RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ACÓRDÃO RECORRIDO
FUNDAMENTAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
CULPA
INCÊNDIO
ÁREA FLORESTAL
TRIBUNAL COLETIVO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I – Não é admissível recurso para o STJ de decisão da Relação sobre recurso de decisão interlocutória. O STJ só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1.ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (do tribunal do júri ou do tribunal coletivo) sejam diretos para o STJ e não quando tenham sido previamente objeto de decisão pelas Relações.
II - Estando em causa acórdão da Relação proferido em recurso, não é admissível recorrer para o STJ com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP.
III - Julgado, pela Relação, o recurso interposto da decisão proferida em 1.ª instância, o recorrente, inconformado com a decisão da 2.ª instância, já só esta pode impugnar e não (re)introduzir no recurso para o STJ a impugnação da decisão da 1.ª instância.
IV - A nulidade de sentença por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos (no sentido de simples opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respetivas posições) invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista: a falta de apreciação das primeiras consubstancia a verificação da nulidade; o não conhecimento dos segundos, será irrelevante. A omissão de pronúncia, geradora de nulidade da decisão, está em correspondência direta com o dever imposto ao juiz no sentido de o mesmo ter de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução (ou resposta) dada a outra, para além do conhecimento, que se impõe, de questões de que deva conhecer oficiosamente.
V - Sendo o STJ um tribunal de revista, compreende-se o entendimento, repetidamente afirmado na jurisprudência deste Tribunal, de que não resultando da decisão que o julgador ficou num estado de dúvida sobre os factos, e bem assim que «ultrapassou» essa dúvida dando-os por provados contra o arguido, ao STJ fica vedada a possibilidade de decidir sobre a violação do princípio «in dubio pro reo», dado o quadro dos respetivos poderes de cognição, restritos a matéria de direito.
VI - A atenuação especial ao abrigo do disposto no artigo 72.º só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar, como instrumento de segurança do sistema nas situações em que se verifique «um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo», ou «quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, seja pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena - vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas.
VII - As exigências preventivas gerais são muitíssimo elevadas: os incêndios florestais constituem um verdadeiro flagelo nacional, provocando danos muitas vezes irrecuperáveis na natureza e na vida das comunidades e causando grande insegurança e alarme social. Exige-se, pois, quando têm origem criminosa, uma resposta firme do sistema penal, na reafirmação da confiança da comunidade na efetiva proteção penal dos bens jurídicos tutelados.

Texto Integral

RECURSO n.º 127/16.7GCPTM.E3.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, n.º 127/16.7GCPTM, do Juízo Central Criminal de ... – ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, foi julgado e condenado o arguido AA, com os restantes sinais dos autos, pronunciado, após acusação do Ministério Público, sendo-lhe imputada a prática dos seguintes crimes:

- cinco crimes de incêndio florestal, p. e p. pelo artigo 274.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal; e

- um crime de incêndio florestal agravado, p. e p. pelos artigos 274.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea a), todos do Código Penal.

Em 1.ª instância, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de incêndio florestal qualificado, p. e p. pelo artigo 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 9 (nove) anos de prisão.

Mais foi decidido, quanto à responsabilidade civil,

«B) Condenar o demandado AA a pagar ao demandante Estado Português indemnização, por danos patrimoniais, no valor que vier a ser liquidado em sede de execução, até ao valor global máximo de € 2.457.762,21 (dois milhões, quatrocentos e cinquenta e sete mil, setecentos e sessenta e dois euros, e vinte e um cêntimos), e respectivos juros de mora contados, à taxa dos juros civis, desde a data de notificação do pedido cível; e

i) Desde já fixar, por conta da indemnização definitiva, a indemnização provisória parcial de € 71.297 (setenta e um mil, duzentos e noventa e sete euros), e juros de mora contados à mesma taxa desde a mesma data;

C) Condenar o demandado AA a pagar a importância de € 1.750 (mil, setecentos e cinquenta euros) ao demandante BB;

D) Condenar o demandado AA a pagar a importância de € 22.658,95 (vinte e dois mil, seiscentos e cinquenta e oito euros) ao demandante ..., e respectivos juros de mora contados, à taxa dos juros civis, desde a data de notificação do pedido cível;

E) Condenar o demandado AA a pagar a importância de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros) ao demandante CC.»

2. O mencionado arguido interpôs recursos para o Tribunal da Relação de Évora, de despachos interlocutórios e da decisão final (aqueles subiram com o recurso desta), tendo a Relação, por acórdão de ........2024, decidido:

« Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação:

I. NO QUE SE REFERE AOS RECURSOS INTERLOCUTÓRIOS:

1. Em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA do despacho proferido em ........2020 que determinou a cessação das diligências da secretaria para convocar a testemunha arrolada na contestação DD, por resultar dos autos a impossibilidade da notificação e ordenou o prosseguimento dos atos instrutórios em falta, mantendo-se o decidido;

2. Em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA do despacho proferido ........2020 que indeferiu ao abrigo do art. 340º nº 4 als. a) e b) do Código de Processo Penal o requerimento da defesa para que fosse oficiado ao ..., “no sentido de ser junta aos autos informação clínica relativa ao recluso AA, com indicação da patologia e medicação (com referência ao início e fim), com indicação do médico responsável, mantendo-se o decidido;

3. Em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA do despacho proferido ........2020 que indeferiu ao abrigo do art. 340º nº 4 als. c) do Código de Processo Penal o requerimento da defesa que solicitou a convocação da testemunha DD em nova morada na Alemanha, mantendo-se o decidido;

4. Em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA do despacho proferido ........2020 que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido com vista à declaração da perda da eficácia da prova produzida atento o disposto no artigo 328-A nº 3 do CPP, mantendo-se o decidido;

5. Em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA do despacho proferido em ........2021 na parte em que indeferiu o requerimento apresentado em ........2020 de arguição de nulidade correspondente à não inquirição da testemunha DD, mantendo-se o decidido;

6. Em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA do despacho proferido em ........2021 na parte em que indeferiu o requerimento apresentado em ........2019 de arguição de nulidade por ter sido a defesa impedida de colocar determinadas questões a uma testemunha por si arrolada, mantendo-se o decidido;

II. NO QUE SE REFERE AO RECURSO INTERPOSTO DA DECISÃO FINAL:

Em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, pelos fundamentos supra mencionados e, em consequência, em manter a decisão condenatória recorrida nos seus precisos termos.

(…).»

3. O arguido apresentou reclamação, invocando a nulidade do referido acórdão, por alegada omissão de pronúncia, tendo a Relação de Évora, por acórdão de ........2024, indeferido tal arguição.

4. Na sequência, o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem:

1-AA, arguido no âmbito do processo à margem devidamente identificado, vem, interpor recurso da decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, na sequência de condenação em primeira instância, na pena de nove anos de prisão.

2-Conforme se alegou em sede de recurso interposto para o Venerando Tribunal da Relação de Évora, num único julgamento identificamos a violação de:

-Direito a um julgamento imparcial e independente - artigo 6º, 1 da CEDH

-Direito às mais elementares garantias de defesa - artigo 32°, n°.1 da CRP; -

-Direito à igualdade de armas - artigo 32°, n°.1 da CRP e artigo 6º da CEDH

-Direito ao Contraditório - artigo 32°, n°. 5 da CRP;

-Direito a dispor do tempo e dos meios próprios para preparação da defesa - alínea b), 3, do artigo 6º do CEDH;

-Direito de apresentar prova em sua defesa e contestar a prova da acusação - artigo 6º, 1 e 3, alínea d) do CEDH;

-Direito à presunção de inocência - artigo 32°, n°. 2, da CRP e artigo 6º, 2 da CEDH

-Artigo 328-A do Código de Processo Penal

3-Tentaremos proceder à desmontagem de um erro tão grave que pode levar à prisão de um inocente. Erro grave que determinou aquilo que entendemos ser um discurso inseguro e renitente por parte do Ministério Público e um erro grave do Colectivo de Juízes que determinou a condenação em primeira instância e que deixou pouco espaço à interpretação acertada, o que resulta da leitura do douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora.

4-Nos presentes autos o ora Recorrente foi acusado da prática de sete crimes de incêndio florestal, sendo um deles agravado p. e p. pelos artigos 14.°, 26.°, 30.°, n.° 1 e 274.°, n.° 1 e n.° 2 al, a) todos do Código Penal. Recebida a acusação e inconformado o ora Recorrente deu entrada de requerimento de abertura de instrução. Declarada aberta a instrução, praticados os actos obrigatórios foi proferido despacho de pronúncia.

5-Na decisão proferida o aqui Recorrente foi também despronunciado pela prática de um crime de incêndio alicerçado nos factos vertidos nos artigos 4° a 8° da narração da acusação pública, atenta a verificação da nulidade prevista no artigo 120°, n°. 1, alínea d), a qual foi tempestivamente arguida - 120°, n°. 3, alínea c), ambos do Código de Processo Penal.

6-Determinada a ida a julgamento foi o arguido notificado do despacho de pronúncia. Iniciado o julgamento foram sendo sucessivamente interpostos recursos. O arguido requeria e o Tribunal indeferia.

7-Falamos, em síntese, na violação grave e séria de princípios consagrados na Lei Fundamental - artigo 18° 20°, 29°, n°s. 1 e 5, do artigo 32°, todos da CRP.

8-Falamos, também, na incorrecta interpretação ou violação do disposto nos artigos: 61°, 118. 120°, 122°, 160°, 315°, e 340° todos do Código de Processo Penal

9-Temos, então, o arguido, pronunciado pela prática, em autoria material e em concurso real, de seis crimes de incêndio florestal, sendo um deles agravado, p. e p. pelos artigos 14.°, 26.°, 30.°, n.° 1 e 274.°, n.° 1 e n.° 2 al, a) todos do Código Penal.

10-Mais, foi deduzido pedido de indemnização cível constante de 963 e seguintes pelo Ministério Público, em representação do Estado contra o arguido, peticionando o pagamento da quantia de € 2 457 762,21, acrescida dos juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento, o qual foi liminarmente admitido.

11-Foi, ainda, deduzido pedido de indemnização civil constante de fls. 1353 e seguintes pelo ... contra o arguido, peticionando o pagamento da quantia de € 22 658, 95, quantia a que deverão acrescer juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento, o qual foi liminarmente admitido.

12-Mais, foi deduzido pedido de indemnização constante de fls. 1395 por CC contra o arguido, aqui Recorrente, peticionando o pagamento da quantia de € 4 990,00 o qual foi liminarmente admitido.

13-Foi, ainda, deduzido pedido de indemnização cível constante de fls. 1214 e 1815 por BB contra o arguido, peticionando o pagamento da quantia de € 5 150,00, o qual foi liminarmente admitido.

14-O arguido apresentou contestação à pronúncia e, também, contestação aos pedidos de indemnização civil deduzidos pelo Ministério Público e por CC constantes de fls. 2033 a 2068, 2097 a 2104, 2106 a 2110.

15-Mais, arrolou testemunhas e requereu um conjunto de diligências de prova que entendia e entende ainda hoje relevantes para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa.

16-Com as dificuldades decorrentes de constantes violações foi realizado o julgamento do processo e foi proferido acórdão. É desse acórdão que não deixa de ser surpreendente que agora se recorre

17-Durante o julgamento o ora Recorrente foi dando conhecimento da sua discordância relativamente a algumas decisões que iam sendo proferidas. Dessas decisões interpôs recursos. Recursos esses que subiram com o recurso da decisão final. Recursos cuja necessidade de apreciação foi revalidada.

18-Esperava o Recorrente ver essa decisão apreciada de forma efectiva, o que não aconteceu, conforme adiante daremos conta. Com a postura assumida pelo Tribunal da Relação de Évora notório é que há efectiva omissão de pronúncia. Tal omissão configura nulidade, devendo esta ser declarada, baixando os autos para decisão.

19-Vejamos, então, o que se refere em relação aos recursos interlocutórios; a análise dos recursos interlocutórios apresentados pelo arguido inicia-se a fls. 93 do douto Acórdão objecto do presente recurso.

20-Afls. 1 do acórdão objecto do presente recurso são identificados 6 recursos intercalares. O Recorrente deu entrada de sete recursos intercalares. Falamos dos recursos com as referências:

-...

-...

.

21-Analisado o recurso apresentado pelo Recorrente e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora percebe-se que não foram analisados todos os recursos interlocutórios interpostos pelo arguido.

22-Fazemos referência às seguintes matérias:

-pedido de inquirição das testemunhas EE e FF - ao abrigo do disposto no artigo 340° do CPP - Pontos 113 a 115 das Conclusões de recurso;

-pedido de inquirição da testemunha GG - ao abrigo do disposto no artigo 340° do CPP - Ponto 116 das Conclusões de recurso.

23-Tal configura omissão de pronúncia. Omissão que determina a declaração de nulidade o que se vem arguir para todos os efeitos legais.

24-Outras questões também não mereceram resposta do Tribunal da Relação de Évora

a) Em sede de recurso o arguido invocou a violação do princípio do contraditório, atenta a documentação identificada no acórdão do tribunal de primeira instância, não analisada em sede de audiência de discussão e julgamento, e que serviram para fundamentar a matéria de facto dada como provada. Não foi assim sujeita ao contraditório. Não sendo, não poderiam servir de base à decisão proferida. Razão pela qual se pugna pela nulidade da decisão. Vicio que deverá ser declarado.

A posição assumida pelo Tribunal de primeira instância (não ser necessária a apreciação de documentos em sede de audiência de discussão e julgamento, podendo estes servir de fundamentação à decisão) configura violação do direito a uma defesa efectiva, sendo inconstitucional o entendimento por violação do disposto no artigo 32° da CRP.

A posição assumida pelo Tribunal da Relação de Évora que se consubstancia na omissão de pronúncia, configura nulidade. Vício que deve ser declarado.

b) Em sede de recurso o arguido invoca a violação do disposto no n°. 1, do artigo 29° da CRP - Juiz Natural A CRP consagra no seu artigo 32°, com destaque para o seu n°. 9, o princípio do Juiz Natural. O princípio constitucional do Juiz Natural implica que o Juiz não possa ser escolhido para determinado processo, nem desavocado do mesmo. Só podem intervir na causa todos os Juízes que tenham assistido a todos os actos praticados em audiência. Sobre a questão proposta nenhuma decisão foi proferida. Tal configura omissão de pronúncia. Omissão que determina a declaração de nulidade o que se vem arguir para todos os efeitos legais.

c) Em sede de ilações e conclusões de recurso o arguido disse que, nos presentes autos, foi colocado em crise o princípio da imediação prova. Sabendo-se que um dos Juízes não assistiu à produção de qualquer meio de prova, teremos matéria de facto a ser decidida por dois Juízes e um acórdão a ser proferido por dois Juízes.

A imediação da prova implica um contacto pessoal entre o Juiz e os diversos meios de prova, isto é, o princípio da imediação da prova, diz-nos que deve existir relação de contacto directo, real, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, com as coisas e documentos que servirão de base para fundamentar a decisão da matéria de facto pertinente para a resolução do litígio e uma valoração da prova expurgada de factores de falseamento e erro.

Sobre esta matéria não se pronunciou o Tribunal da Relação de Évora. A não pronúncia configura nulidade. Vicio que deve ser declarado com todas as consequências legais.

25 -Recursos interlocutórios que visam impugnar as decisões datadas de ........2020, ........2020 e ........2020. Da não inquirição da testemunha DD. Da premissa incorrecta

26-Relativamente à questão proposta o Tribunal da Relação de Évora parte de premissa errada - nunca houve notificação da testemunha DD. Não resulta do processo que se tenha sequer tentado a entrega da carta, razão pela qual não podemos nunca falar de notificação da testemunha.

27-Estes são os Factos:

-Não se procedeu à tentativa de notificação da testemunha DD desde a data da apresentação da contestação nos autos- .../.../1017. -A carta nunca chegou a sair dos correios de Angola.

-A testemunha não recebeu nenhum aviso de recepção e não se desviou da obrigação de depor. - a carta não saiu dos correios, por isso não há notificação.

28-Tudo ao invés do que consta do acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora-fls. 93 a 105.

29-O processo penal visa a descoberta da verdade material, sendo que a celeridade processual não pode colocar em crise a realização de justiça.

30-A testemunha foi indicada por quem tem legitimidade e foi apresentada em tempo. A testemunha tem conhecimento directo dos factos. Não foram indicadas sucessivas moradas estrangeiras.

31-Atentos os factos, notório é que foram desrespeitadas, as mais elementares garantias de defesa do arguido. Uma defesa efectiva e não uma defesa desvirtuada.

32-Da não inquirição da testemunha DD.

Da premissa incorrecta. Nesta situação o Venerando Tribunal da Relação de Évora também partiu de premissa errada. A tentativa de notificação da testemunha aconteceu em 2017.

33-O arguido tomou conhecimento de que a testemunha residiu em Angola até ..., após confirmar comunicou a alteração da morada da testemunha - requerimento que deu entrada via citius a ... de ... de 2020.

Tentativa de notificação - .../.../1017

(Tentativa de notificação, realidade, obviamente, diferente da notificação)

34-Também a disposição legal empregue para inviabilizar a inquirição da testemunha determina uma interpretação inconstitucional do disposto no artigo 340, n°. 4, alínea c) do Código de Processo Penal.

35-Ora, perante os factos (e são estes os factos não os que resultam da leitura do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora), tendo em atenção o objecto do processo e analisado o conhecimento da testemunha é notório que o despacho recorrido deve ser substituído por outro que respeite as mais elementares regras do processo penal. A diligência requerida é útil, necessária e relevante.

36-A decisão proferida colide entre o mais com o direito à produção de prova que é uma das componentes do direito de acesso aos tribunais (artigo 20°, n°. 1 da CRP e, bem assim, com as mais elementares garantias de defesa (artigo 32°, n°. 1 do CRP).

37-Princípios cuja relevância nada têm a ver com os princípios apresentados para defesa da tese proposta pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora -princípio da necessidade, princípio da adequação, princípio da concentração, princípio da celeridade e do princípio da continuidade da audiência - fls. 97, 98 e 100 do Acórdão objecto do presente recuso.

38-O arguido tem direito a uma defesa efectiva, tem direito à tutela jurisdicional efectiva. In casu não houve notificação de uma testemunha indicada em tempo e por quem tem legitimidade. O Tribunal não diligenciou nesse sentido, é nula a decisão. Nulidade essa prevista na alínea d), do n°. 2, do artigo 120° do CPP, com as consequências decorrentes do disposto no artigo 122° do mesmo diploma legal.

39-A interpretação proposta pelo Tribunal de primeira instância e Tribunal da Relação, relativamente ao artigo 315° do CPP é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 18°, 20°, 29° e 32°, n°s. 1 e 5 da CRP.

40-A interpretação proposta pelo Tribunal de primeira instância e pelo Tribunal da Relação, relativamente ao artigo 340° do CPP é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 18°, 20°, 29° e 32°, n°s. 1 e 5 da CRP.

41-Como pode o Tribunal entender que o depoimento de uma testemunha é irrelevante, supérfluo, inadequado, estéril e ou meramente dilatório quando a informação que tem no processo é a de que a testemunha presenciou os factos?!? Não pode.

42-Com o despacho recorrido mostram-se violadas, mal aplicadas ou incorrectamente interpretadas as seguintes disposições legais: -artigos 61°, 315°, 340° do CPP; -artigos 18°, 20°, 29° e 32° da CRP.

