo a ilicitude criminal e a ilicitude civil dos factos praticados, bem se justifica que o legislador da clemência, dentro da sua discricionariedade ponderativa de todos os bens jurídicos ofendidos (penais e civis) entenda não ser ela de conceder quando existam efeitos civis indemnizatórios que tornam ainda presente a necessidade de paz jurídica com o lesado.» (acórdão nº 488/2008, de 07/10/2008, disponível para consulta in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080488.html).
O ensinamento que retiramos do acima exposto é que a condição resolutiva prevista no artigo 8º, nºs 2 e 3, da Lei nº 38-A/2003, de 2 de Agosto está prevista para as situações em que a indemnização em que o agente foi condenado a pagar se reporte ao crime relativamente ao qual foi efectivamente perdoado um ano de prisão.
No caso de uma pena única resultante de um cúmulo jurídico de penas parcelares, em que um(alguns) do(s) crime(s) está(ão) excluído(s) do perdão, o perdão concedido fica sujeito à condição resolutiva do pagamento da indemnização ao lesado no prazo de 90 dias, se, e apenas se, tal indemnização se reporta ao(s) crime(s) cuja(s) pena foi (total ou parcialmente) perdoada. No caso dos autos, como já vimos, foi perdoado 1 ano à pena única de 7 anos e 10 meses de prisão, sendo que a única pena passível de ser perdoada era a pena parcelar de 1 ano e 4 meses aplicada pelo crime de condução sem habilitação legal, uma vez que os demais crimes (violência doméstica e violação) estão expressamente excluídos do âmbito de aplicação da Lei nº 38-A/2023.
É certo que o douto acórdão que procedeu ao cúmulo jurídico das penas manteve, como devia, as (anteriores) condenações nas penas acessórias e montantes indemnizatórios. Contudo, como resulta da mera consulta dos autos, as indemnizações atribuídas à vítima BB fundaram-se na prática dos crimes de violência doméstica e de violação (que não admitem perdão), e não na condenação pelo crime em que se sustentou a decisão que procedeu ao perdão.
Deste modo, e decidindo, por ora não revogo o perdão concedido com o fundamento de o arguido não ter procedido (ainda) ao pagamento das quantias indemnizatórias em que foi também condenado (artigo 8º, nºs 2 e 3, da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto).
Aguarde-se até ao dia 01/09/2024, data após a qual será ponderada a revogação (ou não) do perdão com fundamento no disposto no artigo 8º, nº 1, da citada Lei nº 38-A/2023.
Notifique (Ministério Público, arguido e Defensor).
Dê conhecimento do presente despacho ao TEP.”
*
Inconformado com o despacho, o Ministério Público veio interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1.ª Em crise, o despacho de 02/05/2024 (ref.ª 435082548), tema: “se o perdão de um ano a aplicar à pena única deve ou não ficar sujeito à condição resolutiva que só estaria prevista relativamente a uma das penas parcelares englobada em cada um dos blocos de cúmulo” (expressão do Acórdão da R.C. 20/03/2024).
2.ª O próprio arguido, quando pediu prazo para cumprimento da condição resolutiva, em sede do seu requerimento de 05/02/2024, acabou por expressar a consciência ético-jurídica comunitária, bem intuindo que o perdão dependia do cumprimento da condição resolutiva.
3.ª Existe caso análogo, decidido pelo Acórdão de 20/03/2024, da Relação de Coimbra (relatora: CC, Proc. 1553/04.0PBVIS.C1, 20/03/2024), disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc
4.ª O despacho revidendo configura uma violação do caso julgado, pois há muito transitou em julgado o despacho de clemência, proferido a 09/11/2023, o qual condicionou o perdão ao cumprimento de obrigação dupla de reparação da vítima – art. 619.º, n.º 1, do C.P.C., ex vi do art. 4.º do C.P.P.
5.ª Pese embora as leis de clemência tenham natureza excepcional, impondo uma interpretação declarativa (art. 11.º do Cód. Civil), o Tribunal a quo acabou por interpretar a norma do art.º 8.º, n.º 2, da Lei n.º 38-A/2023, no sentido de impor uma condição atípica à condição legal.
6.ª A interpretação do Tribunal a quo, no sentido de condicionar a condição resolutiva, é incompatível com o constructo legal e jurisprudencial de pena única, que deverá constituir uma “unidade de sentido” ou “imagem global do facto” (como vem sendo afirmado pela Jurisprudência).
7.ª Tendo perdido a sua autonomia ao ser englobada no cúmulo, naturalmente que as condições que lhe sejam aplicáveis se transferem para a pena única, pelo que as condições resolutivas do perdão da pena previstas na Lei da Amnistia devem aplicar-se, de forma automática, à única pena que subsiste: a pena única.
8.ª Normas jurídicas violadas: art.º 619.º, n.º 1, do C.P.C., ex vi do art.º 4.º do C.P.P.; art.º 11.º do Cód. Civil; art.º 8.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 38-A/2023, de 2/Ag.; art.º 77.º, n.º 1, do Cód. Penal; art.º 3.º, n.º 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 2/Ag.
9.ª Pelo que deverá ser revogado o despacho revidendo, substituindo-se o mesmo pela revogação do perdão de pena, por inadimplemento da condição resolutiva.
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O recurso foi admitido por despacho proferido em 22.05.2024 nos termos seguintes:
Requerimento com a refª Citius 39414303 de 20/05/2024: Por tempestivo, estar motivado, ter o recorrente legitimidade e ser a decisão recorrível, admite-se o recurso interposto pelo Ministério Público, o qual sobe de imediato, em separado, e com efeito meramente devolutivo (artigos 399º, 400º a contrario sensu, 401º, nº 1, alínea a), 406º, nºs 1 e 2, 407º, nº 2, alínea b), 408º a contrario sensu, 411º, nºs 1, alínea a) e 3, 414º, nºs 1 e 2 a contrario sensu, todos do CPP).
Cumpra o disposto no artigo 411º, nº 6, do CPP. Notifique.
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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa a Exma. Sra. Procuradora Geral adjunta formulou parecer nos seguintes termos (transcrição):
Acompanho o recurso interposto pelo MP pelo que sou do parecer que deve ser julgado procedente.
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Foi cumprido o preceituado no n.º 2 do art.º 417.º, do Código de Processo Penal e não houve resposta.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
II- As questões a decidir são, de acordo com as conclusões extraídas da motivação do recurso, as seguintes:
1.ª Do perdão de um ano aplicado à pena única por decisão de 09/11/2013 que o condicionou ao pagamento de indemnização à lesada no prazo de 90 dias, e que não foi paga no referido prazo, condição que se funda na prática dos crimes de violência doméstica e de violação englobados no cúmulo, mas excluídos do benefício do perdão da Lei 38-A/2023 de 02/08 e não no crime de condução sem habilitação, igualmente abrangido pelo cúmulo e não excluído da referida Lei.
2.ª Se a decisão recorrida de 02/05/2024, ao não revogar o perdão por incumprimento dessa condição, com fundamento em que a mesma, não se funda na prática do crime que beneficia do perdão, viola ou não o caso julgado, decorrente da decisão proferida em 09/11/2023 que aplicou o perdão com essa condição.
