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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
Sumário
I - O recurso de facto em ordem a ser apreciado (por isso, eventualmente a ter sucesso) tem de indicar claramente três aspectos - factos a alterar, provas concretas que impõem a modificação e porquê. II - Claudica o recurso que apenas pretende, contra a lei, substituir a livre apreciação dos factos efectuada por um tribunal pela de um cidadão interessado no desfecho do caso. III - É qualificado o homicídio perpetrado por uma mãe que vivia com o filho mesmo quando existiam ódio e ofensas mútuos, logo que aquela demonstrasse propensão para o desfecho fatal, desencadeando-o à facada sem abrandar na resolução até se certificar do mesmo, enfraquecendo inapelavelmente a relevância que poderiam ter as emoções desencadeadas por aquela vivência.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
AAfoi condenada na pena de dezasseis anos de prisão, pela prática de crime de homicídio qualificado, p. e p. pela alínea a) do artº 132º do Código Penal.
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Interpôs a arguida o presente recurso concluindo, em síntese:
“(...) Entende a recorrente que os factos provados 4, 7, 10 a 15 não deveriam ter sido dados por provados, e o facto f) como não provado, nem assim mantidos, por erro notório na apreciação da prova, devendo ser alterados (...) Da factualidade vertida na decisão em crise, e da renovação da prova gravada, se constata erros e um juízo errado sobre a dinâmica em que os factos ocorreram (...) juízo levado a cabo pelo Tribunal não encontra respaldo na prova concatenada nos autos, baseando-se em exclusivo no depoimento contraditório, pouco consistente e inverosímil da assistente (...) não poderia o Tribunal a quo fundamentar a sua convicção única e exclusivamente no relato enfabulado, enviusado e não coincidente da Assistente que não foi capaz de apresentar uma versão credível dos factos, f) Perante duas versões contraditórias, deveria o Tribunal a quo se cercado dos outros elementos que corroboram manifestamente a versão da arguida, que é credível e que encontra respaldo em toda a restante prova (...) face à prova produzida, designadamente à perícia psiquiátrica que concluiu que a recorrente A) Apresenta uma perturbação mista de ansiedade e depressão, de origem traumática (psicológica) prolongada, com carácter crónico e risco exclusivo para a vida da própria, i.e., risco de suicídio, B) e actuou sob perturbação emocional (emoção violenta) num quadro de estado de afeto que lhe diminuiu consideravelmente a culpa que as Mma.Juizes a quo não realizaram de forma plenamente satisfatória as exigências de objectividade, lógica e motivação que o princípio da livre apreciação postula, pelo que, não existindo prova legal ou tarifada, o concreto uso que fizeram do material probatório posto à sua disposição, de forma a atingir uma dada convicção, é susceptível de censura. i) Aduz-se ainda a preterição de princípios processuais penais dominantes em matéria de prova, maxime o princípio “in dubio pro reo.” (...) Os factos enquadram-se no crime de homicídio privilegiado, corroborados por toda a prova produzida, inclusive a pericial (avaliação forense médico psiquiátrica) (...) no caso dos autos a imagem global, tal como pericialmente atestada, é de compreensível emoção violenta, de uma situação arrastada no tempo, fruto de pequenos e grandes ofensas, que acabaram por levar a arguida que padecia de perturbação mental de sintomatologia depressiva e ansiosa a considerar-se numa situação sem saída, sem reacção e protecção do sistema de justiça, geradora de um estado de afecto ligado à angústia, depressão e até mesmo revolta, e que perante mais uma agressão do filho actuou sob emoção violenta desencadeada pela necessidade de sobrevivência, no mecanismo de “flight ou fight” que surge em situações de stress grave perante ameaça ou terror, e que levou ao acto (“fight”) (...) Com base na prova produzida, o primeiro golpe foi desferido numa situação de legítima defesa e o homicídio que acabou por ser perpretado pela arguida enquadra-se no artº 133º do Código Penal, pois que aquela actuou sob compreensível emoção violenta, devendo a mesma concomitantemente ser condenada numa pena de prisão de 1 a 5 anos (...) Por fim, na esteira de ao presente recurso, nos fundamentos e motivos supra expostos não ser dado cabal provimento, sempre se dirá que o acórdão em crise deverá ser corrigido quanto à pena em concreto a aplicar à arguida, numa pena especialmente atenuada não superior a seis anos de prisão, em conjugação com o disposto no art. 72.º.1 e 2.a) e b) CP e 73.º.1.b) do mesmo diploma legal, ou caso assim não se entenda, deve a arguida ser condenada, o que se requer ainda subsidiariamente numa pena fixada no seu limite mínimo”(...)
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O Ministério Público junto da primeira instância pugnou fosse negado provimento ao recurso e mantido o acórdão recorrido, concluindo a propósito:
“Não preenchimento de todos os requisitos de impugnação em matéria de direito: Embora a recorrente tenha cumprido a al. a) do nº 2 do art. 412º, não cumpriu especificamente as respectivas als. b) e c), situação que não cabe àquele que responde deduzir dos argumentos alegados. O Tribunal a quo não violou qualquer das normas ou princípios indicados pelo recorrente arguido - artigos 32º, 72º nº 1 nº 2 al. b), 73º nº 1 al. b), 132 a), 133º do CP e artigos 127º, 151º, 159º nº 1, nº 7, 374º nº 2, 379º nº 1 al. a) e c) do CPP (...) negando provimento ao recurso e confirmando o Acórdão recorrido, farão V. Exas., como sempre, a habitual justiça.”
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O Ministério Público junto deste tribunal apôs o seu visto.
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Corridos os vistos, foram os autos à conferência.
-- // -- // -- Fundamentação.
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O acórdão recorrido estabeleceu os seguintes factos provados:
“1) BB, nasceu em ... de ... de 2002 e é filho da arguida AA.
2) No início de 2021, BB foi residir com a sua mãe na residência desta, sita na ..., no ....
3) BB não trabalhava nem estudava, não contribuindo para as despesas da casa.
4) O relacionamento entre BB e a arguida foi sempre pautado por conflitos, tendo a arguida apresentado queixas-crime contra o mesmo pela prática de factos integradores de um crime de violência doméstica, que deram origem aos seguintes processos:
a) 696/21.0PBMTA, este por factos de 19/11/2021;
b) 633/22.4PBMTA, este com queixa apresentada em 06/10/2022, onde, por despacho de 24/11/2022 foi determinada a incorporação do processo 696/21.0PBMTA. No âmbito deste processo, a ora arguida prestou declarações para memória futura em 15/12/2022. Em tal processo foi proferido despacho de arquivamento em 3 de Janeiro de 2023, pelo falecimento do denunciado.
5) Juntamente com a arguida e com BB residiam CC, namorada de BB, e DD, nascida a ........2007, filha da arguida e irmã do BB.
6) Alguns dias antes do dia 20 de Dezembro de 2022, a arguida ao falar com EE, sua vizinha, queixou-se do filho, disse-lhe que estava farta dele, que não o queria lá em casa, e que qualquer dia quem o matava era ela, referindo-se a uma situação em que a vítima havia sido atingida a tiro, pouco tempo antes.
7) No dia 20 de Dezembro de 2022, cerca das 23.00 horas, ao chegar à sua residência e por entender que a cozinha se encontrava desarrumada, a arguida dirigiu-se à cozinha e foi buscar pratos que arremessou contra o chão, partindo-os, muito próximo da porta do quarto de BB, local onde este se encontrava com a namorada CC.
8) Confrontada por BB acerca dos motivos de tal comportamento, a arguida disse-lhe que estava farta de o aturar e que este tinha que sair de casa.
9) BB solicitou à arguida que se acalmasse e que se não o fizesse iria chamar a polícia, ao que a arguida lhe disse “podes chamar, chama que é isso que eu quero”.
10) E, em acto continuo dirigiu-se à cozinha da residência, local onde voltou a ter uma discussão com a vítima, envolvendo-se fisicamente um com o outro o que levou a que ambos tenham caído ao chão.
11) No decurso dessa discussão e de forma não concretamente apurada, a arguida muniu-se de uma faca de cozinha, com um comprimento total de 27 cm, dos quais 15 cm de lâmina.
12) Ao ver a arguida agarrar na faca, BB dirigiu-se à mesma dizendo “tem calma, estás a fazer o quê?”.
13) BB quando se apercebeu que a mãe tinha uma faca na mão gritou para que a CC saísse dali e fosse pedir ajuda.
14) Em acto contínuo, e quando ambos já se encontravam na sala da casa onde ambos residiam, a arguida, empunhando a faca acima descrita, dirigiu-se a BB e desferiu-lhe um golpe no tronco, na zona do externo.
15) Ao ser atingido, o BB gritou à CC, para esta ir pedir ajuda por ter sido atingido, o que esta fez, começando a descer as escadas pedindo auxílio e tentando telefonar para o efeito.
16) Não só por terem ouvido gritos, quer do BB quer o pedido de ajuda da CC, mas igualmente por a arguida ter gritado a chamar a EE, esta e a FF, ambas vizinhas da arguida, dirigiram-se à residência da arguida.
17) Quando a EE chegou a casa da arguida, esta disse-lhe para ir ver o que tinha feito, apontando para o local onde o BB se encontrava caído no chão.
18) Quando as mesmas ali chegaram e se aperceberam de que o BB estava no chão do quarto, a EE tentou perceber se o mesmo ainda estava vivo e, apercebendo-se que estava, saiu do local para pedir ajuda.
19) Ao aperceber-se de que o BB ainda estava vivo, a arguida agarrou numa das pernas do mesmo, puxou-o, arrastando-o até ao corredor da residência e, colocando-se sobre o corpo do filho voltou a desferir-se golpes com a faca, agora na zona superior do peito, enquanto dizia que este tinha de morrer.
20) Quando se apercebeu que a FF se tentava aproximar para a impedir, a arguida desferiu o último golpe com a faca no pescoço do filho.
21) Enquanto a arguida levava a cabo a conduta supra descrita, FF gritava para que a mesma parasse e fez menção de a agarrar, apenas não o logrando fazer porquanto a arguida apontou a faca na sua direcção.
22) Ao que, FF, receando o comportamento da arguida, se afastou do local.
23) De seguida, GG, vizinho do 2º esquerdo, de modo a fazer com que a arguida cessasse com a sua conduta, agarrou-a e retirou-lhe a faca das mãos.
24) Enquanto era agarrada pelo vizinho, a arguida, com as pernas, agarrou o corpo do BB e, por várias vezes, disse “ele ainda não morreu, mas eu vou matá-lo, vou matá-lo”.
25) Enquanto a arguida era agarrada pelo GG, EE e FF conseguiram arrastar o BB para a zona das escadas, onde o mesmo ficou contra as grades do corrimão.
26) Em certo momento, a arguida conseguiu soltar-se do vizinho, dirigindo-se a BB e desferiu‑lhe um pontapé na cabeça.
27) Em consequência directa e necessária da conduta da arguida, BB sofreu várias lesões traumáticas, mais concretamente e de forma mais relevante:
a) Uma escoriação malar esquerda, oblíqua inferoposteriormente, com 1 cm de comprimento.
b) Ferida cortoperfurante na face lateral esquerda do pescoço, oblíqua inferoposteriormente, com 1,5 cm de comprimento e diástase de 0,6cm. Atravessa a pele, o tecido celular subcutâneo, o plano muscular (esternocleidomastoideu, esternohioideu e tirohioideu esquerdos), a membrana tirohioideia, a epiglote, o lúmen da laringe, voltando a atravessar a membrana tirohioideia e terminando o seu trajeto no músculo tirohioideu direito.
c) Três feridas supraclaviculares esquerdas, oblíquas inferomedialmente:
1) a mais lateral, cortoperfurante, com 2cm de comprimento e diástase de 0,6cm;
2) a do meio, cortante, com 1,1cm de comprimento e diástase de 0,6cm, com pequena cauda terminal na extremidade inferior;
3) a mediana, cortante, superficial, com 1x0,4cm, com pequena cauda terminal na extremidade inferior.
d) Ferida cortante infraclavicular direita, horizontal, superficial, com 5,4cm de comprimento e 0,2cm.
e) Ferida cortoperfurante sobre a clavícula esquerda, inferiormente à ferida B, com 1cm de comprimento e diástase de 0,3cm.
f) Ferida cortoperfurante sobre o apêndice xifóide, mediana, oblíqua inferolateralmente, com 3,5cm de comprimento e diástase de 1cm, com cauda terminal na extremidade inferior (esquerda). Atravessa a pele, o tecido celular subcutâneo, o plano muscular, entra na cavidade torácica ao nível do apêndice xifóide, fraturando o mesmo, perfura o saco pericárdico e condiciona laceração transfixante do ventrículo direito.
Tais lesões foram causa directa e adequada da morte de BB, mais concretamente as feridas descritas em b) e em f).
28) Ao agir da forma supra descrita a arguida actuou com o propósito de tirar a vida a BB, seu filho, o que efetivamente fez, utilizando uma faca, cujas características bem conhecia, desferindo vários golpes em zonas corporais que sabia alojarem órgãos e estruturas vitais à vida, bem sabendo que tal conduta era apta a causar a morte, o que previu e quis.
29) A arguida conhecia as características da faca que detinha, bem sabendo que a mesma potencia gravemente a lesão da integridade física de outras pessoas, sendo apta para ferir e para matar, tendo-a utilizado na concretização da sua conduta, conforme previu e quis.
30) A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. (...)
32) A arguida foi condenada, por sentença de 03/10/2023, no processo comum singular, que correu termos sob o nº 316/21.2GASXL do Juízo local Criminal do Seixal, Juiz 1, transitada em julgado em 02/11/2023, pela prática de dois crimes de ameaça agravada, na pena de 100 dias de multa, por factos de 26/05/2021, pela prática dos seguintes factos: 1. Em data não concretamente apurada, mas cerca de um mes antes da data mencionada no ponto 2., no interior da residência, sita na ..., a arguida AA disse a HH: “vou-te esfaquear, parto-te a cara”, “eu mato-te, parto-te o focinho, vou-te matar”. 2. No dia 8 de julho de 2021, entre as 18 horas e as 19 horas, a arguida AA, de forma não concretamente apurada, entrou no jardim da ofendida HH e de II, sita na ..., sem que para isso tivesse obtido o prévio consentimento da ofendida HH e de II. 3. Em seguida, a arguida AA aproximou-se de HH, que se encontrava no jardim e, munida de uma faca, cujas características não foi possível apurar, disse a HH: “vou-te esfaquear, vou-te matar, vou-te bater”. 4. Ao agir do modo descrito, a arguida AA quis dirigir as expressões: “vou-te esfaquear, parto‑te a cara”, “eu mato-te, parto-te o focinho, vou-te matar” e “vou-te esfaquear, vou-te matar, vou-te bater”, à ofendida HH, bem sabendo que tais expressões eram adequadas e idóneas a causar medo e inquietação à mesma, o que logrou alcançar. 5. A arguida AA sabia que não tinha autorização dos legítimos proprietários para entrar e permanecer no jardim da residência, sita na ... e, sabia que aquele espaco não era livremente acessível ao público e que era um espaço vedado. 6. Ainda assim, ciente de tal, a arguida AA quis entrar e permanecer em tal espaço, bem sabendo que as condutas que adotou eram atos idóneos e adequados a penetrar e a ficar no referido local, o que conseguiu. 7. A arguida AA agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, nos atos supra descritos, bem sabendo que tais condutas não lhe eram permitidas por lei e eram punidas penalmente.