43-Foram, ainda violados ou mal interpretados os seguintes Princípios:

-Legalidade;

-contraditório;

-intervenção efectiva no processo;

-direito de acesso aos tribunais;

-tutela jurisdicional efectiva.

44-Tendo em atenção que estamos a falar de uma testemunha que foi arrolada em sede própria, que não foi notificada - primeira e única tentativa de envio de carta data de .../.../10/7- sendo que o julgamento se prolongou por dois anos é nula a decisão que determina a sua não inquirição.

45-Sabendo-se que a testemunha foi indicada em sede de contestação e admitida por despacho não estamos perante a previsão do artigo 340° do CPP, A má interpretação ou má aplicação iniciou-se no Tribunal de primeira instância e manteve-se no Tribunal da Relação de Évora.

46-Assim, o Recorrente apela à análise das questões propostas, em especial à premissa errada e a consequente decisão contrária à Lei, defendendo-se a declaração de nulidade de todas as decisões colocadas em crise, com as óbvias consequências legais.

47-Recurso Interlocutório: Da impugnação da decisão que indeferiu o requerimento para ser oficiado o ... para junção aos autos de informação clínica relativa ao arguido - Fls. 105 a 109 do Acórdão proferido

48-Em audiência de discussão e julgamento o arguido requereu a junção de relatório clínico do arguido. O Tribunal indeferiu o pedido. O arguido inconformado recorreu. O pedido foi efectuado ao abrigo do disposto no artigo 340° do CPP.

49-O indeferimento teve por base o momento e a relevância do pedido. Ora, assim não entende o Recorrente. Os elementos solicitados relevam não só para a determinação e conhecimento do quadro psicológico em que o arguido chegou ao Estabelecimento Prisional. É também relevante para a determinação da medida da pena.

50-É dever do Tribunal pugnar pela descoberta da verdade material. A celeridade não é razão para o indeferimento persistente dos pedidos efectuados pela defesa. A ideia da aceitação da justiça formal em função de eventual pedido após a apresentação da contestação é manifestamente contrária ao espírito do legislador.

51-Assim, entende o Recorrente que deve considerar-se procedente o recurso, com as necessárias consequências legais.

52-Recurso Interlocutório: Da impugnação da decisão que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido com vista à declaração de perda de eficácia da prova produzida atento o disposto no n°. 3, do artigo 328-A do CPP - Fls. 109 a 115 do Acórdão proferido

53-O ora Recorrente deu entrada de recurso interlocutório e manifestou a intenção de ver o mesmo ser apreciado no momento da decisão finai relativamente ao despacho que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido com vista à declaração de perda de eficácia da prova produzida atento o disposto no n°. 3, do artigo 328-A do CPP.

54-Apesar do alegado o Venerando Tribunal da Relação de Évora acabou por entender que a pretensão seria de indeferir. Assim não entende o aqui Recorrente.

55-O ora Recorrente deu entrada de requerimento - referência 36113146, datado de ... de ... de 2020. Por despacho com a referência ..., datado de ... de ... de 2020, veio o Tribunal de primeira instância decidir pelo indeferimento do requerido.

56-A questão é simples:

a)-o adiamento da audiência só é admissível (ressalvadas outras situações legalmente previstas) quando, não seja a simples interrupção bastante para remover o obstáculo - alíneas a) a d) do artigo 328-A do CPP – Continuidade da audiência.

b)-A interrupção e o adiamento dependem sempre de despacho fundamentado do Presidente, que 'é notificado a todos os sujeitos processuais - n°. 5, do artigo 328-A do supra citado diploma legal.

c)-O adiamento não pode exceder 30 dias, se não for possível retomar a audiência nesse prazo, perde eficácia a prova já produzida.

57-Nos autos não foi proferido qualquer despacho a dar cumprimento ao n°. 5, do artigo em referência, em consequência inexiste fundamentação para o decidido, inexiste também notificação aos sujeitos processuais. O adiamento excedeu largamente os 30 dias, em violação clara do n°. 6, do mesmo artigo e diploma legal. O invocado impedimento temporário a que antes poderíamos prestar atenção deixou de existir. - Acórdão STJ - fixação de jurisprudência n°. 11/2008, DR. 1ª Série, de 11.12.2008.

58-Ainda que se entenda que a situação dos autos consiste num impedimento objectivo temporário por parte do Tribunal, nos termos do n°. 6, do artigo 328° do CPP, a verdade é que, para que a prova ainda pudesse ser aproveitada logo que terminado o impedimento, em caso de incapacidade temporária, deveria a audiência ter sido retomada logo que tivesse cessado tal impedimento, com vista ao aproveitamento dos actos já praticados. Compulsados os autos verifica-se que tal não aconteceu. O Tribunal teve largos meses para retomar a audiência de discussão e julgamento e não fez.

59-É óbvia a desconformidade do despacho proferido com a Lei, note-se que nenhuma disposição legal aparece a sustentar a decisão plasmada na peça em referência. Assim, por incumprimento mostra-se violada a Lei. Não sendo tal violação cominada como nulidade, estamos perante uma irregularidade. Irregularidade essa invocada em tempo e por quem tem legitimidade.

60-Atenta a argumentação proposta necessário será concluir pela perda de eficácia da prova, com a baixa dos autos para os efeitos decorrentes de tal declaração, o que se requer, sob pena de desrespeito pelas mais elementares garantias de defesa - artigo 32°, n°. 1 da CRP.

61-Entendimento distinto colide com o disposto no artigo 328° do CPP. Colide, também, com o disposto no artigo 328-A do mesmo diploma legal. Colide, ainda, com as mais elementares garantias de defesa que o processo penal deve assegurar (n°. 1, art°. 32° CRP). Colide, também, com o princípio da continuidade da audiência e com o princípio da legalidade.

62-A interpretação proposta pelo Tribunal de primeira instância relativamente ao artigo 328-A do CPP é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32° da CRP.

63-Verifica-se inconstitucionalidade da norma do artigo 328°-A do CPP, com a interpretação do despacho proferido (se o agendamento é feito em 30 dias ainda que a continuação da produção da prova ocorra largos meses depois, a prova antes produzida não perde a sua eficácia) por violação do disposto no artigo 32° da CRP.

64-Recurso Interlocutório: Da impugnação da decisão que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido em 19.06.2019 de arguição de nulidade por a defesa ter sido impedida de colocar determinadas questões a uma testemunha por si arrolada - Fls. 115 a 120 do Acórdão proferido

65-O arguido indicou como testemunha HH - Inspector da .... No momento da sua inquirição a defesa foi interrompida e impedida de colocar questões à testemunha. Ora, tal configura claramente violação das mais elementares garantias de defesa. O arguido não é apenas sujeito de deveres. Tem direitos. Um desses direitos é defender-se.

66-Pretendia o aqui Recorrente perguntar à testemunha qual o percurso efectuado pelo arguido, actos praticados, meios empregues e análise das informações constantes do processo que descreviam a necessidade de recolha de prova adicional por parte da ....

67-As questões mostram-se, por essa razão, essenciais para a descoberta da verdade material, sendo que a impossibilidade de inquirir a testemunha configura violação do princípio do contraditório e configura, também, nulidade insanável prevista na alínea d), do n°. 2, do artigo 120° do CPP.

68-O despacho em referência viola ou faz uma incorrecta interpretação do disposto nos artigos 61°, 118°, 120°, 128°, 130° e 323° do CPP e, bem assim, o disposto nos artigos 18°, 20°, 29° e 32°, todos da CRP.

69-Assim, a violação do princípio do contraditório e a nulidade deverão ser declaradas, com todas as consequências legais.

70-Recurso Interlocutório: Da omissão de diligências reputadas pela Defesa como essenciais à descoberta da verdade material - Pontos 106 a 111 das conclusões de recurso - Fls. 122 e 123 do Acórdão proferido

71-Em sede de recurso interlocutório o ora Recorrente defendeu a tese de que se verifica nulidade nos termos do disposto na alínea d), do n°. 2, do artigo 120° do CPP, atenta a não realização de diligências requeridas em sede de contestação. Diligências essas que o arguido entende relevantes para a descoberta da verdade material. Falamos de ortofotomapas, relatório do ......

72-As diligências foram pedidas e a necessidade das mesmas foi justificada, porém, o Tribunal a tudo disse não.

73-Agora, em sede de decisão do Tribunal da Relação, entende-se que não foi tempestivamente arguida outra nulidade, pelo que deverá concluir-se pela improcedência do recurso também nessa parte.

74-Ora, mais uma vez o Tribunal de que ora se recorre parte de premissa errada - a nulidade foi invocada em sede de julgamento, ou seja, em tempo. Assim, mais uma vez, mal andou o Venerando Tribunal da Relação de Évora, devendo os Senhores Juízes Conselheiros corrigir a falta e considerar procedente o alegado, com a consequente declaração de nulidade.

75-Entende o aqui Recorrente que foi violado o disposto no n°. 2, do artigo 374° do CPP. O aqui Recorrente não consegue perceber, relativamente à factualidade dada como provada, a forma como os factos foram apurados, a sua fundamentação.

76-Não consegue o aqui Recorrente perceber o raciocínio lógico, as premissas e os fundamentos que determinaram a indicação destes factos na qualidade de factos provados. Não consegue alcançar, porque não foi indicado, o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.

77-Atento o já referido desconhecimento das razões de ciência, das provas, dos elementos essências para a formação da convicção do Tribunal, dos fundamentos e da análise crítica dos depoimentos, para além do mais sempre se dirá que se verifica, assim, clara violação do disposto no n°. 2, do artigo 374° do Código de Processo Penal. Violação essa que configura nulidade, por violação expressa das leis do processo, que aqui se invoca por tempestiva, com todas as consequências legais.

78-Apesar de o Recorrente fundamentar a sua discordância do Tribunal da Relação de Évora veio por acórdão decidir pela improcedência da alegação. A fls. 126 e 127 o Tribunal a quo vem dizer que o Tribunal de primeira instância esteve bem. Essa afirmação só por si não pode ser entendida como esclarecedora. Essa é uma afirmação que não se consubstancia em factos passíveis de serem entendidos pelo arguido e pela sociedade.

79-Entende o Recorrente que não basta ao Tribunal recorrido corroborar a posição assumida pelo Tribunal de primeira instância. Necessário será dizer porquê. Ora tal não se verifica. Por essa razão o aqui Recorrente pretende ver reavaliada a questão pelos Mm°s. Senhores Juízes Conselheiros.

80-Nos presentes autos o arguido, ora Recorrente respondeu a despacho onde se pretendia a alteração do Colectivo de Juízes que compunham o julgamento.

81-Em síntese disse:

a)-foram já realizadas diversas sessões de julgamento,

b)-foram inquiridas as testemunhas da acusação,

c)-foram já inquiridas as testemunhas apresentadas pela defesa.

d)-aguarda-se a análise de parte da prova documental junta quer pela defesa, quer pela acusação,

e)-é essencial a intervenção da Mmª. Senhora Juiz nas restantes sessões e, bem assim, na prolação de decisão.

82-Para além do mais, como decorre do despacho proferido:

a)- O impedimento verificado é temporário,

b)-A baixa médica não impossibilita a Mmª. Senhora Juiz de concluir o julgamento.

c)-A situação actual da Mmª. Senhora Juiz de Direito não obsta à conclusão do julgamento.

d)-A lei não estabelece qualquer limite temporal quanto à incapacidade invocada.

83-Falamos, obviamente, do princípio do Juiz Natural, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um Juiz ou Tribunal para decidir um caso submetido a juízo. Constitui direito fundamental dos cidadãos sendo, como já se disse, uma das garantias de processo penal consagradas na CRP, o direito a que o processo seja julgado por um tribunal definido como competente por lei anterior, sem possibilidade de afastamento de um qualquer Juiz.

84-Interpretação no sentido de que caso um Juiz que compõe o Colectivo se mostra impedido por tempo indeterminado não determina a anulação da prova já produzida e o reinício da audiência de julgamento é claramente inconstitucional, por violação expressa do princípio da legalidade, plasmado no n°. 1, do artigo 29° da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, por violação do princípio do Juiz Natural, previsto no n°. 9, do artigo 32° do supra citado diploma legal.

85-Apesar da posição assumida e de forma surpreendente o Mm.º Senhor Juiz de Direito por despacho datado de ... de ... de 2021, alterou o Colectivo que compunha o Tribunal. Inconformado o arguido, ora Recorrente interpôs recurso. Em sede de audiência, e em requerimento ditado para a acta o ora Recorrente manifestou-se contra a posição assumida, destacando, violação do disposto nos artigos 328-A do CPP e 32° da CRP. Incorrendo-se em nulidade insanável nos termos do disposto nos artigos 118° e 119°, com as consequências previstas no 122° todos do CPP. E, bem assim, com violação dos princípios da imediação da prova; plenitude de assistência dos Juízes; Legalidade e Juiz Natural.

86-A regra é a prevista no n°. 1 do artigo 328-A do CPP e as excepções resultam dos números 2 e 3 do identificado artigo. Ou seja, primeiro, temos que saber qual a impossibilidade existente, o que não resulta do processo depois temos que conhecer as circunstâncias que aconselham a substituição do Juiz impossibilitado e, por fim, temos que fundamentar a decisão.

87-Dos autos não resulta nem qual é a impossibilidade existente, nem qual é fundamentação passível de determinar que existem "circunstâncias" que "aconselhem a substituição do Juiz impossibilitado. Assim estamos perante uma nulidade insanável que deverá ser declarada.

88-Sobre a questão proposta (composição do Colectivo e demais questões indicadas no ponto anterior) deveria o Venerando Tribunal da Relação de Évora ter-se pronunciado, o que não aconteceu. Por essa razão verifica-se nulidade por omissão de pronúncia. Nulidade que deverá ser declarada baixando os autos para o Tribunal da Relação com indicação para se pronunciar.

89-Conforme melhor resulta do Acórdão a fls. 127 e seguintes o Tribunal da Relação de Évora decidiu considerar improcedente a impugnação da matéria de facto apresentada no recurso do arguido - fls. 146 do douto Acórdão.

90-Ora, o aqui Recorrente apresentou em sede de alegações e conclusões de recurso um conjunto de elementos que determinam, na sua perspectiva, a necessidade de carrear para a factualidade dada como não provada um conjunto de pontos indicados pelo Tribunal de Primeira Instância como factos provados, conforme melhor consta da motivação do presente recurso.

91-Ora, obviamente o Recorrente não está a pedir ao Supremo Tribunal de Justiça que avalie a matéria de facto. Bem conhece o Recorrente os poderes de cognição desse Tribunal, porém, não pode o arguido deixar de dizer que a análise efectuada pelo Tribunal da Relação de Évora defrauda a possibilidade de recorrer da matéria de facto, o que efectivamente é contrário à lei e viola de forma clara o disposto ao artigo 32° da CRP, mais contraria o direito ao recurso. É nessa medida que aqui avançamos com a matéria de facto dada como provada em sede de primeira instância.

92-Relativamente ao recurso da matéria de facto entende o Tribunal da Relação que o Recorrente se limitou a discordar da factualidade dada como assente. Ora, tal não corresponde à verdade. O arguido salientou relativamente aos pontos indicados a sua discordância e a razão da mesma (apreciemos de forma sintética):

A)-Facto 1-registo fotográfico recolhido do telemóvel do arguido e, também, do depoimento da testemunha II, Agente da PSP. (0:21 a 0.53 / 0.58 a 3.06 / 0.61 a 0.63 / 06:15 a 06:20 / 06:33 a 06:40).

B)Factos 2 - 3 - 7 a 13 - 16 a 22 - 24 e 25 - 27 a 31: A matéria não resulta de qualquer prova. Inexistem testemunhas, documentos ou perícia.

C)Facto 4 - Depoimento dos Agentes JJ e KK.

D)Facto 15 - Depoimento da testemunha LL.

E)Factos 23 - 32 - Não foi possível definir o trajecto / local de passagem.

F)Facto 26 - Não se consegue relacionar o arguido com tal factualidade.

G)Factos 34 a 37 - Depoimento da testemunha JJ contrariado pelos depoimentos das testemunhas II e KK - 9:42 a 9:48- 4:27 a 4:32

II - 9:43 a 9:55

JJ - 12:15 a 12:40

H)Factos 49 a 59

A resposta a estes factos é dada atenta a decisão relativa à factualidade constante dos pontos acima indicados.

93- O arguido não se limitou a discordar, invocou a razão da sua discordância e a prova em que a mesma se sustenta. O arguido cumpriu as regras e requisitos estabelecidos na lei, facultando ao tribunal de recurso a possibilidade de compreender o objecto e razão de ser da sua discordância (artigo 412° do CPP). O arguido identificou os pontos da matéria de facto que entendeu terem sido incorrectamente julgados, identificou as provas que impunham decisão distinta e que fundamentam uma diversa apreciação relativamente a tais factos.

94-Assim, mal andou o tribunal a quo ao entender que o Recorrente se limitou a discordar. O arguido salientou os depoimentos que revelam matéria bastante para o afastar do cometimento dos factos de que é pronunciado. 0 arguido sustentou que inexiste prova directa e que as ilações retiradas vão muito para além da decorrência do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127° do CPP).

94-Salvo o devido respeito quem se limita a concordar com o Tribunal a quo sem fundamentar as razões da sua concordância é o Tribunal Recorrido quando afirma, sem mais, que: "...analisada a prova produzida em audiência, os juízos dados como assentes apresentam-se plenamente legítimos, face ao conteúdo do princípio da livre apreciação da prova, sendo a versão dada como provada quanto aos segmentos impugnados plenamente plausível...". - fl. 146 do douto Acórdão.

95-Pelo exposto, relativamente aos factos 1 a 48 deverá ser ordenada a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Évora para apreciação efectiva das questões propostas. No que concerne aos factos 49 a 59 deverá ser declarada a nulidade do douto Acórdão por omissão de pronúncia, com todas as consequências legais.

96-No que concerne à verificação dos elementos objectivos e subjectivos do crime de incêndio florestal agravado imputado ao arguido, o Recorrente salienta que resulta dos autos que foi visto nas proximidades de um local onde se estava a iniciar um foco de incêndio, com pequena dimensão, chamas baixas e passíveis de ser apagadas pela intervenção de uma pessoa, o que se veio a verificar.

97-Dando de barato que o atear desse fogo pelo arguido não foi presenciado por ninguém, nem sequer pelas testemunhas mais próximas do arguido (Agentes JJ e KK), mas admitindo que fora este a fazê-lo, a verdade é que esse facto a ser dado como provado não preenche os elementos objectivos do tipo imputado -incêndio florestal agravado.

98-Por muito que se queira, a verdade é que o tipo legal previsto no artigo 274° do Código Penal não se preenche com um braseiro apagado peias botas da Senhora Militar KK. E é o que temos nos autos a Militar KK a apagar um pequeno braseiro que não viu ser ateado pelo arguido.

99-Não havendo forma de colocar o arguido a praticar os factos constantes da pronúncia (ninguém viu, ninguém disse ter visto, não há vigilâncias, não há relatórios, não há fotografias, não há imagens, não há documentos, não há perícias...), condenar é, apenas, aceitar especulações e convicções sem factos.