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III – Factos relevantes para a apreciação do recurso:
1. No Processo Comum Colectivo 7/20.1PSLSB, do Juízo Central Criminal de Lisboa-Juiz 1 foi proferido em 17/12/2021 Acórdão Cumulatório, o qual terminou com o seguinte:
VI - DISPOSITIVO
Nestes termos, tudo visto e ponderado, julgando a acusação parcialmente procedente por provada, acordam os Juízes que constituem o Tribunal Colectivo:
a) Absolver o arguido AA, da prática, em autoria material de 1 (um) crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158.º n.º 1, do Código Penal;
b) Condenar o arguido AA, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea b) e c) do Código Penal;
c) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de contactos com BB pelo período de 2 (dois) anos e na obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica;
d) Condenar o arguido AA na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão pelo cometimento no dia 1 de Janeiro de 2020 de 1 (um) crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;
e) Condenar o arguido, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses, pelo cometimento dos crimes identificados nas alíneas b) e d) do presente dispositivo;
f) Arbitrar a título de reparação à vítima BB o montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a suportar pelo arguido;
g) Condenar o demandado AA a pagar ao demandante “Centro Hospitalar …, E.P.E.” o montante de €122,91 ao qual acrescem juros, calculados à taxa civil aplicável, desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento;
h) Condenar o arguido, nas custas e demais encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3UC nos termos dos artigos 513º nºs 1e 3 e 514º nº1, todos do C.P.P. e do art.º 8.º, nº9 e da tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
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O arguido mantém-se sujeito ao TIR já prestado.
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Comunique a presente decisão ao processo à ordem do qual o arguido se encontra sujeito a prisão preventiva, solicitando que os presentes autos sejam informados de qualquer alteração ao estatuto coactivo do arguido.
Comunique a presente decisão aos processos identificados no ponto 34 alíneas b) e c) da fundamentação.
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Após trânsito:
-remeta boletim ao registo criminal;
- comunique ao TEP e ao processo à ordem do qual o arguido se encontra sujeito a prisão preventiva, que interessa a prisão do arguido aos presentes autos;
- comunique aos processos identificados no ponto 34 alíneas b) e c) da fundamentação.
-abra termo de vista ao Ministério Público;
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Mais se determina, mantendo-se a condenação em pena de prisão igual ou superior a 3 anos, se proceda à recolha de amostra de ADN do arguido condenado, e respectiva inserção do perfil na correspondente base de dados, nos termos do disposto no art. 8.º da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro.
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Registe e deposite, nos termos do art. 372º, n.º 5 e 373.º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal. (fim de transcrição)
2. No dia 05/01/2023 foi proferido Acórdão cumulatório, procedendo à efectivação do cúmulo jurídico entre as penas (única) de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão no processo comum colectivo n.º 749/20.1 PASN, Juízo Central Criminal de Sintra, Juiz 1, cuja decisão final é a seguinte:
“Tudo ponderado, o tribunal decide condenar o arguido AA nas seguintes penas:
- na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea b) e c) do Código Penal;
- na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;
- na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), nº 2, alínea a), nº 4 e nº 5 do Código Penal;
- na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática, como autor material de um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164º, nº 1 do Código Penal;
Em cúmulo jurídico das identificadas penas, na pena única de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão assim se satisfazendo as necessidades de prevenção geral e especial e as finalidades da punição que o caso impõe
E, ainda:
- na pena acessória de proibição de contactos directos com BB e de se aproximar da mesma a menos de 50 metros, pelo período de quatro anos e seis meses, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, após o arguido ser libertado;
- na obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica;
- arbitrar a título de reparação à vítima BB o montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a suportar pelo arguido;
- a título de reparação por danos não patrimoniais, condenar o arguido AA no pagamento de 5.000,00 € (cinco mil euros) a BB (artigo 16º, nº 2 do Estatuto da Vítima, artigo 21º, nº 2 da Lei nº 112/2009, de 16- 9 e artigos 67º-A, nº 3 e 82º-A, nº 1 do Código de Processo Penal);
IV. Dispositivo
Face ao exposto, acordam os Juízes que constituem o Tribunal Colectivo em condenar AA, em cúmulo jurídico das penas parcelares e acessórias aplicadas nas vertentes autos (7/20.1PSLSB) e no processo comum (colectivo) n.º 749/20.1PASNT, Juízo Central Criminal de Sintra, Juiz 3, na pena única de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão,
- na pena acessória de proibição de contactos directos com BB e de se aproximar da mesma a menos de 50 metros, pelo período de quatro anos e seis meses, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, após o arguido ser libertado;
- na obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica;
-arbitrar a título de reparação à vítima BB o montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a suportar pelo arguido;
- a título de reparação por danos não patrimoniais, condenar o arguido AA no pagamento de 5.000,00 € (cinco mil euros) a BB (artigo 16º, nº 2 do Estatuto da Vítima, artigo 21º, nº 2 da Lei nº 112/2009, de 16- 9 e artigos 67º-A, nº 3 e 82º-A, nº 1 do Código de Processo Penal).
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Sem custas por não serem devidas - cfr. artigos 513º e 514º, a contrario, ambos do CPP.
Dê conhecimento ao TEP e ao processo abrangido pelo cúmulo.
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Após trânsito em julgado,
- remeta boletins ao registo criminal e remeta certidão da presente decisão ao processo abrangido pelo cúmulo;
- apresente os autos ao Ministério Público.
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Registe e deposite, nos termos do art. 372º, n.º 5 e 373.º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
Lisboa, 5 de Janeiro de 2023 (fim de transcrição)
3. Por despacho de 09/11/2023, no processo7/20.1PSLSB,o Tribunal concedeu o perdão de 1 ano da pena de prisão aplicada ao arguido AA nos seguintes termos:
Por acórdão transitado em julgado a 06.02.2023, AA, nascido a ... de ... de 1996, foi condenado na pena única de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão, que abrange as seguintes penas impostas ao arguido:
- na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea b) e c) do Código Pena;
- na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;
- na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), nº 2, alínea a), nº 4 e nº 5 do Código Penal;
- na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática, como autor material de um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164º, nº 1 do Código Penal.
Foi ainda condenado na pena acessória de proibição de contactos diretos com BB e na obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
Foi ainda condenado no pagamento de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de reparação à vítima BB.
Foi ainda condenada a título de reparação por danos não patrimoniais, no pagamento de 5.000,00 € (cinco mil euros) a BB (artigo 16º, nº 2 do Estatuto da Vítima, artigo 21º, nº 2 da Lei nº 112/2009, de 16- 9 e artigos 67º-A, nº 3 e 82º-A, nº 1 do Código de Processo Penal).
Cumpre decidir.
Estão abrangidas pela Lei 38-A/2023 as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
Preenchidos estes requisitos, haverá ainda que verificar, relativamente a cada um dos crimes praticados pelo arguido, se estamos perante qualquer das exceções à aplicação do perdão e da amnistia previstas no artigo 7.º daquela Lei.
O arguido, nascido a ... de ... de 1996, à data da prática dos factos - 1 de janeiro de 2020, março a Julho de 2020 - não tinha 30 anos.
Em primeiro lugar, considerando que nenhum dos crimes pelos quais foi condenado tem pena abstrata inferior ou igual a 1 ano de prisão, nos termos do artigo 4.º. da Lei n.º 38-A/2023, fica afastada a aplicação da amnistia.
Quanto à aplicação do perdão, nos termos do disposto no art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, não beneficiam do perdão e da amnistia, os condenados pelos crimes de violência doméstica e de violação, previstos nos artigos 152.º e artigo 164º, nº 1 do Código Penal [art.º 7.º, n.º 1, alínea a), ponto ii) e ponto v, da referida Lei 38.º-A/2023].
Por seu turno, não se encontra excluído do benefício do perdão, nos termos do art.º 7.º, da Lei n.º 38- A/2023 crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de janeiro.
