I – O CIRE não prevê, de modo expresso, a confissão do pedido, por parte do devedor, em caso de pedido de insolvência formulado por qualquer outro legitimado e não prevê, expressamente, qual a consequência de, em tal situação, o devedor reconhecer que está em situação de insolvência.
II – Porém, nada impede que o devedor reconheça a sua situação de insolvência e, por essa via, provoque a imediata e automática declaração da insolvência, não estando em causa matéria subtraída à disponibilidade da parte e que não possa ser objeto de confissão do pedido.
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
AA, melhor identificada nos autos, veio requerer a declaração de insolvência de A..., Ld.ª, alegando ser credora da referida sociedade pelo valor de 50.187,69€ correspondente a honorários devidos pelos serviços prestados na qualidade de advogada e alegando que a sociedade não tem bens nem liquidez que lhe permitam pagar a dívida, encontrando-se, por isso, em situação de insolvência.
BB, invocando a qualidade de sócio da referida sociedade, veio requerer, ao abrigo do disposto nos artigos 326.º e seguintes do CPC, a sua intervenção na qualidade de assistente da sociedade requerida, apresentando, em simultâneo, contestação ao pedido de declaração de insolvência, negando a alegada situação de insolvência da referida sociedade, sustentando a sua solvabilidade e concluindo pela improcedência do pedido formulado.
Entretanto e na sequência da sua citação, a sociedade requerida veio aos autos confessar os factos constantes da petição inicial e reconhecer a sua situação de insolvência, concluindo, em função disso e tendo em conta a prevalência da vontade da sociedade, que deve ser julgada finda a assistência solicitada.
Também a Requerente veio sustentar que, em face da confissão da sociedade e do disposto no art.º 331.º do CPC, o pedido de assistência era inútil e deveria considerar-se findo.
O sócio BB veio então invocar a nulidade da confissão dos factos por parte da sociedade requerida, reafirmando o pedido de assistência que havia formulado.
A Requerente e a sociedade requerida vieram sustentar a validade da confissão, reafirmando que o pedido de assistência deve ser indeferido ou julgado findo.
Na sequência desses actos, veio a ser proferida decisão – em 18/09/2024 – onde se decidiu indeferir a requerida assistência, considerando-se prejudicada a apreciação e decisão de todos os requerimentos formulados nos presentes autos pelo sócio da sociedade, por carecer de legitimidade para o efeito, na medida em que não é parte no processo.
Na mesma data, foi proferida sentença onde se declarou a insolvência da referida sociedade (a A..., Ld.ª).
O sócio BB veio apresentar recurso de ambas as decisões.
Em relação ao recurso da decisão que indeferiu a sua intervenção como assistente, formulou as seguintes conclusões:
(…).
Conclui pedindo:
a) Deve ser fixado valor à ação, nos termos requeridos pelo recorrente;
b) Deve ser revogado a decisão de indeferimento do incidente de assistência e consequentemente a sentença de declaração de insolvência da requerida, ordenando-se os autos baixar à 1.ª instância, ordenando-se ao Tribunal a quo que aceite o incidente de assistência apresentado pelo recorrente, conheça a contestação por aquele deduzida, produza a prova apresentada e a final julgue a contestação procedente por provada e absolva a sociedade requerida do pedido, revogando-se a sentença de insolvência da sociedade requerida, bem como todos os seus efeitos;
c) Devem a requerente da insolvência e os gerentes da sociedade requerida ser condenados como litigantes de má fé, no reembolso das despesas do recorrente, incluindo os honorários dos mandatários, e em todos os demais prejuízos que tenham causado ao recorrente, requerendo-se que sejam ouvidas previamente as partes para a fixação da referida indemnização, nos termos dos artigos 542.º e 543.º do CPC;
d) Deve a Requerente da insolvência ser condenada no pagamento das custas, custas de parte e tudo o mais de Direito.
Em relação à sentença que declarou a insolvência, formula as seguintes conclusões:
(…)
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão:
a) Deve ser fixado valor à ação nos termos requeridos pelo recorrente;
b) Deve a sentença de declaração de insolvência ser revogada e ordenado o devido cancelamento dos registos na Certidão Permanente, bem como ser ordenada a revogação de todos efeitos da declaração de insolvência, com as devidas comunicações legais;
c) Ser o Requerente da insolvência condenado no pagamento das custas, custas de parte e tudo o mais de Direito;
d) Devem o requerente da insolvência e a gerente da sociedade requerida ser condenados como litigantes de má fé, no reembolso das despesas do recorrente, incluindo os honorários dos mandatários, e em todos os demais prejuízos que tenham causado ao recorrente, requerendo-se que sejam ouvidas previamente as partes para a fixação da referida indemnização, nos termos dos artigos 542.º e 543.º do CPC.
A sociedade (declarada insolvente) respondeu aos recursos, formulando as seguintes conclusões:
(…).
A Requerente também respondeu a ambos os recursos, formulando as seguintes conclusões:
(…).
Por despacho de 31/10/2024, foi fixado à acção o valor de 30.000,01€ e foram admitidos os recursos interpostos.
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito dos recursos – podemos delimitar as questões a apreciar nos seguintes termos:
Em relação a ambos os recursos:
· Apurar o valor a atribuir à presente acção;
Em relação ao recurso da decisão que não admitiu a assistência:
· A eventual nulidade da decisão por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia;
· A verificação (ou não) dos pressupostos de que depende a admissibilidade da intervenção do Apelante como assistente, com análise da confissão realizada pela parte (a quem se pretendia dar assistência), da eventual invalidade dessa confissão e dos seus efeitos e implicações na admissibilidade da assistência;
Em relação ao recurso da sentença que declarou a insolvência:
· O eventual erro na forma de processo;
· A eventual nulidade da sentença por falta de fundamentação e omissão de pronúncia;
· A validade/invalidade da confissão feita pela Requerida;
· A verificação (ou não) dos pressupostos necessários para a declaração de insolvência, analisando, designadamente: os efeitos da confissão da Requerida ao nível da declaração de insolvência; a necessidade (ou não) de preenchimento de algum dos factos índices previstos no art.º 20.º do CIRE e o efectivo preenchimento (ou não) das situações previstas nas alíneas a) e b) do citado art.º 20.º.
III.
1. Valor da causa
O Apelante suscita – em ambos os recursos que veio interpor – a questão referente ao valor da causa, aludindo à existência de uma nulidade pelo facto de não ter sido fixado o valor da causa e sustentando, no essencial, que o valor da causa deve ser fixado em 230.128,13€, por ser esse o valor do activo da sociedade que consta da declaração de IES relativa ao ano de 2023. Em todo o caso, e para o caso de assim não se entender, sustenta que esse valor deve ser fixado em 30.000,01€ nos termos do disposto n.º 1 do 303.º do CPC.