33) AA é natural de ... onde viveu até aos 7 anos de idade, integrada no agregado familiar do progenitor, juntamente com a madrasta e 8 irmãos consanguíneos. Apesar de saber que sua mãe era empregada de limpeza na casa de seu pai e de não ter sido perfilhada pelo progenitor, tem o apelido deste e o nome próprio da madrasta.
34) Com 7 anos de idade, AA, seu pai, madrasta e irmão mais velho (primeiro de uma fratria de oito, por via consanguínea) emigram para Portugal à procura de melhores condições de vida.
35) Inicia o percurso escolar com 9 anos de idade, tendo obtido apenas o 4º ano de escolaridade do ensino básico, por absentismo e retenção repetida, com mudanças de escolas, segundo alude, devido à falta de recursos e à valorizacão do trabalho em detrimento da escolarização.
36) AA refere que após o abandono escolar precoce, iniciou atividade laboral aos 15/16 anos, na área das limpezas, em habitações particulares e em salões de AA onde, mais tarde, veio a exercer atividade de .... Profissão desempenhada com regularidade, mas sem vínculo contratual por se encontrar indocumentada, situação que conduziu a vários despedimentos, assinalando também períodos de inatividade prolongados.
37) Por volta dos 17 anos de idade, inicia o seu primeiro relacionamento afetivo, fruto do qual nasceu o seu primeiro filho. Posteriormente, estabeleceu novo relacionamento afetivo, do qual nasceu uma filha. Segundo alude, este relacionamento terminou 3 meses após o nascimento de sua filha, por relacionamento extraconjugal do companheiro de então.
38) Aos 19 anos de idade, conhece o ex-companheiro, militar da PSP, com quem viveu maritalmente cerca de 18 anos, tendo nascido três filhos, um deles vítima no presente processo.
39) O falecimento do filho mais velho de AA, há sensivelmente 18 anos, por afogamento, na ..., no ..., levou a que a mesma aumentasse em muito o consumo de bebidas alcoólicas por parte desta, e terá tido um impacto negativo significativo ao nível emocional e afetivo da arguida, que tentou mesmo o suicídio, e teve acompanhamento psiquiátrico durante um tempo.
40) Um ano depois do falecimento do filho da arguida, o casal separou-se, ficando a mesma com os quatro filhos a seu cargo. A partir de então, o consumo excessivo de álcool, as saídas noturnas e os inúmeros parceiros, fizeram parte da vida do agregado monoparental da arguida.
41) A filha mais nova, actualmente com 15 anos de idade, padece de doença metabólica (insulinodependente), tendo sido institucionalizada dos 6 aos 9 anos de idade.
42) O filho da arguida, aqui vítima passou a viver com o pai quando fez 11 anos por a arguida não conseguir geri-lo, já que o via como uma criança muito instável e problemática, adoptando, desde cedo, uma postura desafiante e de oposição com os adultos e com os pares.
43) Em sede de laudo de perícia psicológica, o perito concluiu que: O processo de desenvolvimento de AA foi marcado por acontecimentos precoces negativos, como sejam, a entrega da mesma aos cuidados da madrasta e alegado progenitor e a disfuncionalidade do modo de vida deste agregado na presença simultânea da mãe biológica. O não estabelecimento de vinculações afetivas securizantes bem como a incerteza em relação à sua paternidade afetou negativamente a construção da sua identidade, modelo este relacional que a mesma veio, mais tarde, a reproduzir com para com a sua família constituída; Do ponto de vista cognitivo a arguida apresenta um nível inferior à média do seu grupo etário, aspeto que surge correlacionado com falhas precoces ao nível das vinculações parentais, bem como a ausência de estímulos intelectuais e à entrada tardia no contexto escolar, sendo por isso passível para ser responsabilizada pelos seus atos; Evidencia frieza e distanciamento afetivo, não expressando sentimentos de afeto, quando se refere à vítima, revelando, assim, existência de traços de personalidade de natureza antissocial, entre os quais se destaca a dificuldade conformar-se com regras e convenções sociais, a existência de um estilo de comunicação pautado por omissões e distorções da realidade, um deficiente controlo comportamental que leva a manifestações de agressividade, bem como uma postura de desresponsabilização ou de responsabilização externa do seu comportamento que reduzem a capacidade de aprender com as experiências de vida; A vivencia em família numerosa onde sempre foi vista “como uma filha diferente”, citando o ex‑companheiro, parece ter originado uma repressão das suas emoções, as quais, a determinada altura, são exteriorizadas de forma primária e de acordo com o princípio do prazer imediato; Em privação da liberdade há sensivelmente 10 meses, assume uma atitude de externalização do seu comportamento, vitimizando-se face aos factos pelos quais se encontra acusada, o que configura um fator de risco criminógeno. Esta minimização, representa uma distorção cognitiva e constitui um fator de risco e um indicador negativo em relação à inflexão do comportamento.
44) A arguida não padecia, à data da prática dos factos, de qualquer anomalia psíquica, mas padecia de uma perturbação mista de ansiedade e depressão, crónica, potenciada por vivências traumáticas com início provável em 2009, após o falecimento de um dos seus filhos, com exacerbação da ansiedade e da sintomatologia depressiva.”
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E os seguintes factos não provados:
“a) Em data anterior a 20 de Dezembro de 2022, a arguida disse à sua vizinha EE que o tiro que BB havia levado há um tempo atrás deveria ter sido na cabeca;
b) A arguida, empunhando a aludida faca, correu na direcção de BB.
c) Ao presenciar a conduta da arguida, FF dirigiu-se-lhe e disse “que fizeste AA, pára que ele já não está a resistir”.
d) Após ser detida pelos agentes da PSP que se deslocaram ao local a arguida dirigiu-se a EE e disse “vês eu disse que o ia fazer e fiz”.
e) Com a sua conduta, a arguida agiu com frieza de ânimo.
f) A arguida agiu por desespero.”
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E como motivação da factualidade que antecede, explanou o colectivo:
“O Tribunal Colectivo alicerçou a sua convicção na apreciação conjunta das declarações da arguida e de toda a prova testemunhal produzida em julgamento, bem como a prova documental e pericial junta aos autos, interpretada com recurso às regras da experiência (...)
Em sede de julgamento a arguida prestou declarações, dizendo, em síntese, que:
No dia 20/12/2022 ela chegou a casa dirigiu-se inicialmente ao seu quarto e depois à cozinha onde encontrou loiça que estava para lavar, há dias, e que o BB pretenderia que fosse ela a lavar, como se fosse a empregada lá de casa. Ela partiu dois pratos. O BB saiu do quarto e veio ter com ela deu-lhe um empurrão que a fez cair, e agarrou-lhe nos cabelos e começou a chamar-lhe nomes. Começaram a discutir os dois e ela voltou a agarrar um prato, que caiu e se partiu, e o filho disse-lhe que agora ia apanhar os cacos com a sua cara e agarrou-a, pô-la no chão, “deu-lhe um bico no joelho”, e um pontapé nas costas, ela ficou com os joelhos no chão e ele continuava a agarrar-lhe os cabelos e queria que ela limpasse o chão com a cara, e ela pediu-lhe para a libertar porque a estava a magoá-la e que precisava da bomba de asma, e ele respondeu “não, agora é que vais morrer puta do caralho”. Ela olhou várias vezes para a CC, que estava no corredor, mas ela não fez nada.
Ela tentava levantar-se, mas não conseguia porque o BB a estava a agarrar pelos cabelos. Voltaram a ter um “bate boca”, e BB colocou-lhe o pé nas suas costas. Ela tentou levantar-se e agarrou-se a um móvel, mas não conseguiu e a toalha caiu ao chão, e a faca veio junto. Voltaram a discutir, ela conseguiu levantar-se, mas ele conseguiu que ela caísse novamente, tendo ficado “de rabo para o chão” e a faca estava ao lado dela. O BB disse-lhe “estás a olhar para a faca, és mulher para fazer-me alguma coisa?” Ela não pensou em mais nada, “viu a sua vida a andar para trás”. O BB disse à CC “Faz alguma coisa, faz alguma coisa que ela está muito agressiva”. “Eu estava a ver… foi um surto que me deu, eu peguei na faca e quando fui já tava, a besteira que eu fiz, dei-lhe uns golpes do lado direito dei-lhe três do lado esquerdo” ele rastejou até ao corredor e ela foi atrás dele, virou-o agarrou-lhe na cara e perguntou-lhe que mal é que ela lhe tinha feito, se tinha sido pô-lo no Mundo. Neste momento, sentiu um vulto atrás dela e deu-lhe o último golpe no pescoço.
Esclarecendo a dinâmica, reconhece que quando estava no chão, com um joelho no chão, conseguiu que o BB caísse, e ela levantou-se rapidamente ficando por detrás da vítima, e agarrou-o, colocando o seu braço esquerdo à volta do pescoço da vítima antes de lhe desferir as facadas no flanco do lado direito, e largou-o. Nesse momento ele volta a ir atrás dela, e ela volta a olhar para a CC, mas esta nada faz, ele tentou tirar-lhe a faca, mas não conseguiu e nesse momento ela deu-lhe as três facadas do lado esquerdo. Ele começou a andar para a frente, e “rastejou-se” e ficou entre o corredor e o quarto dele, deitado, e é nessa posição que ela ficou ao lado dele, de joelhos, e lhe agarra a cara e pergunta porque é que a odiava tanto, sente um vulto e dá-lhe mais uma facada do lado esquerdo do pescoço (não era para magoar, nem sabia que tinha a faca na mão).
O vizinho agarrou-a e levou-a para a sala e depois chegou a polícia. Tendo sido o seu vizinho quem lhe tirou a faca da mão.
Quando a vão buscar à sala já o filho estava sentado nas escadas com a cabeça nos joelhos. Não sabe como ele foi para ali.
As duas vizinhas não entraram em sua casa, estiveram lá aquando dos factos, viu que estavam na porta quando ela deu as duas últimas facadas.
Ela levou surra um ano e seis meses da “mão dele”.
Ela vivia lá em casa com a DD, a CC e o BB e um amigo dele.
Uns dias antes teve uma conversa com a EE e disse-lhe que estava farta do BB e a EE disse-lhe que qualquer dia ele a matava.
Nega ter dito “ele ainda não morreu, mas eu vou matá-lo”.
Tinha uma relação complicada com o filho, que não queria que se soubesse que ele morava ali, porque não queria que soubesse que ele vivia com “putas”, querendo referir-se a ela e à filha.
Ela apresentou várias queixas na PSP contra o filho, ele batia-lhe e atirava-lhe com pratos quando não gostava da comida. Ele também bateu ao seu companheiro, e batia na CC constantemente.
Quando ela foi ao hospital tinha uma inflamação no joelho, e no dia tinha também hematomas nos braços, por ter as mãos do BB marcados nos braços.
Três meses antes o filho tinha-lhe dado um grande pontapé nas costelas.
Começou o seu depoimento referindo que estava arrependida.
A assistente CC, companheira da vítima, prestou declarações em julgamento descrevendo a forma como vivia com o BB desde Julho de 2022, morando na casa da mãe do BB, a arguida AA, provisoriamente, sendo que lá em casa também morava a irmã do BB e o companheiro da arguida. As suas filhas também chegaram a frequentar a casa antes de ela viver com o BB.
No dia dos factos ela estava em Lisboa, a frequentar um curso, sendo que o BB lhe enviou uma mensagem pelas 18.00 horas a dizer que ia para casa e ia fazer o jantar. Quando chegou, pelas 20.00 horas, só estava em casa o BB, e depois de jantarem ele lavou a loiça e foram para o quarto. Ela referiu que ele estava muito bem disposto no dia em questão.
A arguida queria que eles saíssem lá de casa, mas tinham acordado que tal só iria acontecer em Janeiro, pedido que tinha sido ela a fazer à AA, porque era quando ela iria receber o seu primeiro ordenado e podiam então arranjar um “cantinho” para os dois.
Embora ela não os quisesse lá, quando a AA estava bem, estava tudo bem.
A relação entre o BB e a mãe era bastante conturbada, sendo que havia agressões verbais, mútuas, e quase que chegavam a agressões físicas, sendo que a assistente costumava meter-se no meio para as evitar, tendo conhecimento que a arguida tinha apresentado uma queixa crime. Nunca viu ninguém com marcas de agressões, embora a AA lhe tenha feito queixas.
O BB era ciumento quanto à mãe.
Pelas 22.00 horas a arguida entrou em casa, já a “bufar”, e começou a partir os pratos, e fê-lo nomeadamente na porta do quarto do casal, sendo que os cacos entraram no interior do quarto, sendo que dois deles a atingiram nas pernas.
O BB levantou-se para ir ver o que se estava a passar e abrindo a porta do quarto perguntou à mãe porque estava a fazer aquilo, e ela respondeu que estava farta que não os queria mais ali e que tinham de sair, e abriu a porta de casa. E o BB respondeu, se estás incomodada sais tu, nós estávamos aqui quietinhos, chegaste agora queres arranjar confusão porquê? Ele disse à mãe para ela chamar a polícia
A arguida começou a gritar que eles tinham de sair, e foi buscar mais pratos, que partiu, sendo que o BB foi atingido por um caco e ficou a sangrar.
A depoente estava com um pé na cozinha e outro quase fora de casa. O BB já lhe tinha dito a ela para sair porque a arguida estava alterada.
A arguida estava muito alterada e dizia que eles tinham de sair. O BB agarrou-lhe pelos colarinhos e caíram os dois, na cozinha. O BB ficou por cima da mãe. O BB ia agredir a mãe, e ela pegou-lhe no braço e disse-lhe para se acalmar, e ele acalmou-se. E levantam-se os dois, e o BB perguntou à mãe “cheiraste mandioca ou quê?”. A arguida pegou na faca, que estava na zona do lava loiça, e o BB “deu a esquina e disse-lhe CC foge” (ele saiu da cozinha para a sala) e logo a seguir diz “CC ela esfaqueou-me chama ajuda”. A assistente não conseguiu ver o que se estava a passar, pois saiu da casa no sentido contrário para onde eles se tinham dirigido, e ela começou a descer a escadas, e deu com uma amiga que estava no patamar inferior, que já estava a falar com os paramédicos.
Continuou a descer e deu com a EE e a JJ, e pede-lhe ajuda enquanto ainda estava a falar com o INEM. A EE subiu para ver o que se passava.
Ela desceu até à porta de entrada e quando tentou subir já não a deixaram subir. Enquanto descia ia ouvindo gritos.
Já só viu o BB quando ele estava a descer na cadeira com os bombeiros.
Nunca ouviu nem o BB nem a mãe dizer que se iam matar um ao outro.
Em Agosto de 2022 houve uma discussão entre o BB e a mãe, por telefone, por causa de um gato que entrou no quarto dele coisa que ele não gostava, e quando eles desligaram a arguida disse “este ainda vai morrer primeiro que eu”.
O BB levou dois tiros um mês antes, por causa de um “problema na rua”.
Foram igualmente ouvidas em julgamento as seguintes testemunhas:
a) FF, residente do 5.º direito do prédio onde residia a vítima e a arguida. Embora seja vizinha da arguida apenas a conhece de vista, há uns 3 anos e meio. Conhecia a vítima.
No dia em questão estava em casa quando começou a ouvir gritos e coisas a partir na casa de cima. Só abriu a porta quando passou a ouvir os gritos da CC a pedir socorro, que estava a descer e explicou o que se estava a passar em sua casa.