Assim, e considerando que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, como sucede no caso em apreço, o perdão incide sobre a pena única, nos termos do n.º 4, do artigo 3.º da Lei n.º 38- A/2023, haveria que perdoar 1 (um) ano à pena única de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão.
Pelo exposto, nos termos do disposto nos artigos 3.º, n.º 4, e 7.º, n.º 3, da Lei 38.º-A/2023, o arguido tem a cumprir 6 (seis) anos e 10 (dez) meses de prisão, declarando-se o remanescente da pena única aplicada perdoado, sob condição resolutiva de o condenado não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada (art.º 8.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08).
Acresce que, uma vez que AA foi condenado no pagamento de indemnização à vítima BB, no montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) e de 5.000,00 € (cinco mil euros), o perdão fica ainda condicionado a esse pagamento, nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para esse efeito (n.ºs 2 e 3 do art.º 8.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02-09), e sem prejuízo do disposto no n.º 4.
Pelo exposto, nos termos do artigo 3.º, n.º 4, e 7.º, n.º 3, da Lei 38.º-A/2023, por aplicação do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, o arguido tem a cumprir a pena de 6 (seis) anos e 10 (dez) meses de prisão em que foi condenado AA, sob condição resolutiva deste não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei 38-A/2023, ou seja, até 01.09.2024, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.
O perdão fica ainda condicionado ao pagamento de indemnização à vítima BB, no montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) e de 5.000,00 € (cinco mil euros), nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para esse efeito (n.ºs 2 e 3 do art.º 8.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02-09), e sem prejuízo do disposto no n.º 4.
Notifique, sendo o arguido nos termos e para os efeitos do n.º 3, do artigo 8.º, da Lei 34- A/2023.
Notifique o presente despacho à vítima BB, identificada no acórdão condenatório.
Após trânsito, abra vista para liquidação do remanescente da pena.
4. O despacho referido em 3. não foi objecto de recurso.
5. Não tendo satisfeito a condição nos 90 dias imediatos à notificação, no dia 5.02.2024 o arguido veio solicitar o pagamento da indemnização em prestações, solicitando a não revogação do perdão.
6. O Ministério Público, em 16/02/2024 requereu o seguinte:
Nos termos do art. 8.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02/Ag.,
2 - O perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado.
3 - A condição referida no número anterior deve ser cumprida nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para o efeito.
O legislador expressamente fez depender o perdão de uma cláusula objectiva de paz social com a vítima. A cláusula é objectiva, sendo independente de qualquer juízo de mérito no cumprimento ou de culpa no incumprimento.
No caso, é impraticável o pagamento das indemnizações arbitradas com os parcos proventos auferidos no E.P.
Pelo que nos opomos à extensão da condição fora do prazo previsto no art.º 8.º, n.º 3.
7. Foi então proferido em 02/05/2024 o despacho recorrido com o seguinte teor:
Ofício com a refª Citius 39025284 de 09/02/2024 e requerimento com a refª Citius 38375791 de 05/02/2024:
No âmbito dos presentes autos foi realizado cúmulo jurídico das penas aqui aplicadas ao arguido AA, com as penas em que havia sido condenado no processo nº 749/20.1PASNT do Juízo Central Criminal de Sintra, J3, tendo o arguido sido condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos e 10 meses de prisão, além das penas acessórias e indemnizações que já lhe haviam sido impostas nas anteriores condenações (cfr. acórdão na refª Citius 421683698 de 05/01/2023). Atenta a entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, foi ponderada a aplicação do perdão aí previsto, tendo sido decidido aplicar o perdão de um 1 ano de prisão à pena única, passando o arguido a cumprir a pena única de 6 anos e 10 meses de prisão (cfr. despacho com a refª Citius 430154086 de 09/11/2023).
Como decorre da fundamentação da decisão que aplicou o perdão, o mesmo assentou na circunstância de uma das penas parcelares ter sido a pena de 1 ano e 4 meses de prisão pelo crime de condução sem habilitação legal - não excluído do âmbito de aplicação da medida de clemência -, pois que as demais penas parcelares (de 2 anos e 8 meses, 3 anos e 6 meses e 3 anos e 6 meses, de prisão) correspondiam a crimes expressamente excluídos pelo artigo 7º, nº 1, da citada Lei nº 38-A/2023 (dois crimes de violência doméstica e um crime de violação).
A decisão que aplicou o perdão declarou que o mesmo ficaria sujeito à condição resolutiva de o arguido/condenado não praticar qualquer infracção dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei, ou seja, até ao dia 01/09/2024 (como decorre do disposto no artigo 8º, nº 1, da aludida Lei), bem como ficaria condicionado ao pagamento das quantias indemnizatórias à vítima BB, no prazo de 90 dias contados a partir da notificação ao arguido/condenado para esse efeito, prazo esse que já decorreu (cfr. certidão de notificação na refª Citius 37979728 de 22/12/2023).
Veio, entretanto, o arguido/condenado requerer autorização para fazer o pagamento das indemnizações em “prestações pequenas”, pois que o único rendimento de que actualmente beneficia é o que resulta da sua ocupação laboral no Estabelecimento Prisional, solicitando consequentemente que o perdão concedido não seja revogado.
O Ministério Público opõe-se a tal pretensão, com o fundamento de que o legislador fez depender o perdão de uma cláusula objectiva de paz social com a vítima, independente de qualquer juízo de culpa no eventual incumprimento.
Decidindo.
Desde já dizemos que, em abstracto, concordamos com os argumentos expendidos pelo Digno Magistrado do Ministério Público, no sentido de a cláusula de (não) revogação do perdão, nos termos do disposto no artigo 8º, nºs 2 e 3 da referida Lei, ser uma cláusula objectiva, cujo incumprimento leva à revogação, independentemente de qualquer juízo de culpa do condenado.
Porém, e como diz o Tribunal Constitucional1, «A indemnização encontra a sua justificação na prática do crime. É a prática do acto ilícito criminalmente que constitui causa ou fundamento jurídico da condenação do arguido no pagamento da indemnização ao ofendido. Nesta medida, ela é também um efeito jurídico da prática do crime, tal como o é a condenação na pena criminal. É claro que a pena visa satisfazer, essencialmente, interesses do Estado, de reconstituição da paz jurídica entre a comunidade social e o criminoso, conseguida através de medida funcionalizada para a prevenção geral e para a sua ressocialização, e que a indemnização pretende “reparar um dano” provocado ao ofendido, procurando reconstituir a situação que existiria se não fora a verificação do “evento que obriga à indemnização” (cf. art.ºs 483.º e 562.º do Código Civil).
Nesta perspectiva, trata-se de efeitos jurídicos autónomos. Só que a condenação em indemnização não deixa de corresponder a uma concreta decorrência, ainda, da ilicitude (criminal) do facto praticado e de reacção do sistema jurídico, aqui, em protecção ou favor do lesado. Ela mantém uma conexão íntima com a prática do crime.
Essa relação intrínseca entre a prática do crime e o dever de reparar o dano provocado é, de resto, assumida, expressamente, pelo Código Penal quando determina, no art.º 71.º, que se relevem as consequências do crime e a conduta destinada a repará-las para efeitos de determinação da medida da pena (…) Nessa medida, bem se compreende que o órgão competente (Assembleia da República) do titular do poder de clemência e, simultaneamente, do “ius puniendi” - o Estado - possa considerar que a paz jurídica só ficará, em caso de perdão de pena, totalmente satisfeita se o condenado também em indemnização pela prática do crime reparar efectivamente o dano provocado ao lesado.