O valor da causa foi fixado – no despacho que admitiu o recurso (conforme previsto no art.º 306.º, n.º 3 do CPC) – em 30.000,01€, ficando, assim, suprida a omissão (até aí verificada) de falta de fixação do valor da causa e, ao contrário do que pretende o Apelante, não há razões para fixar à causa o valor de 230.128,13€.
Segundo o disposto no art.º 15.º do CIRE, o valor, para efeitos processuais, do processo de insolvência “...é determinado sobre o valor do activo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real”.
Está em causa, portanto, um valor que não é fixo e que pode/deve ser alterado ao longo do processo em função do critério estabelecido na lei.
Conforme resulta do disposto na norma citada, o valor do processo de insolvência deverá corresponder ao valor real do activo do devedor (não o valor constante do balanço ou contabilístico, mas sim o valor real do activo); mas, enquanto o processo não fornecer elementos para apurar esse valor, atende-se, provisoriamente, para efeitos de fixação do valor do processo, ao valor do activo que seja indicado na petição (valor que será alterado e corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real desse activo).
O valor contabilístico a que alude o Apelante não serve, portanto, para efeitos de fixação do valor da acção, porque o valor da acção é determinado em função do efectivo valor do activo e não em função do valor do activo que resulta dos documentos contabilísticos (sendo certo que não há qualquer garantia de que corresponda ao seu real valor).
Refira-se que, conforme previsto na citada disposição legal, enquanto não for conhecido o real valor desse activo, o valor que releva para efeitos de fixação do valor da acção é o valor do activo que seja indicado na petição inicial, o que, no caso, nos conduziria ao valor de 500,00€ que havia sido indicado na petição inicial (por ser esse o único valor a que se poderia atender, perante o desconhecimento do real valor do activo e porque, de qualquer forma, era um valor que se adequava à inexistência de qualquer activo que ali se alegava).
De todo o modo, tendo sido fixado o valor da causa em 30.000,01€ e não estando em causa no presente recurso qualquer pretensão no sentido de ele ser fixado em valor inferior, confirma-se a decisão em causa.
2. Assistência
A decisão recorrida indeferiu o incidente deduzido pelo Apelante por via do qual requeria a sua intervenção na qualidade de assistente da sociedade requerida por ter considerado que ela não era admissível em face do disposto no art.º 331.º do CPC e tendo em conta que a sociedade havia confessado os factos da petição inicial.
Discordando da decisão, argumenta o Apelante, no essencial:
- Que a decisão é nula por não ter especificado os factos que justificam a decisão e com base nos quais se entendeu que o Recorrente deixa de ter legitimidade para ser parte no processo;
- Que a decisão recorrida também é nula por ter omitido pronúncia sobre uma série de questões que haviam sido suscitadas pelo Recorrente e deviam ter sido apreciadas: o alegado conflito de interesses existente entre os representantes legais da sociedade requerida e esta última; o conluio existente entre a requerente da insolvência e a gerente da sociedade em apreço, tendo em vista o uso anormal e abusivo da ação de insolvência para, através do mesmo, a gerente prosseguir os seus interesses pessoais e egoísticos, designadamente, evitar a sua destituição de gerente e exclusão de sócia da sociedade requerida, bem como o retorno do prédio reivindicado no processo e ainda a invalidade da confissão de factos realizada pela gerente da sociedade;
- Que, em face desses factos – que foram alegados pelo Recorrente e devem ser julgados provados – e da invalidade e simulação da confissão que deles resultava, tinha que ser admitido o incidente de assistência e apreciada a contestação deduzida pelo Recorrente, sendo certo que, à data, a sociedade estava em situação de revelia, assumindo o Requerente a sua substituição processual ao abrigo do disposto no art.º 329.º do CPC, sendo que a confissão dos factos foi apresentada pela sociedade recorrida três dias após o término do prazo legal para contestação da ação de insolvência;
- Que, ainda que essa confissão fosse considerada válida, ela não se enquadraria no disposto no art.º 352.º do CPC – por ser uma confissão de factos e não do pedido – e, como tal, não afastaria nem tornaria inútil a assistência;
- Que, tendo o Recorrente agido enquanto substituto processual da sociedade requerida impugnando, tempestivamente, os factos alegados pelo requerente da insolvência, devendo tal impugnação ficar assente, não podendo a sociedade requerida, fora do prazo legal para contestar, vir confessar factos que foram tempestivamente impugnados, enquanto a mesma se encontrava revel.
Apreciemos.
Quanto às nulidades apontadas à decisão, estamos convictos que elas não estão configuradas.
Segundo o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, a sentença – ou o despacho (cfr. n.º 3 do art.º 613.º) – é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Antes de mais, caberá esclarecer que aquilo que está agora em causa é apenas a admissibilidade da pretendida intervenção como assistente, sendo certo que é esse o único conteúdo e o único objecto da decisão sobre a qual incide o recurso que estamos a analisar.
Nessa perspectiva, será fácil constatar que os factos e as questões a que se reporta o Apelante e cuja apreciação alega ter sido omitida (o alegado conflito de interesses existente entre os representantes legais da sociedade requerida e esta última; o alegado conluio existente entre a requerente da insolvência e a gerente da sociedade em apreço e o uso anormal e abusivo da ação de insolvência para a prossecução de interesses pessoais e egoísticos da sociedade requerida) são factos e questões que não tinham que ser apreciados na medida em que eram irrelevantes para a decisão em causa que – reafirma-se – se prendia apenas com a admissibilidade da intervenção requerida.
A decisão recorrida limitou-se a indeferir a intervenção do Apelante como assistente e fê-lo com um único fundamento: considerou que, naquele momento, essa intervenção era inadmissível – e sempre findaria se tivesse sido admitida – tendo em conta o disposto no art.º 331.º do CPC e tendo em conta que a sociedade havia confessado os factos alegados na petição inicial.
Não poderá, portanto, dizer-se – como diz o Apelante – que a decisão não especificou os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. A decisão recorrida especificou os fundamentos de facto quando disse: que a sociedade se vincula mediante a assinatura de um único gerente, neste caso da sócia CC e quando disse que, através da sua gerente, a Requerida (sociedade) confessou os factos da petição inicial, sendo certo que foram esses – e apenas esses – os factos em que a decisão se fundamentou. E também especificou os fundamentos de direito quando disse: que, à luz do disposto no art.º 331.º do CPC, aquela confissão tornava inadmissível a intervenção do Apelante como assistente.
É certo, portanto, não poder afirmar-se que tal decisão padeça de nulidade por falta de indicação dos factos em que se fundamentou a decisão. Poderá existir erro de julgamento (se esses factos não tiverem idoneidade para justificar a decisão), mas não existe nulidade da sentença por falta de fundamentação.
