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ESTAFETA
AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
PLATAFORMA DIGITAL
PRESUNÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO
Sumário
I- A ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho tem por finalidade o combate à utilização indevida de um designado contrato de prestação de serviço em relações de trabalho subordinado. II- Nesta ação, que tem natureza oficiosa, o Ministério Público tem de alegar e provar que o negócio jurídico celebrado consubstancia um contrato de trabalho sob a falsa aparência de um contrato de prestação de serviços ou outro. III- As regras gerais de direito probatório e o regime jurídico que instituiu a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não impedem, antes permitem, a aplicabilidade das presunções legais consagradas nos artigos 12.º e 12.º-A do Código do Trabalho, desde que o Ministério Público tenha logrado provar a base da presunção, isto é, que se verificam pelo menos dois dos indicadores de laboralidade que se mostram expressamente elencados nos aludidos artigos. IV- Todavia, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, prevista no artigo 12.º- A do Código do Trabalho, não se aplica a uma relação jurídica iniciada entre a ré Uber Eats e um estafeta antes da entrada em vigor deste artigo (01-05-2023), se a relação contratual não tiver sofrido modificações. V- Quando, com arrimo nos factos provados, se verifica apenas o indício de laboralidade previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho, não opera a presunção prevista no artigo. (Sumário elaborado pela relatora)
I. Relatório
O Ministério Público intentou a presente ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, prevista nos artigos 186.º-K e seguintes do Código de Processo do Trabalho, contra UBER EATS Portugal, Unipessoal, Lda., pedindo que seja reconhecida a existência de um contrato de trabalho entre AA e a demandada, com início em 31-01-2021.
A ação seguiu a tramitação que consta dos autos, para a qual se remete.
Em 05-08-2024, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a ré do pedido.
O valor da ação foi fixado em € 2.000,00.
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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso para esta Relação, extraindo das suas alegações as seguintes conclusões: «1.ª As leis laborais, salvo regras interpretativas especificas por elas próprias estabelecidas, devem ser interpretadas de acordo com os critérios gerais dos artigos 12.º e 13.º do Cod. Civil. 2.ª O art.º 12, n.º 2 do Cod. Civil estabelece que a Lei nova só produz efeitos para o futuro, mas quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entende-se que a Lei nova se aplica de imediato às relações já constituídas desde que ainda subsistentes e o contrato de trabalho é precisamente uma dessas situações. 3.ª De acordo com o art.º 12, n.º 2 do C.C. se a Lei nova pretende estabelecer uma disciplina das condições de trabalho com abstração dos factos que lhe deram origem, essas normas devem ser aplicadas de imediato às relações laborais constituídas anteriormente à sua entrada em vigor, mas ainda subsistentes àquela data. 4.ª A qualificação de um contrato é uma questão jurídico-normativa a solucionar por subsunção da factualidade clausulada aos preceitos legais, uma operação que abstrai da concreta vontade das partes. 5.ª As presunções de laboralidade (quer as do art.º 12.º nas suas diversas versões, quer a do art.º 12.º-A do Cod. Do Trabalho) destinam.se a operar essa qualificação olhando sobretudo para a execução que as partes fazem do acordado e essa execução não sofre alteração por força da entrada em vigor da Lei Nova. 6.ª A aplicação imediata da Lei Nova que estabelece nova presunção de laboralidade às relações laborais constituídas anteriormente à sua entrada em vigor, mas ainda subsistentes, não limita o princípio da Liberdade contratual das partes, sendo esta “a Liberdade de modelar e de concluir os negócios, não a de decidir arbitrariamente da lei a que eles devem submeter-se” sobretudo se o nomen não corresponde à execução efetiva, não havendo, por isso legitimas expectativas a proteger, não se afetando a função estabilizadora do Direito que as normas transitórias visam proteger 7.º Salvo o devido respeito por opinião contrária, entendo que a presunção de laboralidade prevista no art.º 12-A do Código do trabalho, introduzida pela Lei 13/2023 de 3 de abril se aplica às relações contratuais iniciadas em momento anterior à entrada em vigor da referida norma e que ainda subsistam, a essa data. 8.º Diga-se ab initio que o artigo 12-A não afasta aplicação do artigo 12 .º do Cod. Do Trabalho e, à semelhança deste, basta-se com a verificação de duas (podendo no entanto, ser mais) das caraterística que estabelece para que se tenha por verificada a presunção de laboralidade. 9.ª Para poder exercer a atividade, ao registar-se na plataforma a prestadora teve de indicar a área geográfica onde estava disponível para fazer as entregas, dentro das áreas geográficas onde a plataforma estivesse operacional. 10.ª Quem determina a área onde o negócio se vai desenvolver é a empresa que o tem. O estafeta não tem qualquer possibilidade de determinar a área geográfica onde a plataforma vai estar operacional, a sua liberdade limita-se à eleger um dos lugares onde a plataforma decidiu operar como qualquer outro trabalhador que se candidate a um emprego onde ele, obviamente, existe, pelo que dizer que o estafeta escolhe o local onde presta a atividade é, salvo o devido respeito, uma falácia. Acresce que há, ainda, outro aspeto muito relevante a considerar, é a plataforma quem indica ao estafeta o ponto de recolha e o ponto de entrega da encomenda e lhe define inicialmente a rota e só esta é paga ao estafeta, pelo que se considera preenchida a caraterística do art.º 12, n.º 1 alínea a) do C.T.. 11.ª A aplicação informática, como defende o Exmo.Sr. Juiz Pedro Santos, é um instrumento de trabalho incorpóreo essencial, sem o qual não haveria relação entre o prestador da atividade e a plataforma enquanto sujeito da relação jurídica. E é absolutamente imprescindível que exista e que o prestador a ela continue a ter acesso para que a relação se mantenha. É através dela que é feita toda a organização da atividade, pelo que considero que esta característica do art.º 12.º alínea b) assim como a característica da alínea f) do n.º 1 do art.º 12-A se tem por verificada uma vez que não se exige que todos os instrumentos pertençam ao beneficiário da atividade, como já acontecia com a presunção de laboralidade da Lei 99/2003 de 27 de Agosto. 12.º Estando preenchidas duas características prevista no art.º 12.º do Cod. do Trabalho (as alíneas a) e b ) está verificada a presunção de laboralidade, mas se assim não fosse também se verificam as caraterísticas previstas no art.º 12-A , n.º 1 do Cod. do Trab., nas alíneas a) b) c) d) e e). 13.º A retribuição paga ao estafeta tem uma componente fixa que é determinada unilateralmente pela plataforma e tem uma parte variável que pode ter a colaboração do estafeta na sua determinação. Contudo essa parte variável é ainda encontrada a partir de um mínimo (0,10 €) e de um máximo (99,00 €) fixados pela plataforma, pelo que está verificada a caraterística da alínea a) do art.º 12-A do Cod. Trab. 14.º A plataforma digital exerce o poder de direção, de gestão e organização da prestação de atividade e o poder de regulamentar sobre a prestação de atividade em todos os aspetos que a envolvam. 15.º Fá-lo quando define o próprio processo de registo da pessoa que pretende ser prestador de atividade, quando define a forma de pagamento do serviço sem intervenção ativa do prestador, não lhe permitindo sequer o recebimento direto das “gorjetas”, quando define ab initio um percurso de entrega, quando cria um “radar de viagens” está, por via indireta a “tabelar preços” e a intervir na prestação da atividade. Em conclusão, considero que está verificada a característica da alínea b) do art.º 12 –A do CT. 16.