Sendo o perdão uma medida de clemência que extingue, total ou parcialmente, a pena do crime pelo qual o arguido foi condenado, mas não extinguindo a ilicitude criminal e a ilicitude civil dos factos praticados, bem se justifica que o legislador da clemência, dentro da sua discricionariedade ponderativa de todos os bens jurídicos ofendidos (penais e civis) entenda não ser ela de conceder quando existam efeitos civis indemnizatórios que tornam ainda presente a necessidade de paz jurídica com o lesado.» (acórdão nº 488/2008, de 07/10/2008, disponível para consulta in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080488.html)
O ensinamento que retiramos do acima exposto é que a condição resolutiva prevista no artigo 8º, nºs 2 e 3, da Lei nº 38-A/2003, de 2 de Agosto está prevista para as situações em que a indemnização em que o agente foi condenado a pagar se reporte ao crime relativamente ao qual foi efectivamente perdoado um ano de prisão. No caso de uma pena única resultante de um cúmulo jurídico de penas parcelares, em que um(alguns) do(s) crime(s) está(ão) excluído(s) do perdão, o perdão concedido fica sujeito à condição resolutiva do pagamento da indemnização ao lesado no prazo de 90 dias, se, e apenas se, tal indemnização se reporta ao(s) crime(s) cuja(s) pena foi (total ou parcialmente) perdoada. No caso dos autos, como já vimos, foi perdoado 1 ano à pena única de 7 anos e 10 meses de prisão, sendo que a única pena passível de ser perdoada era a pena parcelar de 1 ano e 4 meses aplicada pelo crime de condução sem habilitação legal, uma vez que os demais crimes (violência doméstica e violação) estão expressamente excluídos do âmbito de aplicação da Lei nº 38-A/2023.
É certo que o douto acórdão que procedeu ao cúmulo jurídico das penas manteve, como devia, as (anteriores) condenações nas penas acessórias e montantes indemnizatórios. Contudo, como resulta da mera consulta dos autos, as indemnizações atribuídas à vítima BB fundaram-se na prática dos crimes de violência doméstica e de violação (que não admitem perdão), e não na condenação pelo crime em que se sustentou a decisão que procedeu ao perdão.
Deste modo, e decidindo, por ora não revogo o perdão concedido com o fundamento de o arguido não ter procedido (ainda) ao pagamento das quantias indemnizatórias em que foi também condenado (artigo 8º, nºs 2 e 3, da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto).
Aguarde-se até ao dia 01/09/2024, data após a qual será ponderada a revogação (ou não) do perdão com fundamento no disposto no artigo 8º, nº 1, da citada Lei nº 38-A/2023. Notifique (Ministério Público, arguido e Defensor).
Dê conhecimento do presente despacho ao TEP.
III) Certidão com a refª Citius 39239008 de 02/05/2024: Visto.
Lisboa, 02/05/2024
IV- Fundamentação de direito
Constitui jurisprudência e doutrina assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP1, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).2
Na Doutrina, por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume II, 5.ª Edição atualizada, pág. 590, “As conclusões do recorrente delimitam o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso. Nelas o recorrente condensa os motivos da sua discordância com a decisão recorrida e com elas o recorrente fixa o objecto da discussão no tribunal de recurso… A delimitação do âmbito do recurso pelo recorrente não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente das nulidades insanáveis que afetem o recorrente… não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º 2 que afetem o recorrente…”
Apreciemos então a 1.ª questão:
1.ª Do perdão de um ano aplicado à pena única por decisão de 09/11/2013 que o condicionou ao pagamento de indemnização à lesada no prazo de 90 dias, e que não foi paga no referido prazo, condição que se funda na prática dos crimes de violência doméstica e de violação englobados no cúmulo, mas excluídos do benefício do perdão da Lei 38-A/2023 de 02/08 e não no crime de condução sem habilitação, igualmente abrangido pelo cúmulo e não excluído da referida Lei.
A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infracções, por ocasião da realização da Jornada Mundial da Juventude em Portugal.
A referida Lei veio estipular no seu art.º 3.º relativo ao Perdão de penas que:
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
2 - São ainda perdoadas:
a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;
b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa;
c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e
d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.
3 - O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena.
4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
5 - O disposto no n.º 1 abrange a execução da pena em regime de permanência na habitação.
6 - O perdão previsto no presente artigo é materialmente adicionável a perdões anteriores.
O Artigo 7.º da mesma Lei veio a consagrar, entre outras, as seguintes Excepções:
1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:
a) No âmbito dos crimes contra as pessoas, os condenados por:
(…)
ii) Crimes de violência doméstica e de maus-tratos, previstos nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal;
(…)
v) Crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal;
(…)
3 - A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos. (sublinhados nossos).
Veio o Artigo 8.º (Condições resolutivas) a estabelecer entre outras, a seguinte condição resolutiva:
“(…)
2 - O perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado.
3 - A condição referida no número anterior deve ser cumprida nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para o efeito.
4 - Considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 caso o titular do direito de indemnização ou reparação não declare que não foi indemnizado ou reparado.
5 - Quando o titular do direito de indemnização ou da reparação for desconhecido, não for encontrado ou ocorrer outro motivo justificado, considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 se a reparação consistir no pagamento de quantia determinada e o respetivo montante for depositado à ordem do tribunal.
A responsabilidade criminal extingue-se pelo perdão genérico (art.º 127º do CP), sendo que o perdão genérico extingue a pena no todo ou em parte – art.º 128º do CP.
Porém, a responsabilidade criminal e a pena (total ou parcialmente) são extintas pelo perdão se forem cumpridas as condições impostas pela lei que aplicou esse mesmo perdão.
Com base nos artigos 127º e 128º do CP sabemos assim, que, quando é aplicado um perdão, este extingue a responsabilidade criminal e a pena – total ou parcialmente.
No caso dos autos, no Processo Comum Colectivo 7/20.1PSLSB, do Juízo Central Criminal de Lisboa-Juiz 1 foi proferido em 17/12/2021 Acórdão Cumulatório, em que, para além do mais, foi decidido:
b) Condenar o arguido AA, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea b) e c) do Código Penal;
c) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de contactos com BB pelo período de 2 (dois) anos e na obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica;
d) Condenar o arguido AA na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão pelo cometimento no dia 1 de Janeiro de 2020 de 1 (um) crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;
e) Condenar o arguido, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses, pelo cometimento dos crimes identificados nas alíneas b) e d) do presente dispositivo;
f) Arbitrar a título de reparação à vítima BB o montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a suportar pelo arguido;
Tendo sido aplicada ao mesmo arguido a pena (única) de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão no processo comum colectivo n.º 749/20.1 PASN, Juízo Central Criminal de Sintra, Juiz 1, no dia 05/01/2023 foi proferido Acórdão cumulatório, procedendo à efectivação do cúmulo jurídico das penas aplicadas no processo 7/20.1PSLSB e no 749/20.1 PASN, decidindo o Tribunal aplicar ao arguido AA as seguintes penas:
- na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea b) e c) do Código Penal;
- na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;
- na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), nº 2, alínea a), nº 4 e nº 5 do Código Penal;
- na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática, como autor material de um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164º, nº 1 do Código Penal;
Em cúmulo jurídico das identificadas penas, na pena única de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão assim se satisfazendo as necessidades de prevenção geral e especial e as finalidades da punição que o caso impõe
E, ainda:
- na pena acessória de proibição de contactos directos com BB e de se aproximar da mesma a menos de 50 metros, pelo período de quatro anos e seis meses, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, após o arguido ser libertado;
- na obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica;
- arbitrar a título de reparação à vítima BB o montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a suportar pelo arguido;
- a título de reparação por danos não patrimoniais, condenar o arguido AA no pagamento de 5.000,00 € (cinco mil euros) a BB (artigo 16º, nº 2 do Estatuto da Vítima, artigo 21º, nº 2 da Lei nº 112/2009, de 16- 9 e artigos 67º-A, nº 3 e 82º-A, nº 1 do Código de Processo Penal).