E tendo sido esse o fundamento da decisão, é também certo não estar configurada qualquer nulidade por omissão de pronúncia, tendo em conta que, na perspectiva da decisão, não existiam outros factos ou questões que fossem relevantes e pudessem condicionar a decisão a proferir; a sua apreciação ficava, portanto, prejudicada.
Não estando configurada qualquer nulidade da decisão, resta saber se existiu erro de julgamento, o que equivale a saber se a intervenção devia ter sido admitida.
E, adiantando a resposta, pensamos que não.
O art.º 326.º, ao definir e delimitar os pressupostos da assistência, dispõe nos seguintes termos:
“1 - Estando pendente uma causa entre duas ou mais pessoas, pode intervir nela como assistente, para auxiliar qualquer das partes, quem tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a essa parte.
2 - Para que haja interesse jurídico, capaz de legitimar a intervenção, basta que o assistente seja titular de uma relação jurídica cuja consistência prática ou económica dependa da pretensão do assistido”.
Por outro lado, tendo em conta os termos em que o incidente é regulado, é evidente que o assistente vem ao processo para auxiliar a parte que pretende assistir, não podendo assumir – em caso algum – qualquer atitude que esteja em oposição com a do assistido (art.º 328.º, n.º 2); existindo qualquer divergência entre a parte principal e o assistido é a posição da primeira que prevalece (cfr. n.º 2 do citado art.º 328.º), podendo esta, de forma totalmente livre e independentemente da posição do assistente, confessar, desistir ou transigir, caso em que findará a intervenção (cfr. art.º 331.º).
Em suma: ainda que se possa dizer que o assistente vem ao processo para defender o seu interesse pessoal no desfecho da acção, a defesa desse interesse é feita através da defesa dos interesses da parte que vem assistir (conforme diz M. Teixeira de Sousa[1], “O assistente defende interesses alheios para defender interesses próprios”) e é à parte – e não ao assistente – que cabe definir e delimitar os interesses que pretende defender ou fazer valer; o assistente não vem, portanto, ao processo para defender aqueles que, no seu entender e na sua perspectiva, seriam (ou deveriam ser) os interesses da parte a assistir, mas sim para ajudar a parte a defender os interesses que ela (a parte) entende serem os seus interesses e que ali pretende defender, sendo certo que caberá sempre à parte definir, de acordo com a sua visão, quais são esses interesses, nada mais cabendo ao assistente que não seja conformar-se com a posição da parte, aderindo a essa posição sem que a possa contrariar. O assistente apenas poderá, nesse ponto, ter alguma liberdade de actuação se o assistido for revel e enquanto o for, uma vez que, nesse caso – em que o assistente é considerado como substituto processual do assistido (cfr. 329.º) – não existe qualquer acto ou actividade do assistido que limite ou restrinja a actuação do assistente.
Debrucemo-nos sobre a situação dos autos.
O requerente deste incidente (BB) teria, à luz do disposto no art.º 326.º, um interesse legítimo que, em teoria, poderia legitimar a sua intervenção como assistente da Requerida (a sociedade cuja insolvência era peticionada), uma vez que a posição de sócio da referida sociedade (que invocou) poderia ser afectada pela declaração de insolvência. Poder-se-ia, portanto, dizer que tinha interesse jurídico na improcedência do pedido de declaração de insolvência o que o habilitaria a intervir nos autos como auxiliar da Ré (a referida sociedade).
Esse estatuto de assistente – que vinha reclamar – habilitava-o a apresentar contestação ao pedido de insolvência (o que fez, efectivamente, em simultâneo com o pedido de intervenção), tendo em conta que, á data, a parte (a sociedade) não havia apresentado contestação nem havia tido qualquer intervenção, importando notar, no entanto, que a admissibilidade dessa contestação sempre estaria condicionada à efectiva admissibilidade da sua intervenção (que, à data, não havia sido decidida) e à posição que a parte assistida viesse a assumir caso viesse a cessar a revelia em que se encontrava.
Sucede que a sociedade requerida veio a intervir nos autos, juntando procuração e apresentando requerimento com o seguinte teor:
“Tendo sido citada, no processo de insolvência, vem confessar os factos constantes da citação integralmente e sem reserva, e adianta que no momento em que foi citada encontrava-se a preparar a apresentação da sociedade à insolvência, por a sociedade se encontrar na situação de insolvência, nomeadamente por não ter possibilidade de cumprir as obrigações vencidas, art.º 3º, n.º 1 do CIRE.
Pelos artigos 311.º e ss. do Código de Processo Civil (CPC), prevalece a vontade da sociedade, e como tal finda a assistência solicitada pelo que os autos devem prosseguir na sua normalidade”.
Foi com base neste requerimento que, depois de observado o contraditório, veio a ser proferida a decisão recorrida onde se considerou que, por força dessa confissão e ao abrigo do disposto no art.º 331.º do CPC, a assistência requerida era, agora, processualmente inadmissível.
Sustenta o Apelante – como já havia sido sustentado antes da prolação da decisão – que essa confissão não é válida (alegadamente porque, nos termos do pacto social, tal confissão estaria dependente de deliberação da assembleia geral e dos votos favoráveis de ambos os sócios e porque não corresponde à real vontade da sociedade, sendo simulada e resultado de conluio entre a requerente da insolvência e a gerente) e, por isso, não poderia ser considerada para os efeitos referidos.
Ora, salvo o devido respeito, o que essa alegação evidencia é que a pretendida ASSISTÊNCIA é, pelo menos a partir deste momento, totalmente inapta para os objectivos que com ela se pretendem atingir, não podendo ser admitida.
Na verdade, aquilo que o Apelante pretende – através da requerida intervenção – é defender aqueles que entendem serem os interesses da sociedade que alega não estarem a ser defendidos pela sua legal representante por força de alegado conflito de interesses entre a sociedade e a sua representante a quem acusa de prosseguir interesses particulares em prejuízo da sociedade e de conluio com a requerente da insolvência. Ou seja, o que existe é um claro e evidente desacordo e litigio entre o requerente e a gerente da sociedade (que, pelo menos por ora, é a sua legal e legitima representante) e aquilo que o requerente pretende é, em bom rigor, defender a sociedade da sua gerente e assumir (ele próprio) a defesa dos interesses da sociedade, fazendo prevalecer a sua visão e a sua posição sobre a visão e posição da gerente. Sucede que a assistência não serve para isso; enquanto assistente, o requerente nunca poderia assumir nos autos qualquer posição que contrariasse a posição assumida pela parte (a sociedade) e a posição assumida pela parte será sempre, naturalmente, a posição que aqui for expressa através da sua representante (cfr. art.º 25.º, n.º 1, do CPC) que, no caso, é a sua gerente (que, por ora, não foi afastada dessas funções) a quem compete representar a sua sociedade, exteriorizando a sua vontade e vinculando-a em relação a terceiros não obstante as limitações que possam constar do contrato social ou que resultem de deliberações dos sócios (cfr. art.º 260.º do CSC).