100-Nos presentes autos começamos com a presunção de culpa de onde partimos para as ilações que determinaram a condenação. Assim, necessário será defender a absolvição do arguido da prática do crime de que vem acusado, com todas as consequências legais.

101-Entende o Recorrente que foi violado do disposto no artigo 127° do CPP. Do que resulta da decisão proferida, entende o ora Recorrente que estamos no âmbito da íntima convicção do julgador e da necessidade de responder aos anseios da sociedade, encontrando um culpado atribuindo um castigo, independentemente da prova obtida. É óbvia a violação do 127° do Código de Processo Penal, o que deverá ser declarado com todas as consequências legais. Sobre esta matéria pretende o aqui Recorrente que o Supremo Tribunal se pronuncie.

102-Entende o Recorrente que foi violado o princípio in dúbio pro reo. Por não existir um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais deve o Tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto, isto porque o princípio em referência, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 32°, n°. 2,a parte, da CRP) comtempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao Juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos, caso em que o Tribunal deverá decidir pro reo.

103-Nos presentes autos conseguimos constatar a total inversão deste princípio, o arguido chega a julgamento com a presunção de culpa e depois tenta-se através de alegadas regras da experiência, misturadas com a razoabilidade e bom senso, criar uma narrativa que preencha a convicção de culpa inicial, apesar do percurso lógico ao nível do raciocínio seja o inverso, realidade que se pede a esse mui douto Tribunal que analise.

104-Entende o Recorrente que foi violado o disposto nos artigos 71° e 72° do Código Penal. Mesmo a entender-se como certa e verdadeira toda a factualidade exposta no aliás douto acórdão, o que apenas se admite a título académico necessário seria concluir que:

a)-A conduta do arguido anterior e posterior ao facto é irrepreensível;

b)-A evidente preparação do arguido para manter uma conduta licita;

c)-A notória integração social, com respeito pelos valores, regras e Direito.

d)-A inquestionável integração social do arguido.

105-Por força do disposto no n°. 1 e 2, alíneas c) e d) do artigo 72°, deveria a pena aplicada ter sido especialmente atenuada, o que in casu não se verificou.

106-O arguido discorda da pena aplicada (9 anos de prisão). Se os factos apurados são relevantes para a determinação da pena a aplicar a verdade é que para além deste episódio, existe um momento posterior e um momento anterior, ou seja, existe um indivíduo que o Tribunal também entendeu estar social e profissionalmente integrado - sobre a questão vejam-se pontos 54 a 77 da factualidade dada como assente.

107-O ora Recorrente não tem antecedentes criminais. Está em liberdade há largos anos (sem incidentes), continua a viver na companhia dos pais, mulher, filhos e netos. Continua a trabalhar, com contrato sem termo, na categoria de responsável de sala, num restaurante.

108-A pena é determinada em função da culpa. - artigo 71°, n°. 1, do Código de Processo Penal. Na determinação da pena devem, ainda, atender-se a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as referidas nas alíneas a) a f), do n°. 2, do artigo 71° do supra citado diploma legal.

109-Em face dos elementos salientados em sede de motivações a aplicação ao arguido de uma pena de nove anos é claramente a negação do princípio da culpa e a incorrecta avaliação da censura. Nove anos é claramente a negação dos fins das penas.

110-Tendo em atenção as circunstâncias descritas nos autos e, aceitando-as como verdadeiras (o que se faz por mero exercício académico), sempre seria de aplicar uma pena muito próxima dos limites mínimos suspensa na sua execução. O arguido admite a sujeição a vigilância electrónica. Entendimento distinto deixará cair por terra a ideia de prevenção especial e retirará conteúdo ao regime do fim das penas.

111-Entende o aqui Recorrente que foram violadas ou mal interpretadas as seguintes disposições legais: artigos 40°, 50°, 71°, 72°, 129° e n°s. 1 e 2, alínea a), do artigo 272° todos do CP - 61°, 71°, 118°, 119°, 120°, 122°, 123°, 315°, 328-A, 340°, 374° todos do CPP - 483°, n°.1, 499°, 564°, 566 e 805 todos do CC - 130° do CPP - 18o, 20°, 29° e 32° todos da CRP - 6o da CEDH

112-Mais violou os seguintes princípios, deveres e direitos: Princípio In dubio pro Réu / Princípio da Legalidade / Princípio do Contraditório / Garantias de defesa / Direito a uma defesa efectiva e plena / Direito a intervir no processo / Direito a ter um juiz que ouve as razões das partes / Direito a uma tutela jurisdicional efectiva

113-Assim, atenta a matéria constante dos autos e, ainda, toda a demais prova carreada, com especial relevo para a produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, entende o aqui Recorrente que deverá ser proferido acórdão que o absolva da prática do crime pelo qual foi condenado, fazendo-se, assim, Justiça!

114-Caso assim se não entenda, ao arrepio de tudo o supra exposto e da verdade material, deverá ser reavaliada a pena aplicada, avaliada a sua necessidade, limitando-a à culpa do agente, com aplicação de pena de prisão muito próxima dos seus limites mínimos, suspensa na sua execução.

Termos em que, sempre com o melhor e mais douto suprimento de Vªs. Exªs., deverão

a) ser declarados os vícios processuais identificados e, deverá

b) ser o presente recurso considerado procedente, com o que se fará o que efectivamente se deseja - Justiça!

5. O Ministério Público, junto da Relação, apresentou resposta no sentido de que o acórdão recorrido não violou qualquer norma jurídica, devendo ser mantido.

6. Neste Supremo Tribunal de Justiça (doravante, STJ), o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), emitiu parecer em que concluiu que o recurso deverá ser parcialmente rejeitado e, no mais, julgado improcedente.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do CPP, o recorrente respondeu ao parecer, reafirmando, no essencial, as suas razões.

Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência com a decisão impugnada, as questões que o recorrente suscita são as seguintes:

- decisão da Relação quanto aos recursos de despachos interlocutórios;

- vícios da decisão da Relação no conhecimento da impugnação da matéria de facto; omissão de pronúncia; violação do princípio in dubio e do artigo 127.º do CPP;

- subsunção jurídico-penal dos factos;

- determinação da pena.

2. Do acórdão recorrido

2.1. Foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):

da acusação / pronúncia

1. No dia 3 de Setembro de 2016, em hora não concretamente apurada, o arguido AA saiu de ..., localidade onde reside e trabalha, e conduzindo o seu veículo Volkswagen Polo, de cor cinza e com a matrícula ..-EQ-.., circulou pela ..., na localidade de ..., sita no Concelho de ..., pela ..., sito na ... e na ..., com o propósito concretizado de atear fogo ao mato e arvoredo aí existente e, em simultâneo, fotografou e filmou as paisagens envolventes com o seu telemóvel.

2. Nesse dia, serviços de previsão meteorológica previram um agravamento significativo das condições meteorológicas na região Sul do país, associadas ao tempo quente e seco e, consequentemente, dos índices de risco de incêndio, designadamente:

– Céu geralmente limpo, com temperaturas máximas entre os 32º e os 40º centigrados;

– Humidade relativa com valores inferiores a 30%;

– Vento fraco (inferior a 15km/h), soprando moderado (15 a 30km/h) do quadrante leste;

– Noites quentes e secas (temperatura mínima superior a 20ºC) e

– Índices de risco de incêndio a manterem-se muito elevados no ....

— Foco de incêndio B (...) —

3. Daí, o arguido AA prosseguiu a sua marcha na ..., durante cerca de 1km e, em hora não concretamente apurada, mas antes das 16h42m, imobilizou a viatura na berma da estrada no sentido ..., no terreno com as coordenadas 37º 12’ 20.83’’N e 8º 31’ 26.46’’W.

4. Munido de um isqueiro, o arguido ateou fogo à vegetação ali existente, tendo-se o fogo propagado no sentido ... e aproximado da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos, nomeadamente das zonas de aterros, apenas não as atingido devido à intervenção dos ....

5. Na sequência da conduta do arguido, ardeu uma área de terreno de pelo menos 5,38 ha, com árvores, pastos e estevas.

— Foco de incêndio C (...) —

6. Ainda no dia ... de ... de 2016, o arguido circulou na viatura ..-EQ-.., durante cerca de 12 km, pela ..., no sentido ascendente ..., dirigindo-se para a zona da ..., com as coordenadas 37º 17’ 08.32’’N e 8º 33’ 35.80’’W, sendo uma zona de arvoredo e de mato.

7. A dado momento, AA imobilizou a sua viatura numa valeta do lado direito da estrada e, utilizando o isqueiro, ateou novamente fogo a uns arbustos secos.

8. O antedito fogo subiu a encosta e atingiu o arvoredo existente nas imediações, seguindo para Norte e com um ligeiro desvio para Este, tendo aí queimado mato e sobreiros dispersos numa área de 0,27 ha.

9. Após a primeira extinção desse incêndio, verificaram-se reacendimentos, a ... de ... de 2016 pelas 12 horas, e a ... pelas 11h 25m, o que aumentou a área queimada para nordeste, mais concretamente de matos com sobreiros dispersos e pasto seco, numa área global de 0,326 ha.

— Foco de incêndio D – (...) —

10. De seguida, em hora não concretamente apurada, AA, que circulava na sua viatura pela ..., no ..., imobilizou a mesma junto à berma do lado direito, ao km 9,2 no sentido ascendente ..., onde, utilizando o dito isqueiro, ateou fogo à vegetação existente no terreno com as coordenadas 37º 18’30.65’’N 8º 34’ 50.28’’W.

11. Esse foco de incêndio teve início na base de uma pequena colina e, consequentemente, ardeu cerca de 6 a 8 metros quadrados de vegetação.

12. Nessa sequência, pessoas, cujas identidades não foi possível apurar, utilizando telhas, projectaram areia sobre o fogo, extinguindo-o.

— Foco de incêndio E (...) —

13. Ainda na ... apeou-se da sua viatura, no lado esquerdo da berma da estrada, sentido ascendente ..., desta feita, junto ao acesso ao ..., com as coordenadas 37º 18’27.55’’N e 8º 34’52.28’’W e, deslocando-se pelo lado direito da viatura, ateou fogo numa zona de mato rasteiro e silvado.

14. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, consumiu-se uma pequena faixa paralela à estrada e o incêndio não se propagou ao arvoredo, pois o vento soprava em direcção à faixa de rodagem.

15. Nessa altura, MM, residente em frente ao dito local, apercebeu-se das movimentações do arguido e da existência do foco de incêndio no seu início, que se tornou imediatamente perceptível com a saída da viatura de AA daquele sítio.

16. Em acto contínuo, MM alertou os vizinhos, que, em conjugação de esforços, procederam à extinção do incêndio.

— Foco de incêndio G (...)

17. Em hora não concretamente apurada, mas por volta das 17h08 (hora do alerta), na ..., a cerca de 1km da torre, numa zona de serventia do lado direito da estrada, no sentido ascendente ..., AA, utilizando mais uma vez o referido isqueiro, ateou fogo à vegetação seca aí depositada, junto a uma zona de mato e de grande arvoredo, nas proximidades de um eucaliptal, mais concretamente no terreno com as coordenadas 37º 18’ 56.91’’N e 8º 35’ 54.76W.

18. Esse incêndio assumiu grandes proporções, devido à elevada altitude e à maior intensidade do vento, mantendo-se fora do controlo dos ..., pese embora os esforços e os meios envolvidos, consumindo mato e floresta numa área total de 381 ha.

19. Esse foco de incêndio lavrou uma área 108 ha de eucaliptos, 40 ha de sobreiros, 3 ha de pinheiros mansos, 130 ha de matos, 80 ha de pastagens e outras formações vegetais espontâneas e 20ha de produção agrícola.

20. De igual modo, o antedito incêndio atingiu locais próximos de habitações e armazéns, obrigando à respectiva evacuação, relativamente aos residentes mais idosos.

21. Na sequência desse incêndio, no dia ... de ... de 2016, pelas 19h45m, foi dado o alerta de um reacendimento no ..., localizado na serra entre ... e o ....

22. Nesse momento a temperatura atmosférica era alta e fazia-se sentir vento do quadrante Norte muito forte.

23. Tal local do reacendimento, com as coordenadas 37º 17’52.44 N 8º 36’34.91 W, é uma zona fortemente inclinada a Sul, composta por mato rasteiro e eucaliptos, cujo acesso se faz por uma estrada de terra batida e, num primeiro momento, distante das habitações existentes nessa localidade.

24. Este incêndio progrediu para Sul, no sentido descendente do terreno e contornou diversas habitações, que não ficaram destruídas devido à pronta intervenção das ... e dos seus moradores, destruindo, no entanto, uma casa devoluta, situada junto à ..., localizada a cerca de 50 metros antes de se entrar na povoação dos ....

25. Na propriedade de NN, sita no Lugar de ..., em ..., o fogo destruiu o alpendre e parte da parede exterior da habitação, bem como uma casa de madeira implantada na zona do arvoredo, causando-lhe um prejuízo de pelo menos € 30.000.

26. A ... de ... de 2016, o incêndio progrediu para Sul e passou a lavrar no Concelho de ....

27. O meio de ignição deste incêndio foi provocado por vegetação que o fogo foi consumindo, dando origem ao reacendimento do foco de incêndio acima mencionado.

28. O reacendimento do incêndio lavrou em 1.317,4 ha de eucaliptos, 60,6 ha de sobreiros, 132,20 ha de pinhal e em 1.853,8 ha de mato adjacente, numa área de cerca de 3.364 ha.

29. Em consequência deste incêndio e do reacendimento, ardeu uma área total de 3.745 ha de floresta (1.818 ha no Concelho de ... e 1.927 ha no Concelho de ...) e foi necessário evacuar a localidade de ..., deslocando cinquenta e cinco pessoas residentes, e ainda diversos habitantes de casas dispersas na zona.

30. Foi, de igual modo, evacuado o ...”, sito junto ao ..., sendo deslocados os hóspedes e os funcionários.

31. Uma viatura da marca Audi modelo A4 ficou carbonizada na sequência desse incêndio.

— Foco de incêndio F (...) —

32. Voltando ao dia ... de ... de 2016, pelas 18 horas, na ..., o arguido AA imobilizou a sua viatura no lado esquerdo da berma da estrada, no sentido ascendente de ..., com as coordenadas ...

33. De seguida, utilizando o referido isqueiro azul, agachou-se e ateou fogo ao pasto ali existente, a cerca de um metro de distância da berma da estrada, nas proximidades de uma zona de eucaliptos.

34. De imediato, AA foi surpreendido por OO e pelos Militares da ..., JJ e KK, tendo esta apagado o fogo com as botas que trazia calçadas.

35. Nesse instante, o arguido AA tinha um isqueiro e possuía um cigarro já parcialmente consumido numa mão.

36. Perante o sucedido e ao ser questionado pelos presentes, o arguido, adoptando uma postura agitada, disse que tinha ido urinar e que não era pirómano.

37. Foi dada ordem de detenção a AA, que se acalmou e conformou com essa situação.

38. No combate aos referidos focos de incêndios estiveram envolvidos 1714 operacionais das ... e ..., 573 veículos, 53 meios aéreos.

39. O custo estimado do combate aos referidos incêndios cifrou-se no valor global de € 2.457.762,21 (dois milhões quatrocentos e cinquenta e sete mil setecentos e sessenta e dois euros, e vinte e um cêntimos), correspondente a:

– Custo com o empenhamento de meios aéreos: € 989.989,17;

– Custo com o empenhamento de meios terrestres: € 1.396.476,04 e

– Custos com a alimentação: € 71.297.

40. Os prejuízos da rede viária de ... cifram-se em € 127.183,10 (cento e vinte e sete mil, cento e oitenta e três euros e dez cêntimos) e as despesas relativas a trabalhos de limpeza e reparações no referido Concelho ascendem a €4.114,99 (quatro mil cento e catorze euros e noventa e nove cêntimos).

41. Verificou-se ainda a necessidade de abate de árvores que, em virtude dos referidos incêndios, encontravam-se em risco de queda: 59 sobreiros, 79 pinheiros, 13 ciprestes e 4 eucaliptos.

42. Os prejuízos agrícolas estimados nos ... e de ... foram os seguintes:

– as perdas em infra-estruturas: € 83.275,

– as culturas permanentes: € 366.021,

– os equipamentos: € 99.050,

– a morte de animais (enxames de abelhas): € 6.098,00,

– as necessidades de alimentação animal: € 7.995,

– e perdas de produção: € 58.800,

43. Tudo com o valor global de € 628.275,00 (seiscentos e vinte e oito mil e duzentos e setenta e cinco euros).

44. A necessidade de realizar intervenções de estabilização de emergência do incêndio florestal da ..., nos ... e de ..., com a recuperação de infra-estruturas afectadas, controlo de erosão, tratamento e protecção de encostas, prevenção da contaminação e assoreamento e recuperação de linhas de água, diminuição da perda da biodiversidade, implicará um custo global de € 1.309.320 (um milhão trezentos e nove mil e trezentos e vinte euros).

45. O arguido AA sabia que com as descritas condutas ateava estes incêndios, estando ciente de que os mesmos se haviam de propagar a conjuntos de árvores de maior ou menor extensão e concentração, nomeadamente a pinheiros, a eucaliptos, a sobreiros e a ciprestes, os quais não lhe pertenciam e seriam destruídos, em maior ou menor escala, pelos sete fogos que ateou em três Concelhos limítrofes e pelos reacendimentos verificados, dependendo do modo como fossem detectados e pudessem ser combatidos pelas ....

46. Factos com os quais aquele se conformou e, ainda assim, quis atear os referidos fogos, o que conseguiu.

47. O arguido sabia da existência de número elevado de árvores e de vegetação comburente, de habitações, de armazéns, de culturas permanentes e de animais, cujo valor e significado económico e patrimonial de cariz muito elevado conhecia, estando, igualmente, ciente de que criava o risco de propagação, de reacendimentos e a destruição desses bens.

48. Agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as referidas condutas são proibidas e punidas por lei.

dos pedidos cíveis e contestações

Pedido cível do Estado Português

49. O Estado Português suportou custos com o combate aos fogos causados pelo arguido em montante não concretamente apurado, mas pelo menos no valor dos € 71.297 mencionados no facto 39.

50. Com o combate aos fogos causados pelo arguido o Estado Português suportou seguramente custos superiores ao montante mencionado no facto anterior.

Pedido cível de BB

51. Na horta e produção florestal de BB, situada em ..., freguesia de ..., sítio da ..., virtude do fogo causado pelo arguido arderam:

– 150 metros de tubagem de rega, no valor de € 200

– um motor de rega, no valor de €300

– 35 limoeiros e laranjeiras, no valor de € 750

– 1,50 hectares de medronheiros em produção, no valor de pelo menos € 500.

Pedido cível do ...

52. O ... suportou custos com o combate aos referidos incêndios nos seguintes valores:

– Utilização de máquina de rasto privada no âmbito de acções de protecção civil, limpeza de caminhos e aceiros para extinção e rescaldo de incêndio no concelho de ..., contratada à sociedade ..., no montante total de € 2.054,10;

– Utilização de máquina de rasto privada no âmbito de acções de protecção civil para limpeza de caminhos e aceiros para extinção e rescaldo de incêndio no concelho de ..., contrato à sociedade ..., no montante de € 4.618;

– Utilização de máquina de rasto privada no âmbito de acções de protecção civil com vista à extinção de incêndios no concelho de ..., contratada à sociedade ... no montante de € 4.929;

– Utilização de camiões semi-reboque privados para transporte de rasto com vista à extinção de incêndios no concelho de ..., no montante de € 4.827,75;

– Trabalhos desenvolvidos por pessoal afecto aos serviços do Município e utilização de máquinas próprias no âmbito de acções de protecção civil com vista à extinção de incêndios no concelho de ..., no montante de € 6.230,10;

Pedido cível do CC

53. Em virtude do fogo causado pelo arguido arderam 22,6 hectares de terreno, onde havia eucaliptos, pertencente a CC, e que valiam pelo menos € 2.500.