Por despacho de 09/11/2023, nos termos do artigo 3.º, n.º 4, e 7.º, n.º 3, da Lei 38.º-A/2023, por força do previsto na Lei n.º 38-A/2023, foi perdoado 1 ano de prisão e determinado que o arguido tem a cumprir a pena de 6 (seis) anos e 10 (dez) meses de prisão em que foi condenado, sob condição resolutiva deste não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei 38-A/2023, ou seja, até 01.09.2024, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada. O perdão ficou ainda condicionado ao pagamento de indemnização à vítima BB, no montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) e de 5.000,00 € (cinco mil euros), nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para esse efeito (n.ºs 2 e 3 do art.º 8.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02-09), e sem prejuízo do disposto no n.º 4.
E nessa sequência, ordenou-se a notificação do condenado da condição do pagamento, no prazo de 90 dias a contar dessa notificação, vindo o mesmo a ser expressamente notificado para o efeito, não tendo o condenado, porém, satisfeito a condição, veio o Ministério Público a requerer a revogação do perdão, tendo, porém, o Juiz recorrido decidido não o revogar, nos termos da decisão recorrida supra transcrita.
É certo que a aplicação das condições previstas no art. 8º da Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ) opera de forma obrigatória e automática e tal como já aconteceu noutras Leis de Amnistia anteriores, o legislador na Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude, em nome da necessidade de proteção das vítimas dos crimes, que o perdão da pena não deve descorar, voltou a prever a sujeição do perdão concedido à condição de pagar a indemnização em que o arguido foi condenado.
E certo é ainda que no que concerne à revogação do perdão concedido por verificação da condição prevista no art.º 8º, nº 2 não importa, sequer, indagar das condições de vida do condenado ou a sua culpa, a fim de se concluir se tinha ou não possibilidades de efectuar o pagamento da indemnização fixada no prazo definido. Desde logo, dado que a Lei da Amnistia, por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ), não prevê tal exigência.
O direito de graça assume uma natureza excepcional que não comporta aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo as normas que o enformam ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas (neste sentido cfr. o Acórdão do S.T.J. de fixação de jurisprudência nº 2/2023, de 01-02-2023, que se pronunciou sobre o art. 2º da Lei nº 9/2020, de 10 de abril - cf. DR nº 23/2023, série I de 01-02-2023, e, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 24-01-2024, proferido no Processo nº 628/08.0PAPVZ-C.P1; do Tribunal da Relação de Évora de 16-12-2023, proferido no Processo nº 401/12.1TAFAR-E.E1 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 06-02-2024, proferido no Processo nº 555/15.5GAEPS-B.G1 e ainda Cruz Bucho no Estudo «Amnistia e perdão (Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto): Seis meses depois (elementos de estudo), pág. 36, disponível, em texto integral na página do Tribunal da Relação de Guimarães – https://www.trg.pt)
Além disso, como se afirma no Aresto do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-10-2006, proferido no Processo nº 1043/01.2TBVIS.B.C1, a propósito da Lei 29/99, de 12 de Maio:
«Como já acima referimos a condição resolutiva opera de forma obrigatória e automática.
Os tribunais estão impedidos de, verificada a condição resolutiva, recusar a revogação do perdão, num determinado caso concreto, com base em juízos sobre a inconveniência (na consideração, designadamente, dos fins das penas) da revogação (Ac RE nº 1334/04-1 em dgsi.pt).
Desta forma, sendo a revogação do perdão obrigatória e automática, não tem razão o recorrente quando sustenta que devia ter sido ponderada a culpa do agente na verificação da condição resolutiva.
A revogação do perdão não se pauta pelos critérios da determinação da medida da pena. A exigência de ponderação da culpa do agente na verificação da condição resolutiva de reparação ao lesado não são aqui aplicáveis, por se tratar de exigência não prevista na Lei 29/99. Na verdade, não se está aqui perante uma decisão em que releve a ponderação da culpa do agente (como, por exemplo, na revogação da suspensão da execução da pena).
O legislador tratou de forma igual o que é essencialmente igual. As dificuldades económicas que o agente possa ter ou qualquer outro facto que o impossibilite de pagar a indemnização, preexistem á Lei nº 29/99, não é esta Lei que as gera ou potencia. Aliás se não tivesse sido decretado perdão genérico o recorrente teria que cumprir a pena de prisão na sua totalidade. Esta Lei veio beneficiar o arguido, perdoando um ano da pena de prisão. Mas o legislador, além do benefício que quis dar aos arguidos, procurou não esquecer as vítimas, muitas vezes esquecidas. Assim, para acautelar os interesses das vítimas condicionou o perdão ao pagamento da indemnização.»
Ademais, pronunciando-se sobre a constitucionalidade dessa condição suscitada a propósito da Lei n.º 29/99 de 12 de Maio (Lei que estabelece perdão genérico e amnistia de certas infracções), o Tribunal Constitucional no acórdão nº 488/2008, de 07-10-2008 (Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues), citado pela decisão recorrida, consignou que:
«Ora, a imposição da analisada condição resolutiva não se afigura destituída de fundamento material ou racional bastante, de modo algum podendo ser tida como medida irrazoável ou arbitrária.
A indemnização encontra a sua justificação na prática do crime. É a prática do acto ilícito criminalmente que constitui causa ou fundamento jurídico da condenação do arguido no pagamento da indemnização ao ofendido.
Nesta medida, ela é também um efeito jurídico da prática do crime, tal como o é a condenação na pena criminal.
É claro que a pena visa satisfazer, essencialmente, interesses do Estado, de reconstituição da paz jurídica entre a comunidade social e o criminoso, conseguida através de medida funcionalizada para a prevenção geral e para a sua ressocialização, e que a indemnização pretende “reparar um dano” provocado ao ofendido, procurando reconstituir a situação que existiria se não fora a verificação do “evento que obriga à indemnização” (cf. art.ºs 483.º e 562.º do Código Civil).
Nesta perspectiva, trata-se de efeitos jurídicos autónomos.
Só que a condenação em indemnização não deixa de corresponder a uma concreta decorrência, ainda, da ilicitude (criminal) do facto praticado e de reacção do sistema jurídico, aqui, em protecção ou favor do lesado.
Ela mantém uma conexão íntima com a prática do crime. (…)
Nessa medida, bem se compreende que o órgão competente (Assembleia da República) do titular do poder de clemência e, simultaneamente, do “ius puniendi” – o Estado – possa considerar que a paz jurídica só ficará, em caso de perdão de pena, totalmente satisfeita se o condenado também em indemnização pela prática do crime reparar efectivamente o dano provocado ao lesado.
Sendo o perdão uma medida de clemência que extingue, total ou parcialmente, a pena do crime pelo qual o arguido foi condenado, mas não extinguindo a ilicitude criminal e a ilicitude civil dos factos praticados, bem se justifica que o legislador da clemência, dentro da sua discricionariedade ponderativa de todos os bens jurídicos ofendidos (penais e civis) entenda não ser ela de conceder quando existam efeitos civis indemnizatórios que tornam ainda presente a necessidade de paz jurídica com o lesado.
Existe, pois, razão material bastante para justificar a irrelevação, na concessão da graça do perdão genérico, da situação económica em que se encontra o seu beneficiário.