Nessas circunstâncias, ainda que, em teoria, pudesse ter sido admitida a assistência enquanto a parte (a sociedade) não teve intervenção nos autos, isso deixou de ser possível a partir do momento em que a situação de revelia terminou; a partir deste momento, o assistente teria sempre que se conformar com a posição assumida pela parte e não poderia prosseguir os objectivos que pretende.
Veja-se, desde logo, que, ao invocar a invalidade da confissão da sociedade, o que o Apelante está a fazer é a assumir e pretender fazer valer uma posição contrária àquela que foi assumida pela parte que pretende assistir, o que, enquanto assistente, não lhe era permitido. O Apelante não pretende, portanto, auxiliar a parte – como é próprio do estatuto de assistente – mas sim actuar contra ela, uma vez que a posição assumida pela sociedade por intermédio da sua gerente é, para todos os efeitos, a única que pode ser assumida e considerada como sua.
Mas adiante.
No que toca à invocada invalidade da referida confissão, o Apelante não está em condições de a invocar e de provocar a discussão das várias questões nela implicadas. Em primeiro lugar, porque, não sendo parte e não tendo ainda o estatuto de assistente (porque a intervenção ainda não foi admitida), não tem legitimidade para o efeito. Em segundo lugar, porque, mesmo que já tivesse esse estatuto, não poderia assumir posição contrária à da parte que assiste, invocando a nulidade do acto que ela praticou.
Mais diz o Apelante que, ainda que essa confissão fosse válida, ela não se enquadraria no disposto no art.º 352.º do CPC por ser uma confissão de factos e não do pedido.
Além de confessar os factos, a sociedade reconheceu de modo expresso que se encontra em situação de insolvência por não ter possibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas, o que, de algum modo, não deixa de corresponder a uma confissão do pedido que havia sido formulado e que consiste em ver declarada a insolvência da sociedade. Poder-se-á dizer, no entanto, que a lei não reconhece essa confissão, sendo certo que o CIRE não alude à confissão do pedido por parte do devedor; a lei determina que o reconhecimento da situação de insolvência implica, em caso de apresentação do devedor, a imediata declaração de insolvência (cfr. art.º 28.º), mas, em caso de pedido de insolvência formulado por outro legitimado, a lei apenas prevê a confissão dos factos alegados na petição inicial que, em todo o caso, não determina a imediata declaração de insolvência, o que apenas acontecerá se esses factos permitirem integrar os pressupostos necessários para essa declaração (cfr. art.º 30.º, n.º 5 e art.º 35.º).
Seja como for e ainda que se entenda não existir uma verdadeira confissão que seja relevante para os efeitos previstos no art.º 331.º do CPC, a posição assumida pela sociedade requerida não deixa de evidenciar a total inutilidade da assistência do sócio (aqui requerente) que vem requerida e a total inaptidão dessa intervenção para os fins que com ela se pretendem obter.
Ao contrário do que sustenta o Apelante, a contestação que apresentou ao pedido de insolvência – com impugnação dos factos alegados e com alegação de outros factos que para tal considerou relevantes – já não poderia ter qualquer relevância e já não poderia ser objecto de qualquer discussão que pudesse interferir com a declaração de insolvência. Ainda que tal contestação pudesse ser admitida (caso a assistência fosse admitida) no âmbito de uma actuação do Requerente enquanto substituto processual da sociedade, nos termos previstos no art.º 329.º do CPC, tal apenas aconteceria enquanto o assistido permanecesse na situação de revelia; a partir do momento em que cessasse essa revelia, cessaria também a actuação do assistente como substituto processual que, a partir daí, regressaria à posição normal do assistente de conformação com a atitude do assistido que não poderia contrariar[2].
Ora, a situação de revelia em que a sociedade requerida se encontrava à data em que foi apresentada a referida contestação cessou; a sociedade veio aos autos e aquilo que veio fazer foi assumir posição contrária àquela que resultava da contestação que havia sido apresentada, confessando expressamente os factos alegados na petição inicial e declarando, portanto, que não pretendia prevalecer-se da impugnação desses factos que constava daquela contestação.
É certo, portanto, que não tinha qualquer relevância a contestação que havia sido apresentada; os factos haviam sido confessados pela parte – que, ao contrário do que sustenta o Apelante tinha o direito de o fazer ainda que fora do prazo da contestação – e, portanto, tais factos não poderiam já ser objecto de qualquer discussão.
É certo, portanto, que, caso viesse a ser admitida a assistência aqui em apreciação, o Apelante (enquanto assistente) ficaria vinculado a essa posição e não poderia contrariá-la. Enquanto assistente, o Apelante não poderia, portanto, opor-se, de modo algum, a tal confissão e nada poderia fazer para contrariar a vontade expressa da parte; aquilo que lhe cabia fazer era apenas auxiliar a parte na prossecução do interesse e da vontade que ela havia manifestado nos autos e que se traduzia, como vimos, na confissão dos factos que haviam sido alegados e no reconhecimento da situação de insolvência em que se encontrava.
Ora, não se vislumbrando sequer que tipo de auxílio o Apelante poderia dar para esse efeito, o que os autos evidenciam – de forma clara e evidente – é que o Apelante não pretende intervir nos autos para o efeito de prestar esse auxílio à parte (a sociedade); o que o Apelante pretende – com a assistência que veio requerer – é assumir (ele próprio) a defesa da sociedade em clara e evidente oposição à posição e vontade da sociedade que é manifestada através da pessoa que para tal está legitimada (a sua gerente) por entender que os interesses da sociedade não estão a ser defendidos pela sua legal representante por força de alegado conflito de interesses entre a sociedade e a sua representante a quem acusa de prosseguir interesses particulares em prejuízo da sociedade e de conluio com a requerente da insolvência.
É certo, no entanto, que a assistência não serve para isso e não é essa a sua finalidade.
O Apelante terá ao seu dispor outros meios legítimos para defender esses interesses, como será o caso da oposição por embargos à decisão que declara a insolvência (cfr. art.º 40.º do CIRE) – embargos que, aliás, deduziu oportunamente – mas não o poderá fazer por via da sua intervenção como assistente.
Tal intervenção não poderá, portanto, ser admitida.
Impõe-se, portanto, julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão que não admitiu a requerida assistência.
3. Declaração de insolvência
A sentença recorrida declarou a insolvência da sociedade A..., Ld.ª, baseando-se no requerimento apresentado pela referida sociedade onde a mesma confessava os factos alegados na petição inicial e reconhecia a sua situação de insolvência e considerando que, à semelhança do que acontece na situação de apresentação à insolvência, o reconhecimento daquela situação pela devedora implica, sem mais, a declaração de insolvência.
Em desacordo com essa decisão, o Apelante desenvolve a sua argumentação em torno das seguintes questões:
- Erro na forma de processo;
- Nulidade da sentença por falta de fundamentação e omissão de pronúncia;
- Invalidade da confissão de factos pela sociedade;
- Não verificação dos pressupostos necessários para a declaração de insolvência (a falta de idoneidade dessa confissão para o efeito de declarar imediatamente a insolvência sem verificar se os factos alegados preenchem algum dos factos índices previstos no art.º 20.º do CIRE; a desconsideração pela impugnação dos factos alegados na petição inicial que havia sido feita pelo Apelante; a falta de prova bastante desses factos; o não preenchimento das situações previstas nas alíneas a) e b) do referido art.º 20.º e a desconsideração de factos que o Apelante que havia alegado no que toca, designadamente, à solvabilidade da sociedade).
Apreciemos.
Erro na forma de processo
Sustenta o Apelante, a este propósito, que, assentando os presentes autos na alegação por parte da requerente da insolvência de que esta foi mandatária da sociedade requerida sem que esta lhe tivesse pago os seus honorários, o processo adequado para reclamar a cobrança desses honorários era a acção judicial de honorários e não o processo de insolvência.
É evidente a sua falta de razão.
Existiria erro na forma de processo se a Autora tivesse instaurado um processo de insolvência e nele tivesse pedido a condenação da Ré a pagar o valor do crédito que invocava (resultante de honorários de serviços prestados); não foi isso que aconteceu; a Autora não veio pedir a condenação da Ré a pagar esses honorários, mas sim que fosse declarada a sua insolvência e, para este efeito, é evidente que o processo adequado é o processo de insolvência.
Na verdade, pensamos ser ponto assente – sem grande margem para discussões – que o erro na forma de processo tem que ser aferido em face da concreta pretensão que é deduzida (através do pedido formulado e, eventualmente, da causa de pedir quando esta seja necessária para interpretar e delimitar correctamente a pretensão formulada). Apenas poderá ser configurada a existência de erro na forma do processo quando a forma de processo escolhida pelo autor não corresponde àquela que, nos termos previstos na lei, é a adequada para obter a satisfação da concreta pretensão que formula. Trata-se, portanto, de saber – como já dizia Alberto dos Reis[3] – se o pedido se ajusta ou não à finalidade para a qual a lei criou a forma processual a que se recorreu.
À luz dessas considerações, é evidente a inexistência de qualquer erro na forma do processo. A pretensão formulada nos autos consiste na declaração de insolvência da sociedade A..., Ld.ª e o processo ou forma de processo que, nos termos da lei, se ajusta a essa finalidade é – clara e evidentemente – o processo de insolvência.
Nulidade da sentença
Invoca o Apelante a nulidade da sentença por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia nos termos previstos nas alíneas b) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.
Na perspectiva do Apelante, a sentença padece de vício de falta de fundamentação por não ter discriminado a matéria de facto provada e não provada (como era imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 607.º do CPC), considerando o Apelante que a circunstância de se terem considerado provados todos os factos alegados na petição não dispensava o juiz de fazer a discriminação desses factos.
E, segundo o Apelante, a sentença também padece de nulidade por ter omitido pronúncia sobre as questões que o Recorrente havia suscitado nos autos (designadamente a invalidade da confissão realizada pela gerente da sociedade) e sobre a questão de saber se os factos alegados na petição inicial preenchiam ou não alguma das alíneas do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE.
Não se verifica, no entanto, nenhuma das apontadas nulidades.
Em relação à primeira nulidade – prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, onde se determina que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – importará dizer, desde logo, que, conforme vem sendo entendido, de modo praticamente uniforme, pela nossa jurisprudência[4], a sua verificação pressupõe a falta, em absoluto, de qualquer fundamentação (seja ela de facto ou de direito) ou uma deficiência de fundamentação de tal modo grave que possa e deva ser equiparada a falta absoluta de fundamentação por não cumprir ou respeitar requisitos mínimos que são inerentes à ideia ou noção de “fundamentação”.
Ora, logo por aí se pode concluir que a sentença recorrida não padece desse vício, uma vez que nela se declarou que se considerava provada toda a factualidade alegada na petição inicial cujo teor se deu por reproduzido. Não existia, portanto, falta, em absoluto, de fundamentação de facto. O mais que se poderia dizer é que essa fundamentação de facto havia sido enunciada de modo incorrecto ou irregular por se limitar a dar por reproduzidos os factos que constavam da petição inicial.
Por outro lado, ainda que o art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC imponha ao juiz – como diz o Apelante – o dever de discriminar os factos que julga provados e os que julga não provados, impõe-se notar que tal disposição tem em mente aquelas que são as situações normais e habituais em que o juiz, apreciando a prova produzida, tem que proferir decisão sobre cada um dos factos alegados para o efeito de os julgar (ou não) provados.
Não foi isso que aconteceu nos autos. O que aqui aconteceu foi que, por força da confissão da Requerida, se consideraram confessados todos os factos alegados na petição inicial, numa situação idêntica à que se encontra prevista no art.º 567.º do CPC em cujo n.º 3 se estipula que, nesses casos, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado (sem necessidade, portanto, de efectiva discriminação dos factos provados) desde que a resolução da causa revista manifesta simplicidade. Era esta, pensamos nós, a situação dos autos; tendo-se considerados confessados todos os factos alegados na petição inicial e tendo em conta a simplicidade da petição, não havia dúvidas sobre quais eram esses factos e, nessa medida, justificava-se – ou pelo, não é censurável – que não tivesse sido feita a discriminação desses factos.
Pensamos, portanto, que essa circunstância não tem gravidade e não tem idoneidade para determinar a nulidade da sentença.
Apreciemos agora a segunda nulidade invocada e que é reportada à situação – prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC – onde se determina, na parte que aqui releva, que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Tal nulidade relaciona-se com o disposto no art.º 608.º, n.º 2, do CPC, onde se dispõe que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
As questões que o juiz tem o dever de apreciar – sob pena de nulidade da sentença – correspondem, portanto, às questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e cuja decisão não esteja prejudicada pela decisão dada a outras.
Em relação às questões que o Recorrente havia suscitado nos autos (designadamente a invalidade da confissão realizada pela gerente da sociedade), não existe qualquer nulidade por omissão de pronúncia porque o juiz não tinha o dever de as apreciar e de as resolver. E o juiz não tinha esse dever porque tais questões não haviam sido suscitadas pelas partes nem por qualquer interessado com legitimidade para o efeito. Na verdade, o Apelante não era parte na acção e também não foi admitida a sua intervenção como assistente. Não sendo parte na causa, a legitimidade do Apelante para apresentação daqueles requerimentos e para suscitar as questões neles incluídas pressupunha que viesse a ser admitida a sua intervenção como assistente (foi nesse pressuposto e ao abrigo desse estatuto que eles foram apresentados); não tendo sido admitida essa intervenção, aqueles requerimentos perdem toda e qualquer relevância (porque provindos de quem não tem o direito de intervir nos autos) e, nessa medida, não tinham que ser apreciados. Ainda que o Apelante tivesse sido admitido a intervir como assistente – o que não aconteceu – aqueles requerimentos não tinham relevância e não tinham que ser apreciados, uma vez que, a partir do momento em que a sociedade (assistida) teve intervenção nos autos assumindo posição contrária àquela que estava subjacente aos requerimentos apresentados pelo assistente e às questões nele suscitadas, era a posição desta que prevalecia (cfr. n.º 2 do art.º 328.º do CPC) e já não poderia ser discutida nos autos a posição contrária que anteriormente havia sido assumida pelo assistente.
Não existe, portanto, qualquer nulidade pelo facto de a sentença recorrida não ter apreciado essas questões.
A sentença também não padece de nulidade pelo facto não ter apreciado a questão de saber se os factos alegados na petição inicial preenchiam ou não alguma das alíneas do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE porque a falta de apreciação dessa questão está a coberto do disposto na parte final do n.º 2 do citado art.º 608.º, ou seja, elas estavam prejudicadas pela solução que havia sido dada a outras questões.
Na verdade, como já se disse, entendeu-se na sentença recorrida – e foi com esse fundamento que se declarou a insolvência – que o reconhecimento da situação de insolvência que havia sido feito pela sociedade requerida tinha os mesmos efeitos que teria em caso de apresentação à insolvência, determinando, sem mais, a declaração de insolvência. Ou seja, na perspectiva da sentença recorrida e dos respectivos fundamentos, não era necessário averiguar se estava (ou não) preenchida alguma das alíneas do n.º 1 do art.º 20.º; esta questão resultava, portanto, prejudicada pela solução que, com outros fundamentos, se considerou determinar a imediata declaração de insolvência. Nessas circunstâncias, o mais que se poderá dizer é que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento (caso se entenda que aquele reconhecimento não bastava para a declaração de insolvência), mas não pode afirmar-se que é nula por omissão de pronúncia, na medida em que a falta de apreciação dessas questões encontra justificação nas circunstâncias referidas, ou seja, o juiz não as apreciou porque entendeu que elas estavam prejudicadas e a sua apreciação era irrelevante.
A sentença recorrida não padece, portanto, de qualquer nulidade.
Invalidade da confissão de factos pela sociedade
Sustenta o Apelante que a confissão da sociedade é inválida, dizendo que o Tribunal a quo não verificou, conforme era sua obrigação, a validade dessa confissão, aluindo aos requerimentos que havia apresentado onde invocava a nulidade dessa confissão (por violação do pacto social, por conflito de interesses entre a sociedade e a sua gerente, uso anormal do processo, conluio e simulação processual).
Já dissemos a propósito da apreciação da nulidade da sentença que as questões suscitadas pelo Apelante nos referidos requerimentos não tinham que ser – como não foram – apreciadas na sentença recorrida. O Apelante não era parte na causa e não havia sido admitida a intervenção como assistente, pelo que não tinha – e, por força da não admissão da referida intervenção, não lhe veio a ser reconhecida – qualquer legitimidade para intervir nos autos e suscitar essas questões. Além do mais – e como também se disse supra – ainda que tivesse sido admitida a sua intervenção como assistente, o estatuto que essa intervenção lhe dava não lhe permitia contrariar a posição que, entretanto, veio a ser assumida pela sociedade (assistida) e não lhe permitia invocar a nulidade da confissão que esta veio fazer nos autos. Tudo se passava, portanto, como se tais requerimentos não existissem; eles eram inúteis e irrelevantes para a decisão a proferir sobre a insolvência porque o Apelante não tinha legitimidade para contestar o pedido de insolvência e muito menos a teria para contestar/impugnar a confissão que veio a ser realizada pela sociedade.
Por outro lado, e ao contrário do que sustenta o Apelante, o principio do inquisitório não justificava e não permitia que o tribunal tivesse o dever de apreciar e indagar os factos por si alegados e as provas que havia indicado para o efeito, designadamente, de aferir a validade da confissão.
Na verdade, o princípio do inquisitório – consagrado no art.º 11.º do CIRE, nos termos do qual a decisão pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes – não tem e não pode ter a amplitude que o Apelante lhe pretende dar, ao ponto de exigir a investigação oficiosa de factos de natureza complexa (como era o caso do alegado conflito de interesses, conluio ou simulação processual) – transformando o processo de insolvência num processo complexo e moroso destinado a dirimir conflitos e questões dessa natureza – apenas porque a eventual verificação desses factos chegou ao conhecimento do juiz mediante a introdução nos autos de um requerimento ou articulado provindo de alguém que não era parte e não estava legitimado a intervir nos autos.
O princípio do inquisitório atribui o juiz o poder de considerar e averiguar, de forma oficiosa, factos que não tenham sido alegados e que cheguem legitimamente ao seu conhecimento, designadamente, porque resultam dos autos, são de conhecimento geral ou porque os conheceu no âmbito do exercício das suas funções; tal princípio não implica, no entanto, o dever de o juiz considerar e averiguar, oficiosamente, factos que venham aos autos através de requerimentos formulados por quem não é parte nem sujeito legitimado a intervir.
Nessas circunstâncias, o máximo que o juiz tinha que fazer quando confrontado com a referida confissão era verificar se ela era válida no seu objecto e se provinha de quem tinha a capacidade e legitimidade para o efeito (abstraindo, naturalmente, de quaisquer outras circunstâncias que pudessem afectar a sua validade em termos materiais e substantivos e que não haviam sido formalmente introduzidas nos autos por quem tivesse legitimidade para suscitar a sua discussão e apreciação).
Ora, a confissão em causa não incidia sobre matéria em relação à qual não fosse admissível e provinha de quem tinha capacidade e legitimidade para o efeito, pois é certo que havia sido feita por advogada a quem a sociedade, por intermédio da sua legal representante, havia conferido procuração com poderes especiais para confessar.
Nada obstava, portanto, a que se reconhecesse a validade dessa confissão e se actuasse em conformidade.