º A plataforma digital controla e supervisiona a prestação de atividade incluindo em tempo real ou verifica a qualidade da atividade prestada nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica quando recolhe dados, incluindo, biométricos, com a geolocalização do prestador de atividade a partir do momento em que este se coloca online , quando disponibiliza uma funcionalidade que permite ao cliente final colocar a sua apreciação sobre a prestação de atividade do estafeta, (Feedback). pelo que está verificada a característica da alínea c) do art.º 12 –A do CT. 17.º E não se diga que a plataforma não faz uso dessa informação porque independentemente do uso que a plataforma fez desta informação quem decide o uso que faz é a plataforma, não o prestador! 18.º Com a alínea d) do art.º 12.º-A entramos no domínio do controlo e das restrições à própria atividade e não à prestação propriamente dita. Se relativamente à escolha de horários, períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar pedidos não há restrições, já no que respeita à utilização de subcontratados ou substitutos, nomeadamente partilha de contas a plataforma impõe regras próprias a que o estafeta tem de obedecer, podendo mesmo impedir o acesso temporário à conta e ou o cancelamento definitivo da mesma, se não cumpridas pelo estafeta impedindo-o de trabalhar, pelo que se tem por verificada. 19.º O poder disciplinar prende-se com a sujeição do prestador de atividade à direção do empregador e é o critério distintivo principal entre o trabalhador subordinado e o independente. 20.º Como já se referiu, o prestador de atividade está sujeito a um controlo do seu desempenho, está adstrito a um conjunto de regras impostas pelo dono da aplicação, que tem sobre ele o poder de lhe restringir o acesso à plataforma de forma temporária ou definitiva. 21.º Do âmbito desta alínea e) essas possibilidades aparecem associadas ao poder disciplinar que por sua vez, remete, sem margem para dúvidas, para o trabalho subordinado. 22.º Atendendo ao grau de controlo que a plataforma exerce sobre o prestador, na prática é esta que detém o domínio da prestação, controlando como é exercida, estando prestador sujeitos às regras impostas pela plataforma, pelo que também esta característica se tem como verificada. 23.º A presunção de laboralidade não foi ilidida porque para tal a prova tem de ser efetiva, não bastando declarações negociais escritas afirmativas de que a prestação é autónoma insertas num formulário elaborado unilateralmente – contrato de adesão - ou afirmações de que existem poderes que não são exercidos ou que há controlos inócuos, porque é exatamente contra isso que foi criada a presunção de laboralidade!
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Pelo exposto, estando verificada a presunção de laboralidade com o preenchimentos das caraterísticas previstas no art.º 12.º, n.º 1 alíneas a) e b) e art.º 12-A, n.º 1 alíneas a) b) c) d) e) e f) deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que reconheça a existência de um contrato de trabalho entre a prestadora de atividade e AA, desde 31-1-2021, porém V.Exas farão, como sempre JUSTIÇA».
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Contra-alegou a ré, propugnando pela improcedência do recurso.
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A 1.ª instância admitiu o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Após a subida do processo à Relação, o recurso foi mantido nos seus precisos termos, foi elaborado o projeto de acórdão e foram colhidos os vistos legais.
Cumpre, em conferência, apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis “ex vi” do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, a questão suscitada no recurso de apelação e que importa dilucidar e resolver é a da qualificaçãoda relação jurídica que foi estabelecida entre a ré e AA.
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III. Matéria de Facto A 1.ª instância julgou provados os seguintes factos: 1. A Ré UBER EATS Portugal Unipessoal Lda. é uma sociedade por quotas que tem por objeto social a prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos, atividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações online e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com restauração, consultadoria, conceção e produção de publicidades e marketing, aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais, atividades que desenvolve com o CAE principal 62090-R3 e CAE secundários 70220-R3 e 73110-R3 [Cf. certidão permanente de fls. 71]; 2. No âmbito da sua atividade, a Ré gere o sítio da internet www.ubereats.com/pt e a Plataforma e Aplicação informática Uber Eats, efetuando serviços à distância, a solicitação dos interessados; 3. Para tanto, a Ré promove a reunião de estafetas em áreas geográficas determinadas, os quais aí mostram disponibilidade para aceitarem propostas de entrega correspondentes a pedidos de pessoas interessadas, recolherem os produtos solicitados por estas e efetuarem o transporte e entrega nos lugares indicados; 4. No dia 15 de setembro de 2023, pelas 20h, no Centro Comercial Local 1, sito em Freguesia 1, Local 1, os Inspetores da ACT verificaram que aí se encontrava AA, que recolhera o pedido de um cliente interessado feito na Aplicação Uber Eats, para entrega na morada indicada; 5. A referida cidadã estava apetrechada com uma mochila térmica de cor verde com o logotipo Uber Eats; 6. Para desenvolver a atividade de estafeta, através da Plataforma informática gerida pela Ré, a cidadã em causa estava aí registada e a usar a Aplicação UberEats, assumindo a qualidade de “Parceira de Entregas Independente”, o que sucedia desde janeiro de 2021; 7. Para se registar na referida Plataforma e Aplicação, AA submeteu aí a documentação exigida pela Ré, designadamente, cópia do documento de identificação, documento comprovativo de abertura de atividade nas finanças, certificado de registo criminal sem antecedentes criminais averbados, associou a matrícula do veículo em que passaria a deslocar-se para fazer as entregas, juntou cópia dos respetivos documentos, assim como da sua carta de condução; 8. Demostrou, por fotografia, que tinha a mochila térmica com as dimensões e as condições de higiene; 9. E, para finalizar o registo, concordou com o teor de um documento contendo aos termos e condições aplicáveis e que lhe foi apresentado já redigido, sem possibilidade de alteração; 10. Cumpridas estas etapas e uma vez ativada a conta, para iniciar a sua atividade AA teve de ligar-se à internet, aceder à sua conta na Aplicação com o nome por si escolhido e respetivo código de segurança e acionar o botão de disponibilidade para poder receber propostas de entrega; 11. A cidadã em causa desenvolve essa atividade de entregadora/estafeta na zona de Local 1 e Local 2; 12. O valor devido pela entrega, que é pago pela Ré, tem uma componente fixa e uma componente variável, sendo a primeira fixada pela Ré tendo em conta circunstâncias como o horário da entrega (sendo os de maior fluxo mais bem pagos), condições meteorológicas adversas, feriados ou períodos de alta procura; 13. A componente variável depende da distância a percorrer para efetuar a entrega (entre o ponto de recolha e o local de destino) e o custo por quilómetro, que pode ser modificado pelo estafeta; 14. O estafeta toma conhecimento do valor que pode receber, relativamente a cada proposta de entrega, no momento em que a mesma lhe é apresentada na Aplicação; 15. Em regra, a Ré efetua o pagamento semanalmente, mediante transferência para a conta bancária cujo IBAN foi indicado ab initio pela estafeta para esse efeito, podendo a referida periodicidade ser alterada pelo estafeta através da ferramenta “Flex Pay”; 16. A partir do momento em que a estafeta faz login na Aplicação, a Plataforma fica a saber a sua localização, através do sistema de geolocalização, sendo este conhecimento indispensável para atribuição das propostas de entrega e cálculo do valor do serviço; 17. Com o sistema de geolocalização ligado, o tempo de entrega dos pedidos e o