Não se verifica, por isso, a violação do princípio da igualdade.
E também não ocorre a alegada violação do art.º 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP.
Na verdade, a sujeição da concessão do perdão à condição resolutiva de pagamento da indemnização em que foi condenado, dentro de certo prazo, não contende com qualquer direito, liberdade ou garantia fundamental de que o mesmo sentenciado seja titular que caiba na previsão dos referidos preceitos.
Mas independentemente disso, acresce que o condicionamento se mostra feito de forma geral e abstracta, aplicando-se a todos os abrangidos pelo perdão que tenham sido também condenados no pagamento de indemnização ao lesado, e que o mesmo tem fundamento material
Seguindo este entendimento, e ainda a propósito do art.º 5º nº 1 da Lei nº 29/99, de 12-05, pronunciou-se o Acórdão do S.T.J. de 14-12-2005, proferido no Processo nº 3561/03-03, (Relator: Conselheiro Oliveira Mendes), citado por Cruz Bucho obra citada pág. 32, cujo sumário transcrevemos parcialmente:
«IV - A concessão de perdão subordinada à condição resolutiva prevista no art.º 5.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12-05, não viola o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado - art.º 13.º da CRP.
V - Na verdade, a referida condição está directamente relacionada com o mal do crime, tendo em vista a sua reparação ou compensação, pelo que é ditada por razões de justiça e de política criminal, condição que, por isso, não pode deixar de se considerar plenamente justificada, de acordo com os princípios gerais de direito; a lei limita-se a exigir ao condenado, para que beneficie do perdão genérico, que restitua aquilo com que criminosamente se locupletou ou que compense o lesado dos prejuízos criminosamente causados».
Aliás, é também neste mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-01-2024, proferido no Processo n.º 75/20.6GCGMR-K.G1 (Relatora Florbela Sebastião e Silva):
«Todavia, uma lei de amnistia que condiciona o perdão ao pagamento da indemnização em que o arguido já havia sido condenado a pagar dentro de certo período de tempo não viola a nosso ver – e como infra veremos também no entendimento do Tribunal Constitucional – o princípio da igualdade porquanto a norma em causa visa um universo de arguidos nas mesmas condições (terem sido condenados também no pagamento de uma indemnização) e visa salvaguardar os legítimos e concorrentes interesses das vítimas.
Como leis excepcionais que são, podem ser condicionadas pelo legislador que, procurando prosseguir em determinado momento, por ocasião, por exemplo, da vinda de um Papa a Portugal, ou em virtude das Jornadas Mundiais de Juventude, aliviar certos condenados, contudo não pode esquecer-se dos fins das penas e dos princípios do sistema penal implementado.
Ora, essa prorrogativa traduz uma benesse – uma graça – concedida ao condenado que não pode ser concretizada a qualquer custo, mas, antes, deve ser mitigada com os interesses das vítimas, bem como da política criminal vigente, mormente no que tange às exigências de prevenção especial pois, se o perdão levar a que, no futuro, o arguido entenda ser possível continuar numa vida dedicada ao crime porque, na prática, “o crime compensa” pois nem sequer teve de ressarcir o ofendido para poder beneficiar do perdão, então esse perdão não está conforme com os princípios basilares e estruturantes do sistema penal português. (Neste sentido também o Acórdão da Relação do Porto de 25 de Setembro de 2024 849/18.8PWPRT-C.P1 Amélia Carolina Teixeira).
É certo, que a indemnização encontra justificação na prática do crime, sendo este o fundamento da condenação no pagamento da indemnização ao ofendido, constituindo ainda um efeito jurídico da prática do crime. Assim, se a pena visa satisfazer, no essencial, interesses do Estado, de reconstituição da paz jurídica entre a comunidade social e o criminoso, conseguida através de medida funcionalizada para a prevenção geral e para a sua ressocialização, a indemnização pretende reparar um dano provocado ao ofendido, procurando reconstituir a situação que existiria se não fora a verificação do evento que obriga à indemnização conforme arts. 483º e 562º do Código Civil.
Assim, a condição resolutiva de pagamento da indemnização está diretamente relacionada com o mal do crime, tendo em vista a sua reparação ou compensação, sendo ditada por razões de justiça e de política criminal, limitando-se a lei a exigir ao condenado, para que beneficie do perdão genérico, que restitua aquilo com que criminosamente se locupletou ou que compense o lesado dos prejuízos criminosamente causados.
O perdão é um ato de clemência atribuído por lei. A sua aplicação é imperativa “ope legis”. O perdão genérico tem carácter geral é aplicado a todos os arguidos que tenham praticado uma infração no período de tempo abrangido pela lei de amnistia e perdão e preencham os demais requisitos da lei de graça, de uma forma obrigatória e automática.
Ora, o art.º 3º, n.º 1, da Lei 38-A72023 estabelece o perdão de penas da seguinte forma: “é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos”, acrescentando o n.º 4 que “Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”.
Significa isto que em caso de cúmulo jurídico de penas operado nos termos do art.º 78º ou 79º do Código Penal, preenchidos os demais requisitos, o perdão incide não sobre cada uma das penas individualmente considerada, mas sobre a pena única.
No caso vertente, o cúmulo jurídico envolveu penas parcelares não abrangidas pelo perdão e uma pena parcelar abrangida pelo perdão.
É verdade que, resulta da norma do nº 4 do artigo 3º da citada Lei que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, porém, deve ser entendido que tal preceito reporta-se exclusivamente a penas que beneficiam de perdão. É o que decorre do seu n.º 4 quando dispõe que “o perdão incide sobre a pena única”, reportando-se aos casos em que essa pena única resulta de cúmulo de penas, todas elas passíveis de perdão. Porquanto, caso tal não ocorra, a regra é a do n.º 3 do art.º 7.º da dita Lei: “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.” (sublinhado e destaque nosso).
Conjugados estes normativos, não se pode, a nosso ver, deixar de extrair a conclusão de que o perdão incide única e exclusivamente sobre a pena única quando esta é composta exclusivamente por penas parcelares que beneficiam do perdão.
Assim, existindo penas por crimes excluídos do perdão e sendo este apenas aplicável às penas dos crimes não excluídos dele, consideramos que o perdão não deveria ser aplicável a penas únicas que englobam penas que beneficiam do perdão e penas que dele não beneficiam (veja-se neste sentido Victor Pereira Pinto, in Estudo publicado no site do CEJ “O concurso superveniente de crimes e o correspondente cúmulo jurídico de penas – Algumas questões mais actuais” bem como entre outros Acórdão da Relação de Coimbra de 25/10/2024 proc. 32/14.1PFVIS-A.C1 relatora Cândida Martinho Coimbra.)
No aresto do STJ de 20.03.2024, no processo 21/14.6PELRA.C3.S1em que foi relatora Ana Barata de Brito, foi acolhido o seguinte entendimento.
I. Quando se diz, no n.º 4 do art.º 3.º Lei 38-A/2023, que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, está-se a considerar a pena única correspondente a crimes que beneficiam (todos eles) de perdão.
II. Com esta disposição quer-se esclarecer que, nos casos de concurso efectivo de crimes – de crimes que beneficiem, todos eles, de perdão -, o perdão se aplica uma única vez, à pena única, e não várias vezes, a cada uma das parcelares que a compõem. Ou seja, só concluído todo o processo de determinação da pena e encontrada e aplicada a pena “final”, então sim, há lugar a aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023.