E se é certo que os alegados vícios dessa confissão que são apontados pelo Apelante – relacionados com a violação do pacto social, conflito de interesses entre a sociedade e a sua gerente, uso anormal do processo, conluio e simulação processual – não tinham que ser apreciados na sentença recorrida, é igualmente certo que eles não podem ser invocados para fundamentar o presente recurso, uma vez que, apesar de a lei reconhecer ao Apelante, na qualidade de sócio da sociedade declarada insolvente, o direito de interpor recurso da sentença (cfr. art.º 42.º, n.º 1 e 41.º, n.º 1, alínea f), do CIRE), o recurso apenas pode ter como fundamento a incorrecção ou erro da sentença pelo facto de os elementos apurados não conduzirem à declaração de insolvência (cfr. art.º 42.º, n.º 1), não podendo fundamentar-se em factos novos que não foram tidos em conta na decisão recorrida por não terem sido introduzidos em juízo, sendo que, para este efeito, existe a oposição por embargos (cfr. art.º 40.º, n.º 2) que, aliás, o Apelante também deduziu em momento oportuno.
Concluimos, portanto, que tais factos/questões em que o Apelante faz assentar a invalidade da confissão não podem ser aqui considerados e apreciados; à luz dos elementos que, à data, estavam disponíveis, nada apontava para a invalidade da confissão e, portanto, ela tinha que ser reconhecida e considerada para dela extrair os efeitos legais.
Verificação (ou não) dos pressupostos necessários para a declaração de insolvência
Como ponto de partida para apreciação desta matéria cabe esclarecer – como resulta, aliás, do que já se disse – que a contestação e os requerimentos apresentados nos autos pelo Apelante não podem ser considerados para efeitos de apreciação do pedido de declaração de insolvência.
Conforme já se referiu e novamente se reafirma, tal contestação e requerimentos foram apresentados na qualidade de potencial assistente da sociedade requerida que o Apelante reclamava e na qualidade de substituto processual que esse estatuto lhe conferia em face da revelia da parte assistida (a sociedade) e cuja admissibilidade estava dependente da efectiva admissão dessa assistência. A verdade é que tal assistência não foi admitida e, de qualquer forma, a sociedade veio a ter intervenção assumindo posição contrária à que resultava daquela contestação, pelo que a mesma não pode ser considerada.
Nessas circunstâncias, a situação com a qual o tribunal se deparava e com base na qual haveria de apreciar e decidir o pedido de declaração de insolvência era a seguinte: a declaração de insolvência da sociedade em questão havia sido requerida por uma credora com base nos factos que alegou na petição inicial e que sustentava preencherem as situações previstas nas alíneas a) e b) do art.º 20.º do CIRE e a sociedade veio aos autos declarar que confessava, sem reserva, os factos constantes da petição, reconhecendo que se encontrava em situação de insolvência por não ter possibilidade de cumprir as obrigações vencidas, acrescentando que, no momento em que foi citada, estava a preparar a sua apresentação à insolvência.
É, portanto, nesse contexto e com base nessa situação, que se impõe analisar se a insolvência devia (ou não) ter sido declarada.
E, ultrapassada (nos termos referidos supra) a questão da validade dessa confissão, a primeira questão que se coloca consiste em saber se aquela declaração confessória da sociedade permitia (ou não) que se declarasse de imediato a sua insolvência independentemente de qualquer análise sobre a efectiva verificação dos pressupostos da insolvência.
A sentença recorrida entendeu que sim (foi nesses termos que declarou a insolvência), mas o Apelante entende que não, dizendo que apenas estava em causa uma confissão dos factos alegados na petição inicial e que tal confissão não podia determinar de modo automático a procedência do pedido de insolvência, sem que se verificasse se os factos alegados preenchiam (ou não) alguma das situações previstas no art.º 20.º do CIRE.
Apreciemos então essa questão.
É verdade que o CIRE não prevê, de modo expresso, a confissão do pedido, por parte do devedor, em caso de pedido de insolvência formulado por qualquer outro legitimado e não prevê, expressamente, qual a consequência de, em tal situação, o devedor reconhecer que está em situação de insolvência.
A lei apenas prevê e estabelece que a falta de oposição do devedor no prazo legal ou a sua falta de comparência (por si ou através de representante com poderes para transigir) na audiência de discussão e julgamento implica a confissão (tácita) dos factos alegados na petição inicial (cfr. artigos 30.º, n.º 5 e 35.º, n.º 2, do CIRE) e essa confissão (precisamente porque apenas se reporta aos factos) não implica a automática declaração de insolvência que apenas será decretada se esses factos (confessados) forem subsumíveis no n.º 1 do artigo 20.º (cfr. n.º 4 do art.º 35.º e n.º 5 do art.º 30.º).
Em todo o caso, não encontramos razões válidas para considerar que o devedor não possa reconhecer a sua situação de insolvência e, por essa via, provocar a imediata e automática declaração da insolvência, não parecendo estar em causa matéria que esteja subtraída à disponibilidade da parte e que, nessa medida, não possa ser objecto de confissão do pedido (não apenas dos factos alegados).
Com efeito, se o legislador admitiu que a apresentação do devedor à insolvência implica o reconhecimento da sua situação de insolvência com imediata declaração dessa insolvência (cfr. art.º 28.º) e se também retirou a confissão dessa situação de outros comportamentos do devedor, como acontece no caso em que o devedor apresenta plano de pagamentos (cfr. art.º 252.º, n.º 4), não haverá razões válidas para considerar que o devedor não o possa fazer no âmbito de processo de insolvência que contra si tenha sido instaurado por outro legitimado. Se o legislador retirou a confissão tácita dessa situação nos casos referidos, não haverá razão para considerar que tenha pretendido impossibilitar ou proibir a confissão expressa da mesma situação no âmbito de processo que se encontre pendente.
Pensamos, portanto, que nada obsta a que se considere – como se considerou na sentença recorrida – que o reconhecimento da situação da insolvência por parte da devedora tem a mesma consequência que teria caso tivesse sido ela a instaurar o processo (apresentando-se à insolvência), implicando, por isso, a imediata declaração de insolvência. Não se compreenderia, sequer, que, nessa situação, a insolvência não fosse declarada quando é certo que a sociedade poderia vir, logo de seguida, apresentar-se à insolvência com a consequente declaração dessa insolvência.
De qualquer modo e ainda que assim não seja – ou seja, ainda que se considere, como sustenta o Apelante, que a declaração da devedora apenas poderia valer como confissão dos factos alegados e que a insolvência apenas poderia ser declarada se tais factos preenchessem alguma das alíneas do art.º 20.º - sempre a insolvência deveria ser decretada, uma vez que, em face desses factos, estava verificada, pelo menos, a situação prevista na alínea b).
Vejamos.