Ainda conseguiu ouvir o BB dizer “CC corre, corre, chama ajuda, estou a sangrar muito”. “CC ajuda” e a CC ia voltar a subir e ela disse-lhe para descer e ir pedir ajuda, e fez-lhe sinal para descer.
Esperou um pouco que chegasse a sua prima EE, que mora do 4.º andar, e depois foi ao patamar da casa da arguida. A porta estava aberta e ela vê a AA no corredor, encostada à parede, com a faca na mão, a falar sozinha, e a dizer “Vês Micas, eu não te disse? Olha o que eu fiz”. Ela aponta e disse “está aí” e elas olharam e viram o BB no chão, meio inanimado, no primeiro quarto, pensa que seria onde ele dormia.
A EE tentou chamar pelo BB que não reagia, e tocou-lhe com o pé e ele ainda reagiu, ele fez um barulho. Apercebendo-se que ele estava vivo a EE saiu do local para chamar ajuda e para ir buscar o telemóvel que estava no 4º andar.
Enquanto a prima saiu dali a arguida voltou a entrar no quarto e agarrou o pé do BB e puxou-o do quarto até porta de casa e disse “ainda não estás morto?” e que o ia matar, momento em que desferiu novamente golpes com a faca no peito e no pescoço. A vítima estava deitada de costas no chão e a arguida colocou-se por cima dele, e debruçou-se sobre o mesmo enquanto desferia os golpes. Quando é desferido o golpe no pescoço recorda-se de a faca entrar e depois sair pela parte de trás.
Ela pediu à arguida para parar que estava a matar o filho. Tentou puxar pela mão do BB, mas escorregava, e entretanto chegou a EE. Como ela estava a puxar pelo BB, a AA “veio com a faca para cima” dela, e a testemunha afastou-se ficando ao pé do corrimão. A arguida disse “Eu é que fiz eu é que mato”, “Ele é mau, ele tem de morrer”, chamava-lhe filho da puta, ele ainda não morreu ele tem de morrer, ela ficou impressionada com tanto sangue e estava a perder os sentidos, mas a prima puxou-a o que fez com que batesse com a cabeça na parede, sendo que a arguida se estava a dirigir para si com a faca.
A FF tentou agarrar a AA, mas pouco conseguiu, e o GG também, mas ela só parou quando chegou a polícia.
Dois ou três minutos depois lembra-se da faca a rodar pelo chão, toda a gente a dar pontapés para não tocar com a mão, e ela foi buscar um lençol para agarrar a faca.
Ele e a EE tentavam puxar o BB para o patamar, e o GG (GG) agarrava-a para ela parar quieta, e ela agarrava o BB com as pernas para não o deixar sair de casa.
Ainda viu que a arguida AA ao passar pelo BB dar um pontapé na nuca do BB enquanto o GG a estava a agarrar e disse “morre rápido”.
A AA parecia demoníaca no dia.
Chegou a ouvir gritos na casa da arguida, e admite que em algumas das vezes houvesse agressões físicas, mas não sabe entre quem. As pessoas falavam que a AA e o filho se davam muito mal.
b) KK, refere que no dia dos factos estava a deslocar-se para casa da EE, sua prima, que é no prédio onde viviam a arguida AA e o BB, que era seu amigo de escola.
Ela e sua prima EE, e os filhos desta, estavam a entrar no prédio, quando passaram pela CC que vinha a descer as escadas, e estava ao telefone. Então ouviram a AA a chamar a EE, pelo que a testemunha ficou com os meninos na casa da EE, no 4.º andar, enquanto a sua prima subiu para ver o que a AA queria.
Depois ela própria subiu e viu que o BB estava na entrada da casa, deitado encostado à porta, com sangue, e a AA estava sentada ao lado dele. As outras pessoas tentavam puxar o BB, e a arguida puxava-o para dentro com as pernas. A arguida tinha uma faca. Havia muito sangue no local e ficou muito impressionada pelo que saiu dali.
A EE pediu-lhe para voltar a pedir uma ambulância.
Depois de telefonar e para avisar a prima, subiu novamente, e aí viu já o GG a tentar tirar a faca da mão à AA, o que se conseguiu e mandou-a para o chão. Depois foi buscar um pano a casa da FF para agarrar a faca. Não se recorda do que foi dito no local.
As pessoas pediam à arguida para esta parar o que estava a fazer.
c) EE, mora no 4º direito do prédio em que os factos ocorreram. Sabe que havia discussões entre a arguida e o seu filho, mas não todos os dias.
No dia dos factos estava a chegar a casa com a KK e os seus filhos quando se encontraram com a CC nas escadas, e esta lhes pediu ajuda porque o BB teria levado uma facada da AA. Entretanto ouviu a arguida chamar por si, e ela respondeu que já subia. Foi deixar os filhos a casa, e subiu, sendo que no 5.º andar se encontrava a FF que subiu consigo.
Ela subiu e entrou em casa da AA, que tinha uma faca na mão, mas afastou-a dela, a testemunha perguntou-lhe o que tinha feito e para lhe dar a faca, e a AA disse que não, e para ela olhar para o quarto que se mostra próximo da porta de entrada. Ela mandou-a abrir a porta e então viu que o BB estava no chão, estava a respirar, mas ele não respondia, ela tocou‑lhe com o pé e chamou por ele, ele reagiu e virou a cabeça e ela disse que ia chamar uma ambulância e ele fez-lhe um sinal com a cabeça.
Pediu à AA para não fazer nada e ia a descer para ir a casa buscar o telefone, pelo que ia descer até ao 4º andar. Quando estava a começar a descer as escadas ouviu um barulho como se estivesse alguma coisa a arrastar, e apercebe-se do movimento do braço da AA, para cima e para baixo, e a FF começa a gritar para a AA parar.
Desceu para ir buscar o telefone e continuava a ouvir os gritos da FF, e voltou a subir e quando estava a chegar apercebeu-se que a AA estava a “começar a mandar-se à FF”, pelo que a tirou dali e levou-a para o 5º andar.
Quando voltou a subir, já o GG lá estava e já lhe tinha tirado a faca, que estava no patamar ao pé do elevador. Ela chutou a faca e pediu à KK para agarrar a faca, e para o fazer com um pano.
Quando voltou a subir o BB pediu-lhe ajuda porque não estava a conseguir respirar, já deitava sangue pelo nariz e boca. Ele estava no chão, e a testemunha tentava puxá-lo, mas a AA, que estava igualmente no chão, estava a agarrar o corpo do filho com as pernas e também pelo pescoço com a mão. O GG estava a puxá-la por trás para ela libertar o filho. Ela acabou por dar uns pontapés nas pernas da AA para que esta largasse o filho. A FF foi ajudá-la a puxar pelo BB, e agarrou-o pelo capuz da camisola, conseguiram tirá-lo dali e colocá-lo nas escadas, em frente à porta. Ela ficou a fazer pressão no pescoço para estancar o sangue.
A arguida dizia que “ele tinha de morrer”, que ainda não tinha morrido, que o ia matar, e tentava mandar objectos, “ir para cima dele”.
Entretanto, o BB começou a tremer muito a cuspir muito sangue e deixou de ter reacção e a AA conseguiu ir para o patamar onde ele estava sentado e ainda lhe deu um pontapé na cabeça, que fez com que a cabeça do BB batesse na grade que está no patamar.
Entretanto chegou a PSP e a arguida ia dizendo que “já tinha dito mas ninguém acreditou”. Que ele ainda não estava morto mas que o tinha de matar.
Umas duas semanas antes dos factos, a arguida estava a sair do prédio ao mesmo tempo que ela também estava e ficaram um pouco a falar, tendo a AA feito queixas do filho e da CC, que estava cansada deles estarem lá em casa e chegou a dizer-lhe “qualquer dia sou eu que o mato”. O BB tinha sido baleado cerca de um mês antes desta conversa.
No dia dos factos, a arguida não estava em si, tinha os olhos muitos “esbugalhados”.
A AA nunca lhe contou que o filho lhe batia.
d) DD, de 15 anos, filha da arguida AA e irmã do BB, descreveu que o mesmo era agressivo, com a ofendida, chamando-lhe nomes feios como “puta e vaca” e como batia na namorada. Também relatou o que se passava entre a mãe e o BB e como a mãe fez queixa daquele. A mãe já tinha pedido a todos que ajudassem na limpeza da casa, mas o irmão não ajudava.
e) LL, inspector da Polícia Judiciária, descreveu como efectuou a inspecção judiciária e procedeu à apreensão do produto estupefaciente no quarto da vítima.
Refere que se recorda da existência de pratos partidos em frente do quarto e havia, igualmente, sangue na sala, muito sangue no corredor e havia pegadas de sangue na cozinha.
f) MM, agente da PSP, que descreveu como foram chamados ao local por causa de uma situação de esfaqueamento. Ao chegarem viram a vítima no solo, e a suspeita manietada. Entretanto chegaram os bombeiros.
Descreve que a vítima estava meio deitada, no patamar, encostado ao corrimão, meio de lado, entre o 6.º e o 5.º andar do prédio. Havia muito sangue no local, que escorria. Ao chegarem procederam à preservação do local do crime, não tendo entrado no interior da habitação.
Recorda-se que a arguida estava cheia de sangue, e lhe parecia perturbada, não tendo qualquer expressão. Não a ouviu dizer nada.
g) NN, agente da PSP, da brigada de investigação criminal, refere que foi chamado ao local e quando ali chegou já a vítima estava na ambulância e a arguida no carro da PSP. Isolou o local do crime e contactou o piquete da PJ.
Sabe que quem fez a recolha dos vestígios foi a unidade técnica da PSP.
Confirmou ter realizado o aditamento de fls. 10/12, onde consta a apreensão da faca.
h) OO, filha da arguida e irmã da vítima, descreveu os últimos tempos que passou com o irmão, e como este passou a ofender e bater na mãe, e como até a ela ele tentou bater.
Descreveu como, já depois do início da pandemia, num determinado dia o BB atirou um cesto, de produtos higiénicos, à cabeça da mãe, partindo-lhe a cabeça. Como viu a vítima, seu irmão, desferir um pontapé na zona das costas da mãe, que lhe deixou uma marca. Como noutra situação tentou bater na mãe, e lhe atirou um triciclo. A situação piorou quando o BB foi viver para a casa da mãe.
A própria testemunha refere que deixou de ir a casa da mãe porque não queria que os filhos estivessem sujeitos a esta situação.
Mais descreveu como a mãe fez tudo pelos filhos e como é uma boa pessoa.
j) PP, filha da arguida e irmã da vítima, refere que deixou de viver com o BB em 2017. Descreve o irmão como alguém que não conseguia aceitar um não, já que ficava logo “mal da cabeça”, que era violento. Refere que o BB se “começou a perder no ...” quando foram para lá em 2015, sendo que começou a bater nos colegas, a faltar à escola, a não respeitar os professores.
O irmão voltou a viver com a mãe quando teria uns 18 ou 19 anos.
Chegou a vê-lo mandar um cesto à cabeça da mãe, deixando-a marcada, sendo que o seu irmão chegou a mandar uma pedra à filha da testemunha, também o viu a bater à sua companheira, CC, nas escadas do prédio. E depois de lhe ter batido fechou a porta de casa e ninguém a pode ir socorrer, já que a mesma estava a sangrar e magoada.
Refere que o irmão se dava bem com a família antes de ir viver para casa da mãe.
A mãe já tinha pedido ao irmão para sair de casa.
Refere que a mãe só bebe bebidas alcoólicas em festas.
j) QQ, agente da PSP, refere que a arguida estava referenciada no âmbito da temática da violência doméstica, como vítima e como agressora.
No dia teve uma comunicação que haveria agressões com uma arma branca e depois nova comunicação a referir a existência de uma vítima.
Ao chegar ao local viu a vítima nas escadas e a arguida, que estava mais acima, a ser agarrada por outros indivíduos. A testemunha acompanhou a arguida à esquadra. Descreve-a como estando nervosa, e estava cheia de sangue. A arguida dizia que sabia que isto ia acontecer mais tarde ou mais cedo.
Alguém lhe entregou a faca enrolada num pano branco.
A arguida não foi ao hospital no dia.
k) RR, irmão da arguida, refere que a irmã lhe telefonava algumas vezes e se queixava do BB, sendo que nos últimos tempos a situação se tinha agravado, mas ela nunca lhe disse que tinha medo do filho. Quando estava presente nunca se apercebeu de nenhum comportamento por parte do BB.
l) SS, sobrinho da arguida, que contou como num determinado dia, em 2021, viu o BB a mandar um papel à cara da arguida e a insultá-la, chamando-lhe “puta”, e desferindo-lhe uma bofetada. O tio meteu-se, o pai do BB, e ele ameaçou-o igualmente, sendo que depois ainda mandou uma pedra ao carro do pai. Naquele momento a arguida até queria fazer queixa do filho e foi a testemunha quem a demoveu dessa intenção.
Para além desta situação, sabe que a tia se queixava do comportamento do BB.
m) TT, amigo da arguida, refere que num determinado dia foi agredido pelo BB de tal forma que teve de ser tratado no hospital.
Descreve que ficou em casa da arguida uma noite e que o UU estava sentado ao seu lado, e o BB atacou-o de tal maneira que perdeu os sentidos. Levaram-no depois para o quarto da AA, sendo que o BB ainda tentou entrar no quarto atrás dele, depois o Onofre teve de o levar ao hospital.
Referiu que chegou a ver a AA com uma ferida na cabeça e, embora inicialmente ela não quisesse admitir, tinha sido o filho a provocar tal ferida.
n) VV, companheiro da arguida, refere que estão juntos há 3 anos, e que vivia com a arguida.
Descreve como o filho o tentou esfaquear por duas vezes dentro de casa e como noutras vezes foi agredido pelo mesmo. Também descreveu como o BB dizia que o ia matar, e como os ia matar a todos.
Também descreveu que havia muita falta de respeito, como ele chamava puta, vaca, dizia que a mãe não valia nada.
O BB recusava-se a sair de casa e ameaçava toda a gente.
Confirmou que viu o BB desferir um murro no WW que lhe abriu a cara, quando ele estava lá em casa.
Quando havia problemas com o BB a AA saía de casa.
o) II, ex-marido da arguida e pai do falecido BB, refere que o casal esteve junto por 19 anos e têm três filhos em comum.
Descreveu a vivência do casal e como a arguida ficou muito abalada com o falecimento de um filho mais velho há 15 anos, e como em virtude de tal esta teve de ter acompanhamento psicológico, tendo mesmo algumas situações de tentativa de suicídio.
Quando o casal se separou o BB tinha 6 anos de idade. Durante um tempo o BB chegou a ir estudar para Inglaterra para casa de um seu irmão, mas depois voltou quando já tinha uns 12 anos. Entre os 13 e os 16/17 anos o BB viveu consigo, mas depois foi viver com a mãe.
O BB começou com dificuldades na escola e queria andar com navalhas no bolso. Conseguiu fazer o 12.º ano, e ele ainda o tentou mandar novamente para Londres, mas ele esteve pouco tempo lá.
Refere que os filhos, nomeadamente o BB, viram a mãe a ser muitas vezes batida por alguns companheiros que teve.
Aperceberam-se que o BB andaria a vender algum produto ilícito, algo que quer ele, quer a AA, eram absolutamente contra.
O BB teve apoio psicológico, mas durante pouco tempo.