III. Mas há que compatibilizar o n.º 4 do art.º 3.º com o art.º 7.º da mesma lei, que determina as excepções ao perdão. Compatibilização que se realiza aplicando-se primeiramente o perdão à pena parcelar que dele beneficia, procedendo-se seguidamente a cúmulo jurídico do remanescente dessa parcelar com a outra pena parcelar, excluída do perdão).” (disponível em www.dgsi.pt)
No caso vertente, perante a constatação de que no cúmulo jurídico efetuado, envolvendo penas parcelares, uma delas beneficiava de perdão e as outras não, impunha-se, a nosso ver, desfazer o cúmulo jurídico e aplicar depois o perdão à pena de prisão pela prática do crime de condução sem habilitação legal. Não foi esse, porém, o entendimento exarado na decisão proferida em 09/11/2023 que aplicou o perdão com a condição do pagamento da quantia indemnizatória à vítima. Fê-lo na linha do defendido no acórdão do TRP de 24-01-2024 (in www.dgsi.pt).
É o seguinte o sumário do referido acórdão:
A aplicação do perdão decorrente da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08 a pena única que integre, na sua composição, penas parcelares pela prática de crimes excluídos do benefício não impõe a necessidade de nova audiência para reformulação do cúmulo já efetuado, por decisão transitada, conquanto, em resultado da operação, a parte perdoada na pena única não ultrapasse a parcelar não excluída do perdão e se mantenha um remanescente, após perdão, não conflituante com a moldura mínima do concurso.”
Igual entendimento foi seguido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/03/2024 processo 1553/04.0PBVIS.C1, relatora CC (in www.dgsi.pt) citado pelo Ministério Público no recurso, onde se mostra exarado, além do mais, na fundamentação que “(…)previu a Lei expressamente a aplicação do perdão em caso de cúmulo jurídico à pena única, não a cada uma das penas englobadas no cúmulo. Ora, consabidamente as penas individuais perdem a sua autonomia quando englobadas num cúmulo jurídico, fundindo-se numa mesma pena, a pena única.
Tendo perdido a sua autonomia ao ser englobada no cúmulo, naturalmente que as condições que lhe sejam aplicáveis se transferem para a pena única. Pelo exposto, as condições resolutivas do perdão da pena previstas na Lei da Amnistia devem aplicar-se, de forma automática, à única pena que subsiste: a pena única.
É apenas esta interpretação que resulta da conjugação dos preceitos da Lei n.º 38-A/2023 (arts. 3º, n.º 4, e 8º, n.º 2) com os princípios que regem as penas na nossa legislação penal.
Não cabe, pois, ao julgador aferir se perante as circunstâncias do caso é de condicionar ou não o perdão à pena única: se o arguido foi condenado num dos processos englobados no cúmulo no pagamento de uma indemnização ao ofendido, a condição resolutiva prevista no n.º 2 do art.º 8º opera de forma automática.”
Sendo este entendimento o acolhido na decisão de 09/11/2023 que aplicou o perdão, condicionado ao pagamento de indemnização à vítima BB, no montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) e de 5.000,00 € (cinco mil euros), nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para esse efeito (n.ºs 2 e 3 do art.º 8.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02-09), vemos que a mesma não foi objecto de recurso, nomeadamente pelo arguido, tendo transitado em julgado.
Entremos então, na apreciação da segunda questão.
2.ª Se a decisão recorrida de 02/05/2024, ao não revogar o perdão por incumprimento dessa condição, com fundamento em que a mesma, não se funda na prática do crime que beneficia do perdão, viola ou não o caso julgado, decorrente da decisão proferida em 09/11/2023 que aplicou o perdão com essa condição.
Defende o Ministério Público que o despacho revidendo configura uma violação do caso julgado, pois há muito transitou em julgado o despacho de clemência, proferido a 09/11/2023, o qual condicionou o perdão ao cumprimento de obrigação dupla de reparação da vítima – art.º 619.º, n.º 1, do C.P.C., ex vi do art.º 4.º do C.P.P.
O art.º 619.º, do CPC citado pelo Ministério Público dispõe, no que respeita ao Valor da sentença transitada em julgado, que:
1 - Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.
2- Mas se o réu tiver sido condenado a prestar alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua duração, pode a sentença ser alterada desde que se modifiquem as circunstâncias que determinaram a condenação.
O fundamento central da figura do caso julgado, radica numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do Direito, mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através deste instituto aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias.
O CPP/29, no capítulo das excepções, aludia expressamente ao caso julgado (art.º 138.º, 3.º) e, a partir do art.º 148.º e segs., regulamentava com algum pormenor a referida excepção, com especial relevo para o caso julgado material e efeitos do caso julgado cível no processo penal, sendo que, no actual CPP, não acontece o mesmo.
Dispõe o art.º 4.º do CPP relativo à integração de lacunas que “Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo civil”.
Concorda-se com o entendimento de Paulo Pinto de Albuquerque “os princípios do caso julgado encontram-se dispersos na CRP, no CPP e no CPC, não podendo considerar-se válida tout court a tese sustentada na motivação do assente do STJ n.º 3/2000 nos termos da qual devem considerar-se ainda em vigor as disposições … que constavam do anterior CPP… mais próximo da verdade está a tese sustentada no acórdão de fixação de jurisprudência do STJ N.º 2/95, de acordo com a qual o regime do caso julgado deve resultar da conjugação das normas do processo civil com as especificidades do processo penal, não podendo defender-se uma “aplicação genérica e indiferenciada ao processo penal dos vários normativos que no processo civil tratam a questão, ao abrigo do regime estabelecido no art.º 4.º do Código de Processo Penal” in Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Vol. I, 5.ª Edição atualizada UCP Editora pág. 64 e 65.
Como ensina Cavaleiro de Ferreira: «Porque o caso julgado, cortando cerce a possibilidade de busca da verdade material, restringe o ideal de justiça em função da necessidade de segurança, faz-se sentir a sua imodificabilidade com mais rigor no processo civil do que em processo penal, por sua natureza vertido para a justiça real e dificilmente acomodatício às ficções de segurança, obtidas à custa do sacrifício de valores essenciais» in Curso de Processo Penal», III, 1958, 88.
Não se coartando de uma forma absoluta, o recurso ao processo civil nesta matéria, o que será imprescindível é encontrar um critério que, entrando em linha de conta com as especialidades do processo penal, imponha alguns limites à aplicação em processo penal das normas do processo civil neste domínio critério esse definido no já citado no art.º 4.º do CPP, o qual aponta, fundamentalmente, para dois pressupostos de tal aplicação quais sejam:
- a existência de lacunas que não podem ser integradas por aplicação analógica de outras normas do processo penal; e
– a harmonização das normas do processo civil a aplicar, com o processo penal.
É sabido que o caso julgado enquanto pressuposto processual, conforma um efeito negativo que consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão. É o princípio do ne bis in idem, consagrado como garantia fundamental pelo art.º 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa “5. Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.”
Por seu turno o caso julgado material (art.º 619.º, do CPC) tem por efeito na vertente penal que o objecto da decisão não possa ser objecto de outro procedimento. O direito de perseguir criminalmente o facto ilícito está esgotado.
Como considerado pelo STJ no Acórdão de 18 de Novembro de 2020, processo 569/15.5T9GMR-E.S1, 3.ª Secção Criminal, Relator Manuel Augusto de Matos, em que se transcreve parcialmente o sumário:
“(…) IV - A lei penal e processual penal não define o caso julgado, não obstante se lhe referir em determinados preceitos. Contudo, faz parte do leque de garantias constitucionais o ne bis in idem, ou seja, a impossibilidade de «ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime» (art.º 29.º, n.º 5, da CRP), garantia que também colhe protecção no art.º 4.º do Protocolo n.º 7, adicional à CEDH, de 22/11/1984 e no art.º 14.º, n.º 7, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
V - O caso julgado como o efeito processual da sentença transitada em julgado, que a torna decisiva e vinculativa e impede que o que nela se decidiu seja modificado ou atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material). (…)”
No caso dos autos, de facto, a decisão de 09/11/2013 transitou em julgado, consolidando o entendimento supra referido no processo em causa.