É indiscutível que as situações previstas nas diversas alíneas do citado art.º 20.º correspondem àquilo que, normalmente, se designa por factos-índices ou presuntivos da situação de insolvência, ou seja, factos objectivos que, por regra, andam associados a uma situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas e, consequentemente, a uma situação de insolvência e que, como tal, fazem presumir a verificação desta situação, nos termos em que ela se encontra definida no art.º 3.º e que, em termos genéricos e sem prejuízo das regras estabelecidas nos n.ºs 2 e seguintes dessa disposição, correspondem à situação em que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. As situações previstas no citado art.º 20.º correspondem, portanto, a presunções ilidíveis da situação de insolvência, conforme se anota no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE.
Centremos a nossa análise na alínea b) que se reporta à falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
Ao contrário do que sucede na situação prevista na alínea a) – onde se pressupõe uma suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas (situação que, apesar de ter sido invocada pela Requerente, não parece resultar da matéria de facto que alegou, tendo em conta que não há referência ao incumprimento de outras obrigações vencidas e à suspensão generalizada dos respectivos pagamentos) –, a situação prevista na alínea b) basta-se com o incumprimento de uma única obrigação; o que é necessário é que esse incumprimento revele, por força do montante da obrigação ou por força das circunstâncias em que ele ocorreu, a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. Será necessário, portanto, que esse incumprimento aponte ou faça presumir/deduzir, em função das regras de experiência, que ele radica na existência de uma situação de insolvência, nos termos em que ela se encontra definida no art.º 3.º, ou seja, numa efectiva impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas.
No caso dos autos, a Requerente invoca um crédito de honorários – correspondente a serviços prestados no âmbito de diversos processos judiciais – no valor global de 50.187,69€, mais alegando que, tendo comunicado à Requerida as contas de honorários (solicitando o respectivo pagamento no prazo de oito dias, conforme consta da comunicação anexa à petição), a mesma respondeu – por intermédio da respectiva gerência – que, apesar de reconhecer a dívida, estava em situação de falta de liquidez que não lhe permitia pagar o valor em questão. Mais alega que a sociedade tem outros credores, que a sociedade não tem liquidez, e não tem (pelo menos não são conhecidos) quaisquer bens ou rendimentos que permitam obter a cobrança.
Ora, sendo certo que todos esses factos foram confessados pela devedora – que, além do mais, e conforme se referiu, reconheceu estar em situação de insolvência – não haverá como negar que a falta de cumprimento dessa obrigação é suficientemente reveladora da impossibilidade de a devedora satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. Em primeiro lugar porque foi a própria devedora que o reconheceu, afastando, portanto, a possibilidade – que, à partida, poderia ser admitida – de o incumprimento encontrar explicação em qualquer outra razão (como seria o caso de não cumprir porque não quis ou porque entendia não estar obrigada a tal). Em segundo lugar, porque, não possuindo a devedora liquidez, bens ou rendimentos será seguro afirmar que o incumprimento da obrigação relativamente à Requerente radicou efectivamente na impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
No sentido de afastar a verificação dos pressupostos da declaração de insolvência, o Apelante, além de impugnar a existência da dívida em questão, argumenta: que esse crédito não está vencido e não é exigível (porque os serviços prestados no processo n.º 86/22.... ainda não cessaram – o processo ainda está em curso –, não estando, por isso, vencidos os respectivos honorários e porque, de qualquer forma, não foi emitida factura); que a gerente da sociedade requerida apenas declara que a sociedade não terá liquidez, nos próximos meses, para liquidar a dívida, não declarando a impossibilidade definitiva do cumprimento da alegada obrigação e que a sociedade não está em situação de insolvência, sendo certo que tem património e activo.
Reafirmamos, no entanto, e mais uma vez, que essa matéria (ou a maior parte dela) não constitui fundamento válido para o presente recurso, na medida em que se consubstancia na alegação de factos e questões novas que não foram considerados – nem tinham que ser – na decisão recorrida, na medida em que a contestação apresentada pelo Apelante (onde essa matéria havia sido alegada e invocada) não podia ser considerada; e não podia ser considerada porque o Apelante não era parte e não havia sido admitido a intervir como assistente (carecendo, por isso, de legitimidade para apresentar essa contestação) e porque, de qualquer forma, a sociedade (a parte que o Apelante pretendia assistir) veio tomar posição contrária, confessando os factos e reconhecendo a sua situação de insolvência e seria sempre esta a posição que tinha que prevalecer, ainda que tivesse sido admitida a assistência.
Não adianta, portanto, argumentar – como argumenta o Apelante – que o crédito em questão não existe, não está vencido e não é exigível, medida em que a Requerida (a sociedade) confessou que existe sem questionar a sua exigibilidade. Também não adianta argumentar que a gerente da sociedade apenas se limitou a reconhecer a falta de liquidez nos próximos meses sem declarar a impossibilidade definitiva de cumprimento, na medida em que a sociedade reconheceu expressamente nos autos que está impossibilitada de cumprir as suas obrigações e não adianta argumentar que a sociedade não está em situação de insolvência porque tem património e activo, uma vez que a sociedade não invocou a existência desse activo ou património, reconhecendo, ao invés, estar em situação de insolvência e porque, além do mais, o próprio Apelante não alega, em termos concretos, a existência de qualquer liquidez, bem ou rendimento que possa responder pelo cumprimento das obrigações, limitando-se a aludir ao activo constante dos documentos contabilísticos (que não revelam, só por si, a efectiva existência de liquidez, bens ou rendimentos para fazer face ao cumprimento das obrigações) e a um imóvel em relação ao qual está pendente uma acção de reivindicação por si instaurada que, em todo o caso – e porque o que está subjacente a essa acção é venda do imóvel que foi realizada pela sociedade através da sua gerente – não está, neste momento, na esfera jurídica da sociedade, não respondendo, por isso, pelo menos por ora, pela satisfação do seu passivo.
Mostram-se, portanto, verificados, em face de tudo o exposto, os pressupostos necessários à declaração de insolvência, impondo-se, por isso, a procedência do recurso e a confirmação da sentença recorrida.
IV.
Pelo exposto, nega-se provimento aos recursos e confirmam-se as decisões recorridas.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Chandra Gracias)
(Arlindo Oliveira)
[1] CPC Online, anotação ao art.º 328.º, Blog do IPPC.
[2] Cfr. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 4.ª edição Actualizada e Ampliada, pág. 164; José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 2.ª edição, pág. 647 e M. Teixeira de Sousa, CPC online, anotação ao art.º 329.º, Blog do IPPC.
[3] Código de Processo Civil Anotado, vol. II, páginas. 288 e 289.
[4] Neste sentido e entre outros, podem ver-se os Acórdãos do STJ de 18/04/2002 (processo nº 02B737), de 19/12/2006 (processo nº 06B4521), de 21/06/2011 (processo nº 1065/06.7TBESP.P1.S1), de 15/12/2011 (processo nº 2/08.9TTLMG.P1S1) e de 06/07/2017 (processo nº 121/11.4TVLSB.L1.S1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.