Das contestações

54. O arguido é visto por familiares, amigos e colegas de trabalho, como um homem calmo e pacífico, sendo estimado por estes.

55. Antes de ter sido preso preventivamente à ordem dos autos o arguido nunca antes tinha estado preso.

56. Os colegas de trabalho e superiores vêm o arguido como um trabalhador assíduo e cumpridor.

57. Anos antes dos factos, em data não concretamente apurada, o arguido iniciou tratamento com buprenorfina, que manteve até data não concretamente apurada, mas pelo menos sensivelmente até à data dos factos.

58. O arguido era assíduo a comparecer nas consultas e tinha quanto a estas uma atitude cooperante.

59. Ao longo do tempo, e em mais que uma ocasião, o arguido padeceu de sintomatologia ansiosa e depressiva.

da audiência

60. O arguido AA é natural de ...; Aos 3 anos de idade veio com os pais para a sua actual zona de residência, onde decorreu todo o seu percurso de vida.

61. O arguido foi criado pela família natural, junto a um único irmão mais novo 3 anos.

62. O arguido frequentou regularmente a escola até concluir o 6.º ano.

63. O arguido abandonou a escola com 14 anos e começou a trabalhar na mesma unidade hoteleira que os seus pais, onde acabou por fazer certificação profissional em exercício.

*

64. O arguido iniciou hábitos aditivos sensivelmente aos 20 anos, com produtos estupefacientes e posteriormente álcool. Ainda assim não foram por causa disso comprometidas áreas como o trabalho, a gestão dos recursos económicos e as relações interpessoais em geral.

65. O arguido cedo procurou ajuda especializada que foi mantendo ao longo de mais de 20 anos, e se verificava à data da sua detenção, pela Equipa Técnica Especializada de Tratamento do ... sendo um utente regular e empenhado no seu processo terapêutico.

66. O arguido casou aos 20 anos com a actual esposa. O casal tem dois filhos e uma neta.

*

67. Em ... o arguido foi interveniente num acidente de viação que o obrigou a um período longo de recuperação e confronto com algumas sequelas físicas.

68. O retorno ao trabalho no ... foi marcado por sentimentos de menos-valia e convicções de despromoção.

69. À data dos factos o arguido residia com a família constituída em espaço habitacional independente, integrante de uma moradia partilhada com a família de origem do arguido, situada numa das zonas limítrofes de PP.

70. À data dos factos o arguido exercia funções de barman efectivo na ..., onde a esposa também trabalhava como recepcionista.

71. O arguido esteve em prisão preventiva à ordem dos presentes autos desde .../.../2016 até ..., ocasião em que foi libertado e voltou a integrar o seu agregado familiar.

72. Após a sua colocação em liberdade, retomou actividade profissional como empregado de mesa num restaurante, na situação de contratado, por seis meses, com um salário de aproximadamente € 750. A sua filha trabalha na mesma empresa.

73. Durante o período em que esteve preso o arguido contou com apoio terapêutico, mantendo acompanhamento à problemática aditiva. O arguido não retomou o acompanhamento após a sua colocação em liberdade, por o considerar desnecessário, tendo-se mantido abstinente.

74. Após a saída do estabelecimento prisional o arguido recorreu a apoio psiquiátrico, que cessou por o considerar desnecessário.

*

75. O agregado familiar de base do arguido é constituído pelo arguido, esposa, e um filho.

76. A situação económica do agregado familiar do arguido é adequada às necessidades básicas, ainda que prejudicada pelo período de detenção do arguido e consequente contracção de dívidas, nomeadamente relativas às despesas com o processo penal.

*

77. O arguido não regista antecedentes criminais.

2.2. Foram dados como não provados os seguintes factos:

a. Que no reacendimento do foco G o fogo formou um círculo aberto voltado a Norte, e que a terça-feira anterior a esse reacendimento foi o dia mais quente do ano.

b. O prejuízo de NN ascendeu a € 76.000,00 (setenta e seis mil euros).

c. Quais os custos de transporte e realojamento dos hóspedes do ...”

d. Que no desenrolar dos eventos do foco F o arguido AA, se dirigiu à porta do condutor da sua viatura, pegou em duas garrafas de água praticamente vazias, e simulou pretender, desse modo, apagar o fogo, que tinha ateado.

e. Que, sem prejuízo do que se provou, incorporaram o combate aos focos de incêndios especificamente 10 Grupos de Reforço, constituídos por 30 ... e 9 veículos provenientes dos Agrupamentos Distritais de Operações de Socorro do Sul, Centro-Sul e Centro-Norte, 15 máquinas de rastos (entre estas, 9 pertencem a particulares), 216 Militares, 5 helicópteros bombardeiros, 2 aviões médios e 3 aviões bombardeiros pesados de combate a incêndios.

f. O arguido teve problemas com o veículo que conduzia; Dias antes dos factos, sensivelmente um mês, levou o carro à oficina e na sequência dessa deslocação, face a problemas no motor do veículo, foi-lhe aconselhada a compra de Redex – Aditivo Diesel por um mecânico automóvel.

g. O Redex – Aditivo Diesel não é acelerante da combustão.

h. O isqueiro que o arguido trazia no dia dos factos tinha no momento da sua apreensão mais de metade de gás e que não tinha quaisquer sinais de ter sido utilizado de forma intensa.

i. No dia em que os incêndios ocorreram foram encontrados na serra aquilo a que se convencionou chamar de “artefacto incendiário” que não era mais do que um “pequeno paraquedas com um pacote preso e tudo indica que será um artefacto incendiário que chegou a deflagrar”.

j. O objecto em referência foi entregue ao Presidente da Câmara Municipal de ..., que disse ter entregue às autoridades.

k. O artefacto em referência foi entregue pelo proprietário de um terreno localizado na ... às autoridades.

l. Este artefacto não foi o único a ser visto a cair no local e dia dos incêndios.

m. À data dos factos o arguido apresentava um quadro depressivo, com níveis elevados de ansiedade e paranóia, condição psicológica que é de molde a impedir de entender o significado e alcance e/ou resultado do acto de atear fogo.

2.3. Na fundamentação da decisão de facto consta o seguinte (transcrição parcial, sem notas de rodapé):

«Para formação da convicção quanto aos factos provados, o Tribunal baseou-se na apreciação crítica de toda a prova produzida ponderada à luz das regras da experiência comum. Os meios de prova pesados, com relevância para a decisão da causa, foram, designadamente:

Declarações

• Do arguido, prestadas em 1º interrogatório judicial,

• Do arguido, prestadas na fase da instrução;

Depoimentos

• JJ,

• KK,

• II,

• MM,

• NN,

• QQ,

• RR,

• SS,

• TT,

• UU,

• VV,

• WW,

• XX,

• YY,

• ZZ

• OO,

• AAA,

• BBB;

• CCC,

• DDD,

• EEE,

• FFF,

• GGG,

• HHH,

• III,

• JJJ,

• KKK,

• LLL,

• MMM,

• NNN,

• OOO,

• PPP,

• QQQ,

• HH,

• RRR,

• SSS,

• TTT,

• UUU,

• VVV,

• EE;

• GG (que usou de prerrogativa de depor por escrito, fls. 3584 e 3627);

Documentos

Comunicado Técnico-Operacional Municipal de fls. 32-34;

Fichas de determinação das causas de incêndio e respectivos relatórios fotográficos, mapas e cartas topográficas, de fls. 9-13 do Apenso (F) e 215/254 (com cópias a fls. 380/419) do Núcleo de Protecção Ambiental da Guarda Nacional Republicana de...;

• Relatório de exame ao local de fls. 45/80 do ...;

• Relatório de exame ao local de fls. 421/440 do ...;

• Autos de apreensão de fls. 25, 106-107, 112;

• Auto (informação de serviço) de fls. 35-44;

• Auto (informação de serviço) de fls. 178-180;

• Auto de leitura de elementos de telemóvel de fls. 81-87;

• Inventário (levantamento dos prejuízos na rede viária de ...) de fls. 353-355;

• Informação do Gabinete de Protecção Civil e Florestas do Município de ... de fls. 356 a 357.

• Reportagem fotográfica (de .../.../2016) e imagens de apoio do Gabinete de Perícia Criminalística da Polícia Judiciária de fls. 456-473;

Informação da Direcção Regional de Agricultura e Pescas ... de fls. 532;

• Relatório elaborado pela Direcção Regional de Agricultura e Pescas do ... de fls. 533-536;

• Informação da operadora de comunicações Vodafone de fls. 543-546 e 611-617;

Relatório de Estabilização de Emergência do Incêndio Florestal da... do ..., de fls. 548-556;

• Relatório (ocorrência: ...) elaborado pela ... de fls. 756-805;

Tabela de fls. 808-810;

• Facturas de fls. 814-819;

• Orçamento de fls. 837,

• Auto de exame e avaliação de fls. 868-871;

• Anexo C (fichas de recolha);

• Anexo D (custos de combate aos incêndios);

• Informação, anexo, requisições, notas de encomenda, facturas e restantes documentos do Município de... de fls. 1358 a 1389,

• Parte de página de uma edição do jornal ... de fls. 3289 (cópia a fls. 3391),

• Parte de página do site da ... de fls. 3290 (cópia, já integral, a fls. 3392),

• Parte de página de uma edição do jornal ... de fls. 3293 (cópia a fls. 3393),

• Factura de fls. 3304 (cópia a fls. 3394),

• Informação clínica de fls. 3660,

• Relatório social de fls. 3513, e actualização de fls. 3993,

• Certificado de registo criminal do arguido;

Perícia

• Relatório pericial de 442-444.

* * *

Num retrato preliminar do acervo probatório pesado pelo Tribunal, assinalamos que a documentação dos autos serviu essencialmente para ajudar o Tribunal a formar convicção quanto aos pontos essenciais da causa desenhada na acusação / pronúncia, e nos consequentes pedidos cíveis.

Quanto aos eventos centrais da causa —causação dos fogos na ..., suas características e danos— importaram, ainda que com relevâncias muito diferentes, os testemunhos de JJ, KK, II, MM, OO, NN, QQ, RR, SS, TT, UU, VV, WW, XX, YY, AAA, BBB; VVV, EE, e GG.

CCC, DDD, ZZ, EEE, FFF, GGG, HHH, III, JJJ, KKK, LLL, MMM, NNN, OOO, PPP, QQQ, SSS, TTT, UUU, depuseram essencialmente sobre matéria tangencial às questões mais substantivas da causa criminal (sobre os depoimentos das duas primeiras quanto a tais questões ainda nos deteremos, todavia, infra) e, no essencial, quanto às condições de vida do arguido e seu comportamento pretérito.

A valia instrutória dos testemunhos de HH e RRR foi extremamente limitada.

* * *

As provas foram unânimes quanto a praticamente todos os factos sobre que versa a presente decisão, não se tendo suscitado, nas provas produzidas, qualquer polémica instrutória de relevo sobre os factos centrais da causa — sem prejuízo dos pontos que assinalaremos infra.

Ou seja, numa resenha sintética prévia, as provas foram perfeitamente concludentes tanto quanto à causação dos incêndios, como às suas características e dinâmicas (pontos de ignição, duração temporal, áreas e locais ardidos, etc.), como ainda quanto à autoria dos fogos.

Vejamos, em concreto.

* * *

Recorde-se: sub iudice estão seis focos de incêndio que deflagraram a ... de ... de 2016 na zona da .... Os fogos, de tamanhos e consequências muito distintos, surgiram todos no período da tarde desse dia (depois das 16 horas), e deflagraram num perímetro de, sensivelmente, 13 km — os mais distantes entre si foram os focos B (...) e G (perto da torre da WWW, muito próximo do topo da serra).

No que concerne à existência fogos deflagrados a ... de ... de 2016 que são objecto da causa, e bem assim às suas características, a prova foi abundante no sentido de sustentar a factualidade levada à matéria apurada.

Para mais fácil situação dos pontos relevantes na ponderação que a seguir se fará convocamos aqui o documento de fls. 47 que ilustra os pontos onde, sensivelmente, começou cada fogo.

(…)

Os meios de prova onde assentámos convicção sobre as características dos fogos foram essencialmente documentais, complementados estes pelos testemunhos ouvidos (que referiremos oportunamente).

Designadamente, quanto a estes pontos da matéria de facto, assumiram maior relevo:

O relatório de exame ao local da de fls. 45/80 do ...;

As fichas de determinação das causas de incêndio elaboradas pelo Núcleo de Protecção Ambiental da Guarda Nacional Republicana de...de fls. de fls. 9-13 do Apenso (F) e fls. 215/254 (e fls. 380/419),

O relatório de exame ao local da de fls. 421 do ...;

O Comunicado Técnico-Operacional Municipal de fls. 32-34;

Os autos (informação de serviço) de fls. 35-44 e 178-180;

O inventário (levantamento dos prejuízos na rede viária de ...) de fls. 353-373;

A informação e relatório da ... de fls. 532/536;

O relatório de Estabilização de Emergência do Incêndio Florestal da ... do ..., de fls. 548-556;

O relatório da ocorrência: ... da ... de fls. 756-805;

*

Assinale-se previamente que, no que respeita ao teor dos documentos valorados nenhuma dúvida se suscitou sobre a sua origem ou genuinidade, nem quanto à boa fé ou rigor com que foi incorporada a informação deles constante.

Sublinhe-se que a larga maioria da documentação mencionada tem toda origem em entidades públicas que nenhum interesse têm no concreto desfecho da causa, nem motivo para quererem prejudicar o arguido.

Bem assim, quanto à prova pericial, não se suscitou qualquer motivo para duvidar das conclusões dos peritos.

*

Da concatenação dos referidos meios de prova extrai-se quanto aos focos de incêndio, os respectivos pontos de ignição, a duração temporal do fogo, os meios como foram extintos, a configuração das áreas ardidas, os locais e bens destruídos, levados à matéria provada.

Os referidos meios de prova documentam o muito diferente impacto dos vários fogos: Quatro dos focos C (...), D (...), E (sítio do ...) e F (...) não passaram de pequenos fogos, tendo ardido áreas de, no máximo, poucos metros, e que se extinguiram sem consequências de maior (sendo o menor destes todos o foco F);

O foco B (...) assumiu proporções maiores que os anteriores, tendo consumido vários hectares de terreno;

O foco G (torre da ...) assumiu proporções catastróficas, tendo lavrado durante vários dias e consumido milhares de hectares de terreno.

*

Quanto às características de cada um destes focos os factos levados à matéria provada assentam pois, para além do restante acervo probatório, especificadamente,

Quanto ao foco B (...):

No auto de fls. 35-44 (em particular fls. 35/36), no que toca à hora, local da ignição;

No relatório de exame (Gabinete de Perícia Criminalística da Polícia Judiciária) de fls. 45/80 (em particular fls. 48, 53, 54), no que concerne ao ponto de ignição, perímetro ardido;

Nas fichas de determinação das causas de incêndio elaboradas pelo Núcleo de Protecção Ambiental da Guarda Nacional Republicana de ... de fls. de fls. 9-13 do Apenso (F) e fls. 215/254 (cópias a fls. 380/419), (em particular fls. 390 e seguintes), quanto a ponto de ignição, área ardida, vegetação existente;

Quanto ao foco C (...):

No auto de fls. 35-44 (em particular fls. 36/37), no que toca ao local da ignição, direcção de progressão, reacendimento;

No relatório de exame (...) de fls. 45/80 (em particular fls. 55 a 59), no que concerne ao ponto de ignição, perímetro ardido, forma inicial de progressão;

Nas fichas de determinação das causas de incêndio, e respectivos relatórios fotográficos, mapas e cartas topográficas, de fls. 9-13 do Apenso e fls. 215/254 (cópias a fls. 380/419), (em particular fls. 390 e seguintes, 396 a 398) quanto ao total de área ardida, reacendimentos, vegetação existente, ponto de ignição;

Quanto ao foco D (...):

No auto de fls. 35-44 (em particular fls. 37), no que toca ao local da ignição, circunscrição espacial, e forma de extinção;

No relatório de exame (...) de fls. 45/80 (em particular fls. 60 a 65), no que concerne ao ponto de ignição, ao pequeno perímetro ardido, e aos meios para extinção (visíveis, por exemplo, a fls. 62);

Quanto ao foco E (sítio do ...):

No auto de fls. 35-44 (em particular fls. 38), no que toca ao local da ignição e suas características, circunscrição espacial, e forma de extinção;

No relatório de exame (...) de fls. 45/80 (em particular fls. 60/61, 65 a 68), no que concerne ao ponto de ignição, perímetro ardido;

Quanto ao foco G (torre da ...):

No auto de fls. 35-44 (em particular fls. 38/40) — no que toca ao local da ignição, e, genericamente, forças mobilizadas para o combate;

No relatório de exame (...) de fls. 45/80 (em particular fls. 60/61, segunda foto de fls. 74, 75 a 79) — no que concerne ao ponto de ignição (fls. 77/78, em especial), parte do perímetro ardido, e cenário visível em vários pontos do percurso do fogo;

No auto de fls. 178-180 — quanto ao estado geral dos e condições climatéricas nos pontos aí indicados;

No inventário de fls. 353-373 — quanto a danos;

Nas fichas de determinação das causas de incêndio, e respectivos relatórios fotográficos, mapas e cartas topográficas, de fls. 9-13 do Apenso e fls. 215/254 (cópias a fls. 380/419), (em particular fls. 399 a 407, 408 a 419) — quanto à hora e local da ignição, vegetação existente, perímetro da área ardida; local (e hora aproximada) do reacendimento, e seus sinais (restos de vegetação carbonizados, transição com vegetação verde, depósito de cinzas quentes e frias, fumarolas activas, vento forte de Norte), perímetro subsequentemente ardido (incluindo a vegetação aí existente);

No relatório de exame (...) de fls. 421/440 — quanto ao local e hora do reacendimento, suas causas e sinais, e a sua progressão no terreno;

Na reportagem fotográfica (.../.../2016, ...) e imagens de apoio do de fls. 456-473 — quanto ao estado de vários locais ardidos, zonas de progressão do fogo;

No relatório de Estabilização de Emergência do Incêndio Florestal da ... (... 548-556 — quanto ao perímetro da área ardida, e espécies vegetais existentes;

No relatório da Autoridade Nacional de Protecção Civil (Ocorrência: ...) de fls. 756-805 — quanto aos meios envolvidos no combate ao incêndio e o concreto desenrolar deste combate;

Quanto ao foco F (...):

No auto de fls. 35-44 (em particular fls. 38), no que toca ao local da ignição e limitada circunscrição espacial;

No relatório de exame (...) de fls. 45/80 (em particular fls. 60/61,69 a 73) no que concerne ao ponto e hora de ignição, pequeno perímetro ardido.

*

Assinale-se que estes meios de prova não permitiram ao Tribunal formar conclusão definitiva sobre a ordem de eclosão de todos os focos de incêndio. Todavia, a análise dos documentos (mormente onde nos mesmos se documentam os momentos dos alertas e respostas) permite perceber com muito elevado grau de certeza que, de entre os fogos sub iudice, o foco B (...) foi o primeiro a acender, e o foco C (...) foi o segundo, tendo todos os demais focos eclodido depois destes dois primeiros. Com hora sensível de ignição respiga-se depois na prova o foco G (torre da ...), sendo o último foco a acender o F (...), local onde o arguido foi detido. Cada um dos focos D (...) e E (sítio do ...) pode ter eclodido antes do foco G (torre da ...) ou depois dele, mas ambos deflagraram antes do (último de todos) foco F.

*

Assinale-se, ainda, que a documentação pesada esclarece que a ignição de todos os fogos ocorreu junto à berma da estrada asfaltada que liga aqueles pontos de início, com troços pertencentes à EN ... (que chega a ..., vindo da direcção de ...), EN ... (a partir de ... até ...), e ... (...), sempre em zonas em que é possível estacionar um veículo com segurança, sem embaraço para o trânsito, em ponto imediatamente adjacente.

*

No que concerne ao foco G (torre da ...), as provas produzidas deixaram claro que o mesmo lavrou durante vários dias em virtude de um reacendimento ocorrido após uma extinção inicial das chamas primitivas.

Quanto a este ponto específico da matéria de facto importa primordialmente a seguinte documentação:

O auto de fls. 178-180,

As fichas de determinação das causas de incêndio (e relatórios fotográficos, mapas e cartas topográficas) de fls. 399 a 407, e 408 a 419,

O relatório de exame (...) de fls. 421/440,

O relatório de Estabilização de Emergência do Incêndio Florestal ... (... 548-556,

O relatório da Autoridade Nacional de Protecção Civil (Ocorrência: ...) de fls. 756-805.

Quanto à questão não restaram quaisquer dúvidas ao Tribunal, sendo os meios de prova, neste sentido, absolutamente concludentes.

As provas deixam, relativamente ao assunto, um quadro prévio muito claro. No dia do reacendimento (sensivelmente pela hora de jantar do dia 7 de Setembro) do fogo primitivo tínhamos na ...: muita matéria vegetal previamente ardida nos dias anteriores, aquecida pelo fogo primitivo, e altas temperaturas atmosféricas.

Ora, a reignição ocorreu, precisamente, num local imediatamente adjacente, a Sul, ao limite onde o fogo havia chegado anteriormente (fls. 409, 410, 424, 429 e seguintes), e que estava sob vigilância das forças de combate (fls. 779, 780, testemunho de AAA), e ocorreu, de forma causalmente adequada de acordo com as regras da experiência (que se alinha com a análise do ..., e com o que reportou a testemunha AAA ser a sua percepção in loco), precisamente na sequência de uma agravação pronunciada do vento (sopro de rajadas, vindas de Norte, a rondar os 80 km/h a partir do final de dia 7 de Setembro; cfr. fls. 179, 244, 424; testemunho de AAA), evidentemente propiciadora de um reacendimento naquela direcção.

Assinale-se ainda, para que não possa restar dúvida: as condições físicas da serra na sequência das chamas eram tão propícias a reacendimentos que a policia literalmente presenciou (e documentou fotograficamente) um pequeno reacendimento espontâneo naquela zona no dia 8 de Setembro, como se respiga a fls. 424 e 431.

Ante o acervo probatório, uma única conclusão razoável se impõe: o foco G (torre da ...) acendeu-se dia 3 de Setembro, e ressurgiu, depois de dormir alguns dias, com uma violência inaudita, lavrando serra abaixo.

*

Assinale-se também: no que toca às evacuações de casas e outros edifícios (localidade de ... e um hotel na zona do autódromo de ...), para além da supra mencionada documentação dos autos, firmámos ainda convicção nos relatos de QQ, UU, WW, YY, e AAA.

* * *

As provas tiveram ainda um único sentido quanto à autoria dos factos pertencer ao arguido. Sublinhe-se: as provas foram mais do que suficientes para por duas vias distintas demonstrarem ser o arguido quem pôs fogo em todos os focos sub iudice, vias independentes que, mesmo tomadas em singelo e autonomamente uma da outra, incontroversamente levam à conclusão ser o arguido o autor dos fogos.

* * *

A primeira destas vias assenta na ponderação de toda a prova relevante exterior à confissão do arguido em sede de primeiro interrogatório judicial; Em síntese, decorre da valoração das provas onde antes assentaram as conclusões anteriores do Tribunal sobre os pontos de ignição e dinâmica dos fogos, conjugadas com:

Os testemunhos de JJ, KK, OO, II, e MM;

Autos de apreensão de .../.../2016 de fls. 25 (telemóvel Sony) e 112 (automóvel Volkswagen Polo, isqueiro marca BIC, produto para limpeza de injectores);

As declarações do arguido (na parte não confessória) prestadas em sede de 1º interrogatório judicial e na fase de instrução;

As fotos constantes no telemóvel apreendido ao arguido (a cores a fls. 83/87);

As informações das bases de dados da operadora Vodafone de fls. 543 e 611;

O auto de exame e avaliação de fls. 868/871.

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Como ponto prévio nesta via de ponderação, antes do mais diga-se que a sequência de ignições (seis, num perímetro de sensivelmente 13 km, e em pouco mais de uma hora) e os pontos de eclosão (sempre imediatamente adjacentes à estrada, em locais onde se pode estacionar com segurança e sem embaraçar o trânsito) arredam, ab initio, qualquer tipo de dúvida sobre a origem humana, e propositada, de todos os fogos.

Ante este quadro inicial ainda uma conclusão preliminar parece impor-se: naquela tarde de ... de ... de 2016 uma pessoa andou a pôr fogo em vários locais da ....

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Das provas antes elencadas decorre igualmente que o arguido foi detido, ao final da tarde daquele dia, quando se encontrava flagrantemente a acender o foco de incêndio F (...).

Contaram JJ e KK que, quando subiam juntos a serra naquela tarde (JJ era o condutor; Ambos são militares da GNR e estavam então fora do horário de serviço) cruzaram-se com o arguido (que vinha em sentido descendente, o local era isolado, e não havia naquele momento outros veículos na estrada); O arguido parou e saiu da viatura que conduzia, deu a volta por trás do veículo e agachou-se ali, junto à vegetação; Estranhando o comportamento JJ inverteu imediatamente a marcha do carro e voltou imediatamente “para baixo”; Quando se deteve o carro onde seguiam, as testemunhas viram chamas que irrompiam naquele momento junto ao arguido: nada mais estava ardido à volta, as chamas tinham então uma dimensão muito pequena (não atingiam então mais que um metro disse JJ), não havia mais ninguém em volta, e antes de o arguido ali estar (quando imediatamente antes passaram “para cima”) não havia qualquer chama — o fogo começou seguramente ali, naquele momento. Contaram igualmente as testemunhas que a certa altura destes acontecimentos (mas sem equívoco quanto ao quadro que antecede) um jipe, conduzido por OO (que explora um restaurante “mais acima” na serra), se juntou no local às testemunhas. JJ —contaram— dirigiu-se ao arguido, que lhe disse inusitadamente “não sou nenhum pirómano”; KK (com a ajuda de OO) apagou, com os pés, o fogo que despontava. Aí ficou logo detido o arguido, na sequência daquele quadro evidentemente comprometedor.

O testemunho de OO, por seu lado, corroborou os traços essenciais destes primeiros testemunhos.

Dos referidos testemunhos e do auto de fls. 112 resultou ainda que o arguido, naquele momento, fumava um cigarro e tinha na sua posse um isqueiro.

Quanto à autoria do foco de incêndio F (...), ficámos pois plenamente convencidos ser o arguido o seu autor.

Ante:

O quadro que se extrai das provas — inexistência de quaisquer chamas antes de aí assomar o arguido; gestos do arguido plenamente compatíveis com o atear do fogo; despontar das chamas imediatamente após a chegada do arguido, e que ainda ganhavam forma quando as testemunhas estacionaram para interpelar o arguido; inexistência in loco de outra pessoa que pudesse ter lançado fogo ao local; disponibilidade evidente de meios logísticos para acender a chama; e

A credibilidade e fiabilidade, muitos elevadas, de que os meios de prova são dotados — nenhuma destas testemunhas conhecia antes o arguido, inexistindo motivo para que pretendessem prejudicá-lo artificialmente; Correspondência total dos traços essenciais dos eventos percepcionados e relatados ao Tribunal, que denuncia serem rigorosos os depoimentos;

As referidas provas foram lapidares para, sem margem para quaisquer dúvidas, se sustentar o que, quanto à autoria deste foco F (...), levámos à matéria provada.

*

Assente o quadro que antecede, a conclusão de que o arguido foi o autor de todos os focos de incêndio ganha foros de grande seriedade; Haveria naquela tarde, afinal, dois incendiários a pôr fogo na ...?

A interrogação que antecede conhece (para além que da resposta que o senso comum logo adianta) resposta perfeitamente concludente na conjugação das provas produzidas.

Vejamos.

*

As provas dão uma imagem bastante clara, e incontroversa (ainda que não absolutamente completa), daquele que foi o percurso rodoviário seguido pelo arguido naquela tarde.

O arguido chegou à zona da ... vindo da direcção de PP, onde reside (declarações do arguido no 1º interrogatório judicial, testemunhos, entre outros, de HHH e III, as informações da ... de fls. 543 e 611). Vindo dessa direcção (de Este para Oeste) o arguido seguiu (para Norte) para a zona de ... onde parou (declarações do arguido prestadas na fase da instrução). Depois o arguido seguiu na direcção da ..., no topo da serra, onde efectivamente chegou algum tempo depois (declarações do arguido no 1º interrogatório judicial; segunda foto de fls. 86, e foto de fls. 87, que retratam precisamente as “antenas” que aí existem); Depois de estar na WWW, no topo da serra, o arguido foi a ... (onde foi avistado pela testemunha II); Aqui, em ..., o arguido não parou tendo contornado uma rotunda e seguido novamente (para a direcção de onde antes vinha) para a zona da WWW (ainda aqui, testemunho de II, tendo o arguido seguido atrás da testemunha a partir daqui). O arguido não tornou a alcançar ao topo da serra, tendo virado “para baixo” antes disso por causa do fogo que já aí lavrava (mesmo testemunho); Minutos depois foi detido junto à ... (factos supra discutidos).

Retenha-se este percurso.

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Em acrescento a tudo o que antecede, do testemunho de MM resulta que um carro igual ao do arguido esteve parado junto ao local onde despontou o foco de incêndio E (sítio do ...).

Relatou esta testemunha que na tarde dos factos avistou , nas imediações da sua casa —muito próxima da ignição do E mas também, ligeiramente mais longe, do foco D (cfr. por exemplo fls. 68)— um carro cinzento anormalmente parado junto à berma da estrada (estrada que liga a ... a ...), direccionado para ... (“para baixo”, como quem segue da ... para a vila de ...); O condutor parecia então urinar no local. Quando a testemunha voltou a dar atenção àquela direcção já não havia nem carro nem condutor, e no seu lugar (a 4 ou 5 metros de onde esteve parado o veículo) começava a lavrar fogo. A testemunha pediu ajuda dos vizinhos e o fogo (foco E) foi apagado pouco depois.

No dia seguinte a testemunha tornou a ver o que lhe pareceu ser o mesmo exacto carro cinzento: por casualidade, quando levava os filhos à escola, a testemunha reconheceu o veículo que antes havia visto parqueado à porta do posto da GNR.

Exibidas à testemunha fls. 869 (foto que retrata o veículo do arguido, apreendido) confirmou esta que o carro que viu primeiro no dia dos fogos, e reconheceu depois no dia seguinte, era aquele mesmo.

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Posto o que antecede, as provas produzidas permitem apenas uma conclusão: foi o arguido quem ateou todos os focos de incêndio objecto dos autos.

Com efeito, das provas resulta incontroverso que o arguido acendeu o foco F, a última de todas as ignições.

Para além disso, as provas evidenciam que o percurso estradal seguido pelo arguido alinha-se perfeitamente com todas as ignições daquela tarde, tanto no espaço como no tempo — o arguido esteve primeiro na zona de ... (viragem a Norte, vindo de PP) local do foco B, a primeira ignição; Daí seguiu em direcção à torre da ..., tendo por isso de passar pela zona de ... (local do foco C, a segunda ignição); Chegou à zona da torre da ..., onde deflagrou o foco G. Além disso o arguido passou na estrada que liga a ... a ..., local onde deflagraram os focos D e E.

Em acrescento, ainda, um carro em tudo igual ao do arguido (com características suficientemente semelhantes para ser reconhecido por casualidade pela testemunha MM) esteve detido junto ao local (que não é um local de paragem normal de veículos) momentos antes de aí deflagrar o foco E.

Assinale-se ainda que este alinhamento perfeito não ocorre quanto a todo e qualquer visitante da ... que naquela tarde viesse da direcção de .... Desde logo, o alinhamento temporal ao longo do seu percurso com deflagrar das ignições com hora conhecida parece impossível de explicar pelo mero acaso. Além disso, o percurso estradal do arguido —que não se limitou a vir de ... à ...— foi relativamente sui generis: o arguido veio de Sul até ao topo da serra, tendo deflagrado nesse caminho (no intervalo temporal em que o arguido o percorreu) três focos de incêndio (B, C e G); Daí o arguido foi até ..., passando pelos locais onde deflagraram mais dois focos de incêndio (focos D e E); Por fim, quando já ardia a serra, o arguido tornou a direccionar-se para a ...; Não a logrando atingir novamente (já ardia então a serra), seguiu “para baixo” onde foi, no local onde ocorreu a ignição F, detido em flagrante delito.

Assente a autoria do foco F, pense-se na “astronómica” improbabilidade de a autoria dos restantes fogos objecto da causa pertencerem a outra pessoa: para que tal ocorresse teria de haver um segundo incendiário (pois não há dúvidas que o arguido ateou o foco F) a pôr fogo na serra naquela tarde e que seguia, a pouca distância do arguido, o mesmo percurso que este seguiu naquela tarde, parando o carro várias vezes para atear os fogos (mas ainda assim conseguindo manter alinhado o seu percurso ao do arguido). Mas, atente-se, tal “segundo incendiário” teria ainda de circular num automóvel em tudo igual ao do arguido, ou ficaria por explicar o episódio reportado pela testemunha MM. E, ainda, tal hipotético segundo incendiário terá parado de atear fogos naquela tarde, por nova inexplicável coincidência, precisamente quando o arguido foi detido.

Em face da ponderação das provas o Tribunal ficou plenamente convencido que uma, e só uma, é a conclusão a que pode chegar qualquer pessoa de são critério e boa-fé: foi o arguido quem, materialmente, ateou todos os focos de incêndio objecto da causa.

* *

Se as provas que antecedem não chegassem para nos convencer da autoria dos fogos uma segunda via instrutória, independente, tal como se assinalou antes, sempre levaria à mesma conclusão.

Com efeito, o arguido confessou ter sido autor dos fogos com que foi confrontado em sede de primeiro interrogatório judicial.

Aquela admissão da prática dos factos parece-nos em tudo credível, uma vez que, para além do alinhamento com a circunstanciação fáctica que dimana dos autos (detenção em flagrante delito junto do foco F, apreensão do instrumento do crime, etc.) o arguido admite matéria que manifestamente lhe é desfavorável, inexistindo por isso qualquer motivo para crer que, nessa parte das declarações, faltou à verdade.

Motivos pelos quais as declarações confessórias do arguido sempre seriam meio de prova suficiente para nele assentarmos a mesma conclusão sobre a causação das ignições ainda que inexistisse a torrente avassaladora de provas que evidencia, por via independente, pertencer-lhe a autoria dos fogos.

* * *

O perímetro fáctico da causa impõe ainda que nos debrucemos sobre o estado interior do arguido no momento dos eventos.

Com efeito, suscitou-se durante a audiência a questão de saber se os factos praticados pelo arguido não deveriam antes ser atribuídos à medicação que, previamente a praticá-los, haveria tomado.

Também neste ponto ficámos plenamente convencidos do que se levou à matéria apurada, e também aqui por duas ordens de razões diferentes.

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A primeira prende-se com a falta de credibilidade das provas que suportariam a tese dos comprimidos incendiários. Num primeiro momento do processo, em sede de 1º interrogatório judicial, o arguido logo invocou desculpa com a medicação que havia tomado. Disse então que, dominado por ansiedade, tomou vários comprimidos no dia dos factos; Os comprimidos eram seus, e tomou-os no carro (“peguei no carro, depois pelo caminho, passados 2 ou 3 km, parei...”); Disse então que havia tomado 10 comprimidos de uma qualidade (para combater a ansiedade) e 2 comprimidos de outra (comprimidos que substituem a heroína). Todavia, ao longo do processo as provas foram evoluindo de forma bastante estranha quanto ao quadro fáctico em questão. Em sede de instrução nas suas declarações o arguido avançou que, afinal, tomou medicamentos porque se magoou nas costas no dia dos factos; Além disso, e mais relevantemente, os medicamentos que tomou não foram apenas os seus, tomou também um medicamentos prescritos ao seu filho (XXX). Já na audiência, a fazer fé nos depoimentos de CCC e DDD (esposa e filha do arguido), o arguido teria tomado, em casa, antes de seguir para ..., 5 ou 6 caixas de medicamentos vários (ainda que não estivessem todas cheias), tanto seus como do seu filho.

Sublinhamos “a fazer fé”, uma vez que as versões destas duas testemunhas chocaram num ponto que, pese embora numa primeira análise pareça um detalhe sem grande relevância, logo em seguida se percebe não ser assim. Disse CCC que deu por falta das tais 5 ou 6 caixas de medicação no dia dos factos, e depois disso nunca mais as viu — as 5 ou 6 caixas de medicação simplesmente desapareceram, não tendo a testemunha voltado a vê-las ou sequer ter qualquer ideia do que lhes aconteceu; “Conclui” a testemunha que só poida ser o arguido a ter tomado tal medicação. Todavia, DDD, quando contou a sua versão dos acontecimentos que levaram a família a concluir que o arguido teria abusado da medicação existente na casa contou que... viu as tais caixas de medicação vazias, descartadas, que foram descobertas na casa ou no dia dos factos ou no dia seguinte. Ambas as testemunhas manifestaram um grau de “segurança” forte quanto ao que, nesta parte, afirmaram; E assim mesmo era de esperar, pois tanto uma como outra versão (desaparecimento misterioso das caixas de medicamentos / achamento de caixas vazias) corresponde a um evento quanto ao qual dificilmente há engano e que, num contexto como o que vivenciavam então, seguramente marca quem por ele passa — deixa memória, não se esquece facilmente. Mas a discrepância entre os testemunhos parece não poder ter explicação minimamente razoável: encontrar 5 ou 6 caixas vazias de medicação, num momento que coincide sensivelmente com a detenção do arguido (marido e pai destas testemunhas), não é coisa que se esqueça facilmente — como o poderia ter esquecido CCC? Por outro lado, caso só DDD tivesse encontrado as caixas, seguramente teria discutido o assunto com a mãe posteriormente, é pura e simplesmente incredível que assim não tivesse sucedido — como é possível, então, que só DDD soubesse das caixas vazias encontradas no dia ou no dia seguinte aos factos? Face ao que antecede, o que se extrai dos referidos testemunhos é que os mesmos vinham alinhados num ponto central com relevância para a causa (o arguido tomou, de forma anormal, muitos medicamentos, seus e do filho) mas são incompatíveis —diga-se sem subterfúgio: de acordo com o normal acontecer são absolutamente inconciliáveis— num ponto. Num detalhe, sem dúvida. Mas um detalhe maior: a discrepância nos relatos não parece poder ser explicada, caso estes tenham sido prestados de boa-fé, por algum problema de percepção das testemunhas ocorrido no momento, nem pela desmemoriação causada pelo tempo. O que aponta, de forma muito séria para uma explicação simples (a única que, pesada a prova, parece racional): os relatos foram previamente orquestrados quanto ao ponto relevante, mas aquele alinhamento prévio foi descuidado quanto aos detalhes.