Ademais, está em causa o esgotamento do poder jurisdicional previsto no art.º 613.º, do CPC com epigrafe “Extinção do poder jurisdicional e suas limitações
1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2 - É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.
3- O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos.
O art.º 616.º, n.º 2 al. a) do CPC prevê a reforma da sentença quando tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos na sentença, sendo tal realizado pela via de requerimento de reforma, caso não haja recurso, ou pela via do recurso, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do referido art.º.
Porém, esta disposição legal não é aplicável ao processo penal, na medida em que não havendo lacuna, não há que lançar mão do art.º 4.º, do CPP. Efectivamente o CPP contém previsão específica no art.º 380.º, o qual, concernente à “Correção da sentença dispõe que:
1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:
a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;
b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos restantes actos decisórios previstos no artigo 97.º
No sentido de que, efectivamente, não há lacuna vão os Acórdãos do STJ de 25.01.2007, processo 1556/07-5.ª, do STJ de 04/05/2023 processo 1310/17.3T9VIS.C1.S1-3.ª Secção; do TRC de 15.01.2012 processo 819/10.4TBPMS-A.C1 e do TRL de 23.06.2010 processo 103/10.3TYLSB.L1-3.ª. Na Doutrina Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª Edição Almedina pág. 867 e Paulo Pinto de Albuquerque Comentário do Código de Processo Penal Anotado, Vol II 5.ª Edição, UCP pág. 497.
Na previsão do referido art.º 380.º, do CPP o erro que pode ser corrigido respeita a um “erro de escrita” ou de um “erro material”, um erro que seja evidente, patente, indiscutível, não sendo aplicável a “erros de julgamento” nem a “erros de direito” nem a erro cuja eliminação importe apreciação do mérito da causa ou modificação essencial, quer no que tange à decisão quer à fundamentação, estando vedado ao Juiz, a pretexto da correcção de um acto decisório, qualquer intromissão no conteúdo da decisão (neste sentido Acórdãos do STJ de 18.01.2007, processo 3510/06; de 04/07/2013 processo 5789/06.0TAVNG.P1-C.S1; 19.01.2011 PROCESSO 882/05.0TAOLH.E1.S1, de 25/01/2007, processo 1556107-5).
Veja-se o lapidar sumário exarado no referido aresto do STJ de 04-05-2023:
I-A aplicação subsidiária, no processo penal, das normas dos artigos 613.º e 616.º, n.º 2, do CPC – que também se aplicam aos recursos de apelação e de revista em processo civil (artigos 666.º, n.º 1, e 685.º do CPC) – exige que, nos termos do artigo 4.º do CPP, se identifique uma lacuna de regulamentação (um “caso omisso”) que não possa ser preenchida por aplicação analógica das disposições do CPP.
II. Não existindo norma equivalente no CPP, há que aplicar o artigo 613.º do CPC quanto ao esgotamento do poder jurisdicional; proferida a sentença penal, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
III. Na determinação da lacuna há que ter presente que, diferentemente do que sucede em processo civil, vigora em processo penal o princípio geral de recorribilidade das decisões, estabelecido no artigo 399.º do CPP. As exceções de irrecorribilidade, previstas no artigo 400.º, respeitam o direito ao recurso constitucionalmente garantido como componente do direito de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).
IV. Em processo penal não ocorre o pressuposto de que depende a possibilidade de reforma da sentença por erro na determinação da norma ou de qualificação jurídica dos factos, ou seja, o pressuposto da irrecorribilidade da decisão (artigo 616.º, n.º 2, do CPC). O que fundamenta a diversidade de regimes.
V. O processo penal dispõe de regime próprio e completo sobre modificabilidade da sentença, nos artigos 379.º e 380.º do CPP, aplicável aos acórdãos proferidos em recurso por força do disposto no artigo 425.º, n.º 4, do mesmo diploma.
VI. Não havendo lacuna, não há lugar à reforma da sentença em processo penal, nos termos do artigo 616.º, n.º 2, do CPC, pelo que é rejeitado o requerimento do arguido.”.
O regime do art.º 380.º, do CPP é aplicável igualmente aos despachos judiciais sejam proferidos pelo Juiz Singular quer pelo Juiz Colectivo previstos no art.º 97.º, do CPP.
Do exposto resulta que, com o entendimento exarado na decisão de 09/11/2013, transitada em julgado, esgotou-se o poder jurisdicional quanto à forma de aplicação do perdão à pena única e condição a que ficou sujeito. Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar.
O regime previsto no art.º 380.º, do CPP não permitia a rectificação ou modificação do determinado através do despacho recorrido de 02/05/2024, porquanto importa modificação essencial do decidido. Seriam apenas admissíveis alterações que não importem modificação essencial, de harmonia com a previsão do art.º 380º, n.ºs 1, al. b), parte final, e 3, deste último diploma legal, o que não é o caso.
A consequência da prolação de decisão em violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional tem sido maioritariamente considerada como sendo a da sua inexistência jurídica Cf. neste sentido, entre outros, o acórdão do STJ de 06-05-2010, Proc. n.º 4670/2000.S1 - 2.ª; do Tribunal da Relação de Guimarães de 22-05-2014, Proc. n.º 7231/08.3YIPRT-B.G1; do Tribunal da Relação do Porto de 22-05-2019, Proc. n.º 109/14.3T9LRA.P1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-03-2021, Proc. n.º 23822/17.9T8LSB-H.L1-7, todos in www.dgsi.pt., entendendo outros que será a da invalidade stricto sensu ou ineficácia processual Cf. neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-04-2018, Proc. n.º 3639/09.5TJCBR-A.C1.
Entendemos nós que o despacho proferido em 02/05/2024, ao considerar que o perdão não se encontra sujeito à condição do pagamento das indemnizações à vítima em que o arguido foi condenado, ao contrário do decidido no despacho transitado de 09/11/2023, fazendo-o após esgotamento do poder jurisdicional, à luz do disposto no art.º 615º, n.º 1 al. d), do CPC. aplicável por força do art.º 4.º, do CPP, é nulo por excesso de pronúncia.
Destarte, independentemente de qual seja a mais curial designação do vício de que padece, certo é que a decisão proferida em violação de tal princípio não pode subsistir, o que determina seja a mesma revogada e substituída por outra que extraia as consequências legais decorrentes do não cumprimento da condição resolutiva de pagamento da indemnização em que ficou condicionado o perdão prevista no art.º 8.º n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 38-A/2023 , no que respeita à sua revogação, sem prejuízo do n.º4 do art.º 8.º da referida Lei, como decorre do despacho de 09/11/2023.
V - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 9ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido que foi proferido em 02/05/2024, determinando que o mesmo seja substituído por outro que extrai as consequências legais, no que respeita à revogação do perdão, relativamente ao inadimplemento da condição resolutiva de pagamento da quantias indemnizatórias pelo condenado AA, prevista no art.º 8.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 38-A/2023 em que ficou condicionado o perdão pela decisão de 09/11/2023, sem prejuízo do n.º4 do art.º 8.º da mesma Lei.
*
Sem tributação (art.º 522.º do C.P.P.).
*
Notifique.
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Lisboa, 05.12.2024
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Ana Marisa Arnedo
Paula Cristina Bizarro
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1. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995
2. Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção.