PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE MENORES
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ANULAÇÃO DA DECISÃO
Sumário


I. O nº4 do art.º 28º da Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro ( R.G.P.T.C) prevê que ocorra a dispensa do contraditório; porém, só o legitima quando o mesmo “puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.”, devendo, nesse caso, ser justificada pelo Tribunal a razão da dispensa;
II. A supressão total das visitas e convívios das crianças com o progenitor é uma medida cautelar gravosa que o amputa de um direito, que é simultaneamente um dever, de conviver com os filhos em ordem a participar no seu crescimento e desenvolvimento e tendo sido adoptada em consequência da alegada perturbação causada às crianças pelo comportamento maledicente do progenitor relativamente à mãe das mesmas e sua família, não deveria ter sido tomada sem audiência prévia daquele.
III. O não cumprimento do princípio do contraditório prévio à prolação da decisão em apreço configura, no caso, uma nulidade processual, visto ter sido omitida a prática de um acto ou formalidade legalmente prescrita – audição do progenitor- fora dos casos em que a lei permite a sua dispensa (art.º 28º, nº4, 1ª parte, do RGPTC e artº195º, nº1 do CPC).
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


3461/23.6T8STR-A.E1

ACÓRDÃO

I.RELATÓRIO

1. AA progenitor de BB, nascido em ../../2013 e de CC, nascida em ../../2015, veio recorrer do despacho proferido em 3.7.2024 no qual foi alterada a medida de promoção e proteção anteriormente estabelecida e determinado cautelarmente a imediata suspensão dos contactos e convívios entre os menores e o mesmo progenitor (salvo se por vontade e iniciativa dos menores).

2. Formulou na sua apelação as seguintes conclusões:

1. No caso em apreço, foi apresentada nos autos uma informação/relatório da ATT e um email da progenitora, e sobre os quais assenta, na sua totalidade, a decisão proferida de suspensão dos contactos dos menores com o progenitor.