Descreve o filho como alguém que não aceitava um não, sendo que chegou a ter várias discussões consigo. O BB nas discussões chegou a querer partir as coisas da testemunha, razão pela qual o mandou embora, e aquele foi para casa da mãe.
Sabia que o BB batia na mãe, mas por terceiros, já que a AA nunca lho disse.
Descreve como num determinado dia, quando iam sair como família, o BB “se virou à mãe” e que depois ainda lhe partiu o vidro do seu carro.
A AA chorava muito, pensa que por estar com uma depressão.
Pensa que o BB queria que a mãe saísse de casa para poder vender droga ali, pelo que aconselhou a mesma a fazer queixa do filho.
Nos últimos tempos, a AA tinha medo do filho e andava também preocupada com a saúde da sua filha DD.
Descreve a AA como uma pessoa calma e alegre, mas que nos últimos tempos andava descontrolada, sendo que nos últimos dois a três meses as coisas se descontrolaram.
Reconhece que houve duas situações em que a arguida usou de facas para resolver problemas, em momentos anteriores.
A testemunha XX, inspector da Polícia Judiciária, nada sabia sobre os factos.
Foram apresentados esclarecimentos do perito que realizou a perícia psicológica, explicando os factos que lhe permitiram chegar às suas conclusões, sendo muito claro ao referir que nos testes a que a arguida foi sujeita não há qualquer elemento relevante de indícios de doença psiquiátrica.
Foram apresentados, em sede de audiência de julgamento, esclarecimentos do perito que realizou a perícia psicológica e da perita que realizou o relatório psiquiátrico, explicando ambos os factos que lhes permitiram chegar às conclusões que dos mesmos constam.
Concatenando a prova produzida temos assim que concluir:
O facto 1) resulta do teor do assento de nascimento da vítima.
O facto 2) e 3) resultam das declarações da arguida e ainda das irmãs e do pai da vítima, que descreveram quando e porquê de o mesmo ter passado a residir em casa da mãe.
O facto 4) resulta das declarações da arguida, das irmãs e do pai da vítima, mas, igualmente, da assistente CC e do teor da certidão do aludido processo 633/22.4PBMTA junto aos autos.
O facto 5) resulta das declarações da arguida, da assistente e ainda das irmãs e do pai da vítima, e do assento de nascimento da irmã da vítima.
O facto 6) resulta das declarações da arguida e da testemunha EE, sendo que ambas descrevem a existência da conversa, ocasional, entre ambas. A arguida não admitiu ter dito que “qualquer dia era ela que o matava”, mas o depoimento da testemunha é bastante credível na forma como descreve o teor da conversa, nomeadamente fazendo a ligação entre a mesma e o facto de a vítima ter sido atingido pouco tempo antes com tiros de arma de fogo. Assim, mostra‑se igualmente não provado o facto a)
Os factos 7), 8), 9) e 10) resultam do depoimento da arguida e da assistente que, quanto a esta matéria, são coincidentes, embora a assistente entenda que não havia qualquer motivo para o comportamento inicial da arguida uma vez que a cozinha se mostrava limpa e arrumada. Percebe‑se também pelas fotografias do local em que os factos ocorreram, e que constam nos autos, que existem cacos de alguma coisa partida, no chão, e que são compatíveis com o facto de a arguida ter partido pratos, quer na cozinha, quer no corredor próximo da porta do quarto da vítima.
No que respeita aos actos que levaram ao decesso da vítima (factos 11) a 26)) temos a declaração da arguida, por um lado, as declarações da assistente CC e as declarações das testemunhas YY, FF e EE, que se deslocaram ao patamar onde os factos ocorreram em momentos diversos, e ainda o teor das inspecções judiciárias e da autópsia.
A arguida alega que a situação começa com uma agressão por parte da vítima o que leva a que a mesma caia no chão da cozinha, e que é nesse contexto que a mesma consegue agarrar uma faca que ali se encontra e desferir golpes com a mesma, na zona lateral esquerda e direita do corpo do filho. Os primeiros golpes são desferidos estando o BB de costas para si (estando ela com o seu braço esquerdo à volta da garganta do filho), e os segundos já com ele de frente para si, e o último dos golpes, que já ocorre no corredor, estando ele já no chão com ela por cima dele a agarrar-lhe a cara e é desferido na garganta do mesmo.
A assistente não vê ser desferido qualquer golpe, mas ouve o pedido de ajuda por parte do BB que a avisa que foi golpeado, e refere que tal golpe deve ter ocorrido na zona da sala.
As testemunhas presentes já vêm o BB prostrado depois de ter sido esfaqueado, mas vêem os últimos golpes, que referem ter sido desferidos na zona do corredor, entre o quarto do BB e a porta da rua. As três testemunhas reconhecidamente presentes, EE, FF e KK, acabam por ver os últimos golpes, sendo que a testemunha FF vê os golpes que são dados na zona do pescoço.
Do relatório de autópsia é de referir a existência de: 2.1. ferida corto-perfurante (A) na face lateral esquerda do pescoço, que segue um trajeto da esquerda para a direita e ligeiramente de cima para baixo, mantendo-se grosseiramente no mesmo nível do plano coronal. Atravessa a pele, o tecido celular subcutâneo, o plano muscular (esternocleidomastoideu, esternohioideu e tirohioideu esquerdos), a membrana tirohioideia, a epiglote, o lúmen da laringe, voltando a atravessar a membrana tirohioideia e terminando o seu trajeto no músculo tirohioideu direito. Estas lesões traumáticas denotam ter sido produzidas por ação de natureza corto-perfurante, sendo compatíveis com produção por arma branca (não especificada) e constituindo causa adequada de morte. 2.2. ferida corto-perfurante (B) supraclavicular esquerda que segue um trajeto da esquerda para a direita, de anterior para posterior e de cima para baixo. Atravessa a pele, o tecido celular subcutâneo, o plano muscular (esternocleidomastoideu, esternohioideu e esternotiroideu esquerdos) e atinge a serosa do esófago (no seu terço proximal), sem condicionar solução de continuidade na parede. Estas lesões traumáticas denotam ter sido produzidas por ação de natureza corto-perfurante, sendo compatíveis com produção por arma branca (não especificada) e não constituem causa adequada de morte. 2.3. feridas cortantes supraclaviculares esquerdas (C e D) e infraclavicular direita (E), superficiais, a C e D atravessam a pele, ficando no tecido celular subcutâneo, enquanto que a E fica apenas na espessura da pele. Estas denotam ter sido produzidas por ação de natureza cortante, sendo compatíveis com produção por arma branca (não especificada) e não constituem causa adequada de morte. 2.4. ferida cortoperfurante (F) clavicular esquerda, que atravessa a pele, o tecido celular subcutâneo, terminando o seu trajeto no plano muscular (grande peitoral esquerdo). Esta denota ter sido produzida por ação de natureza cortoperfurante, sendo compatível com produção por arma branca (não especificada) e não constitui causa adequada de morte. 2.5. ferida corto-perfurante (G) sobre o apêndice xifóide que segue um trajeto da esquerda para a direita, de anterior para posterior e de cima para baixo. Atravessa a pele, o tecido celular subcutâneo, o plano muscular, entra na cavidade torácica ao nível do apêndice xifóide, fraturando o mesmo, perfura o saco pericárdico e condiciona laceração transfixante do ventrículo direito. Estas lesões traumáticas denotam ter sido produzidas por ação de natureza corto-perfurante, sendo compatíveis com produção por arma branca (não especificada) e constituem causa adequada de morte. 2.6. escoriação malar esquerda, compatível com traumatismo de natureza contundente, que não constitui causa adequada de morte.
Concatenando as declarações de cada uma das pessoas que esteve presente aquando dos factos, o relatório de autópsia e os relatórios de inspecção judiciária, entendemos que os factos não podem ter decorrido da forma como a arguida os descreveu.
A arguida descreve que o primeiro golpe ocorre ainda na cozinha, e que os restantes ocorrem já no corredor entre a entrada do quarto do ofendido e a porta da rua da casa. Sendo que pela sua descrição seria uma acção muito rápida e sem que houvesse uma intervenção de terceiros.
Já a descrição das testemunhas supra aludidas descrevem uma primeira situação em que o ofendido teria sido golpeado, e uma outra em que, já depois de as testemunhas FF e EE estarem presentes, a arguida desfere os golpes na zona do peito e pescoço.
Pelo teor do relatório de autópsia verificamos a primeira incongruência com a declaração da arguida, o ofendido não tem qualquer golpe no flanco direito ou esquerdo, o mesmo tem um golpe na parte mais inferior do externo (xifóide) que chega ao coração da vítima; uma ferida na face lateral esquerda do pescoço (que terá sido a última ser desferida), e cinco feridas na zona clavicular, três na zona supraclavicular, uma infraclavicular e uma mesmo na zona clavicular.
Duas das feridas supraclaviculares e uma das feridas infraclaviculares são apenas superficiais.
Apenas uma das feridas corto-perfurante (B) supraclavicular esquerda segue um trajecto da esquerda para a direita, de anterior para posterior e de cima para baixo. Atravessa a pele, o tecido celular subcutâneo, o plano muscular (esternocleidomastoideu, esternohioideu e esternotiroideu esquerdos) e atinge a serosa do esófago (no seu terço proximal), sem condicionar solução de continuidade na parede.
O teor do relatório de autópsia é compatível com as declarações das testemunhas FF e EE que referem ter visto a arguida a desferir os golpes na zona do peito e no pescoço.
Há que consignar como bastante relevante o facto de o ofendido não ter qualquer lesão defensiva, o que é compatível com o facto de ter ficado incapacitado aquando do primeiro golpe.
Confrontando as declarações da arguida com as inspecções judiciárias que se mostram juntas também existem incongruências relevantes, senão vejamos:
A arguida refere que os primeiros factos terão ocorrido na zona da cozinha e que depois o ofendido rasteja até ao corredor, próximo do quarto dele, onde ocorre o último dos golpes.
Já a assistente CC admitindo que a situação entre a arguida e a vítima começa na cozinha, refere que ambos vão para a zona da sala, com a arguida a seguir o ofendido, presumindo que será aí que o primeiro golpe ocorre, pois embora ela não o consiga ver é dali que vem a voz do BB a pedir para ela ir pedir ajuda por ter sido golpeado.
Ambos os autos de inspecção referem a existência de vestígios hemáticos na sala – vide foto 8 de fls. 150 e fotos 20 e 21 de fls. 157 – na zona do corredor entre a cozinha, o quarto da vítima e a porta da rua – vide foto 19 de fls. 156 – e depois no exterior já na zona das escadas – fls. 155, foto 18 de fls. 156 e 73 e foto 2 de fls. 74. No chão da cozinha apenas se mostram pegadas com sangue, ou seja, sangue por transferência de pegadas, como consta na foto 6 de fls. 76.
Das fotos da cozinha não é visível uma situação de particular desarrumação ou um monte de loiça para lavar como a arguida alega, nem há qualquer sinal de que a arguida se tenha agarrado a um móvel e tenha caído uma toalha – vide fls. 76 e 148/149 –, os cacos dos pratos partidos encontram-se na entrada da cozinha contígua ao corredor e na saída da cozinha contígua à sala – fls. 75, 77, 149 e 156 -, e também não há marcas de que a vítima se tenha arrastado entre a cozinha e o corredor, já que não há qualquer marca de sangue decorrente de tal arrastamento, o que ocorreria necessariamente pelo local em que o primeiro golpe foi desferido – no externo, com tal força que não só chegou a partir parte do osso mas permitindo que o coração fosse comprometido.
O único local em que se percebe que existiu uma qualquer interacção entre duas pessoas é na sala, no canto, como decorre da foto 11 de fls. 78, percebendo-se que há um vaso tombado e muito próximo das pingas de sangue que estão na parede e uma pequena poça que está na zona do rodapé – vide foto 21 de fls. 157 – e na zona da entrada da casa – vide fls. 4 de fls. 75 - onde é visível a existência de bastante sangue e cacos de pratos.
Assim, para além de fotos que temos da divisão em que os factos ocorrem não corroborarem a versão da arguida, também a roupa que a arguida vestia, e que se mostra fotografada a fls. 189/191, corrobora a versão das testemunhas, já que é visível que todas as peças de roupa têm sangue, não só no braço esquerdo, mas o peito da camisola e as calças que estão manchadas da zona do cós até ao final da perna, e os ténis têm sangue, nomeadamente pingas o que implica que a arguida tem de ter estado de pé quando algum dos golpes mais profundos foram desferidos.
Da conjugação de todos estes factos teremos de concluir que se mostram provados os factos (factos 11) a 26)).
O resultado dos golpes que a arguida reconhece ter desferido no corpo do filho resulta do teor da autópsia.
No que respeita à arma utilizada, a arguida reconhece que a mesma era sua e estava em sua casa, pelo que não poderia a mesma deixar de saber que ao utilizá-la no corpo do seu filho, nas zonas que visou, que lhe poderia tirar a vida, em virtude de ao desferir golpes de faca no peito e na garganta de uma pessoa ser previsível que se vai atingir órgão vitais, que foi o que ocorreu.
Os factos objectivos decorrem do teor do conjunto da prova supra descrita, sendo que da mesma teremos de apurar se se mostra, ou não, provado o elemento subjectivo do mesmo.
A arguida defende-se dizendo que não estava em si quando agiu, que reagiu a mais de um ano “a levar pancada”, pelo que o seu estado de espírito se mostrava toldado e a impediu de ter noção do que estava a fazer e adequar o seu comportamento.
É de parecer da senhora perita que subscreve o auto de perícia psiquiátrica que a arguida não padece de qualquer anomalia psíquica, pelo que conclui o Tribunal que não estaremos perante uma situação prevista no artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal, na medida em a arguida não padece de nenhuma anomalia psíquica, existente à data da prática dos factos que a impedisse de avaliar a ilicitude do seu comportamento ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
Resulta provado que a relação entre o BB e a arguida era complicada, que o BB era uma pessoa violenta, nomeadamente para com a mãe, e que esta tinha apresentado uma queixa crime pela prática do crime de violência doméstica, tendo sido ouvida no âmbito de tal processo poucos dias antes dos factos. Também resultou assente que a arguida pretendia que o BB deixasse de viver na sua casa, entre outras razões porque o mesmo não assumia o pagamento de qualquer despesa.
No dia dos factos é a arguida quem se desloca a casa e perante algo que a desagradou começa a partir pratos, fazendo assim com que o BB saia do quarto e comece aí uma discussão. No âmbito desse confronto verbal passa a haver um confronto físico que os leva a cair, ambos, no chão. Nessa sequência, a arguida reage de uma forma violentíssima, não só pegando numa faca que se encontra na cozinha, mas desferindo de imediato um golpe com a mesma que, pelo local do corpo do filho em que é desferido, levaria necessariamente à morte de seu filho.
Depois ao perceber que o mesmo não estava ainda morto a arguida voltou a desferir-lhe novos golpes, o último dos quais no pescoço por forma a concluir o que tinha começado. O último dos golpes é desferido já na presença de terceiros, pretendendo a arguida ter a certeza do falecimento do filho.
Pelo teor da descrição que é feita diríamos que a arguida estava “descontrolada”, na medida em que esse não é o comportamento que estaríamos à espera que fosse realizado por alguém, muito menos uma mãe para com um filho. Ou seja, é um comportamento que sai do tipo de comportamento expectável de alguém que se encontra inserido em termos sociais. Mas não é incomum que quando alguém, numa situação de confronto, passa para um elevadíssimo nível de violência, quase que perca a consciência da acção que está a praticar, realizando todos os actos até perder a energia criminógena. Tal ocorre muitas vezes com situações em que são usadas facas, em que o agente não tem sequer noção de quantos golpes desfere na vítima ou onde a atinge.