percurso efetuado pela estafeta podem ser controlados em tempo real pela Plataforma e pelo cliente, que pode acompanhar o processo; 18. O estafeta não tem intervenção na escolha dos clientes e das propostas de entrega, que surgem na Aplicação tendo em conta diversos fatores, entre os quais a localização; 19. Em caso de violação das obrigações assumidas pelo estafeta, nomeadamente se permitir a utilização da conta por terceiros não inscritos na plataforma ou se for efetuada queixa contra o mesmo por fraude, a plataforma pode desativar a conta em definitivo ou restringir o acesso temporário à Aplicação; 20. Para impedir que o estafeta se faça substituir por outrem, a Plataforma usa um sistema de reconhecimento facial para controlar a identidade do estafeta; 21. O cliente final paga o preço na Plataforma, podendo incluir as gorjetas, que são depois entregues por inteiro ao estafeta; 22. A Ré celebrou um contrato de seguro para proteção dos parceiros motoristas da Uber Eats/estafetas, nomeadamente em caso de lesão permanente ou temporária durante os serviços de entregas e em caso de óbito; 23. A cidadã AA desenvolve a sua atividade de estafeta através da Aplicação Uber Eats desde janeiro de 2021, a tempo parcial; 24. No momento em que efetua o registo na plataforma, o estafeta subscreve (manifestando concordância) o documento de fls. 166 a 174, intitulado “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por reproduzido: 25. Os estafetas podem desenvolver a sua atividade na Plataforma mediante registo direto nesta, conforme referido em 6, ou através de um intermediário;
26. Os estafetas é que decidem o local onde prestam a sua atividade, indicando essa opção na Aplicação, sendo a única limitação a Plataforma estar ativa na área geográfica escolhida; 27. Os estafetas podem bloquear comerciantes e/ou clientes com quem não desejem contactar, deixando de receber propostas de entrega desse clientes e/ou comerciantes, sem necessidade de justificar a sua opção; 28. A Plataforma não dá indicação aos estafetas sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas, embora a proximidade dum ponto de recolha assegure maior probabilidade de receber propostas de entrega; 29. Cada estafeta é livre de iniciar e terminar sessão na plataforma à hora que entender, sem necessidade de justificar a sua opção; 30. Perante uma proposta de entrega, o estafeta tem as opções de aceitar, ignorar ou recusar, sem necessidade de justificar a sua opção; 31. Os estafetas escolhem livremente a roupa que vestem para fazerem entregas, o equipamento (telemóvel smartphone), e o veículo (mota ou bicicleta), não tendo de estar identificados com qualquer elemento da marca da Uber Eats, podendo inclusive usar marcas concorrentes; 32. A mochila que os estafetas usam é imposta pela Ré, por razões de higiene e segurança alimentar, sem marca específica, podendo ser usada uma mochila de marcas concorrentes; 33. O valor recebido pelos estafetas é referente à entrega efetiva do produto do comerciante ao cliente; 34. A taxa mínima por quilómetro, que integra a componente variável do valor devido pela entrega, pode ser ajustada pelo estafeta a qualquer momento, de acordo com o seu critério, entre um mínimo de 0,10€ e um máximo de 99€, por forma a receberem propostas de entrega apenas acima do valor mínimo assim definido (que também podem ser rejeitadas); 35. No caso, a estafeta AA já ajustou a taxa mínima por quilómetro de 0,10€ para os 0,20€ e para valores superiores como 3,80€; 36. A Plataforma, quando apresenta a proposta de entrega ao estafeta, indica o valor final que o mesmo irá receber caso aceite o pedido e não um valor mínimo; 37. O pagamento aos estafetas é, em regra, feito semanalmente, por transferência bancária, caso os mesmos não optem por recolher os rendimentos mais cedo, através da ferramenta "Flex Pay", na qual podem acompanhar e receber logo os ganhos que geram através da Plataforma; 38. Os estafetas dispõem de uma ferramenta na Aplicação que lhes permite visualizar outras propostas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e selecioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens”; 39. A emissão de faturação surge na sequência do pagamento pela Ré dos valores relativos às entregas realizadas pelo estafeta; 40. Os clientes da Ré têm obrigatoriamente de se registar na Plataforma, previamente, para poderem encomendar produtos; 41. O reconhecimento facial mencionado em 20 reporta-se ao controlo de identidade dos estafetas na Plataforma, imposto pela Ré, através do qual é pedido aos estafetas que tirem uma selfie (autorretrato) que depois é comparada com a fotografia registada na Plataforma, para detetar situações de partilha de contas fora das situações permitidas, apurando se quem se encontra a prestar atividade através de uma determinada conta é o respetivo titular, o único que comprovou que cumpre com todos os requisitos para exercer a sua atividade, tendo apresentado os documentos exigidos; 42. O reconhecimento facial é despoletado pela Aplicação de forma automática e aleatória; 43. Os estafetas podem escolher as rotas que seguem, o sistema de navegação que utilizam (se assim entenderem) e a forma como comunicam com o cliente no momento da entrega da encomenda; 44. Cabendo ao estafeta decidir quando e durante quanto tempo se liga à plataforma, no caso concreto de AA, entre os dias 07 e 31 de maio de 2023, os dias 31 de maio e 22 de junho de 2023, e os dias 22 de junho e 05 de agosto de 2023, a Prestadora de Atividade não utilizou uma única vez a Plataforma para prestar a sua atividade, num total de, respetivamente, 24 (vinte e quatro), 22 (vinte e dois) e 44 (quarenta e quatro) dias; 45. Por referência à data da entrada da contestação em juízo, AA não fazia qualquer entrega desde o dia 12 de outubro de 2023; 46. Apesar do referido em 44 e 45, AA continua com a conta ativa; 47. A Ré não faz uso do feedback dado pelos clientes e restaurantes para efeitos de avaliação da performance dos estafetas, reagindo apenas para verificar a identidade do estafeta nos casos em que um cliente reporte que o mesmo não corresponde à fotografia de perfil; 48. O referido em 47 visa assegurar que não existe partilha de contas; 49. A ativação do GPS é necessária para o funcionamento da Plataforma, designadamente para a apresentação de propostas de entrega, sendo preferidos os estafetas que estão melhor posicionados para recolher a encomenda (mais próximos) e entregá-la no melhor tempo possível. 50. O GPS permite aos clientes acompanharem a sua encomenda a partir do momento em que o estafeta a recolhe; 51. Uma vez recolhida a encomenda, o estafeta pode optar por não utilizar qualquer sistema de navegação GPS, não sendo penalizado por isso, embora o bom funcionamento da Aplicação e o próprio serviço fiquem comprometidos, já que o cliente deixa de poder acompanhar o trajeto seguido pelo estafeta e prever o tempo que falta para a entrega; 52. Apesar da disponibilidade permanente da Aplicação, em determinados horários e zonas geográficas podem não existir estabelecimentos abertos e/ou clientes a efetuar pedidos através da Plataforma; 53. O estafeta pode-se fazer substituir por outro estafeta registado, sendo os rendimentos negociados entre o substituído e o substituto, recebendo este os ganhos durante a substituição; 54. Quando completam recorrentemente entregas para um determinado restaurante, os estafetas recebem comunicações da Ré a relembrar que são livres de oferecer os seus serviços diretamente ao comerciante sem ser por intermédio da Plataforma; 55. Para se registarem na Plataforma, os estafetas não estão sujeitos a qualquer tipo de processo de recrutamento, não havendo análise de CV, entrevistas ou qualquer tipo de processo de seleção; 56. Para registo da plataforma, o estafeta deve cumprir os seguintes requisitos:
i. Idade mínima de 18 anos;
ii. Certificado de residência, se for cidadão de um país não pertencente à União Europeia;
iii. Carta de condução, se conduzir uma moto;
iv. Seguro, se conduzir uma mota;
v. Não ter antecedentes criminais.
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E julgou como não provados os seguintes factos: 1. Que seja exigência da Ré o uso de mochila com o logotipo da UBER; 2. Que o estafeta não possa alterar a zona onde exerce a sua atividade; 3. Que o estafeta só saiba quanto vai receber após aceitar a proposta de entrega; 4. Que o pagamento ao estafeta seja apenas semanal; 5. Que a Aplicação tenha um horário de funcionamento; 6. Que o estafeta apenas possa escolher os dias e as horas em que desempenha funções; 7. Que o estafeta não possa ter clientes próprios, dispor de uma organização empresarial própria e tenha que proceder a entregas identificado com a sigla UBEREATS; 8. Que a Ré desconheça qual o valor e a periodicidade com que é pago o Prestador de Atividade.
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IV. Qualificação da relação jurídica
Como já referimos, o thema decidendum relaciona-se com a qualificação da relação contratual que a ré estabeleceu com AA.
Na sentença recorrida negou-se o peticionado reconhecimento da existência de um contrato de trabalho.
O autor, em sede de recurso, impugnou esta decisão.
Cumpre apreciar.
Para tanto, importa ter presente alguns pressupostos básicos essenciais que passaremos, de seguida, a mencionar.
Estamos perante uma ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho que tem natureza oficiosa, isto é, a mesma iniciou-se sem qualquer intervenção do presumível trabalhador ou do presumível empregador, e tem por finalidade o combate à utilização indevida de um designado contrato de prestação de serviço em relações de trabalho subordinado.
Neste sentido se pronunciaram os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2018, proferidos nos processos n.ºs 17082/17.9T8LSB.L1.S1 e 20416/17.2T8LSB.L1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt: «A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho está inserida no Título VI do Código de Processo do Trabalho, referente aos processos especiais, encontrando-se regulada nos artigos 186.º-K a 186.º-R, resultando da alteração ao Código de Processo do Trabalho introduzida pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, com início de vigência em 1 de setembro de 2013. Trata-se de uma ação de cariz publicista que resulta da atividade da Autoridade para as Condições do Trabalho, como se pode observar pelo teor do art.º 186.º-K, que se estriba no procedimento previsto no art.º 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, que aprovou o regime processual aplicável às contraordenações laborais e de Segurança Social. É uma ação de carácter oficioso que se inicia sem a intervenção processual do trabalhador, que pode, em fase posterior, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentando articulado próprio e constituir mandatário, como está previsto no n.º 4, do art.º 186.º-L do Código de Processo do Trabalho. A tramitação desta ação é muito simplificada, pois o seu objeto consiste em apurar a factualidade relevante para qualificar o vínculo existente, e caso se reconheça a existência de um contrato de trabalho fixar a data do início da relação laboral, como impõe o n.º 88, do art.º 186.º-O, do diploma citado.».
Nesta ação especial compete ao Ministério Público alegar e demonstrar que se está perante uma prestação de atividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, suscetível de causar prejuízo ao trabalhador e ao Estado.
Dito de outra forma, o Ministério Público tem de alegar e provar que o negócio jurídico celebrado consubstancia um contrato de trabalho sob a falsa aparência de um contrato de prestação de serviços (ou outro) com o objetivo de evitar custos e responsabilidades que o vínculo laboral implica.
Ora, as regras gerais de direito probatório (341.º e seguintes do Código Civil, destacando-se os artigos 342.º, 343.º, 344.º e 350.º) e o regime jurídico que instituiu a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho (Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, que alterou e aditou, respetivamente, os artigos 2.ª n.º 3 e 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, que nos remetem para o artigo 12.º do Código do Trabalho e, após a entrada em vigor da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, também para o artigo 12.º-A do mesmo código) não impedem, antes permitem, a aplicabilidade das presunções legais consagradas nos artigos 12.º e 12.º-A do Código do Trabalho, bastando assim ao Ministério Público provar a base da presunção.
Por seu turno, à parte demandada compete ilidir a presunção de laboralidade, uma vez que se trata de uma presunção juris tantum, designadamente demonstrando, através de factos concretos/reais, que, afinal, a atividade, não obstante a verificação da base da presunção, é prestada com autonomia, isto é, sem a subordinação jurídica característica da relação laboral.
Definido assim o específico objeto da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho e os ónus probatórios que recaem sobre cada uma das partes processuais, avancemos para a qualificação da relação contratual sub judice.
Dispõe o artigo 1152.º do Código Civil: «Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta».
Concomitantemente, o artigo 11.º do Código do Trabalho estatui o seguinte: «Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas».
Por sua vez, prescreve o artigo 12.º deste compêndio legal: «1 - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características: a) A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado; b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade; c) O prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma; d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma; e) O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa. 2 - Constitui contraordenação muito grave imputável ao empregador a prestação de atividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado. 3 - Em caso de reincidência, é aplicada a sanção acessória de privação do direito a subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público, por período até dois anos. 4 - Pelo pagamento da coima, são solidariamente responsáveis o empregador, as sociedades que com este se encontrem em relações de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, bem como o gerente, administrador ou diretor, nas condições a que se referem o artigo 334.º e o n.º 2 do artigo 335.º».
A Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, que alterou parcialmente o Código do Trabalho, no âmbito da agenda do trabalho digno, veio introduzir o artigo 12.º-A, que é um artigo muito específico e que estabelece uma presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital. Esta norma entrou em vigor em 1 de maio de 2023 - cf. artigos 35.º, n.º 1, e 37.º da Lei n.º 13/2023 – e tem a seguinte redação: «1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características: a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela; b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade; c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica; d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma; e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta; f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação. 2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios. 3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico. 4 - A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata. 5 - A plataforma digital pode, igualmente, invocar que a atividade é prestada perante pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores. 6 - No caso previsto no número anterior, ou caso o prestador de atividade alegue que é trabalhador subordinado do intermediário da plataforma digital, aplica-se igualmente, com as necessárias adaptações, a presunção a que se refere o n.º 1, bem como o disposto no n.º 3, cabendo ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora. 7 - A plataforma digital não pode estabelecer termos e condições de acesso à prestação de atividade, incluindo na gestão algorítmica, mais desfavoráveis ou de natureza discriminatória para os prestadores de atividade que estabeleçam uma relação direta com a plataforma, comparativamente com as regras e condições definidas para as pessoas singulares ou coletivas que atuem como intermediários da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores. 8 - A plataforma digital e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores, bem como os respetivos gerentes, administradores ou diretores, assim como as sociedades que com estas se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, são solidariamente responsáveis pelos créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, celebrado entre o trabalhador e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital, pelos encargos sociais correspondentes e pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contraordenação laboral relativos aos últimos três anos. 9 - Nos casos em que se considere a existência de contrato de trabalho, aplicam-se as normas previstas no presente Código que sejam compatíveis com a natureza da atividade desempenhada, nomeadamente o disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação. 10 - Constitui contraordenação muito grave imputável ao empregador, seja ele a plataforma digital ou pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores que nela opere, a contratação da prestação de atividade, de forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado. 11 - Em caso de reincidência, são ainda aplicadas ao empregador as seguintes sanções acessórias: a) Privação do direito a apoio, subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público, designadamente de natureza fiscal ou contributiva ou proveniente de fundos europeus, por período até dois anos; b) Privação do direito de participar em arrematações ou concursos públicos, por um período até dois anos. 12 - A presunção prevista no n.º 1 aplica-se às atividades de plataformas digitais, designadamente as que estão reguladas por legislação específica relativa a transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica.».
Atendendo à argumentação exposta pelo recorrente impõe-se, desde logo, que apreciemos se o tribunal a quo decidiu incorretamente ao considerar que o novíssimo artigo 12.º-A não se aplica à relação contratual que se aprecia nos autos porque esta se iniciou antes da entrada em vigor deste preceito legal.
Desde já adiantamos que quanto a esta questão – aplicação da lei no tempo – afigura-se-nos que a decisão recorrida não merece censura.
Atualmente, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que quando está em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida, a presunção de laboralidade prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho só é aplicável às relações jurídicas constituídas após o início da sua vigência, que ocorreu em 1 de dezembro de 2003.
Cita-se, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-07-2018 (Proc. n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1), acessível em www.dgsi.pt: «I. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes. II. A presunção de laboralidade é um meio facilitador da prova a favor de uma das partes, pelo que a solução de aplicar a lei vigente ao tempo em que se realiza a atividade probatória pode conduzir a um desequilíbrio no plano processual provocado pela impossibilidade de se ter previsto no momento em que a relação se estabeleceu quais as precauções ou diligências que deviam ter sido tomadas para assegurar os meios de prova, o que poderia conduzir à violação do direito a um processo equitativo e causar uma instabilidade indesejável em relações desde há muito constituídas.».
Sabemos que este entendimento tem sido objeto de crítica de alguma doutrina.
Aliás, na sentença recorrida houve o cuidado de identificar alguns autores que tem defendido solução diversa.
Mas certo é que existe uma jurisprudência consolidada sobre o tema – recentemente reiterada, por exemplo, nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-09-2024 (Proc. n.º 12510/19.1T8SNT.L1.S1) e de 01-06-2022 (Proc. n.º 21116/18.1T8LSB.L1.S1) - e esta Secção Social de Évora tem acompanhado esta jurisprudência.
Ademais, entendemos que esta jurisprudência se aplica totalmente à presunção consagrada no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, uma vez que o artigo 35.º, n.º 1, da Lei n.º 13/2023 tem uma redação similar à dos artigos 8.º, n.º 1, da Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, e 7.º, n.º 1, da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, que estiveram na base do entendimento acima mencionado.
Ora, no caso que nos ocupa, infere-se da factualidade provada que a relação contratual entre a ré e AA se iniciou em janeiro de 2021 (pontos 6 e 23) e que não sofreu qualquer modificação desde a data do seu início.
Por conseguinte, a presunção de laboralidade que se aplica é a que se encontra consagrada no artigo 12.º do Código do Trabalho, como bem decidiu o tribunal a quo.
Sendo assim, mostra-se prejudicada a qualificação da relação contratual à luz do artigo 12.º-A do Código do Trabalho – cf. artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Prossigamos.
De harmonia com o estatuído no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiem, se verifiquem algumas das características elencadas nas diversas alíneas desse número.
Utilizando a lei a palavra “algumas”, tal significa que, pelo menos, têm de estar reunidas duas das circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 12.º para poder operar a presunção legal - cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-10-2017 (Proc. n.º 1333/14.4TTLSB.L2.S2), de 07-09-2017 (Proc. n.º 2242/14.2TTLSB.L1.S1) e de 02-07-2015 (Proc. n.º 182/14.4TTGRD.C1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Analisemos, então, se os índices de laboralidade previstos nas diversas alíneas se mostram preenchidos no caso que nos ocupa.
A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado – alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º.
Sobre esta matéria, eis o que de relevante resultou dos factos assentes:
- a ré promove a reunião de estafetas em áreas geográficas determinadas, os quais aí mostram disponibilidade para aceitarem propostas de entrega correspondentes a pedidos de pessoas interessadas, recolherem os produtos solicitados por estas e efetuarem o transporte e entrega nos lugares indicados (ponto 3);
- a estafeta AA desenvolve essa atividade de entregadora/estafeta na zona de Local 1 e Local 2 (ponto 11);
- os estafetas é que decidem o local onde prestam a sua atividade, indicando essa opção na Aplicação Uber Eats, sendo a única limitação a Plataforma estar ativa na área geográfica escolhida (ponto 26);
- a Plataforma não dá indicação aos estafetas sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas, embora a proximidade dum ponto de recolha assegure maior probabilidade de receber propostas de entrega (ponto 28);
- os estafetas podem escolher as rotas que seguem (ponto 43);
Ora, o que resulta da factualidade destacada é que a atividade desenvolvida pelos estafetas, nomeadamente por AA, não era realizada em local pertencente à ré. Todavia, é possível inferir que a ré indicava aos estafetas, depois dos mesmos terem aceitado uma proposta de entrega, os locais de recolha e entrega das encomendas. Já quanto ao percurso a utilizar entre um local e outro, o mesmo era livremente escolhido pelo estafeta, pelo que, não se pode considerar que fosse determinado pela ré.
Parece-nos, ainda assim, que a determinação dos locais de recolha e de entrega preenche a segunda parte deste índice de laboralidade, ou seja, resultou demonstrado que a atividade (recolha e entrega) era realizada em locais determinados pela ré.
Consideramos, como tal, preenchida a alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º.
Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade - alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º.
Depreende-se do acervo fáctico provado que a estafeta identificada utilizava para o exercício da atividade acordada um veículo (mota ou bicicleta), um telemóvel smartphone e uma mochila térmica, que podia livremente escolher (pontos 6, 31, 32).
Não logrou o autor demonstrar que qualquer um destes equipamentos/instrumentos pertencia à ré.
Quanto à roupa que a estafeta vestia, também não se pode concluir que pertencia à ré (ponto 31).
Sobre a aplicação informática App Uber Eats temos conhecimento que tem sido ampla a discussão quanto a ser considerada, ou não, instrumento de trabalho.
Reconhecemos que se trata de uma matéria que não é isenta de dúvidas, sobretudo quando analisada à luz da presunção consagrada no artigo 12.º, que foi pensada para relações de trabalho da era pré-digital.
Ora, antes da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023, o Código do Trabalho não detinha qualquer definição de “plataforma digital”. Após a entrada em vigor desta lei, a noção de plataforma digital ficou consagrada no n.º 2 do artigo 12.º-A do referido código.
Prescreve esta norma: «entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.»[2].
Ou seja, no âmbito da nova definição consagrada no Código do Trabalho, a existência de aplicação informática para o exercício da atividade desenvolvida pela pessoa coletiva, é um dos elementos integradores do conceito de plataforma digital, e não algo separado da definição.
Antes desta definição dada pelo legislador laboral, surgiu no ordenamento jurídico português a Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto (Regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica), cujo artigo 17.º prescreve: «(…) consideram-se plataformas eletrónicas as infraestruturas eletrónicas da titularidade ou sob exploração de pessoas coletivas que prestam, segundo um modelo de negócio próprio, o serviço de intermediação entre utilizadores e operadores de TVDE aderentes à plataforma, na sequência efetuada pelo utilizador por meio de aplicação informática dedicada.».
Também aqui nos parece que a existência de uma aplicação informática dedicada à concretização daquele modelo de negócio é um elemento que integra a definição de plataforma eletrónica.
A Lei n.º 96/2015, de 17 de agosto, que regula a disponibilização e a utilização das plataformas eletrónicas de contratação pública, define no seu artigo 2.º, alínea e), plataforma eletrónica como sendo «a infraestrutura tecnológica constituída por um conjunto de aplicações, meios e serviços informáticos necessários ao funcionamento dos procedimentos eletrónicos de contratação pública nacional, sobre a qual se desenrolam os referidos procedimentos».
Mais uma vez, a existência da aplicação informática é um requisito da definição e não algo que está para além dela.
Por último, a Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho n.º 2024/2831, de 23 de outubro de 2024, também define, no artigo 2.º, “Plataforma de trabalho digital” como sendo uma pessoa singular ou coletiva que presta um serviço, pelo menos em parte, à distância, através de meios eletrónicos, como um sítio Web ou uma aplicação móvel, entre outros requisitos.
Sintetizando, tendo em consideração as situações focadas parece-nos que a definição de plataforma digital, consagrada no nosso ordenamento jurídico, integra a existência de uma aplicação informática ou de outros meios informáticos. Sem estes, não há plataforma digital.
Por isso, ainda que a questão relacionada com a consideração da App Uber Eats como equipamento/instrumento de trabalho, como já referimos, não seja isenta de dúvidas, temos como melhor solução, sob reserva de melhor apreciação, não a considerar equipamento/instrumento de trabalho pertencentes à ré para efeitos da alínea b) do artigo 12.º do Código do Trabalho. Equipamento ou instrumento de trabalho será, por exemplo, o telemóvel que torna possível o acesso à App.
No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Guimarães de 17-10-2024 (Proc. n.º 2821/31,7T8VRL.G1), publicado em www.dgsi.pt, onde se pode ler: «Por sua vez, a App administrada pela ré, enquanto plataforma digital que gere os serviços de entrega que AA assegura, não pode ser incluída nos “equipamentos ou instrumentos de trabalho” que se procura determinar se pertencem à beneficiária da atividade de prestação de serviços de entrega, porquanto: uma plataforma digital não pode “pertencer” à ré, pois esse verbo reconduz-nos a uma ideia de propriedade, e o direito de propriedade só pode ser constituído relativamente a coisas corpóreas (cf. artigo 1302.º, n.º 1, do Código Civil), entre as quais não se conta uma plataforma digital/app; os vocábulos “equipamentos ou instrumentos de trabalho” traduzem uma ideia de materialidade, de utensílio ou aparelho empregado na execução de qualquer trabalho, um bem físico, sendo que uma plataforma digital de “per si” constitui uma criação do espírito humano e não uma coisa com existência física, à semelhança, por exemplo, do sistema de G.P.S., de que o estafeta poderá utilizar para se orientar durante uma entrega; o proémio do artigo 12.º-A, n.º 1, do C.T., faz corresponder, ainda que de forma imprópria, o empregador à “plataforma digital”, pois a entidade patronal será sempre a pessoa singular ou coletiva que gere a plataforma digital (cf. artigo 12.º-A, n.º 2, do C.T.), enquanto sujeito detentor de personalidade e capacidade jurídicas; mas se assim é, a App, que mais não é do que uma plataforma digital, não pode ser considerada instrumento ou equipamento pertencente a uma plataforma digital que o estafeta utiliza na sua atividade (cf. artigo 12.º-A, n.º 1, al. f), do C.T.)».
Em suma, sendo os principais equipamentos e instrumentos de trabalho – meio de transporte, telemóvel e mochila térmica – pertencentes aos estafetas, afigura-se-nos que o autor não logrou provar o indício de laboralidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho.
O prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma – alínea c) do n.º 1 do artigo 12.º
Em relação a este indício de laboralidade destaca-se a seguinte factualidade relevante:
- cada estafeta é livre de iniciar e terminar sessão na plataforma à hora que entender, sem necessidade de justificar a sua opção (ponto 29).
- cada estafeta é livre de decidir quando e durante quanto tempo se liga à plataforma, no caso concreto de AA, entre os dias 07 e 31 de maio de 2023, os dias 31 de maio e 22 de junho de 2023, e os dias 22 de junho e 05 de agosto de 2023, a Prestadora de Atividade não utilizou uma única vez a Plataforma para prestar a sua atividade, num total de, respetivamente, 24 (vinte e quatro), 22 (vinte e dois) e 44 (quarenta e quatro) dias. Ademais, por referência à data da entrada da contestação em juízo[3], a estafeta não fazia qualquer entrega desde o dia 12 de outubro de 2023, apesar de continuar com a conta ativa (pontos 44 a 46).
Ora, em face do demonstrado é evidente que a ré não determina o horário de início e de termo da prestação da atividade pelos estafetas. Estes são “donos e senhores” do seu próprio horário de desempenho da atividade.
Destarte, não logrou o Ministério Público demonstrar a verificação da circunstância prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 12.º.
Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma – alínea d) do n.º 1 do artigo 12.º.
No que respeita à enunciada circunstância realçam-se os seguintes factos provados:
- o valor devido pela entrega feita pelo estafeta, que é pago pela ré, tem uma componente fixa e uma componente variável, sendo a primeira fixada pela ré tendo em conta circunstâncias como o horário da entrega (sendo os de maior fluxo mais bem pagos), condições meteorológicas adversas, feriados ou períodos de alta procura (ponto 12);
- a componente variável depende da distância a percorrer para efetuar a entrega (entre o ponto de recolha e o local de destino) e o custo por quilómetro, que pode ser modificado pelo estafeta (ponto 13);
- o estafeta toma conhecimento do valor que pode receber, relativamente a cada proposta de entrega, no momento em que a mesma lhe é apresentada na Aplicação (ponto 14);
- em regra, a ré efetua o pagamento semanalmente, mediante transferência para a conta bancária cujo IBAN foi indicado ab initio pela estafeta para esse efeito, podendo a referida periodicidade ser alterada pelo estafeta através da ferramenta “Flex Pay” (ponto 15);
- o valor recebido pelos estafetas é referente à entrega efetiva do produto do comerciante ao cliente (ponto 33);
- a taxa mínima por quilómetro, que integra a componente variável do valor devido pela entrega, pode ser ajustada pelo estafeta a qualquer momento, de acordo com o seu critério, entre um mínimo de 0,10€ e um máximo de 99€, por forma a receberem propostas de entrega apenas acima do valor mínimo assim definido (que também podem ser rejeitadas) (ponto 34);
- no caso, a estafeta AA já ajustou a taxa mínima por quilómetro de 0,10€ para os 0,20€ e para valores superiores como 3,80€ (ponto 35);
- a Plataforma, quando apresenta a proposta de entrega ao estafeta, indica o valor final que o mesmo irá receber caso aceite o pedido e não um valor mínimo (ponto 36);
- o pagamento aos estafetas é, em regra, feito semanalmente, por transferência bancária, caso os mesmos não optem por recolher os rendimentos mais cedo, através da ferramenta "FlexPay", na qual podem acompanhar e receber logo os ganhos que geram através da Plataforma (ponto 37);
- os estafetas dispõem de uma ferramenta na Aplicação que lhes permite visualizar outras propostas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e selecioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens” (ponto 38);
- a emissão de faturação surge na sequência do pagamento pela ré dos valores relativos às entregas realizadas pelo estafeta (ponto 39).
Ora, o que se extrai deste conjunto de factos é que a ré, caso o estafeta não solicite o pagamento antecipado pelas entregas realizadas, paga-lhe semanalmente quantias que serão sempre variáveis, em função do número de entregas feitas e das diversas variantes que entram para o cômputo do valor final que lhe é devido.
Assim sendo, não se verifica o pagamento periodicamente de uma quantia certa, como contrapartida da atividade prestada, pelo que não se mostra preenchido o índice de laboralidade sob análise.
O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa – alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º.
Não ressalta da matéria provada que a estafeta identificada tenha desempenhado quaisquer funções de direção ou chefia.
Consequentemente, também a circunstância de laboralidade prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º não resultou demonstrada.
Concluindo, o Ministério Público apenas logrou provar a verificação do indício de laboralidade previsto na alínea a) do mencionado artigo.
Todavia, como suprarreferimos, para que opere a presunção estabelecida na norma, impõe-se a verificação de, pelo menos, duas das circunstâncias de laboralidade previstas.
Consequentemente, não é possível presumir que a ré celebrou um contrato de trabalho com a estafeta AA, com início em 31-01-2021.
Na sequência, fica prejudicado o conhecimento da alegada não elisão da presunção – cf. artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Em suma, resta-nos concluir pela improcedência do recurso.
Sem custas – artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais.
*
V. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 5 de dezembro de 2024 Paula do Paço João Luís Nunes Mário Branco Coelho (vota vencido)
Declaração de voto (vencido):
Discordo que ao caso dos autos não seja possível a aplicação do disposto no art. 12.º-A do Código do Trabalho, aditado pela Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril, como também discordo que não ocorram os indícios de laboralidade identificados nas alíneas b) e d) do art. 12.º n.º 1 do Código do Trabalho.
Finalmente, mesmo aplicando os métodos indiciários tradicionais de identificação de um contrato de trabalho, também consideraria a existência de uma relação laboral, atenta a inserção da prestadora na organização da beneficiária da actividade, a utilização dos meios de produção por esta fornecidos, e a obediência às ordens e instruções por esta emitidas.
***
Quanto à não aplicação do disposto no art. 12.º-A do Código do Trabalho, aditado pela Lei n.º 13/2023, o art. 35.º n.º 1 desta lei, sob a epígrafe “aplicação no tempo”, prevê que “ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, com a redacção dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento.”
A norma admite, pois, que as novas normas também se aplicam aos contratos de trabalho celebrados previamente, ressalvando apenas as suas condições de validade e os efeitos de factos ocorridos anteriormente.
Não determina, pois, que os contratos prévios não estão sujeitos à sua análise de acordo com as presunções de laboralidade consagradas no novo art. 12.º-A, e há a dizer que esta norma não é mais que o desenvolvimento do regime regra do art. 12.º, adaptado ao contexto específico das plataformas digitais.
Não se trata, pois, da aplicação de um novo método de qualificação – a utilização de presunções de laboralidade – onde anteriormente nada se previa a esse respeito. Trata-se, somente, de desenvolver um instituto já consagrado no Código do Trabalho, e adaptá-lo a um novo sector de actividade, nada mais.
E daí que se possa dizer que, embora a nova lei não seja de aplicação retroactiva, aplica-se à relação existente a partir do momento da sua entrada em vigor, permitindo a sua análise de acordo com os indícios de laboralidade constantes do novo art. 12.º-A, pois estes são mero desenvolvimento dos já consagrados no art. 12.º.
De resto, esta é a solução mais adequada na análise de relações contratuais duradouras, mantidas após a entrada em vigor da nova lei, em especial quando se trata da aplicação de presunções legais a um novo sector de actividade, e tal técnica é a que veio a ser consagrada no art. 5.º n.º 6 da Directiva (UE) n.º 2024/2831, de 23 de Outubro.
Aliás, seria anómalo que os contratos anteriores à entrada em vigor da Lei n.º 13/2023 não estivessem sujeitos às regras previstas no novo art. 12.º-A, mas estivessem sujeitos às presunções legais estabelecidas naquela Directiva, acaso ainda se mantivessem na data da sua entrada em vigor.
Em termos de coerência do ordenamento jurídico, se as presunções legais estabelecidas na Directiva são aplicáveis ao período do contrato iniciado após a sua entrada em vigor, o mesmo procedimento se deve adoptar quanto ao novo art. 12.º-A – tal não é excluído pelo art. 35.º n.º 1 da Lei n.º 13/2023, que ressalva apenas as condições de validade e os efeitos de factos ocorridos anteriormente, não ressalva a aplicação das novas presunções ao período do contrato decorrido após 01.05.2023.
***
Como já tive a oportunidade de justificar na minha declaração de voto vencido inserta no Acórdão desta Relação de Évora de 07.11.2024, no Proc. 1625/23.1T8BJA.E1, publicado na página da DGSI, todas as presunções legais de existência de contrato de trabalho previstas no art. 12.º-A estão verificadas.
Os termos de prestação da actividade no contrato dos autos são idênticos aos analisados naquele processo, pois obedecem ao mesmo regime-quadro, estabelecido de acordo com parâmetros previamente definidos pela beneficiária da actividade.
Para os termos dessa declaração de voto se remete, pois, no que concerne ao enquadramento do contrato ao abrigo das diferentes alíneas do n.º 1 do art. 12.º-A.
***
Discordo da não aplicação da presunção constante da al. b) do n.º 1 do art. 12.º – utilização de equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes ao beneficiário da actividade.
Já tive a oportunidade de o dizer na minha anterior declaração de voto, e volto a repeti-lo: uma realidade é a pessoa colectiva que explora uma aplicação informática de prestação de serviços à distância, outra realidade é a existência dessa aplicação informática e os prestadores serem obrigados a utilizá-la na sua actividade.
Não aceito, pois, que uma plataforma digital, por prestar serviços à distância através de uma aplicação informática, beneficie da isenção de aplicação da presunção constante deste art. 12.º n.º 1 al. b) – e da correspondente presunção constante do art. 12.º-A n.º 1 al. f).
A ser assim todas as empresas neste sector de actividade beneficiariam de uma isenção, que não beneficia as demais – basta-lhes recusar o fornecimento de outros meios de trabalho, como telemóvel, mochila ou meio de transporte, que escapam sempre a este indício de laboralidade.
Podem obrigar – como efectivamente obrigam – à utilização da sua aplicação informática, que é tão interventiva e eficaz que se torna capaz de dirigir a actividade do prestador e é assim o elemento essencial da organização da empresa beneficiária, que jamais correrão o risco de aplicação desta presunção.
Não concordo, de todo, com a concessão de tal isenção.
Por algum motivo o legislador estabeleceu a presunção constante do art. 12.º-A n.º 1 al. f) – de idêntico conteúdo à já existente no art. 12.º n.º 1 al. b). Não estabeleceu qualquer distinção entre instrumentos de trabalho físicos ou imateriais – tal como nos demais sectores de actividade, uma aplicação informática é um instrumento de trabalho e a sua natureza não se altera conforme o sector de actividade onde opera a empresa beneficiária.
A Ré, por ser uma plataforma digital, não goza de um benefício que o legislador não concedeu a qualquer outra empresa também detentora de aplicações informáticas, e daí que considere preenchido este indício.
Sobre a análise do algoritmo, alojado nos servidores da Ré, como instrumento de controlo de toda a actividade do prestador, renovo as considerações a esse propósito tecidas na minha anterior declaração de voto vencido.
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Discordo, também, da não aplicação da presunção constante da al. d) do n.º 1 do art. 12.º – pagamento, com determinada periodicidade, de uma quantia certa ao prestador da actividade, como consequência da mesma.
Não se deve confundir a existência de pagamentos apurados em função do trabalho prestado, com a inexistência de uma quantia certa devida pela prestação de actividade.
A ser assim, todas as situações em que o número de horas de trabalho prestado varia de acordo com as necessidades de serviço, ou em que a remuneração tem uma componente fixa e outra variável, escaparia ao campo de aplicação desta presunção.
Ora, também no contrato de trabalho a retribuição pode ser certa, variável ou mista, sendo certa a calculada em função do tempo de trabalho – art. 261.º n.º 2 do Código do Trabalho.
O que está em causa nesta presunção é o pagamento de uma quantia certa com uma determinada periodicidade, nos mesmos termos em que tal ocorre no contrato de trabalho subordinado, podendo ser calculada em função do tempo de trabalho prestado e devida no valor correspondente. O valor do tempo de trabalho é certo, mas o montante pago tem variações em função do número de parcelas de tempo de trabalho efectivamente prestado.
No caso, está demonstrado que o estafeta é pago numa componente fixa e numa componente variável – a primeira fixada pela Ré tendo em conta circunstâncias como o horário da entrega, condições meteorológicas adversas, feriados ou períodos de alta procura; a segunda de acordo com a distância percorrida, mas em que o valor pago representa o custo por quilómetro percorrido (o custo do quilómetro é certo, sendo pago conforme o número de quilómetros percorrido).
Há, pois, retribuição certa, porque calculada em função do tempo de trabalho prestado, e como tal também esta presunção está preenchida.
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Quanto à aplicação dos métodos indiciários tradicionais de identificação do contrato de trabalho, temos a renovar alguns argumentos já apresentados na anterior declaração de voto vencido.
Assim:
- o prestador não dispõe de uma organização empresarial própria e autónoma, estando plenamente inserido na estrutura organizativa da Ré;
- o prestador não pode gerir sozinho a actividade, e também não pode decidir as condições de prestação da actividade – tem de aceitar as que lhe são impostas pela Ré, que não pode negociar;
- as cláusulas do contrato foram formuladas unilateralmente pela Ré, destinado a pessoas indeterminadas, que apenas se limitam a aderir, sem possibilidade de discussão ou de introdução de modificações;
- a possibilidade do prestador se poder substituir por outro, nos termos restritos permitidos pela Ré, não afasta a presunção – significa apenas que um trabalhador da Ré foi substituído por outro trabalhador da Ré, nada mais.
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Renovo a minha anterior declaração de voto: a liberdade de substituição contra a vontade da Ré, simplesmente não existe. Esta controla todos os passos da actividade, não admite prestadores não registados na sua plataforma, e o procedimento de substituição é por esta controlado e autorizado.
Sucede que a permuta entre trabalhadores, sob autorização do empregador, é também uma realidade no contrato de trabalho, e tal não representa mais que o exercício do poder de direcção por parte do empregador.
Se o empregador determina que a tarefa será executada pelo trabalhador A e não pelo trabalhador B, mesmo que a pedido destes, não está mais que a exercer o seu poder de determinação do modo como utiliza a sua força de trabalho, no âmbito da sua organização e sob a sua autoridade, e tal traduz o exercício do poder de direcção característico do contrato de trabalho. Declararia, pois, a existência de contrato de trabalho.
Évora, 5 de Dezembro de 2024
a) Mário Branco Coelho
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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: Mário Branco Coelho; 2.º Adjunto: João Luís Nunes
[2] Realce da nossa responsabilidade.
[3] Que ocorreu em 02-02-2024.