Uma primeira conclusão: o acervo probatório que aponta no sentido de o arguido não ser senhor da sua vontade no momento dos factos em virtude de uma sobredosagem de medicação é fraquíssimo, e não colhe. A medicação invocada pelo arguido (tranquilizante, e agonista ou antagonista) pura e simplesmente não parece apta a causar —a inelutavelmente induzir— o comportamento criminal do arguido que as demais provas denunciam (quando muito seria apto a produzir um efeito oposto, calmante e pacificador).

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Além disso, as provas denunciaram que o arguido não padece de qualquer anomalia psíquica capaz de lhe tolher a vontade e impor comportamentos divorciados desta.

Neste mesmo sentido depuseram ZZ, FFF, GGG (médicos que acompanham o arguido há anos), e EEE (psicóloga, que também acompanha o arguido há anos). Destes testemunhos resultou que o arguido foi dependente de substâncias de que abusou a certa altura na sua vida (heroína, da qual se encontrava abstinente há muitos anos na data dos factos; mas também abusos pretéritos de álcool). Da conjugação dos testemunhos resultou ainda que o arguido padece a espaços de quadros de comportamentos depressivos, mas de carácter reactivo (ou seja, circunscritos, em reacção a problemas que surgem no percurso de vida da pessoa — problemas familiares, laborais etc.) e não padece de qualquer específica patologia, designadamente perturbação depressiva major (ou seja, um quadro depressivo continuado e severo). Além disso, assim reportou FFF, em ... o arguido estava estabilizado quanto a sintomas depressivos.

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Face ao que se expôs, inexiste, logo em primeira linha, qualquer motivo para arredar o caso dos autos daquilo que é o normal acontecer: em circunstâncias normais qualquer pessoa na posição do arguido saberia o que fazia e agiria em acordo com a sua vontade.

E, por isso, assim diz o acontecer racional, tal sucedeu também com o arguido.

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A segunda ordem de razões que nos convenceu do que se levou à matéria apurada quanto ao estado subjectivo do arguido prende-se com o que foi o seu concreto comportamento no dia dos factos, denunciador de que, mesmo que tivesse tomado algum medicamento ou substância, sabia perfeitamente o que fazia, e que o que fez foi um reflexo da sua personalidade livre.

O que as provas denunciam ter sido o comportamento no dia dos factos não é um “ataque psicótico”, um comportamento robotizado, gestos uma marioneta de substâncias; Pelo contrário, o que as provas denunciam em nada se assemelha a uma actuação dominada por factores externos à sua própria vontade.

Com efeito, o arguido percorreu a distância entre ... e a ... ao volante do seu veículo; Chegado à zona do topo da serra, conseguiu ainda ir à vila de ... e voltar na direcção do topo da serra; Percorreu por isso pelo menos 80 km sem ter tido qualquer acidente de viação. Além disso, fez várias paragens no caminho (sempre em lugares seguros, sem embaraço para o trânsito, denunciando clareza de espírito), em algumas das quais tirou fotografias da paisagem sumptuosa. Nesse caminho interagiu com várias pessoas (JJ, KK, OO, e II), com quem falou com discernimento, fazendo-se compreender bem e entendendo o que lhe era dito — com II até falou de mecânica automóvel. Mais, detectado o seu comportamento criminoso (que ocorreu tão longe de onde mora que nunca colocaria em risco bens e vidas dos seus conhecidos e familiares, e propiciava a obscuração da identidade do culpado), o arguido procurou imediatamente esconder a responsabilidade pessoal, logo afirmando a JJ e KK que não era nenhum pirómano. Por fim, agitado quando era apanhado em flagrante delito, e confrontado com a inelutável frustração do seu desiderato, através da sua detenção, rendeu-se à sua sorte.

Pergunte-se: são estes comportamentos aqueles que evidencia uma pessoa que, “tresloucada”, é dominada por medicação que lhe tolhe inelutavelmente a vontade jurídica? A resposta, evidente, é: não. Claro que não.

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No que respeita ao estado interior do arguido, ficámos convencidos que o mesmo agiu de acordo com a sua vontade também quanto à causação dos perigos para pessoas e bens que se respigam na matéria objectiva apurada.

Com efeito, qualquer pessoa que actue com um comportamento como o que o arguido assumiu —atear vários fogos na serra num dia quente de Verão— sabe que, com enorme probabilidade, causará tais consequências. Ora, tendo o arguido continuado a atear fogos, uns atrás dos outros, uma única conclusão impõe o bom senso: o arguido pretendia efectivamente que a serra se enchesse de chamas, apesar de saber que, com elevado grau de a certeza, as mesmas fariam perigar (ou atingiriam) todas as pessoas e bens que encontrassem no caminho.

* * *

No que toca à matéria de facto especificamente relevante para a matéria cível, a convicção do Tribunal assentou, ponderadas todas a provas, essencialmente,

Para além dos testemunhos que versaram sobre tais matérias, a saber:

NN, QQ, RR, SS, TT, UU, VV, WW, XX, YY, AAA, BBB;

Na seguinte documentação:

Inventário (levantamento dos prejuízos na rede viária de ...) de fls. 353-355;

Informação do Gabinete de Protecção Civil e Florestas do Município de ... de fls. 356 a 357,

Relatório da ... de fls. 533-536;

Relatório de Estabilização de Emergência do Incêndio Florestal da ... do ..., de fls. 548-556;

Relatório (ocorrência: ...) da ... fls. 756-805;

Informação, anexo, requisições, notas de encomenda, facturas e restantes documentos do ... de fls. 1358 a 1389,

Anexo documental C (fichas de recolha),

Anexo documental D (custos de combate aos incêndios).

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A matéria relativa ao pedido de indemnização do ... decorre da análise, em particular, da documentação de fls. 1358 a 1389, onde se encontra abundante respaldo dos gastos invocados.

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Por seu lado, os factos respeitantes aos pedidos de indemnização civil deduzidos por BB e CC resultaram do teor do Apenso C (em particular fls. fls. 3 e fls. 50).

Todavia, quanto a ambos o Tribunal teve de lançar mão, para ponderar a prova e não prova dos valores invocados para os bens destruídos (no caso de BB, apenas a produção de medronheiros, pois quanto ao mais a prova foi esclarecedora; no caso de CC, os eucaliptos) das regras da experiência, e com base nelas e na prova das características dos bens que comprovadamente se destruíram, fixar aqueles valores. Os valores encontrados decorrem dessa ponderação das provas — assentes as características essenciais dos bens, ficou o Tribunal convencido que, naquelas concretas condições, tanto os medronheiros de BB como os eucaliptos de CC valiam seguramente as importâncias levadas à matéria provada.

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Os factos respeitantes aos custos do combate aos incêndios suportados pelo Estado Português assentam em particular na vasta documentação do Apenso D, dos quais decorrem avultadíssimas despesas causadas para fazer movimentar a “máquina” de pessoas e equipamentos necessários para, na medida possível, mitigar a tragédia que se vivia então na ....

No que concerne ao montante de € 71.297, o mesmo resulta cabalmente suportado pela documentação daquele apenso, sendo perfeitamente discernível que o Estado gastou só na alimentação de quem combatia os fogos, no mínimo, aquela importância (cfr. por exemplo o número de refeições assinalado a fls. 5 e 8 daquele Apenso D, aplicando-se-lhe os critérios de fls. 26 verso).

Todavia, quanto aos gastos tidos com os meios terrestres e meios aéreos, aquela documentação não permite, a nosso ver, discernir os concretos valores despendidos pelo demandante. Sublinhe-se, em contraponto, que aqueles mesmos documentos (e bem assim o restante produto probatório) deixam fora de dúvida que os gastos do Estado foram muito superiores ao valor apurado para a alimentação das pessoas que combateram o fogo. Com efeito, as provas deixam claro que combateram o fogo mais de mil operacionais, centenas de veículos, e dezenas de meios aéreos.

Quanto a estes gastos cremos, contudo, que as regras da experiência comum não permitem fazer uma estimativa minimamente aproximada a um valor que possa considerar-se seguro. Com efeito, estando em causa os custos de uma “máquina” que movimentou centenas de veículos e dezenas de meios aéreos inexiste uma experiência comum —pelo menos no que concerne à larguíssima maioria das pessoas com conhecimentos normais— que permita concluir mais do que tais gastos foram, com toda a certeza, muito avultados. Todavia, assente tal base, não logrou o Tribunal, na ponderação permitida pelas provas, concluir mais do que: os gastos do Estado foram seguramente superiores ao montante concreto que se provou (os gastos com alimentação antes referidos). Isso mesmo se levou à matéria apurada.

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Ainda a propósito de prejuízos —mas já sem relevância para as causas cíveis— os prejuízos causados para a rede viária de ... e, bem assim, as despesas respeitantes a limpezas e reparações assentam no inventário de fls. 353 a 355.

O abate de árvores em risco de queda resulta do que se respiga na informação (Gabinete de Protecção Civil e Florestas do Município de ...) de fls. 356 a 357.

Os prejuízos agrícolas estimados nos concelhos de ... e ... têm por base o teor do relatório da ... de fls. 533 a 536, e a documentação do Apenso C.

Por fim, as despesas com intervenções a realizar no solo e linhas de água (concelhos de ... e ...) resultam da ponderação do relatório do Instituto da Conservação da Natureza e das florestas de fls. 548 a 556.

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No que toca aos factos respeitantes ao produto Redex – Aditivo Diesel, a sua não demonstração resulta da total ausência de provas que sustentassem o alegado. Por um lado, a prova não corroborou o quando e o porquê de o arguido ter adquirido tal produto. Igualmente não se provou que tal produto não é acelerante de combustão. Não fique por dizer: também não se provou o contrário; Todavia, quanto à questão (que é, assinale-se, absolutamente irrelevante para decidir a causa em face do acervo probatório existente) a prova produzida simplesmente nada esclarece.

As provas foram também patentemente insuficientes para estribar os factos invocados quanto ao “artefacto para-quedas” invocado em contestação. A ter existido um qualquer objecto dessa natureza (que nunca apareceu fisicamente no processo, e cujo único sinal na prova é uma testemunha que nem sequer está certa tê-lo encontrado; cfr. ponto 5 de fls. 3584), são totalmente desconhecidas as suas características, se era efectivamente capaz de provocar incêndios (ou se se trataria afinal de algum objecto com finalidade legítima), se deflagrou, há quanto tempo estaria na serra, etc. Nessa medida, o testemunho de fls. 3584 e 3627 foi patentemente inepto para, quanto à questão, sustentar qualquer convicção positiva. Não fique por dizer: mesmo que um objecto com as características invocadas pela Defesa tivesse existido (o que a prova não sustenta), ainda assim o mesmo em nada beliscaria a conclusão, categórica, que tiramos quanto à autoria de todos os fogos, tal é a torrente de provas, extremamente sólidas, que a atribuem ao arguido.

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Os factos (ainda não discutidos supra) respeitantes às condições pessoais e de vida do arguido decorrem essencialmente da análise do relatório social elaborado pela ..., em conjugação com os testemunhos de ZZ, CCC, DDD, EEE, FFF, GGG, HHH, III, JJJ, KKK, NNN, OOO, PPP, QQQ, SSS, TTT, e UUU.

Quanto a tais factos, pertinentes à vida do arguido, as provas foram no essencial concordantes. Foi patente que o arguido é uma pessoa bem vista pelas pessoas das suas relações, e é um trabalhador estimado.»

*

3. Apreciando

3.1. Dos recursos de despachos interlocutórios em confronto com a delimitação legal da recorribilidade para o STJ e dos seus poderes de cognição

3.1.1. Estabelece o artigo 400.º, n.º1, alíneas e) e f), do CPP:

«1 - Não é admissível recurso:

(…)

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

(…).»

O segmento final da transcrita alínea e) resulta da redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21/12, que para o caso não importa.

Por sua vez, dispõe o artigo 432.º, do CPP, sob a epígrafe “Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça”:

«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º».

Finalmente, o artigo 434.º, sob a epígrafe “Poderes de cognição”, preceitua que «O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º», resultando o segmento final da redação dada pela Lei n.º 94/2021.

Da conjugação destas disposições resulta, numa formulação sintética, que só é admissível recurso de acórdãos das relações, proferidos em recurso, que apliquem:

- penas superiores a 5 anos de prisão, quando não se verifique dupla conforme;

- penas superiores a 8 anos de prisão, independentemente da existência de dupla conforme.

Tal significa só ser admissível recurso de decisão confirmatória da Relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico (cf., entre muitos arestos que estão disponíveis para consulta, os acórdãos do STJ: de 11.03.2021, Proc. 809/19.1T9VFX.E1.S1; 02.12.2021, Proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1; 12.01.2022, Proc. 89/14.5T9LOU.P1.S1; 20.10.2022, Proc. 1991/18.0GLSNT.L1.S1; 30.11.2022, Proc. 1052/15.4PWPRT.P1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).

No caso em apreço, não está em causa recurso de decisão da Relação proferida em 1.ª instância, nem recurso direto de decisão proferida por tribunal do júri ou coletivo de 1.ª instância, mas antes recurso de decisão confirmatória da Relação relativa a pena superior a 8 anos de prisão – in casu, pena de 9 (nove) anos -, pelo que tal decisão é recorrível para o STJ, nos termos dos artigos 400.º, n.º1, alínea f), a contrario, e 432.º, n.º1, alínea b), do CPP.

De acordo com o supra transcrito artigo 434.º, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, pois o conhecimento das questões em matéria de facto esgota-se nos tribunais da relação, que conhecem de facto e de direito (artigo 428.º do CPP).

Tratando-se de acórdão da Relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o STJ «com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro), diversamente do que ocorre com os recursos previstos nas alíneas a) e c), o que, todavia, não prejudica os poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão de facto quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correta decisão de direito (entre muitos, os acórdãos de 01.03.2023, Proc. n.º 589/15.0JABRG.G2.S1, e 08.11.2023, Proc. n.º 808/21.3PCOER.L1.S1).

3.1.2. Analisado o recurso, facilmente se alcançam os equívocos em que incorre o recorrente.

Ainda que afirme bem conhecer os poderes de cognição do STJ – o que reitera na resposta ao parecer -, certo é que o recorrente direciona grande parte do recurso contra a forma como a Relação decidiu os recursos relativos a despachos interlocutórios (a esses recursos reportam-se as conclusões 19 a 88, dentro de um total de 114 conclusões, em que as primeiras 18 contêm generalidades), o que contraria aquela afirmação.

Esses recursos, todos julgados não providos pela Relação, para além de respeitarem a matéria essencialmente relacionada com a produção de prova, inequivocamente não habilitam o recorrente a interpor recurso para o STJ das decisões que, relativamente a cada um, a Relação proferiu.

Reportam-se esses recursos a despachos prévios à decisão final.

O supra transcrito artigo 432.º, n.º1, alínea d), do CPP, permite o recurso para o STJ de decisões interlocutórias “que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores” – recursos das alíneas anteriores que, não sendo de decisões interlocutórias, são de decisões finais,

Por outro lado, resulta do artigo 400.º, n.º1, alínea c), não ser admissível recorrer de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo.

Da conjugação destes preceitos resulta, com clareza, não ser admissível recurso para o STJ de decisão da Relação sobre recurso de decisão interlocutória.

O STJ só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1.ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (do tribunal do júri ou do tribunal coletivo) sejam diretos para o STJ e não quando tenham sido previamente objeto de recurso decidido pelas Relações.

Como se diz no acórdão de 12.03.2015, proferido no processo n.º 724/01.5SWLSB.L1, é irrecorrível para o STJ a decisão da Relação tomada em recurso que, tendo absoluta autonomia relativamente às demais questões suscitadas, não pôs termo à causa por não se ter pronunciado sobre a questão substantiva que é o objeto do processo. Para efeito da recorribilidade, mostra-se indiferente a forma como o recurso foi processado e julgado pela Relação, isto é, se o recurso foi processado autonomamente ou se a decisão se encontra inserida em impugnação da decisão final.

Entendimento que, como se assinala no referido aresto, respeita a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição e está em perfeita sintonia com o regime traçado pela reforma de 1998, mantido na reforma de 2007, para os recursos para o STJ: sempre que se trate de questões processuais ou que não tenham posto termo ao processo, o legislador pretendeu impedir o segundo grau de recurso, terceiro de jurisdição, determinando que tais questões fiquem definitivamente resolvidas com a decisão da Relação.

As Leis n.º 28/2010, de 30 de agosto, n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, e n.º 94/2021, de 21 de dezembro, não alteraram a situação.

No mesmo sentido do citado acórdão de 2015, pronunciou-se o acórdão de 18.01.2017, no processo n.º 698/10.1T3OBR.P1.C1.S1 (que se indica exemplificando o que constitui entendimento constante do STJ), onde podemos ler:

«O acórdão recorrido na parte em questão não consubstancia uma decisão de fundo, uma apreciação de mérito, não tendo a natureza de decisão final, não sendo uma condenação nem absolvição, antes corresponde a uma decisão que nesse segmento não conhece do objeto do processo, nada tendo decidido, por essa via, em definitivo, em termos substantivos, antes revestindo o carácter de decisão no plano meramente processual.

Trata-se de uma decisão interlocutória, intermédia, incidental, versando sobre questão processual avulsa, que não põe termo à causa, e como tal, abrangida pela irrecorribilidade constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.»

No caso em apreço, a decisão da Relação em cada um dos recursos de despachos interlocutórios é, por conseguinte, irrecorrível para o STJ.

Consequentemente, por inadmissibilidade legal, não pode, nem deve, o STJ apreciar qualquer patologia (incluindo os alegados vícios que o recorrente invoca) concernente à decisão tomada pela Relação relativamente a cada um dos recursos de despachos interlocutórios, havendo, por isso, que rejeitar o recurso nessa parte, atento o disposto nos artigos 414.º, n.ºs 2 e 3, e 420.º, n.º 1, al. b), do CPP.

3.2. Das invocadas patologias do acórdão recorrido quanto à decisão de facto

3.2.1. Como já se disse, estando em causa acórdão da Relação proferido em recurso, não é admissível recorrer para o STJ «com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.»

Acresce que num recurso interposto para o STJ de um acórdão da Relação, o recorrente não pode retomar a impugnação da decisão da 1.ª instância, como se a Relação não tivesse decidido anteriormente um recurso, com esse âmbito e objeto. Julgado, pela Relação, o recurso interposto da decisão proferida em 1.ª instância, o recorrente, inconformado com a decisão da 2.ª instância, já só esta pode impugnar e não (re)introduzir no recurso para o STJ a impugnação da decisão da 1.ª instância (acórdão de 02.10.2014, Proc. 87/12.3SGLSB.L1.S1).