Como supra foi mencionado não há qualquer questão referente a anomalia psíquica, pelo que resulta provado que a arguida se encontrava capaz de avaliar a licitude do seu comportamento e de se determinar de acordo com a mesma.
Resultou assente, tendo em atenção o laudo de perícia psicológica e no laudo de perícia psiquiátrica, que a arguida tem uma perturbação mista de ansiedade e depressão, crónica, que terão sido potenciadas por vivências traumáticas, e admite-se, igualmente, pela existência de um luto patológico.
A arguida sabia que ao pegar numa faca e permitir-se exteriorizar a raiva com que estava do seu filho, e assim desferir os golpes da forma como o fez, lhe poderia tirar a vida, o que acabou por fazer.
Não há qualquer vislumbre de uma situação de anomalia psíquica que colocasse em crise a sua capacidade para saber o que estava a fazer e se determinar de acordo com tal. Essa situação não impede que se conclua que a mesma não estivesse muito enervada e que depois de desferir o primeiro dos golpes, que sempre se diga que foi era adequado a, só por si, determinar a morte da vítima, não entrasse numa situação de menor controlo das suas emoções, até pela noção da gravidade do que tinha feito. Na verdade, pelas feridas que a vítima sofreu se percebe que inicialmente a arguida apenas lhe desferiu um golpe – compatível com o movimento que a arguida refere ter feito ao colocar-se nas costas do filho debruçada sobre o mesmo, que estava de joelhos, colocando o braço e o cotovelo de volta do pescoço do mesmo e desferindo aí um golpe de cima para baixo, num golpe que se percebe ser na zona do externo e que atingiu o coração do mesmo. É já após esse golpe que, ainda que ferido gravemente, a vítima ainda consegue deslocar até ao seu quarto, local em que onde o mesmo é visto pelas testemunhas que ali se deslocaram. O ofendido estava prostrado no quarto e já com muita dificuldade em sequer se mexer. Todos os restantes golpes são desferidos depois, os primeiros na zona superior do peito, quase todos superficiais, e depois o último que a arguida pretendia ser o final, e que é desferido no pescoço.
No entanto, a sorte da vítima foi definida no primeiro golpe, que se percebe é desferido numa situação de confronto com o filho. Esse confronto começa com uma discussão verbal, que passa para um confronto físico entre ambos e que levou a que a arguida passasse para a utilização da faca. Todos os restantes golpes são desferidos já após a arguida ter noção do que tinha feito com o primeiro golpe, o que faz perceber o discurso de se ainda não morreste agora vais mesmo morrer.
Temos de entender que a relação entre a arguida e a vítima era uma relação tóxica, pelo que nos é relatado pela família e pelos mais próximos, em que nenhum respeitava o outro, e em que ambos se permitiam agredir-se, física e moralmente, sem que a família lograsse conseguir fazer parar esse comportamento, sendo que, tendo maior capacidade física, as agressões físicas da vítima seriam bastante relevantes por certo.
Por outro lado, a arguida já anteriormente tinha usado de facas em situações de confronto. Essa utilização levou mesmo a que tenha sido condenada no processo 316/21.2GASXL, tal como decorre do teor da sentença junta, situação que é relatada em sede de perícia psicológica como um deficiente controlo comportamental que leva a manifestações de agressividade.
Assim, embora os factos tenham sido de uma enorme violência não há qualquer elemento que nos permita concluir que a arguida não estivesse com todas as suas capacidades de entender e querer e de se determinar em conformidade, o que não quer dizer que não tenha agido numa situação em que se tenha sentido ofendida por estar a ser desrespeitada pelo filho na sua própria casa, não só não saindo de casa, como ainda entrando em agressões mútuas, como depois, quando o filho faz pouco dela ao perguntar-lhe se tinha “cheirado mandioca”. Mas essa situação exterior não a impedia de saber o que estava a fazer e de se determinar em conformidade.
Coloca-se, também, a questão de saber se mesmo tendo capacidade para avaliar a ilicitude do seu comportamento e de se determinar de acordo com esta avaliação se não estaremos perante uma situação de “compreensível emoção violenta”, situação que impediria, ou pelo menos, diminuiria a culpa da arguida.
A arguida foi sujeita a duas perícias, uma de natureza psicológica e outra de natureza psiquiátrica.
Em sede de perícia psiquiátrica, em sede de discussão é referido: “No caso em apreço, importa aferir o estado mental actual da examinanda, e como esta se vê, retrospetivamente, enquanto agente do comportamento criminal, i.e., homicídio na pessoa do seu filho, bem como, qual era o habitual comportamento deste em casa para com a sua mãe, ora examinanda. Logo assim que a perita dá início à entrevista, esta começa por assumir os factos, não se eximindo em assumir a responsabilidade pelos mesmos, num contexto do qual resultou uma vítima mortal, seu filho, e à qual se encontrará sempre ligada por um vínculo particular, tendo verbalizado não ter ainda conseguido fazer o luto. Designou o acto como “acidente”, não como forma de desresponsabilização, mas sim distanciando-se de um comportamento violento que não consegue integrar na sua pessoa, na sua personalidade, i.e., forma de Ser e de Estar consigo, com os outros e com o meio em que se insere, mas que assume ter praticado, bem como do distanciamento afectivo do filho, agressor doméstico identificado nos autos, em relação com o comportamento do mesmo após se ter mudado para sua casa e que descreve ter vivenciado com “terror”. Não adopta o papel de vítima de Violência Doméstica (VD), apesar de o ter sido, de facto, de acordo com a leitura dos autos, não só durante todo o período em que o filho esteve a viver em sua casa, mas também em anos anteriores por diversas vezes, por parte de companheiros, conforme pode ser analisado na documentação consultada para o exame indirecto. Não se apura história prévia de doença mental, por parte da examinanda. De facto, a examinanda, perante as múltiplas vicissitudes sofridas e que acarretaram um inquestionável potencial traumático, terá sempre conseguido manter-se activa ao nível laboral, provendo os cuidados a uma filha menor a seu cargo e cumprindo os seus encargos da vida diária, o que denota resiliência e não se coaduna com o juízo de uma doença mental ou de uma perturbação da personalidade borderline, tal como consta de informação clínica psiquiátrica. De facto, esta associa uma perturbação da personalidade ao luto patológico, como se de uma associação causal se tratasse, o que não tem suporte científico na causalidade psiquiátrica, pois uma perturbação da personalidade decorre de uma estruturação perturbada do carácter (ao longo da infância e adolescência, estando a personalidade estruturada na idade adulta) e não de um acontecimento vivencial traumático como o luto patológico. Além de que esta associação é assente em avaliações transversais e sem suporte longitudinal vivencial ou instrumental, para sustentar a hipótese diagnóstica de Perturbação Borderline da Personalidade. Na verdade, a examinanda não apresenta traços de personalidade Cluster B6 (antissocial, narcísica, borderline e narcísica), o que não será de excluir quando se analisa, de forma documental e indirecta, a personalidade do seu filho, ora vítima mortal, identificado nos autos como perpetrador de violência doméstica, nas pessoas de sua mãe e sua irmã menor, durante o período de cerca de um ano em que com estas coabitou. A examinanda neste período descreve ter vivenciado, tal como a sua filha mais nova (15 anos) com quem também vivia, um ambiente que qualifica como de “terror”, de VD diária e sistemática, perpetrada pelo seu filho, com agressões físicas e sobretudo psicológicas, bem descritas nos dois autos que deram origem a dois inquéritos, em 2021 e em 2022. No primeiro foi aceite a sua desistência de queixa, e o segundo foi arquivado, por razões que não terá compreendido, nem conseguiu explicar. Estes dois momentos, em que foi participar do comportamento criminal do seu filho, para consigo e para com a sua filha, e que deram origem a dois inquéritos por violência doméstica (VD), mas que nada aconteceu, de facto, para mudar esta situação, foram cruciais para fomentar o seu desespero e desalento e, assim, alicerçar um sentimento de desalento e desesperança por não ver fim ao “terror”, o qual, incessantemente, se perpetuou até ao dia 20/12/2022. Este sentimento de impotência foi crescendo ao longo do tempo no seu psiquismo, como uma crença irredutível e inabalável originada em premissas reais, e por isso, não delirante, por não conseguir ver o fim de um ambiente de “terror”, vivenciado com a sua filha de 15 anos, que sabia ter o dever de proteger, mas receando não o conseguir, e ao desalento experienciado por não ter qualquer ajuda para que tal violência cessasse, ainda que a tivesse solicitado a quem o poderia ter feito. Acresce, pois, esta impotência em conseguir, sozinha, resolver uma grave situação de VD, com marcado e constante componente psicológico, i.e., medo constante ao ponto de “não poder dormir”, pela ameaça permanente à integridade física e psicológica, sua e da sua filha menor, experienciado diariamente uma situação de “terror”, que muito bem descreveu. Um contexto de VD que se ia perpetuando no tempo, cada vez sentida com maior intensidade, gravidade, impotência, e para o qual não via solução possível por parte de quem poderia, e deveria, tê-las ajudado e protegido, pondo um fim à violência. E acabou por ter um trágico final, quando, em situação de compreensível emoção violenta pela necessidade última de sobreviver, pôs termo à vida do seu filho. Foi, por este, levada a um limite existencial, ao qual ninguém deveria chegar, em especial, uma mulher e mãe, que se torna a agressora para uma vez mais, não ser a vítima. Entre o “flight or fight”, escolheu lutar contra o “terror” e sobreviver. Este comportamento violento, dominado por uma emoção da mesma magnitude, não foi por si, naquele momento, pensado ou planeado, mas sim decorreu de (mais) um episódio de violência física e psicológica que se impôs numa mente exausta e humilhada, com reactividade depressiva e ansiosa (que ainda mantém) de quem não dormia por medo e que vivia em “terror” permanente e prolongado, agindo num corpo cansado, de quem sempre trabalhou para conseguir para prover, sozinha, às suas obrigações e ao sustento da sua casa e de todos os que nela viviam, ainda que contra a sua vontade. Vontade essa, várias vezes por si verbalizada, mas nunca respeitada pelo seu filho, identificado agressor doméstico. De facto, torna-se facilmente compreensível, para quem tome conhecimento desta narrativa e destes factos, o quão perturbada estaria, no momento da prática dos factos, a mente da examinanda, a ausência de saúde mental que vivenciou durante este longo período, ao ponto de ter sido compelida a agir por uma emoção violenta, no clássico mecanismos psicológico do trauma, “flight or fight”, não deixa de ser incompreensível como foi possível ter este fim, o de uma morte (quase) “anunciada”, conforme o que terá dito a uma sua vizinha. Este tipo de resposta “fugir ou lutar”, é uma reacção fisiológica automática a um evento percebido como estressante ou aterrorizador. A percepção da ameaça ativa o sistema nervoso simpático e desencadeia uma resposta aguda ao stresse que prepara o corpo para lutar ou fugir. Estas respostas são adaptações evolutivas para aumentar as hipóteses de sobrevivência, em situações ameaçadoras ou aterrorizadoras. A ativação excessivamente frequente, intensa ou inadequada da resposta de luta ou fuga está implicada numa série de condições clínicas, incluindo a maioria das perturbações da ansiedade, como o stress pós-traumático, na qual existe uma melhor compreensão do propósito e da função da resposta de lutar ou fugir. Na verdade, a examinanda manteve-se a trabalhar, por turnos, não conseguia dormir, vivenciava diariamente um sentimento persistente de “terror” no seu domicílio, com níveis elevados e constantes de ansiedade, pois a sua morte e/ou a da sua filha, eram as únicas das quais a examinanda já tinha tido vários anúncios prévias, pese embora tenha (quase) anunciado a morte de seu filho a uma sua vizinha, após mais um episódio de violência doméstica por parte deste. E tudo isto se coaduna com uma estruturação de personalidade resiliente, de quem prefere ficar e “lutar”, do que “fugir”, conforme também se percepciona pela sua vontade em permanecer na sua casa, mesmo quando lhe foi dado o estatuto de violência doméstica e questionado se pretendia sair do domicílio, que era seu e onde ficaria o agressor, e ir para uma casa abrigo, o que veementemente negou, preferindo ficar e enfrentar um ambiente de violência doméstica, de “terror” como designou, esperando que alguém o conseguisse cessar, o que considera que teria acontecido se o seu filho, então agressor identificado, tivesse sido posto fora da sua casa ou como disse, “tivesse sido preso”. Na data desta avaliação encontrava-se com sintomatologia depressiva, congruente com um estado de desalento e desesperança que ainda vivencia, o que foi também observado neste exame, mas já sem a intensidade grave da sintomatologia depressiva. Esta psicopatologia decorre de ter vivido num ambiente de violência, encontrando-se mentalmente perturbada, mas sem evidência, à data dos factos de uma anomalia psíquica. No entanto, esta perturbação mental, de sintomatologia depressiva e ansiosa, já existia à data destes, tendo sido o “pano de fundo” da emoção violenta desencadeada pela necessidade de sobrevivência, tal como já previamente discutido, no mecanismo “flight ou fight” que surge em situações de stress grave perante ameaça ou terror, e que levou ao acto (“fight”). Tal é congruente com o evidenciado pelo psiquiatra prisional que se encontrava de prevenção no ..., após solicitação de avaliação pela psicóloga do EP onde a examinanda se encontra, e que a avaliou em situação urgente no dia da leitura da sentença, por ideacção suicida. De facto, esta já tinha pontuado na “check-list” de Avaliação do Risco de Suicídio, aplicada a reclusos pela DGRSP, no âmbito do Programa de Intervenção e Prevenção do Suicídio (PIPS), sendo este risco não negligenciável, tendo o psiquiatra prisional verificado que a examinanda apresentava critérios para internamento, por risco de passagem ao acto numa janela temporal a curto-médio prazo. Tal internamento não se veio a verificar no ... pela inexistência de vagas na ... (...) e pelo facto de a examinanda não ter sido levada ao SU do SNS, nesse sentido. Na data da presente avaliação médico-legal, o risco de passagem ao acto não era patente, apesar da ideacção suicida passiva se manter, mas sem actual intencionalidade. A examinanda revela capacidade de avaliar de forma crítica os acontecimentos, fornecendo uma narrativa possível e plausível sobre os mesmos, à luz do que, não sendo explicável, torna compreensível a incompreensibilidade deste tipo de crime.”
Já em sede de perícia psicológica, e após a descrição dos testes que foram aplicados à arguida e indicação dos respectivos resultados, e em sede de discussão o senhor perito relata que: “Ao nível da avaliação, AA procurou dar uma imagem positiva de si própria, questionando-se a sua sinceridade, em particular, nos testes de autorrelato. No entanto, reunindo a informação recolhidas nas diversas fontes consultadas, pode avaliar-se que ao nível intelectual, a arguida apresenta resultados que se situam abaixo da média da população da sua faixa etária e com o seu grau de escolaridade. Estes resultados advêm das fracas estimulações cognitivas e afetivas precoces, não colocando, no entanto, em causa a sua capacidade de apreensão da realidade. De salientar, ainda, que tem adquiridas e rotinadas as competências inerentes à aquisição da leitura e da escrita. Da avaliação sobressaem, também, indicadores de depressão de baixa autoestima e de crenças de autopunição, melhor entendidas num quadro autoderrotista do que como resultado de um autoconceito negativo. No presente, AA continua a revelar uma postura autocentrada, com dificuldade em ver o ponto de vista dos outros. Existem atitudes que minimizam e legitimam a exibição de condutas ilícitas, nomeadamente aquela de natureza violenta. A informação recolhida sobre a arguida revela assim a existência de traços de personalidade de natureza antissocial, entre os quais se destaca a dificuldade conformar-se com regras e convenções sociais, a existência de um estilo de comunicação pautado por omissões e distorções da realidade, um deficiente controlo comportamental que leva a manifestações de agressividade, bem como uma postura de desresponsabilização ou de responsabilização externa do seu comportamento que reduzem a capacidade de aprender com as experiências de vida. AA revela hostilidade latente, que se manifesta em situações de frustração, nas quais apresenta um reduzido controlo dos impulsos. O seu percurso de vida mostra pensamentos e emoções negativas relacionadas com revolta e injustiça, que podem ter sido gerados a partir das perceções de abandono e carência afetiva ao nível familiar. Relacionado com o seu percurso de vida, pautado pela ausência de vinculações estruturantes com as figuras parentais, surgem as dificuldades da arguida em estabelecer relações seguras e consistentes. Desta forma, a satisfação das suas necessidades surge sobrevalorizada em relação aos outros, apresentando défices na sua capacidade de descentração. Ao nível da afetividade revelou insensibilidade emocional, ausência esta de ressonância afetiva que parece estar relacionada com a sua infância e adolescência em que não lhe foi proporcionado um ambiente estruturante. Não tendo integrado uma imagem consistente dos progenitores/cuidadores, enquanto fontes de apoio emocional, veio mais tarde a reproduzir este comportamento para com os seus filhos, perante os quais manifesta laços de afetividade e sentimentos de proteção frágeis e ambivalentes. Em muito correlacionado com o contexto intrafamiliar em que se processou o seu crescimento, e.g., “o facto de ter sido tratada como uma filha diferente” (sic), tal como o ex-companheiro referiu, manifesta capacidade para adequar os seus comportamentos às exigências externas com um comportamento passivo, como disso tem sido exemplo a adequação institucional. Contudo, quando confrontada com situações em que os impulsos são muito invasores, surge, ego-centrada e reage de acordo com o princípio do prazer imediato. Daqui pode emergir uma atitude auto e/ou hétero agressiva, sendo de salientar que, a par com o transmitido pelo ex-companheiro, a arguida evidenciou sintomatologia que é consonante com ideação suicida. As suas características autocentradas surgem como uma tendência para contrariar tal posicionamento passivo e relacionam-se com uma atuação mais dominante, nem que para isso utilize os outros para satisfazer os seus impulsos primários. Destacamos a insensibilidade ao mundo envolvente, a limitação de interesses e a pouca ambição, que se relacionam com o padrão básico de personalidade, em que não foi intelectualmente estimulada. Este padrão comportamental conjugado com características individuais de auto-centramento, superficialidade relacional e desresponsabilização, configuram um conjunto de fatores de risco que favorecem a manutenção do risco de comportamento agido em momento de tensão. Relativamente aos factos pelos quais se encontra acusada, sobressai uma frieza extrema. De realçar que a arguida revela dificuldade em se colocar no lugar do outro, assumindo uma posição de afastamento da sua responsabilidade perante as suas condutas. Esta minimização configura uma distorção cognitiva, ou seja, uma forma errónea ou tendenciosa de interpretar a realidade que, em certa medida, lhe permite legitimar o seu comportamento e atenuar o sentimento de culpa. Associada a esta atitude não é alheia a postura de vitimização e de atribuição externa face à existência de outros processos judiciais, preditores negativos para a alteração do comportamento e consequentemente para a sua inserção em meio livre.”
Ambos os senhores peritos apresentam as suas conclusões tendo em atenção os seus especiais conhecimentos. A senhora perita psiquiatra não considerou como válido o laudo pericial psicológico, por razões que se não consideram válidos, e foi conclusiva ao referir que não entendia necessária a realização de qualquer exame psicológico.
A senhora perita de psiquiatria enquadra a actuação num quadro de “Flight or fight”, que descreve como uma reacção fisiológica automática a um evento percebido como stressante ou assustador, aterrorizador. A percepção da ameaça, activa o sistema nervoso simpático e desencadeia uma resposta aguda ao stresse que prepara o corpo para lutar ou fugir.
Embora fundada em parte na descrição que constava em alguns dos documentos que foram remetidos, nomeadamente as queixas que foram apresentadas pela arguida, percebe-se que a esmagadora maioria da informação sobre os factos resulta da própria descrição feita pela arguida.
Ora, grande parte dos factos que são relatados pela arguida quanto à vivência da família não resultaram provados em juízo, nem nos presentes autos nem nos outros autos em que a arguida aparece como queixosa.
O que resulta provado é a existência de uma relação tóxica em termos familiares, em que é permitido, até pelos membros da família, a existência de agressões físicas, sendo de referir que o pai da vítima é agente da PSP, ainda que já não em exercício de funções. Há igualmente a existência de uma intervenção judicial poucos dias antes com a audição da arguida, como queixosa, o que lhe terá permitido concluir prosseguimento do seu processo, aguardando-se diligências subsequentes. Acresce que contrariamente ao que parece ter sido comunicado à senhora perita, a filha da arguida estava ausente por alguns dias da casa de morada de família e a arguida tinha, há três anos, um companheiro, situação que lhe daria, ainda que apenas em termos psicológicos, uma sensação de maior conforto e segurança.
Admitindo como provável que a arguida pudesse ser vítima de violência por parte do seu filho, a descrição que, em sede de julgamento, é feita pela vizinhança, e mesmo pelos familiares, não é a de uma vivência de terror constante, como descrito no relatório em apreço. Também se afigura como provável. que para além de vítima, a arguida pudesse ter comportamentos igualmente violentos quando a situação lhe era desfavorável, como ocorreu no âmbito do processo 316/21.2GASXL, sendo relatados outros factos em sede de queixas apresentadas contra a mesma.
Os factos que constam nas queixas-crime que a arguida apresentou contra o filho e aqueles que constam nas queixas crime contra si apresentadas, são meramente indicativos quanto ao seu comportamento, já que sobre os mesmos não foi realizado julgamento crime (excepto quanto aos do processo 316/21.2GASXL).
Assim, e voltando à decisão da matéria de facto dos presentes autos, e nomeadamente à questão de saber se a arguida agiu, ou não, numa situação de grande comoção, e de compreensível emoção violenta, temos os factos objectivos que resultaram provados, e que resultam da supra aludida discussão, o facto de não resultar provada a situação de “terror psicológico e físico” relatado pela arguida, e a descrição das características psicológicas realizadas pelo senhor perito de psicologia, fundado também em testes objectivos e que descrevem a “agressividade como um dos traços da personalidade da arguida”, “a sua pouca viabilidade na aptidão para gerir o risco”, e “a impulsividade”, “a postura autocentrada, com dificuldade em ver o ponto de vista dos outros”, e “os traços de personalidade de natureza anti-social” e “uma postura de desresponsabilização ou de responsabilidade externa do seu comportamento que reduzem a capacidade de aprender com a experiências de vida”, e “o reduzido controlo dos impulsos”.
Esta descrição da arguida apresentada em sede de perícia psicológica é muito mais compatível com a pessoa que se apresentou na audiência de discussão e julgamento, que manifestava sentimentos apenas quando se falava de si ou das suas circunstâncias, e nunca quando se falava do filho, ou de como os factos ocorreram no dia em questão.
Assim, conclui-se que a actuação da arguida, foi provocada por uma emoção, como são a grande maioria destas situações, mas não resultou provada que tenha ocorrido numa situação de desespero, com receio pela sua própria sobrevivência, como pretende a defesa.
É pelos motivos supra descritos que resultaram assentes os factos 28) a 30).
O facto 31) resulta do documento da factura apresentada pelo Hospital.
Os factos 33) a 43) resultam do laudo de relatório pericial psicológico, que não só descreveu a arguida como a sua vida até ao momento. A descrição da vivência da arguida é muito compatível com a descrição que é feita pela família da arguida e dos amigos que testemunharam sobre a sua forma de ser.
O facto 44) resulta do laudo de relatório pericial psiquiátrico.
Não foi produzida prova quanto aos factos b), c), d) a f).
Consigna-se apenas que as lesões que foram verificadas na pessoa da arguida, e que constam das fotografias e ainda do episódio de urgência são compatíveis com a actuação das testemunhas a tentarem que a mesma largasse a faca e o corpo de seu filho, razão pela qual se situam nos braços e pernas da mesma.
Os antecedentes criminais da arguida resultam do teor do certificado de registo criminal juntos aos autos.”
-- // -- // -- Cumpre apreciar.
*
Atendendo às conclusões apresentadas são questões a resolver:
Impugnação da matéria de facto;
Enquadramento jurídico dos factos; e
Medida da pena.
* Impugnação factual.
Conforme resulta do nº 1 do artº 428º do Código de Processo Penal “as relações conhecem de facto e de direito”.
A decisão sobre a matéria de facto pode ser impugnada por duas vias:
Com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o nº 2 do artº 410º do Código de Processo Penal (impugnação em sentido estrito, no que se denomina de “revista alargada” equivalente a “error in procedendo”); ou
Mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se referem os nos 3, 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal (impugnação em sentido lato, ou ampla, equivalente a “error in judicando” na sua vertente “error facti”).
Quanto aos vícios formais, também designados de vícios decisórios (impugnação em sentido estrito) - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova - sendo de conhecimento oficioso, devem resultar do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, não se estendendo, pois, a outros dados, nomeadamente que resultem do processo mas que não façam parte daquela decisão, sendo portanto inadmissível o recurso a princípios àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que afectam a construção do silogismo judiciário, limitando‑se a actuação do tribunal de recurso à sua verificação na sentença e não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento, nos termos do nº 1 do artº 426º do Código de Processo Penal.
Quanto à segunda modalidade (impugnação ampla), impõe-se, conforme resulta dos nos 3 e 4 daquela artº 412º, que o recorrente especifique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como que indique as provas específicas que impõem decisão diversa da recorrida, e não apenas a permitam, demonstrando-o, bem como referir as concretas passagens das declarações que obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se a acta da audiência não faz referência ao início e termo de cada declaração gravada) ou mediante a indicação dos segmentos da gravação que suportam o entendimento divergente, com indicação do início e termo (quando aquela acta faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade proceda à transcrição dessas passagens).
“Importa, portanto, não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova suscetível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente” (Ac. do TRL de 16.11.2021, Procº nº 1229/17.8PAALM.L1-5, em dgsi.pt).
A clara delimitação legal decorre da circunstância desta reapreciação da matéria de facto não se traduzir num novo julgamento, mas antes num remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento patenteados e tornados perceptíveis pelo processo descrito.
Já se a decisão proferida for uma das soluções plausíveis segundo o princípio da livre apreciação e as regras de experiência, a mesma será inatacável, pelo que importa que o recorrente na indicação das concretas provas torne perceptível a razão da divergência quanto aos factos, dando a conhecer a razão pela qual as provas que indica impõem decisão diversa da recorrida (neste sentido e por todos, Ac. da R.L. de 9.1.2024 - procº nº 762/21.1PCAMD.L1).
Donde resulta ainda que para poder, com sucesso, haver possibilidade de apreciação sobre factualidade apurada (e eventualmente modificação) necessário se torna que se indiquem os pontos incorrectamente julgados, bem como as concretas provas que forcem tal mutação e o correspondente motivo.
Ou seja, em apertada síntese, o correspondente recurso de facto em ordem a ser apreciado (por isso, eventualmente a ter sucesso) tem de indicar claramente três aspectos - factos a alterar, provas concretas que impõem a modificação e porquê.
Seguidamente, o tribunal de recurso aprecia este tríplice aspecto (entretanto sujeito ao contraditório e podendo ainda lançar mão a qualquer prova produzida) e conclui pela alteração ou manutenção, naturalmente motivando a opção.
Com este enquadramento conceptual e analisado o recurso, evidente se torna que pretende claramente a impugnação ampla ainda que aludindo à impugnação em sentido estrito, pelo desenvolvimento da correspondente motivação (mormente quando invoca prova concretamente produzida, extravasando claramente do mero texto do acórdão as respectivas considerações) é manifesto que pretende, em substância, aquela impugnação ampla.
Não obstante, a distinção dos conceitos é elementar e obrigatória.
Destarte, sendo, como é, nítido que a pretensão recursiva é a de, unicamente, substituir a leitura probatória da recorrente, total ou em pontos determinados, sobre a levada a cabo pelo tribunal recorrido dentro dos limites da livre apreciação, o recurso de facto, nessa medida, terá de liminarmente claudicar e justamente por tal motivo.
O Direito Penal (e Constitucional) nacional, impõe a reacção criminal final por orgãos de soberania independentes e imparciais que administram a Justiça em nome do povo, organizados num sistema comprovadamente idealizado por forma a realizar plenamente aquela função do Estado e arquitectado, todo ele, para providenciar essa elementar aspiração da comunidade.
Donde um julgamento efectuado por um tribunal nacional tem em si e por isso, basilar relevância e autoridade sociais, sendo insustentável ignorá-lo ou sequer desconsiderá-lo perante o aludido sistema e complexo normativos.
Com o que se fecha o círculo axiomático no que respeita à matéria que vimos abordando.
Posto isto, é patente que o recurso (com uma excepção que adiante abordaremos) pretende contra o legalmente positivado substituir pela apreciação de um cidadão directamente interessado no desfecho do caso aquela que foi levada a cabo por um tribunal.
Daí que frontalmente peticione o vedado segundo julgamento ao apelar à apreciação de toda a prova produzida em audiência.
Apenas séria discrepância entre o que motivou o tribunal de 1ª instância e aquilo que resulte de prova por declarações prestada, no seu todo e à luz de regras de experiência comum, pode ser de molde a inverter aquela factualidade, impondo, nas palavras da lei, outra decisão.
Como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado, em face do que é possível apreciar e na correspondente fase.
Acresce a circunstância de ser apenas parte da prova por declarações a que nesta fase de recurso há acesso e ainda de acordo com o sistema global referido - meras gravações daquelas - sem qualquer tipo de imediação, de oralidade reduzida e não filtrada por poder de atalhar ou emendar inúmeras perguntas ardilosas ou sugestivas, que logo tornam imprestável, em grande parte, o que de outra forma se poderia aproveitar.
As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanas.
Nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, durante a audiência perante o tribunal (colectivo, ademais e também não por acaso) com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento. De resto, tal como em relação à prova em geral, especialmente no que toca à prova por declarações e muito particularmente depois a todo o seu caldeamento com a generalidade do material probatório recolhido.
Toda a sensibilidade que ali desfila, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade.
Matéria tão importante quanto impossível de captar para futura reprodução.
Só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século.
Não por acaso, a antecedente prova escrita (a velha assentada) foi obliterada do processo português, precisamente porque, eliminando o material supramencionado, facilmente permitia a afirmação judicial de inverdades e justamente na fase de recurso.
Paralelamente, é essa a razão de ser das apertadas e exíguas possibilidades de recurso sobre a matéria de facto. Maior abertura à sua restrição aumentaria, na exacta proporção, aí sim, a hipótese de erro judiciário.