2. Em momento algum, foi concedido ao pai o direito ao contraditório ou mesmo o conhecimento prévio de tais documentos, considerando que ambos os documentos assentam no seu essencial nas descrições da mãe dos menores e da avó materna.
3. O relatório da ATT em momento algum refere qualquer contacto ou tentativa de contacto com o pai, o que é totalmente irregular, configurando tal relatório não uma apreciação objetiva e global, mas sim a defesa de um dos lados.
4. A não existência de contraditório não pode deixar de configurar uma nulidade insanável, e como tal assim dever ser considerada e declarada.
5. Decidiu o tribunal a quo que os convívios com o pai, em especial da CC está a ser prejudicial ao seu bem estar emocional e a condicionar o seu bom aproveitamento escolar.
6. O relatório da ATT refere ter contactado as professoras das crianças, mas não existe nenhuma concretização do que foi referido por estas, relatando no essencial o que
foi transmitido pela mãe, como se pode verificar por confronto com o teor do email enviado pela mesma com uma descrição exaustiva de situações, no qual se verifica existir uma vincada intenção de afastar as crianças do pai.
7. O tribunal, reproduzindo o teor da informação da ATT, indica que a CC tem manifestado ansiedade e tristeza perante os convívios com o pai e que o pai é desrespeitoso e recorre a palavras e comentários impróprios em relação à mãe e família materna, em frente à criança, e que os episódios descritos têm vindo a ser relatados quer pela família materna quer pelas entidades que acompanham as crianças, nomeadamente escola e pedopsiquiatras e psicólogos.
8. Da consulta dos autos, não vislumbrámos a existência de qualquer relatório de pedopsiquiatra ou psicólogo que indiquem que o regime estabelecido no âmbito da RPP tenha vindo a colocar a criança – em especial na CC – numa situação de perigo
que justifique a tomada de posição do tribunal.
9. Resulta claro que a informação da ATT toma por boas as declarações da mãe e da avó materna, referindo inclusivamente que “a progenitora tem cumprido com todas as ações que lhe foram incumbidas pelo Acordo de Promoção e Proteção”.
10. O tribunal não curou de apurar se existe da parte da progenitora e da família materna algum tipo de pressão sobre as crianças para que estas, num conflito de lealdade, tenham de optar entre o pai e a mãe.
11. Assim como não solicitou os alegados relatórios ou pareceres da pedopsiquiatria e psicologia, uma vez que são referidos pela ATT mas não constam dos autos.
12. Deixar ao critério de crianças de 9 e 11 anos se devem ou não contactar com o pai quando apenas a mãe tem controle sobre os mesmos, importa desde logo que os contactos não irão ocorrer.
13. E aceitando que afastar as crianças do perigo em que possam ser colocadas, afigura-se-nos que no caso em apreço não se apreciou o perigo da alienação parental levada a cabo pela mãe.
14. Note-se que a avó materna, em momento prévio à decisão do tribunal, informou o pai por SMS, no dia 02.07.2024 que “segundo a informação que me foi dada, foi pedida, pela técnica da segurança social, uma alteração, ao regime das visitas.
Como tal, amanhã não levo a CC a lado nenhum.
Se precisar de mais esclarecimentos, dirija-se ao tribunal, ou Dr. DD, técnica da segurança Social”.doc.1
15. A avó materna tinha conhecimento de que a técnica que elaborou a informação junta aos autos e na qual o tribunal assentou a sua decisão, iria propor a suspensão das visitas, tendo um acesso a informações totalmente negadas e omitidas ao pai, que tão pouco foi ouvido no âmbito da elaboração da referida informação.
16. O afastamento total do pai não poderá de forma alguma ser benéfico às crianças, até porque, aquando da inquirição das crianças a 21.05.2024, não foi isso que resultou para o tribunal, pelo que se procedeu à alteração em 23.05.2024, e por vontade também da CC, a mesma continuou a estar com o pai, ainda que de forma mais limitada, não existindo pernoita, jantando e lanchando com o mesmo e em momento algum manifestou desconforto ou vontade de não estar com o pai, pelo contrário, diz ao pai que gosta dele e que tem saudades.
17. Mantendo-se a situação agora determinada, dispõe a progenitora, em exclusivo, dos contactos com os filhos e com a possibilidade, que se mostra real e efetiva, de sobre os mesmos exercer influência no sentido de não quererem estar com o pai.
18. A decisão proferida, lamentavelmente, dá total liberdade à mãe para promover o afastamento entre pai e filhos, que se conclui ser o objetivo traçado.
19. Tendo as crianças a beneficiar de medida de promoção e proteção, não deveria, ainda que a título cautelar, aplicar-se-lhe outra medida quando, no caso concreto as circunstâncias de facto apuradas não integram uma situação de emergência nem mostram que o grau de perigo tenha aumentado em relação ao pressuposto aquando do decretamento daquela medida.
20. Entende-se que o tribunal a quo andou mal ao decidir como decidiu, com base em informações incompletas, claramente tendenciosas e que expressam apenas a opinião da progenitora e dá cobertura a um verdadeiro exercício de alienação parental.
21. Nestes termos, parece-nos que no superior interesse da criança, deve ser alterada a decisão nos termos que se encontravam, pelo menos, fixados anteriormente.
22. Tendo o Tribunal a quo decidido da forma que o fez, violou o disposto nos artigos 13.°, 36.°, n.º 3 da CRP, 2003.°, 2004.°, n.º 1, 1874.°, n.º 2, 1878.°, 1885.°, todos do Código Civil, 27.°, n.º 3 da Convenção dos Direitos da Criança.”.


3. Contra-alegou a progenitora das crianças, EE, defendendo a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.


4. Contra-alegou, igualmente, o Ministério Público pugnando, também, pela improcedência do recurso.

5. OBJECTO DO RECURSO

Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – são as seguintes as questões cuja apreciação as mesmas convocam:

5.1. Da violação do contraditório previamente à prolação da decisão recorrida; consequências.

5.2. Da (in) justeza da medida cautelar aplicada.

6. FUNDAMENTAÇÃO

6.1. É o seguinte o teor da decisão recorrida:

“Na sequência de informação da ATT (ref. supra) de que as visitas e convívios com o pai ficaram decididos no âmbito da RRP, e em especial no caso da CC está a ser prejudicial ao seu bem-estar emocional e a condicionador o seu bom aproveitamento escolar, veio o Ministério Público promover que se determine a suspensão de todos os contactos e convívios entre os menores e o progenitor e que este entregue à família materna o animal de estimação do BB – o galo.