O recorrente alega erros de valoração da prova ou errada convicção do tribunal a quo, por violação do princípio in dubio pro reo, matérias que, à semelhança do que já foi referido, não podem ser objeto de cognição por este Supremo Tribunal de Justiça, cujos poderes se limitam exclusivamente ao reexame da matéria de Direito, a não ser que esteja em causa vício decisório previsto no artigo 410.º, n.º2, do CPP, de que o tribunal conheça oficiosamente.

Diz o recorrente que a análise efetuada pela Relação quanto à impugnação da decisão de facto “defrauda” a possibilidade de recurso nessa parte, pois “não se limitou a discordar, invocou a razão da sua discordância e a prova em que a mesma se sustenta” e “cumpriu as regras e requisitos estabelecidos na lei”.

O acórdão da Relação analisou a fundamentação da decisão de facto explanada pelo tribunal de 1.ª instância, assinalando conter essa motivação “uma análise crítica da prova, com explicitação da credibilidade dos meios probatórios e das razões do seu convencimento”, “fundamentando com clareza o percurso que conduziu à formação da convicção do coletivo", tendo o tribunal justificado, “por forma cabal, as razões de ter dado como provada e não provada a factualidade que enunciou, explicitando na motivação da matéria de facto o exame crítico dos meios de prova, os motivos pelos quais atribuiu crédito a determinados depoimentos, evidenciando todo o processo lógico-formal que serviu de suporte à valoração da matéria de facto provada, nos termos em que ficou assente”, tudo num raciocínio

“lógico e racional, não violando as regras da experiência comum na apreciação da prova, ao contrário do que afirma o recorrente”.

Seguidamente, depois de explicitar a distinção entre a chamada “revista alargada” e a “impugnação ampla” da decisão de facto, o acórdão recorrido afastou a presença do vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, tendo em vista a alegação pelo recorrente da existência de “evidentes contradições entre a matéria de facto dada como provada, a matéria de facto dada como não provada”.

No passo seguinte, o acórdão analisa a questão do alegado erro de julgamento, tendo em vista o inconformismo do recorrente quanto à demonstração positiva dos factos vertidos nos pontos 1 a 48 dos factos dados como provados, relativamente aos quais o recorrente afirma “a total e absoluta ausência de prova”.

Sublinha a Relação que a impugnação assim efetuada, “não deixando de cumprir formalmente os ónus estipulados pelo artigo 412.º, n.º3 e n.º 4, do Código de Processo Penal (posto que especifica quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados, limitando-se a invocar a total ausência de provas [e por isso se dispensando de indicar as provas que impõem decisão diversa da recorrida e de fazer referência a quaisquer passagens constantes nos suportes técnicos de gravação – limitando-se a transcrever algumas passagens de alguns depoimentos prestados que, no entender do recorrente constituem prova que contraria o juízo probatório do Tribunal a quo]), reconduz a apreciação da questão à aferição da alegada completa ausência de suporte do raciocínio conviccional do Tribunal a quo”.

A Relação deteve-se sobre esta matéria, afastando as objeções que o recorrente suscitara sobre a valoração da prova documental que o tribunal de 1.ª instância especificou na motivação da decisão da matéria de facto.

Reconhecendo a utilização da chamada “prova indireta” como suporte de alguns pontos de facto provados, o acórdão recorrido explicita em que consiste essa prova e como a ausência de prova direta de um facto não significa a impossibilidade de demonstração positiva desse mesmo facto, assinalando que a circunstância “de não contarmos com um registo videográfico, com som e imagem, captado nas circunstâncias em que o arguido, no terreno, progrediu e procedeu para iniciar os fogos, ou sequer com o depoimento de testemunhas presenciais de todas essas circunstâncias de execução do delito, não nos coloca perante “prova zero”. Pretender que assim sucede é, na verdade, defender o absurdo”, pois “mesmo sem esses meios de prova direta, pode chegar-se ao apuramento dos factos, utilizando o raciocínio lógico que referimos, com recurso aos meios de prova indireta. E foi isso que o Tribunal a quo fez”.

Diz-se no acórdão recorrido:

«Ao contrário do que invoca o recorrente, não nos deparamos com a ausência de prova dos factos impugnados – pelo contrário, é claro e lógico o raciocínio que com base nos meios de prova indicados, conduziu à demonstração positiva dos factos, resultando válidas as inferências extraídas dos factos objetivados nos documentos e presenciados pelas testemunhas. Resulta evidente da exposição efetuada pelo Tribunal a quo o percurso racional que levou ao convencimento acerca das circunstâncias que o recorrente impugna, sendo certo que, no caso concreto, houve lugar à utilização de presunções com a necessária credibilidade e consistência.

Temos, assim, que o recorrente, ao pretender fulminar a apreciação probatória apelidando-a de inexistente, se limitou afinal a desconsiderar a prova direta e indireta produzida, sem sequer cuidar de tentar abalar a consistência dos raciocínios utilizados pelo julgador, reduzindo materialmente a sua impugnação a uma crítica da valoração da prova feita pelo tribunal recorrido, pugnando por uma perspetiva diferente da mesma, por não aceitar a credibilidade que aquele tribunal atribuiu à conjugação do teor dos documentos com as declarações das testemunhas referidas e, afinal, a sua valia como base de demonstração dos factos a partir dos quais, com lógica, de acordo com as regras da experiência comum e para lá de qualquer dúvida razoável, se podem ter por assentes os segmentos impugnados.

Essa postura do recorrente, bem vistas as coisas, afasta-nos de uma real impugnação da matéria de facto.

Não obstante, sempre se dirá que, observada a decisão recorrida, verificamos que o Tribunal a quo, de forma que não nos merece qualquer reparo, evidenciou o modo como fez o seu convencimento, indicando os meios probatórios e os motivos por que foram esses meios determinantes para a sua convicção.

Temos, pois, que a conjugação de todos os elementos probatórios recolhidos e devidamente explicitados na decisão do Tribunal a quo permite inferências suficientemente seguras no sentido da matéria dada como provada, não se vislumbrando qualquer contra-argumento suficientemente seguro que justifique e, menos ainda, imponha, solução diferente daquela a que chegou o tribunal recorrido, cumprindo, mais uma vez, salientar que a crítica à convicção a que este chegou, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência comum, não pode ter sucesso, se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.»

Mais adiante:

«(…) tendo este Tribunal ad quem assumido a incumbência de proceder à audição integral dos depoimentos em causa e ao confronto dos mesmos com a documentação reunida, temos, assim, que analisada a prova produzida em audiência, os juízos dados como assentes apresentam-se plenamente legítimos, face ao conteúdo do princípio da livre apreciação da prova, sendo a versão dada como provada quanto aos segmentos impugnados plenamente plausível, face às provas em análise, não se revelando ter havido qualquer arbítrio ou discricionariedade na sua apreciação, nem atentado contra a lógica ou as regras da experiência comum, não merecendo, por isso, a decisão relativa à matéria de facto qualquer censura. Os excertos de depoimentos invocados pelo recorrente não impõem decisão diversa da que tomou o Tribunal a quo. Não ocorreu qualquer violação das regras de apreciação da prova, nem violação do princípio do in dubio pro reo

Alega o recorrente que “relativamente aos factos 1 a 48 deverá ser ordenada a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Évora para apreciação efectiva das questões propostas. No que concerne aos factos 49 a 59 deverá ser declarada a nulidade do douto Acórdão por omissão de pronúncia, com todas as consequências legais”.

Quer isto dizer que o recorrente imputa ao acórdão da Relação o vício da omissão da pronúncia, pois, na sua perspetiva, o tribunal não apreciou efetivamente todas as questões que lhe foram colocadas.

Nos termos do artigo 379.º, n.º 1 , al. c), do CPP, é nula a sentença quando o tribunal “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”

A nulidade de sentença por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos (no sentido de simples opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respetivas posições) invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista: a falta de apreciação das primeiras consubstancia a verificação da nulidade; o não conhecimento dos segundos, será irrelevante.

Já o Prof. Alberto dos Reis (Código de Processo Civil anotado, vol. V, Reimpressão, 1984, pág. 143) ensinava, a propósito da nulidade de sentença por omissão de pronúncia: “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”

Em síntese, a omissão de pronúncia, geradora de nulidade da decisão, está em correspondência direta com o dever imposto ao juiz no sentido de o mesmo ter de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução (ou resposta) dada a outra, para além do conhecimento, que se impõe, de questões de que deva conhecer oficiosamente.

No caso em apreciação, todas as questões suscitadas pelo recorrente no seu recurso foram expressamente enunciadas e decididas no acórdão recorrido, que especifica, de modo claro, de forma a não suscitar dúvidas, as concretas razões pelas quais entendeu improceder a pretensão do recorrente quanto à decisão de facto e se considerou que a decisão recorrida, relativamente aos factos provados, não era merecedora de qualquer censura.

O recorrente pode manifestar a sua discordância com o ponto de vista defendido pela Relação, mas uma coisa é discordar de uma posição assumida de forma expressa, patente, clara, e com ela não estar em consonância, outra coisa é, por se discordar da mesma, invocar que houve uma omissão de pronúncia e que a Relação de Évora contrariou o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, ao decidir como decidiu quanto à impugnação de facto – o que não tem correspondência com a realidade.

O que se extrai do recurso em apreciação é que o recorrente mantém o seu inconformismo com a decisão da 1.ª instância, por discordar da matéria de facto assente, pretendendo esgrimir argumentos no campo da matéria de facto, mas não podendo recorrer com tais fundamentos para o STJ, dado que ao Supremo compete apenas o reexame da matéria de direito, elabora sobre um pretenso, mas inexistente, vício do acórdão da Relação na parte em que se reporta à decisão de facto.

Assumindo como assente que inexiste omissão de pronúncia, a reiterada crítica ao julgamento de facto, com expressão da divergência do recorrente relativamente ao acervo fáctico que foi fixado e ao modo como o foi pelo tribunal de 1.ª instância, tendo sido a opção desse tribunal debatida e reapreciada no acórdão ora em recurso, a merecer uma confirmação em que o juízo substitutivo não funcionou, é de todo irrelevante, pois ressalvada a hipótese de prova vinculada, legal ou tarifada, o STJ não pode invadir o campo da apreciação da matéria de facto que as instâncias apreciaram de harmonia com o artigo 127.° do CPP.

Saliente-se, ainda, que a fundamentação decisória da Relação é exercida sobre uma outra decisão que, por seu turno, já motivou a convicção; nesse sentido, não é uma fundamentação originária, mas uma fundamentação derivada, sendo-lhe lícito, ao sindicar a decisão recorrida, recorrer também à fundamentação desta para justificar as suas próprias razões.

Tendo presente que o acórdão da Relação constitui a decisão impugnada no recurso interposto para o STJ e, por ser assim, a impugnação tem de conter-se no âmbito da decisão recorrida, constata-se que o acórdão recorrido satisfaz as exigências legais de fundamentação.

3.2.2. Como já se disse, sendo o presente recurso restrito ao reexame da matéria de direito, o STJ apenas oficiosamente poderá pronunciar-se sobre os vícios do artigo 410.º, n.º2, do CPP, ou seja, por sua iniciativa, se resultarem do próprio texto da decisão recorrida, como forma de obstar a que seja compelido a aplicar o direito a matéria de facto manifestamente insuficiente, visivelmente contraditória ou fundada em apreciação ostensivamente errónea.

Em ordem à eventual deteção oficiosa dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, procedeu-se à leitura integral do acórdão recorrido (que transcreve a motivação da decisão de facto da 1.ª instância), consignando-se que não se evidencia a presença de tais vícios, a partir do texto da decisão recorrida, em conjugação com as regras da experiência comum, o que significa que a correta decisão de direito não se mostra impossibilitada pela presença de vício decisório que este Supremo Tribunal possa e deva conhecer oficiosamente.

Na verdade, não se perfila insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porque os factos provados são suficientes para suportar a decisão de direito a que se chegou, nas suas diversas vertentes.

Inexiste contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, uma vez que a decisão de facto se mostra intrinsecamente harmónica e interligada.

Finalmente, inexiste erro notório na apreciação da prova, pois não ressalta qualquer erro ostensivo ou situação contrária à lógica e às regras da experiência comum, sendo que o requisito da notoriedade afere-se pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar.

A este propósito, o recorrente invoca a violação do princípio in dubio pro reo, dizendo que o atear do fogo não foi presenciado por ninguém, “não havendo forma de colocar o arguido a praticar os factos constantes da pronúncia (ninguém viu, ninguém disse ter visto, não há vigilâncias, não há relatórios, não há fotografias, não há imagens, não há documentos, não há perícias...)”, tendo sido violado o disposto no artigo 127.º do CPP.

Mais uma vez o recorrente pretende que o STJ se intrometa na questão da valoração da prova efetuada pelas instâncias.

Não ignorando a polémica doutrinal que envolve a fundamentação do princípio in dubio e a sua relação com o princípio da presunção de inocência – entre teorias uniformizadoras que identificam os dois princípios e teorias diferenciadoras que distinguem o seu alcance e conteúdo -, temos que perante uma dúvida sobre os factos desfavoráveis ao arguido, que seja insanável, razoável e objetivável, o tribunal deve decidir “pro reo”.

Ensina, sobre a matéria, o Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213).:

«À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo

O estado de dúvida valorado a favor do arguido pressupõe que, produzida a prova, o tribunal, e só o tribunal, tenha ficado na incerteza quanto à verificação ou não, de factos relevantes para a decisão. Como diz Cristina Líbano Monteiro (Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», Coimbra Editora, 1997, pág. 53):

«O universo fáctico – de acordo com o “pro reo” – passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos factos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige a certeza.»

Sendo o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, compreende-se o entendimento, repetidamente afirmado na jurisprudência deste Tribunal, de que não resultando da decisão que o julgador ficou num estado de dúvida sobre os factos, e bem assim que «ultrapassou» essa dúvida dando-os por provados contra o arguido, ao STJ fica vedada a possibilidade de decidir sobre a violação do princípio «in dubio pro reo», dado o quadro dos respetivos poderes de cognição, restritos a matéria de direito.

Por isso se diz que a apreciação pelo STJ da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: terá de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou então quando, não tendo o tribunal reconhecido expressamente esse estado de dúvida, ele resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum. Já a questão de saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito (cf. acórdãos de 12.03.2009, Proc. 07P1769, e de 14.10.2009, Proc. 101/08.7PAABT.E1.S1).

Visto o acórdão recorrido, não se identifica a existência de qualquer estado de dúvida sobre os factos provados, antes a Relação afasta a verificação de qualquer dúvida, não se evidenciando qualquer violação do invocado artigo 127.º do CPP, ou de qualquer outro dos aludidos, sem razão, pelo recorrente.

3.3. Do enquadramento jurídico-penal

3.3.1. Diz o recorrente que, no tocante à verificação dos elementos objetivos e subjetivos do crime de incêndio florestal agravado, o que resulta dos autos é que foi visto nas proximidades de um local onde se estava a iniciar um foco de incêndio, com pequena dimensão, chamas baixas e passíveis de ser apagadas pela intervenção de uma pessoa, o que se veio a verificar. Admitindo que foi o recorrente a atear o fogo, “a verdade é que esse facto a ser dado como provado não preenche os elementos objectivos do tipo imputado -incêndio florestal agravado”, pois “o tipo legal previsto no artigo 274.º do Código Penal não se preenche com um braseiro apagado peias botas da Senhora Militar KK. E é o que temos nos autos a Militar KK a apagar um pequeno braseiro que não viu ser ateado pelo arguido”.

É manifesta a falta de razão do recorrente, pois o que alega não tem correspondência com a matéria de facto assente que, pura e simplesmente, ignora.

Estabelece o artigo 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal:

«1 - Quem provocar incêndio em terreno ocupado com floresta, incluindo matas, ou pastagem, mato, formações vegetais espontâneas ou em terreno agrícola, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

2 - Se, através da conduta referida no número anterior, o agente:

a) Criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado;

(…)

é punido com pena de prisão de três a doze anos.»

Como se diz no acórdão recorrido, em palavras que, pela sua clareza e acerto, fazemos nossas:

« Perante o naufrágio da impugnação da matéria de facto que o recorrente ensaiou fazer e em face da factualidade definitivamente assente, impõe-se concluir pela efetiva reunião dos elementos objetivos e subjetivos do crime imputado ao arguido.

Como com total acerto se refere na decisão recorrida, cujas considerações subscrevemos na íntegra:

“(…) a matéria de facto provada permite, com muita clareza concluir que a conduta do arguido preencheu plenamente os elementos constitutivos do crime de incêndio florestal, na sua modalidade mais grave.

Com efeito, dos factos resulta que o arguido provocou incêndio (chamas que ficaram fora do seu controlo ou domínio), que lavrou em terreno ocupado com extensa vegetação (matas de árvores, pastagem, mato, formações vegetais espontâneas) e produção agrícola.

Dos factos resulta igualmente que a conduta do arguido provocou efectivo perigo para a vida e integridade física de outras pessoas, o que se conclui desde logo das proporções do incêndio. É simplesmente impossível que incêndios com a dimensão que atingiu o que se encontra na matéria provada não causem tal perigo — e assim sucedeu também no caso, sendo patente o perigo concreto causado tanto para a população circundante (no caso chegou a ser evacuada uma aldeia inteira e um hotel, para além de casas isoladas na serra) como para quem o combateu (um número impressionante de pessoas que, por decorrência de dever, e como fazem sempre que existem fogos, enfrentou as chamas com elevado perigo para si próprios). O perigo estendeu-se, também a bens patrimoniais de valor elevado — casas e construções (aterros, um hotel, armazéns, etc.) que não ficaram destruídas por mero acaso ou pela intervenção os bombeiros.

O arguido, como se provou, atuou conhecendo as circunstâncias de facto em que a sua actuação teve lugar, bem como a relevância ética da sua conduta, e atuou em acordo com a sua vontade — tanto no que concerne ao atear das chamas como à consequente criação de perigo para pessoas e bens.

Uma primeira conclusão: dos factos resultam preenchidos todos os momentos constitutivos —tanto objetivos como subjetivos— do tipo de crime de incêndio florestal, praticado com dolo, na modalidade qualificada prevista no art. 274º nº 1 e nº 2 al. a) do Código Penal.

(…)

movido de uma intenção única (nunca relevantemente interrompida ou terminada) o arguido agiu para causar um incêndio —um grande incêndio na serra— resultado que, por um dos actos que consubstanciou aquele ilícito global ter tido grande sucesso, logrou efectivamente alcançar. Assim sendo, apesar da diferente situação espacial dos vários focos que ateou, concluímos que o arguido cometeu um crime de incêndio florestal qualificado, previsto e punido pelo art. 274º nº 1 e do nº 2 al. a) do Código Penal.”.

Em face disso, sem necessidade de ulteriores considerações, conclui-se que se verificam os elementos objetivos e subjetivos do crime em causa.»

Como o que o recorrente alega a propósito da subsunção jurídico-penal dos factos tem como única premissa a sua divergência quanto à decisão sobre a factualidade provada, temos de concluir que, mostrando-se estabilizada e assente tal factualidade, não se oferecem quaisquer dúvidas quanto ao preenchimento do tipo legal de crime por que foi condenado.