Tudo para concluir ser de primordial importância saber-se que na concreta fixação da verdade do caso influem elementos determinantes que escapam por natureza a apreciação posterior.
Neste sentido, Ac RL de 11.3.2021 procº 179/19.8JDLSB.L1-9:
“Os Tribunais da Relação têm poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), mas não podem sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto;
Normalmente, esses erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar;
Quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes.”
Por isso que é um tribunal, entendendo-se pelo mesmo motivo a razão de ser da circunstância de à medida da progressão do caso se cimentem, em princípio definitivamente, provas, diligências e factos, estreitando-se cada vez mais as possibilidades de retrocesso, sob pena de, a não ser assim, se tornar o processo ingovernável e infinito.
Assim e como a única prova indicada no recurso com virtualidade, em abstracto, para a pretendida modificação é constituída pelos exames psiquiátrico e psicológico efectuados, por esta se quedará a apreciação recursiva, já que tudo o mais invocado passaria por aquele segundo julgamento, interdito.
A este propósito e como é usual, invoca o recurso o erro notório na apreciação da prova e ainda a violação do princípio da inocência.
Ora, ao invés do que pretende a recorrente, o erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão do julgador em relação à matéria de facto e aquela que teria sido a sua. Limitando-se a recorrente a manifestar a sua discordância entre aquilo que foi dado como provado pelo tribunal e aquilo que ela, recorrente, teria dado como provado, não pode sequer enquadrar-se a questão na alínea c) do nº 2 daquela artº 410º.
E o acórdão recorrido, examinado na sua globalidade, assenta em premissas que se harmonizam num raciocínio lógico e coerente, também de acordo com as regras da experiência comum, não existindo o aludido vício. Acresce que na decisão recorrida estão devida e profusamente explicitados os motivos por que foram valoradas positivamente determinadas provas e desconsideradas outras, sobretudo sendo perfeitamente inteligível o itinerário cognoscitivo que conduziu à convicção dos julgadores e os meios de prova em que foi alicerçado esse convencimento.
Por outro lado, o princípio “in dubio pro reo”, constitucional, traça a solução em caso de dúvida criada no julgador acerca da ocorrência de um facto. Não é regra de apreciação probatória a estabelecer a obrigatoriedade de ter dúvidas em caso de controvérsia.
É sim uma regra de valoração de prova dirigida ao tribunal de julgamento que não o obrigando a duvidar, impõe a absolvição quando, valorados todos os elementos de prova produzidos, persistam dúvidas razoáveis sobre os factos e/ou a responsabilidade do acusado.
Como se sustenta no Ac. de 5.7.2007 do S.T.J. “este princípio é uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido (Ac S.T.J. de 24.3.99, CJ-STJ 1, 247).”
“É, pois, insofismável que não invocam apropriadamente o princípio in dubio pro reo. Pretendem, com essa etiqueta, contestar a valoração das provas efetuada pelo tribunal recorrido e, com isso, impugnar a decisão de julgar provados os factos que visam modificar.
Não pode ser assim. A dúvida que faz mobilizar o in dubio pro reo é somente aquela com que se depara o tribunal que, em cada fase do processo e no âmbito das suas competências, tem de julgar os factos que constituem o objeto da causa. Como se sustenta no Ac. de 26/06/2019 deste Supremo Tribunal (proc. n.º 174/17.1PXLSB.L1.S1), “a dúvida tem que ser do tribunal e daquele que se encontre a decidir o caso naquele momento e não de qualquer outro ou de qualquer outro interveniente” (Ac S.T.J. de 6.1.2021, 2/19.3PBPTM.S1).
“Exigindo-se a convicção do julgador sobre a prática dos factos da acusação para além da dúvida razoável e radicando o princípio in dubio pro reo na mesma dúvida razoável, este situa-se no âmago da livre apreciação da prova, constituindo como que o “fio da navalha” onde se move a missão de julgar. Convicção “para lá da dúvida razoável” e “dúvida razoável” legitimadora do princípio in dubio pro reo limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova de apreciação vinculada e da livre apreciação dos restantes em conformidade com o critério do art. 127.º do CPP, sujeitos ambos à mesma exigência de legalidade da prova e da sua apreciação motivada e crítica, da objectividade, racionalidade e razoabilidade dessa apreciação.
Ora a prova testemunhal, que continua a ser, fatalmente, no nosso sistema processual penal, considerada a “prova rainha”, é uma prova sobejamente falível, deteriorável pelo decurso do tempo e facilmente contaminada pelas demais circunstâncias que envolvem o modo como cada ser humano estriba a forma de elaborar o seu processo de entendimento da realidade.
Por isso, o Tribunal a quo, ao apreciar a prova (o que tem de fazer de uma forma lógica e racional, sempre segundo as regras da experiência comum), deve fazer uma análise dos elementos disponíveis, de forma conjugada e crítica, nada impedindo que, nessa conjugação, atribua crédito a parte de determinado depoimento mas já não estribe a sua convicção noutra parte do mesmo.
Por outro lado, também nada obsta a que a convicção do Tribunal se funde num único depoimento, desde que o mesmo ofereça credibilidade bastante.
Como é evidente, não é pelo facto de o arguido negar determinado facto e não haver testemunhas do sucedido, para além da própria vítima, que esse facto deve ter-se por indemonstrado, pois que, não sendo o Tribunal um receptáculo acrítico de declarações e depoimentos, tudo depende da credibilidade que as diversas declarações lhe merecem e da sua conjugação com outros elementos de prova que no caso existam.
De igual modo, não é por determinada versão ser sustentada por mais de uma pessoa que ela oferece necessariamente mais credibilidade do que uma outra, mesmo que “solitária”.
Nas sábias palavras de Bacon: «os testemunhos não se contam, pesam-se», não vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio testis unus, testis nullus.” (Ac S.T.J. de 20.1.2021, procº 611/16.2PALSB.L1.S1)
O texto do acórdão recorrido, por si ou em conjugação com as regras da experiência, nenhum paradoxo encerra, daí se não podendo extrapolar para um qualquer inexistente estado de dúvida.
Tal como o anteriormente invocado vício, trata-se apenas de título de argumento extra a arrancar da referida discordância quanto à apreciação da prova.
*
Vejamos então se aqueles exames são aptos a impor a inversão da factualidade apurada.
Sobre o ponto e como devido, pronunciou-se o colectivo:
“A arguida foi sujeita a duas perícias, uma de natureza psicológica e outra de natureza psiquiátrica (...)
Depois de transcrever as correspondentes discussões, analisaram:
“Ambos os senhores peritos apresentam as suas conclusões tendo em atenção os seus especiais conhecimentos. A senhora perita psiquiatra não considerou como válido o laudo pericial psicológico, por razões que se não consideram válidos, e foi conclusiva ao referir que não entendia necessária a realização de qualquer exame psicológico.
A senhora perita de psiquiatria enquadra a actuação num quadro de “Flight or fight”, que descreve como uma reacção fisiológica automática a um evento percebido como stressante ou assustador, aterrorizador. A percepção da ameaça, activa o sistema nervoso simpático e desencadeia uma resposta aguda ao stresse que prepara o corpo para lutar ou fugir.
Embora fundada em parte na descrição que constava em alguns dos documentos que foram remetidos, nomeadamente as queixas que foram apresentadas pela arguida, percebe-se que a esmagadora maioria da informação sobre os factos resulta da própria descrição feita pela arguida.
Ora, grande parte dos factos que são relatados pela arguida quanto à vivência da família não resultaram provados em juízo, nem nos presentes autos nem nos outros autos em que a arguida aparece como queixosa.
O que resulta provado é a existência de uma relação tóxica em termos familiares, em que é permitido, até pelos membros da família, a existência de agressões físicas, sendo de referir que o pai da vítima é agente da PSP, ainda que já não em exercício de funções. Há igualmente a existência de uma intervenção judicial poucos dias antes com a audição da arguida, como queixosa, o que lhe terá permitido concluir prosseguimento do seu processo, aguardando-se diligências subsequentes. Acresce que contrariamente ao que parece ter sido comunicado à senhora perita, a filha da arguida estava ausente por alguns dias da casa de morada de família e a arguida tinha, há três anos, um companheiro, situação que lhe daria, ainda que apenas em termos psicológicos, uma sensação de maior conforto e segurança.
Admitindo como provável que a arguida pudesse ser vítima de violência por parte do seu filho, a descrição que, em sede de julgamento, é feita pela vizinhança, e mesmo pelos familiares, não é a de uma vivência de terror constante, como descrito no relatório em apreço. Também se afigura como provável que para além de vítima, a arguida pudesse ter comportamentos igualmente violentos quando a situação lhe era desfavorável, como ocorreu no âmbito do processo 316/21.2GASXL, sendo relatados outros factos em sede de queixas apresentadas contra a mesma.
Os factos que constam nas queixas-crime que a arguida apresentou contra o filho e aqueles que constam nas queixas-crime contra si apresentadas, são meramente indicativos quanto ao seu comportamento, já que sobre os mesmos não foi realizado julgamento crime (excepto quanto aos do processo 316/21.2GASXL).
Assim, e voltando à decisão da matéria de facto dos presentes autos, e nomeadamente à questão de saber se a arguida agiu, ou não, numa situação de grande comoção, e de compreensível emoção violenta, temos os factos objectivos que resultaram provados, e que resultam da supra aludida discussão, o facto de não resultar provada a situação de “terror psicológico e físico” relatado pela arguida, e a descrição das características psicológicas realizadas pelo senhor perito de psicologia, fundado também em testes objectivos e que descrevem a “agressividade como um dos traços da personalidade da arguida”, “a sua pouca viabilidade na aptidão para gerir o risco”, e “a impulsividade”, “a postura autocentrada, com dificuldade em ver o ponto de vista dos outros”, e “os traços de personalidade de natureza anti-social” e “uma postura de desresponsabilização ou de responsabilidade externa do seu comportamento que reduzem a capacidade de aprender com a experiências de vida”, e “o reduzido controlo dos impulsos”.
Esta descrição da arguida apresentada em sede de perícia psicológica é muito mais compatível com a pessoa que se apresentou na audiência de discussão e julgamento, que manifestava sentimentos apenas quando se falava de si ou das suas circunstâncias, e nunca quando se falava do filho, ou de como os factos ocorreram no dia em questão.
Assim, conclui-se que a actuação da arguida, foi provocada por uma emoção, como são a grande maioria destas situações, mas não resultou provada que tenha ocorrido numa situação de desespero, com receio pela sua própria sobrevivência, como pretende a defesa.”
Lapidar e acima de tudo, socorreu-se o tribunal recorrido de elementos de prova ao seu dispôr fora do alcance recursivo, como vimos, afastando justificadamente a força probatória de um dos exames pelos motivos claramente expostos, de onde sobressai com peso decisivo a observação da postura da arguida em audiência.
A defesa ainda esgrime a este propósito sobre as qualificações do perito que levou a cabo o exame psicológico, mas trata-se de serôdia invocação, por isso, incapaz para qualquer efeito neste momento. Sequer ao tribunal recorrido ocorreu semelhante interrogação, nem há qualquer razão para tal.
Improcede pois a impugnação de facto.
* Enquadramento.
Depois de breve mas judiciosa análise do tipo pelo qual havia sido deduzida acusação, o acórdão recorrido procede ao enquadramento dos factos apurados pela seguinte forma:
“A alínea a), do n.º 2, do artigo 132.º do Código Penal, prescreve que a especial censurabilidade pode decorrer de o agente ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima.
No caso esta qualificativa decorre do facto de tal acção ter de vencer “as contra‑motivações éticas relacionadas com os laços básicos de parentesco”.
A relação familiar continua a ser a base da comunidade em que nos inserimos, pelo que é socialmente mais gravoso uma actuação deste jaez, pois aqui se violam igualmente o dever de respeito, amizade, e por outro lado pela maior capacidade criminosa pelo não respeito dos motivos inibitórios do crime a que tais relações devem andar ligados.
O crime de homicídio é, como supra foi referido, o crime mais gravoso no sistema penal, e é a enunciação jurídica da regra moral e comunitária de que a vida humana não pode ser tirada por ninguém. Ora, essa regra é particularmente forte no que diz respeito aos membros da mesma família, a quem para além do dever de respeito que se deve ter para com quer que seja se tem deveres acrescidos. Quando alguém tira a vida alguém no seu círculo familiar muito próximo como seja uma mãe a um filho, ou vice-versa, então podemos concluir que o agente do crime tem uma menor capacidade de se adequar às regras sociais e legais, já que conseguiu passar o limite que o ser humano tem de preservar os que lhe são mais próximos (...)
Quanto ao resultado da acção temos que a vítima faleceu em consequência de golpes de faca que lhe foram desferidos pela arguida, mãe da vítima, pelo que o resultado do crime em questão se mostra preenchido. Assim, mostram-se preenchidos os elementos objectivos do crime de homicídio.
A arguida vem, ainda que não directamente, alegar que actuou perante uma situação exterior que exclui a ilicitude da sua conduta, sem mencionar qual.
Constitui causa de exclusão da ilicitude a legítima defesa – artigo 31.º, n.º 1 e 2, alínea a), do Código Penal, sendo considerado como tal o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro – artigo 32.º do Código Penal.
“O conceito de agressão deve compreender-se como ameaça derivada de um comportamento humano a um bem juridicamente protegido.”, esse acto deve assim ser um acto voluntário por parte do agente inicialmente agressor e que tal acto seja voluntário.
“O bem ameaçado deve ser juridicamente – não necessariamente jurídico-penalmente – protegido.”, sendo o maior dos bens jurídicos a vida humana, pelo que a ameaça ao mesmo ou à integridade física é manifestamente integradora da condição objectiva da existência de uma legítima defesa.
Por outro lado, a agressão tem de ser actual e ilícita, sendo que a mesma é iminente quando se encontra o bem jurídico já ameaçado e durante o tempo em que ainda persiste tal agressão.
Pressuposto fundamental da situação de legítima defesa é que a agressão seja ilícita, sendo que a ilicitude da agressão afere-se à luz da totalidade da ordem jurídica, não tendo de ser especificadamente penal.
Outro dos pressupostos do instituto de legitima defesa é a necessidade do meio, sendo que o meio será necessário se for o meio idóneo para deter a agressão e, caso sejam vários os meios adequados de resposta ele for o menos gravoso para o agressor. Só quando assim aconteça se poderá afirmar que o meio usado foi indispensável à defesa e, portanto, necessário.
Mas mais do que a necessidade do meio empregue para repelir uma agressão há que apurar da própria necessidade da defesa, ou seja temos de apurar se a agressão actual e ilícita ocorre dentro de um condicionalismo tal que faz com que ela se não apresente como uma ofensa socialmente intolerável dos direitos do agredido. Há igualmente uma limitação no meio empregue desde que exista uma crassa desproporção no peso da defesa para o agredido e da defesa para o agressor.
No caso, apura-se a existência de conflitos anteriores entre a arguida e o seu filho e a sua vontade de que o mesmo no dia em questão saísse de sua casa, de imediato, passando a manter uma postura agressiva ao partir pratos dentro de casa. Como a arguida referiu eram os seus pratos, ela podia parti-los, mas não deixou de ter uma conduta violenta que escalou para um confronto físico com o filho, que levou a que ambos caíssem no chão. Após, e tendo a vítima questionado o que esta estava a fazer ao ver que a arguida tinha agarrado numa faca esta desferiu-lhe um golpe com a mesma que veio, a final, a tirar-lhe a vida.
Embora estivessem numa situação de confronto físico mútuo a actuação da arguida não visou impedir qualquer perigo iminente para a sua vida, pelo que não estamos perante qualquer situação de legítima defesa.
Provando-se que a arguida ao desferir os aludidos golpes com a faca no corpo de seu filho previu e quis atingi-lo em zonas vitais e querendo tirar-lhe a vida, agindo voluntária, livre e conscientemente, sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei, é indubitável que actuou com dolo directo, e por isso não agiu numa situação de legítima defesa.
A defesa alega que a arguida actuou numa situação de “compreensível emoção violenta”.
De harmonia com o disposto no artigo 133.º do Código Penal, quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
No que respeita ao conceito de emoção violenta teremos de seguir de perto a densificação do conceito do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, relatado pela Juiz Desembargadora Filomena Lima A emoção violenta, susceptível de integrar a previsão do artigo 133, do Código Penal, corresponde a uma alteração psicológica, uma perturbação em relação ao seu estado normal, sendo violenta quando faz desencadear uma reacção agressiva do agente, sendo necessário que essa emoção violenta domine o agente, ou seja, que o determine a agir e que seja apenas por força da sua influência que o agente actue; O desespero, reconduz-se a situações arrastadas no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, geradores de um estado de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta; Não se tendo provado que ao agente não restasse outra alternativa ante a presença da vítima, de tal modo que suprimir-lhe a vida fosse a solução única no momento, o desespero em que o mesmo agiu pode tornar menos censurável a sua opção, diminuição da culpa que haverá de reflectir-se dentro dos limites do homicídio simples, mas não permite concluir pela diminuição sensível da culpa exigida para o preenchimento dos elementos típicos do crime de homicídio privilegiado.
É também de chamar à colação pela clareza do texto e pelo debate doutrinal e jurisprudencial o acórdão do Colendo Supremo Tribunal de Justiça de 08/11/2023, relatado pela Juiz Conselheira Ana Barata Brito, no processo 808/21.3PCOER.L1.S a) A exigibilidade diminuída constitui o fundamento do tipo privilegiado previsto no artigo 133.º, do Código Penal comum a todas as situações aí previstas – «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» e «motivo de relevante valor social ou moral». b) A exigibilidade diminuída corresponde à «diminuição sensível da culpa» referida no artigo 133.º, do Código Penal. Uma vez que, para que possa estar em causa a prática por um agente do crime previsto no artigo 133.º, do Código Penal, este tem, previamente, que ser imputável (artigo 20.º, do Código Penal) e ter consciência da ilicitude (artigo 17.º, do Código Penal), a «diminuição sensível da culpa» tem de corresponder à sensibilidade que o homem normalmente fiel ao direito teria sentido ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão, no sentido de ter tolhido o normal cumprimento das suas intenções. A «diminuição sensível da culpa» tem, assim, de se fundar numa situação ao mesmo tempo endógena e exógena ao agente: endógena na medida em que tem de corresponder a uma emoção sentida pelo mesmo, e exógena no sentido de que tem de ter um suporte externo e objectivo para ser atendível. c) A «diminuição sensível da culpa» corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão. d) Tanto no que diz respeito à «compreensibilidade» da emoção violenta, como no que diz respeito à «diminuição sensível da culpa», é ao homem médio, colocado na situação do agente, que tem de se atender para se verificar da existência, no caso, das mesmas. (…) Contudo, como já se salientou, o privilegiamento do homicídio não ocorre automaticamente por ter sido praticado em estado de desespero, a lei não exige apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua sensivelmente a sua culpa. Clarifica Figueiredo Dias que «O efeito diminuidor da culpa ficar-se-á a dever ao reconhecimento de que, naquela situação (endógena e exógena), também o agente normalmente “fiel ao direito” (“conformado com a ordem jurídico penal”) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções».
Apura-se, no caso, que a relação entre a arguida e a vítima, seu filho, era conflituosa, tendo sido presentes por duas vezes queixas por parte da arguida pela prática do crime de violência doméstica, nos anos de 2021 e 2022.
No dia em questão, como já supra foi referido, é a arguida quem inicia a contenda, interpelando-o para que saísse imediatamente de casa, passando a manter uma postura agressiva ao partir pratos dentro de casa o que escalou para um confronto físico, que levou a que ambos caíssem no chão.
É neste contexto de agressões mútuas que leva a que a arguida desfira o primeiro golpe, e posteriormente os golpes posteriores. Como supra foi referido o primeiro dos golpes desferidos foi apto ao resultado final, embora posteriormente tenham sido desferidos outros golpes, uns mais superficiais outros nem tanto, e um outro que também por si era apto a causar a morte da vítima.
Embora do relato dos factos se constate que a arguida actuou com uma explosão de violência, mas a mesma é mais perceptível pelas características individuais da mesma, como o deficiente controlo comportamental que leva a manifestações de agressividade, do que da situação externa.
Não resulta provado que a arguida tenha agido numa situação de desespero, embora admitindo-se que a situação entre ambos tenha tido influência na mesma, nomeadamente com algum exacerbamento da sua situação de ansiedade e sintomatologia depressiva prévia.
Não resulta provado que não restava à arguida outra actuação ante a presença da vítima, pela descrição que é apresentada.
Mas ainda que se entendesse que a arguida agiu numa situação de desespero, mesmo assim se entende que a situação não poderia permitir concluir que essa diminuição da culpa fosse de tal maneira elevada que preenchesse os elementos típicos do crime de homicídio privilegiado.
Para o preenchimento deste crime tem de existir uma sensível diminuição da culpa decorrente de uma acção realizada numa situação de compreensível emoção violenta (…) ou desespero.
Ainda que exista uma situação externa de conflito, que a arguida inicia com o partir dos pratos, não se entende que a situação termine com a arguida a agredir a vítima com golpes de faca direccionados a matá-lo. A actuação da arguida não pretende ser defensiva antes manifesta uma vontade muito forte de que o filho morra, ao direccionar os golpes para locais que sabe que são susceptíveis de lhe tirar a vira, e continuando a sua acção até ter a certeza que iria conseguir o seu desejo, obstando mesmo à intervenção de terceiros.
Se as situações particulares das vítimas de violência doméstica nunca são de diminuir, atenda a sua situação de vitimização e o que tal situação determina em sede de construção do seu Eu, também não pode permitir justificar todas as suas reacções, tendo antes de mais de apurar o real contexto de cada situação. Independentemente de se ter de ter em atenção que uma vítima tem de ter o direito de se defender, tal não poderá ser um direito absoluto.
No dia em questão, é a arguida quem inicia a situação de violência que leva a que a mesma se veja no chão de sua casa com o filho numa contenda física mútua e que a fez agarrar numa faca. A vítima ainda questionou a arguida sobre o que iria fazer com a faca e é nesse momento a arguida lhe desferiu um golpe no tronco, na zona do externo.
Não se percebe que neste momento a arguida estivesse numa situação de “compreensível emoção violenta”.
Estaria sem dúvida numa situação emocional de despeito pela situação de estar num contexto de violência com o filho, mas não numa situação de desespero.
Esta situação, ainda que fosse pela arguida entendida como humilhante e que a tenha levado a uma situação de forte emoção, um estado de afecto, mas que o mesmo não tem qualquer ligação a qualquer anomalia psíquica nem a qualquer circunstância que não diminua consideravelmente a sua culpa na acção que decidiu tomar.
Ainda que se perceba que a arguida agiu de uma forma muito violenta, e que tal terá decorrido de uma situação emotiva, até pelo número de golpes que desfere no corpo do filho e da forma como os mesmos são realizados, não se percebe que a mesma tenha agido como um homem médio, colocado na sua situação, não teria tido o mesmo tipo de comportamento, razão pela qual se entende que não estamos perante uma situação de compreensível emoção violenta.
Toda a situação posterior de chamar as vizinhas, de querer confirmar se o filho estava efectivamente morto e desferir outros golpes no corpo do mesmo são mais compatíveis com uma descarga emocional violenta tendo a mesma noção da gravidade da sua actuação e das consequências futuras para si do seu comportamento, sendo que o problema teria de ser solucionado de uma forma definitiva.
Assim, entende o tribunal que não resultaram provados factos que permitam concluir pela existência de um conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão, no sentido de ter tolhido o normal cumprimento das suas intenções, pelo que não estamos perante uma situação de homicídio privilegiado.
Pelo contrário, os factos descritos dão uma imagem global de tanta violência e de tanto horror e da arguida que demonstra uma frieza e distanciamento afectivo, e tão profundamente distanciada do Direito que, necessariamente a sua culpa só encontra reflexo adequado nos parâmetros da especial censurabilidade e perversidade.
Não há qualquer dúvida que se mostra preenchida a qualificativa a que alude o artigo 132.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, já que a arguida era a mãe da vítima, e a mesma teve de superar “as contra-motivações éticas relacionadas com os laços básicos de parentesco” para conseguir levar a cabo a sua acção.”
Adere-se a toda a fundamentação expandida, pelos motivos que da mesma constam e ainda porque sobressai de todo o episódio clara predisposição da arguida para o seu desfecho final.
E ademais tal determinação solidifica-se e é levada a cabo sem qualquer abrandamento, pelo contrário, intensificando-se à medida que a acção se desenrola, suprimindo assim as circunstâncias que noutro contexto poderiam autorizar a obliteração da qualificativa em causa.
* Medida da pena.
Sobre esta questão discorre o acórdão recorrido como segue:
“O crime de homicídio qualificado corresponde a moldura penal abstracta de pena de prisão de 12 anos a 25 anos – artigo 132.º do Código Penal.
Posto isto, importa determinar a medida concreta da pena a aplicar à arguida, pena essa que é limitada pela sua culpa revelada nos factos (cf. artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal), e terá de se mostrar adequada a assegurar exigências de prevenção geral e especial, nos termos do disposto nos artigos 40.º, n.º 1, e 71.º, n.º 1, ambos do Código Penal, havendo que ponderar na determinação daquela medida, todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra a arguida, nomeadamente, as enumeradas no citado artigo 71.º, n.º 2.
Assim, há que ponderar:
- o grau de ilicitude dos factos e o modo de execução do mesmo, bem como a gravidade da conduta:
A arguida e a vítima tinham uma relação pautada por conflitos em que manifestamente se tinha perdido o respeito mútuo, sendo que no dia em questão a arguida inicia o confronto entre ela e o filho, sendo uma situação, dentro da gravidade de um crime qualificado, com uma ilicitude mediana, com uma intensidade muito relevante, já que após um primeiro momento a arguida continua com uma vontade fixa de tirar a vida ao filho.
Temos assim de concluir que a ilicitude da conduta da arguida é acima da média, com intensidade relevante.
- a intensidade do dolo – a arguida actuou com dolo directo, e a intensidade da mesmo é mediana.
- os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e os fins ou motivos determinantes:
Os factos resultaram manifestamente da falta de capacidade da arguida de controlar os seus impulsos e inabilidade de delinear estratégias alternativas ao comportamento violento, situação que não era a primeira vez, já que anteriormente tinha já usado de uma faca para reforçar a sua vontade, o que levou a que fosse condenada pela prática de um crime de ameaça.
- as condições pessoais do arguido, a sua situação económica e a conduta anterior e posterior aos factos:
A arguida tem o 4.º ano de escolaridade, vivia com a filha e ainda com a vítima e com a companheira deste. Mantinha um relacionamento com uma pessoa.
A arguida foi já condenada pela prática de dois crimes de ameaça agravada, por factos de 26/05/2021, ou seja, em data anterior aos factos, embora por decisão de 03/10/2023, ou seja, em momento posterior, no processo 316/21.2GASXL.
As necessidades de prevenção geral e especial são as mais relevantes sendo de referir que este tipo de crime (de homicídio) é dos que maior sensação de insegurança geral na população, por ser o crime por excelência.
Para além da gravidade intrínseca do acto que praticou, que determina na comunidade uma especial incredibilidade e uma necessidade de reafirmação da norma para o restabelecimento de uma ordem comunitária, até para que não exista o sentimento na comunidade que este tipo de comportamento é pouco grave, e por outro lado há também de prevenir futuros comportamentos da arguida que tem uma vida pouco estruturada e demonstrou com o seu comportamento que não interiorizou regras básicas de respeito pela vida alheia, tendo assim uma ténue noção dos limites.
Há também de referir que a arguida evidencia frieza e distanciamento afetivo, não expressando sentimentos de afeto, quando se refere à vítima, revelando, assim, existência de traços de personalidade de natureza antissocial, entre os quais se destaca a dificuldade conformar-se com regras e convenções sociais, a existência de um estilo de comunicação pautado por omissões e distorções da realidade, um deficiente controlo comportamental que leva a manifestações de agressividade, bem como uma postura de desresponsabilização ou de responsabilização externa do seu comportamento que reduzem a capacidade de aprender com as experiências de vida. Estas características pessoais da arguida são motivo de um acréscimo nas necessidades de prevenção especial.
Tendo em atenção todas as supra aludidas circunstâncias, mas igualmente que a arguida tem uma estrutura familiar, que nunca teve qualquer condenação em momento anterior aos presentes factos, e igualmente o facto de se pretender que a pena aplicada tenha um efeito de ressocialização que permita que a mesma mantenha capacidade de ao voltar à comunidade ser uma cidadã integrada, útil e com capacidade de retomar a sua vida, desta volta com comportamentos lícitos.”
A análise é identicamente judiciosa, quedando-se a pena concretamente encontrada um pouco abaixo do terço médio da moldura abstracta.
Apenas duas notas se impõem.
A ilicitude notada é ainda mais elevada pela utilização de instrumento letal que em muito forneceu a superioridade típica das armas.
De resto, apenas porque a arguida não trazia já consigo a faca que utilizou (destinada ao uso corrente de cozinha), não é aplicável a agravação prevista no nº 3 do artº 86º da Lei 5/2006 de 23.2 (Lei das Armas), mas esta é reveladora da significativa ilicitude acrescida pelo uso de semelhante instrumento.
Na verdade, dispõe o artº 4º do Dec.-Lei nº 48/95 de 15.3, que aprovou o Código Penal, que para efeitos deste “considera-se arma qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim.”
E arma branca nos termos do que dispõe a alínea m) do nº 1 do artº 2º daquela Lei das Armas, atendendo ao comprimento da lâmina.
Por outro lado, com pouca ou neutra expressão nesta sede porque a correspondente circunstância foi levada em conta na medida da ilicitude dos factos, a intensidade do dolo ultrapassa a mediania, posto que vai sempre em crescendo, nunca abrandando a respectiva determinação, logo, a culpa da arguida.
De fora está ainda qualquer possibilidade de atenuação especial da pena nos termos gerais do que dispõe o nº 1 do artº 72º do Código Penal, segundo o qual “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores... ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.”
Ainda que a vivência da arguida com a vítima não constitua factualidade neutra para o efeito da fixação da pena concreta, nomeadamente como considerável circunstância atenuante, que foi ponderada, em mais não pode influir do que para concorrer para conter naquele terço a pena aplicada, já que do total do quadro encontrado não atinge a intensidade necessária à redução acentuada da ilicitude ou da culpa exigidas pela lei.
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Consequentemente, improcede o recurso.
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Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UC.
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Lisboa, 19 de Dezembro de 2024
Manuel Advínculo Sequeira
Ester Pacheco dos Santos
João Grilo Amaral