3.4. Determinação da pena

3.4.1. A discordância do recorrente quanto à medida da pena assenta na invocação da conduta anterior e posterior aos factos, na preparação para manter uma conduta lícita, na integração social e profissional do arguido, na ausência de antecedentes criminais, considerando excessiva a pena de 9 anos de prisão e pedindo uma outra, especialmente atenuada ou próxima do mínimo legal, suspensa na sua execução (questões já suscitadas no recurso para a Relação).

Disse a Relação, a este propósito (transcrição parcial, sem notas de rodapé):

«Numa primeira vertente de impugnação dirigida à pena, argumenta o recorrente que “Por força do disposto no nº 1 e 2, alíneas c) e d) do artigo 72º, deveria a pena aplicada ter sido especialmente atenuada (…)”.

Vejamos.

O artigo 72º do Código Penal estabelece:

“1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:

a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;

b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;

c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;

d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.

(…)”

Prevê este normativo que circunstâncias contemporâneas do facto (que estão relacionadas com a culpa) e prévias ou posteriores ao facto (que relevam por via da prevenção) justifiquem a atenuação especial da pena.

O elenco previsto na norma é exemplificativo.

O Tribunal a quo não se decidiu pela atenuação especial da pena.

O recorrente entende que andou mal porque a conduta anterior e posterior ao facto é irrepreensível, porque o arguido revela evidente preparação para manter uma conduta lícita e porque se verifica notória integração social, com respeito pelos valores, regras e Direito.

Ensina Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, p. 302) que “quando o legislador dispõe a moldura penal para um certo tipo de crime, tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os da menor até aos da maior gravidade pensáveis: em função daqueles fixará o limite mínimo, em função destes o limite máximo da moldura penal respectiva; de modo a que, em todos os casos, a aplicação da pena concretamente determinada possa corresponder ao limite da culpa e às exigências de prevenção. Desde há muito que se põe em relevo, porém, que a capacidade de previsão do legislador é necessariamente limitada e inevitavelmente ultrapassada pela riqueza e multiplicidade das situações reais da vida. E que, em consequência, mandamentos irrenunciáveis de justiça e de adequação (ou “necessidade”) da punição impõem que – quando esteja em causa uma atenuação da responsabilidade do agente (…) – o sistema seja dotado de uma válvula de segurança. Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena”.

Nos termos do nº 1 do art. 72º do Cód. Penal, “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”.

Como resulta da norma referida, a “acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena. A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso tem plena razão a nossa jurisprudência – e a doutrina que a segue – quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os casos «normais», lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios” (aut. e ob. citadas, p. 306 e 307).

No caso concreto, e analisada a imagem global do facto, não se vê qualquer razão suscetível de determinar uma atenuação especial.

Improcede, nessa parte, o recurso.

C.2.2. Da determinação da medida concreta da pena: limitações impostas pela medida da culpa e das circunstâncias previstas no artigo 71º, nº 2 do CP.

O Recorrente considera que a pena que lhe foi determinada é exagerada, excessiva, demasiado severa, afirmando que “o Tribunal a quo elaborou o seu raciocínio tendo por base uma fortíssima necessidade de mostrar à sociedade uma mão dura para com os “incendiários”, mas acabou “(…) não satisfazendo nem o Direito nem a Justiça!”.

Cumpre apreciar.

No que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1ª Instância, a intervenção dos Tribunais de 2ª Instância deve ser moderada e seguir a jurisprudência enunciada, quanto à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão daquele Tribunal Superior de 27/05/2009 , no qual se considerou: "... A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada". (No mesmo sentido, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 197, § 255).

Assim, só em caso de desproporcionalidade na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª Instância alterando o quantum da pena concreta.

Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.

De tal resulta que, se a pena fixada na decisão recorrida, em todas as suas componentes, ainda se revelar proporcionada e se mostrar determinada no quadro dos princípios e normas legais e constitucionais aplicáveis, não deverá ser objecto de qualquer correcção por parte do Tribunal de Recurso.

Para essa apreciação, revisitemos as considerações do Tribunal a quo no que se refere à determinação da medida das penas no caso concreto, e nos trechos em que, depois de versar sobre os parâmetros legais de tal operação, enunciou as circunstâncias relevantes:

“Pesados os factos apurados sobre os contornos do crime sub iudice, a conclusão forçosa é que o crime cometido pelo arguido assume contornos gravíssimos.

Com efeito, da matéria apurada conclui-se que o incêndio causado pelo arguido lavrou em milhares de hectares de terreno — só do foco G resultou ardida uma área correspondente a mais de trinta e sete milhões de metros quadrados de terreno, a maioria repleta de árvores. Em consequência do fogo foram evacuados uma aldeia, um hotel, além de casas isoladas no caminho que as chamas iam trilhando. Estiveram envolvidos no combate ao fogo mais de mil e setecentos operacionais, e centenas de veículos.

Do que se conclui que, tendo por certo que o ilícito em causa assume sempre gravidade elevada por causa dos seus contornos inerentes (tutela bens jurídicos muito valiosos, o que tem reflexo na moldura punitiva abstracta, cujo máximo corresponde a uma pena de prisão longa), a matéria dos autos reconduz-se, dentro da amplitude de gravidade —sempre elevada— que o ilícito permite, a um crime extremamente grave.

Não seria preciso dizê-lo, todos o sabem: os incêndios florestais assumem no nosso país a condição de verdadeiro flagelo. Todos os anos se repetem notícias semelhantes, causadoras do maior alarme comunitário, acerca da tragédia dos fogos que, uma e outra e outra vez, se vão repetindo; Danos irrecuperáveis na natureza e resultados incomensuráveis na vida das pessoas afectadas são consequências que se repetem e que constituem, todos os anos, uma verdadeira desgraça nacional.

Nessa medida, em face do resultado verdadeiramente dantesco que a conduta do arguido causou é patente que os cuidados preventivos de ordem geral não podiam ser mais elevados. O ponto mínimo da moldura preventiva terá, por isso, de corresponder a um ponto significativamente superior ao intermédio da moldura abstracta (ponto intermédio que se situa nos 7 anos e 6 meses de prisão) sob pena de, sendo inferior a consequência penal, pura e simplesmente não ficarem acauteladas as exigências de prevenção geral que os factos despertam.

A imagem global do ilícito, tendo em conta os traços que acabamos de assinalar, influi ainda —em manifesto desabono do arguido— no plano da culpa e no plano das exigências de prevenção especial.

No plano da culpa, apesar de se subsumir a uma conduta juridicamente una, o seu comportamento, levado a cabo com dolo directo, pautou-se pela repetição continuada do acto de atear fogo. Esta repetição de tal gesto eleva em grande medida a repugnância ética que o comportamento merece. O arguido queria incinerar a serra e estava disposto a fazer o que fosse preciso para o conseguir. E tanto insistiu que efectivamente logrou o seu intento. Assinale-se, o arguido nem sequer parou de atear fogo por vontade própria, só parou quando foi apanhado e detido.

Uma conclusão subsequente: a culpa permite, in casu, a aplicação de uma pena de dosimetria aproximada ao ponto máximo da moldura abstracta.

No plano preventivo especial, os factos apurados assinalam uma fortíssima oposição ao dever-ser jurídico por parte da personalidade do arguido. O repúdio comunitário —com reflexo evidente na norma penal— por comportamentos como o dos autos é conhecido de todos. Não pode, neste contexto, ser mais uniforme a avaliação ética das pessoas sobre o quão censuráveis e o quão danosos são comportamentos como estes. Ora, neste quadro, que manifestamente propicia uma formação individual de vontade em acordo com os valores comunitários, o que decidiu fazer o arguido? Decidiu pôr fogo na ..., o que fez ateando nada menos que seis focos de incêndio diferentes para conseguir o resultado visado. Do que se conclui que —sem prejuízo do que ainda se dirá— os factos dão uma imagem fortemente negativa quanto à capacidade do arguido para alinhar a sua actuação às regras comunitárias de convivência comum mais elementares: o arguido é capaz de gravíssimas violações ao dever-ser jurídico, e manifestou total indiferença a alguns dos valores éticos mais universais da sociedade.

O que acaba de dizer-se acaba por lançar sombra importante sobre o mais que se conhece sobre a vida do arguido e que, diga-se sem subterfúgio, abona em seu favor.

O arguido é o que usa qualificar-se como uma pessoa favoravelmente integrada na sociedade.

Desde logo, tem laços familiares importantes (é casado, tem filhos, e é avô) factor que normalmente assume papel importante, e de sentido favorável, na prognose quanto ao seu comportamento futuro: é de esperar, normalmente, que quem tem tais laços os pretenda preservar.

O arguido assinala igualmente favorável integração laboral: tem evidentes hábitos de trabalho, e é pessoa estimada, e vista como trabalhadora, pelos colegas.

Em seu abono, também, o facto de não registar antecedentes criminais.

Face ao que acaba de dizer-se, não pode todavia deixar de se assinalar que, apesar da manifesta integração social do arguido, o mesmo já gozava dessas condições quando praticou os factos sub iudice. Factos com os quais demonstrou ter uma personalidade contrária a princípios absolutamente fundamentais do conviver comunitário, o que —sem prejuízo da matéria favorável que se respiga na factualidade apurada— não pode deixar de causar preocupação elevada quanto ao seu comportamento futuro.

Pesado tudo o que antecede concluímos pois que a moldura de prevenção da pena a aplicar tem como limite mínimo um patamar significativamente superior ao meio da pena abstracta; Abaixo dessa fronteira ficaria comprometida a reafirmação, perante a comunidade, da efectiva vigência do comando jurídico violado. O limite máximo da moldura preventiva, sendo extremamente alta a censura que o comportamento do arguido merece, aproxima-se do ponto punitivo abstracto mais elevado.

Firmados estes limites, considerando as exigências preventivas especiais que se detectam no caso, temos por justa a aplicação da pena de 9 anos de prisão” (destacados nossos).

Não merecem qualquer censura as considerações do Tribunal a quo, com as quais concordamos em pleno: são muito relevantes as necessidades de prevenção geral, como assinalou o Tribunal a quo, sendo também intensas as preocupações relacionadas com a prevenção especial, dados os traços de personalidade revelados pelo arguido. Certo é que foram sopesadas todas as circunstâncias atenuantes que decorrem dos factos provados, às quais foi atribuído o peso adequado.

As considerações tecidas na decisão recorrida não revelam qualquer incoerência ou desproporcionalidade na fixação da medida concreta da pena (9 anos de prisão), não suscitando a necessidade de correcção da decisão, visto que nela se observaram os critérios de determinação da pena concreta, foram adequadamente atendidos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.

Nesta conformidade, sem necessidade de ulteriores considerações, o recurso é improcedente, também, no que toca à pretensão de ver reduzida a pena cominada.

C.3. – DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO E DA EXECUÇÃO DA PENA EM REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO.

O Recorrente termina a sua argumentação recursiva apelando para a suspensão da execução da pena (que pretendia fosse fixada muito próxima dos limites mínimos), acrescentando que “admite a sujeição a vigilância eletrónica”.

Estabelece o n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Tendo o arguido sido condenado em pena de 9 anos de prisão, mostra-se excluída a possibilidade de ponderação da suspensão da execução da pena.

Quanto à modalidade de execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, ocorre igualmente obstáculo inultrapassável colocado pela extensão da pena imposta.

Dispõe o artigo 43º do Código Penal sob a epígrafe, “Regime de permanência na habitação”:

«1- Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:

a) A pena de prisão efectiva não superior a dois anos:

b) A pena de prisão efectiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artsº 80 a 82º;

c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no nº 2 do artigo 45º.

(…)”.

Tendo o recorrente sido condenado em pena de prisão superior a dois anos, não se mostra possível equacionar a respetiva execução em regime de permanência na habitação. Prejudicada está, pois, igualmente, esta vertente do recurso.»

3.4.1.1. A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).

Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.

3.4.1.2. A 1.ª operação a realizar consiste na determinação da moldura legal ou abstrata da pena.

A atenuação especial prevista no artigo 72.º, do Código Penal, tem como pressuposto material, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das circunstâncias exemplificativamente enunciadas nesse artigo, a acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa ou das exigências de prevenção.

Ensina o Prof. Figueiredo Dias (ob. cit., pp. 302 e ss.), reportando-se ao artigo 73.º do Código Penal, na redacção originária (que era a disposição referente à atenuação especial), a propósito do paralelismo entre o sistema (ou o «modelo») da atenuação especial e o da determinação normal da pena (hoje previsto no artigo 71.º), que tal paralelismo é só aparente, pois enquanto no procedimento normal de determinação da pena são princípios regulativos a culpa e a prevenção, na atenuação especial tudo se passaria ao nível de uma acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa, e, portanto em último termo, ao nível do relevo da culpa. Pareceria, por isso, serem irrelevantes as exigências da prevenção. Porém, logo acrescenta que há situações que a lei expressamente considera relevantes para aquele efeito – o da atenuação especial – que são insignificativas do ponto de vista da culpa (e, por consequência, também do ilícito típico) e só significativas sob a perspetiva da necessidade da pena (e, por consequência, das exigências da prevenção), concluindo que o princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção (ob. cit., p. 304 e 305, sob os § 450 e 451).

A posição do Prof. Figueiredo Dias é reforçada pela redação do artigo 72.º introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, pois onde antes se referiam (no artigo 73.º) “circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente”, passou a referir-se (no artigo 72.º) “circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.”

No âmbito do artigo 72.º do Código Penal, a atenuação especial corresponde, como é amplamente reconhecido, a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excecionais, em que a imagem global do facto resultante da atuação da (s) atenuante (s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura correspondente ao tipo de crime respetivo (acórdãos do STJ, de 7.11.2007, processo 07P3225, e de 3.11.2010, processo 60/09.9JAAVR.C1.S1, seguindo a doutrina sustentada por Figueiredo Dias).

Estamos perante um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa, com redução de um terço no limite máximo da moldura prevista e várias hipóteses na fixação do limite mínimo.

Esclarece, ainda, o mesmo autor supra citado, que passa-se aqui algo de análogo ao que sucede com os exemplos-padrão: por um lado, outras situações que não as descritas nas alíneas do n.º 2 do artigo 72.º podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro, as próprias situações descritas naquelas alíneas não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, só o possuindo se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido. E conclui que a acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena (ob. cit., p. 306, sob o §453).

Por conseguinte, a atenuação especial ao abrigo do disposto no artigo 72.º só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar, como instrumento de segurança do sistema nas situações em que se verifique «um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo» (acórdão do STJ, de 03.11.2004, Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, 2004, Tomo III, p. 217), ou «quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, seja pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena - vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas» (acórdão do STJ, de 25.05.2005, Coletânea de Jurisprudência Acórdãos do STJ, 2005, Tomo II, p. 207; com interesse o acórdão deste STJ, de 24.03.2022, no processo 134/21.8JELSB.L1.S1).

Considerando a factualidade dada como provada no acórdão recorrido, é manifesta a não verificação de qualquer das circunstâncias descritas nas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 72.º, do Código Penal, ou de outras, suscetíveis de diminuírem de forma acentuada a imagem global do facto: nem a ilicitude dos factos, a culpa do arguido ou a necessidade da pena se revelam diminuídas, muito menos de forma acentuada ou significativa.

Não se verifica, pois, qualquer justificação para a pretendida atenuação especial da pena.

3.4.1.3. Estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção atuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 227 e ss.).

Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:

«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

De acordo com o referido artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e bem assim as relevantes no plano da prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e)] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial.

As diversas condutas do arguido/recorrente foram englobadas na prática de um único crime, a que corresponde pena de 3 a 12 anos de prisão.

O grau de ilicitude é elevadíssimo. O incêndio causado pelo arguido lavrou em milhares de hectares de terreno — só do foco G resultou ardida uma área correspondente a mais de trinta e sete milhões de metros quadrados de terreno, a maioria repleta de árvores. Em consequência, foram evacuados uma aldeia, um hotel, além de casas isoladas. No combate ao fogo estiveram envolvidos mais de mil e setecentos operacionais e centenas de veículos.

A conduta do arguido, levado a cabo com dolo direto, traduziu-se na repetição continuada do ato de atear fogo, até ser apanhado e detido.

As exigências preventivas gerais são muitíssimo elevadas: os incêndios florestais constituem um verdadeiro flagelo nacional, provocando danos muitas vezes irrecuperáveis na natureza e na vida das comunidades e causando grande insegurança e alarme social. Exige-se, pois, quando têm origem criminosa, uma resposta firme do sistema penal, na reafirmação da confiança da comunidade na efetiva proteção penal dos bens jurídicos tutelados.

Justifica-se, por isso, que o ponto mínimo da moldura de prevenção se situe num ponto significativamente superior ao intermédio da moldura abstrata, sob pena de, como se afirma no acórdão da 1.ª instância, sendo inferior, não ficarem acauteladas minimamente as exigências de prevenção geral que os factos convocam.

No plano da prevenção especial, as exigências são também assinaláveis, pese embora a integração social, familiar e profissional do arguido/recorrente e a ausência de antecedentes criminais.

Como se transcreve no acórdão recorrido:

«O repúdio comunitário —com reflexo evidente na norma penal— por comportamentos como o dos autos é conhecido de todos. Não pode, neste contexto, ser mais uniforme a avaliação ética das pessoas sobre o quão censuráveis e o quão danosos são comportamentos como estes. Ora, neste quadro, que manifestamente propicia uma formação individual de vontade em acordo com os valores comunitários, o que decidiu fazer o arguido? Decidiu pôr fogo na ..., o que fez ateando nada menos que seis focos de incêndio diferentes para conseguir o resultado visado. Do que se conclui que —sem prejuízo do que ainda se dirá— os factos dão uma imagem fortemente negativa quanto à capacidade do arguido para alinhar a sua actuação às regras comunitárias de convivência comum mais elementares: o arguido é capaz de gravíssimas violações ao dever-ser jurídico, e manifestou total indiferença a alguns dos valores éticos mais universais da sociedade.»

A referida integração social, familiar e profissional do arguido/recorrente já se verificava ao tempo dos factos e não obstou à prática dos mesmos, que documenta uma personalidade jurídico-penalmente desvaliosa a justificar preocupação quanto à sua conduta futura.

Neste contexto, em que a moldura de prevenção tem como limite mínimo um patamar significativamente superior ao meio da pena abstrata e o seu limite máximo se situa na proximidade do limite superior daquela pena, devendo atuar entre os dois as exigências preventivas especiais, sempre dentro do limite consentido pela culpa – que é, no caso, elevada -, entendemos não merecer qualquer censura a pena de 9 (nove) anos de prisão que foi imposta ao arguido, o que exclui a aplicabilidade de qualquer pena de substituição.

***

III - DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em:

A) Rejeitar o recurso na parte que concerne ao decidido pela Relação quanto a recursos interlocutórios, nos termos dos artigos 414.º n.ºs 2 e 3, e 420.º, n.º1, al. b), do CPP;

B) No mais, negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça (cf. artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e Tabela III anexa), condenando-se o recorrente, também, na importância de 4UC, nos termos do n.º 3, do artigo 420.º, do CPP.

Supremo Tribunal de Justiça, 12 de dezembro de 2024

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

Jorge Reis Bravo (1.º Adjunto)

Vasques Osório (2.º Adjunto)