O menor BB tem 11 aos e a menor CC tem 9 anos.

Da informação supra, confirmada pelas declarações dos menores nestes e nos autos apensos, resulta que:

- a menor CC tem manifestado ansiedade e tristeza perante os convívios com o pai.

- o progenitor não se coíbe de desrespeitar com atitudes agressivas e palavras e comentários impróprios em relação à mãe e família materna, em frente da criança.

- a menor tem manifestado tal receio à professora e à avó sempre que é dia do pai a ir buscar à Escola.

- na 3.ª feira (18/06/2024), antes da criança ser uma vez mais ouvida no Tribunal (apenso B), a CC não queria ir com o pai, manifestou essa sua vontade, a todos os adultos, inclusive ao pai, tendo-lhe explicado e justificado os seus receios e a seu pouco à vontade com o mesmo pelo seu discurso e postura em relação à mãe e família.

- com a promessa do pai controlar o discurso, a criança acabou por ceder - uma vez mais, a promessa foi vã, e o cumprimento dos horários e regras estabelecidas quebrado e ajustado, pelo pai.

- estes episódios têm vindo a ser relatados quer pela família materna quer pela entidades que acompanham as crianças, nomeadamente escola e pedopsiquiatras e psicólogos.

- passou nem um mês da ultima audiência, e de se ter definido um acordo que patrocinasse a manutenção da ligação com o progenitor.

- o pai continua a incorrer no mesmo tipo de atos – imputa à progenitora e família materna condutas e nomes impróprios, não acede aos pedidos dos menores para mudar de comportamento.

- a progenitora tem cumprido com todas as ações que lhe foram incumbidas pelo Acordo de Promoção e Proteção.

- o progenitor não cumpre na integra com os deveres inerentes à responsabilidade parental, nomeadamente promoção e proteção do bem-estar e segurança dos filhos.

Mais resulta dos autos, designadamente das diligências de conferência/audição do progenitor:

- com a separação do casal as crianças perderam (deixaram de aceder) a alguns dos seus pertences pessoais e animais de estimação (caso do BB).

- o progenitor recusa-se a entregar a roupa, os brinquedos, o material escolar e o animal de estimação do BB (o galo) aos menores, o que provoca nas crianças desalento, tristeza e instabilidade emocional.

A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 36.º n.º 5 estabelece que “Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”.

As responsabilidades parentais apresentam-se como um efeito da filiação, regulado nos artigos 1877.º e seguintes do Código Civil, sendo concebido como um conjunto de poderes-deveres que competem aos pais relativamente à pessoa e bens dos filhos menores não emancipados [englobando o poder-dever de guarda (artigos 1887.º, 1928.º n.º 1, 1935.º n.º 1, 1612.º n.º 1, 1905.º, 1906.º, 1911.º e 85.º do Código Civil); o poder-dever de educação (artigos 1878.º, 1885.º e 1886.º do Código Civil e 73.º, 74.º e 79.º da Constituição da República Portuguesa); poder-dever de auxílio e assistência (artigos 1874.º, 1878.º n.º 1, 1879.º, 1880.º e 2003.º e seguintes do Código Civil); o poder-dever de representação (artigos 127.º, 1881.º e 1888.º do Código Civil) e o poder-dever de administração (artigos 1888.º e seguintes do Código Civil)].

Não se trata de um puro direito subjetivo, visto que o seu exercício não está dependente da livre vontade do seu titular, mas antes de uma função (poder funcional), ou seja, de “um conjunto de faculdades de conteúdo altruísta que tem de ser exercido de forma vinculada, de harmonia com a função do direito, consubstanciada no objetivo primacial de proteção e promoção dos interesses do filho, com vista ao seu desenvolvimento integral” [Armando Leandro, Poder Paternal, Temas de Direito da Família, 1986, p. 119 citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03-05-2006, in www.dgsi.pt].

Quando os pais não cumprem com os referidos deveres fundamentais, a ordem jurídica confere às crianças, enquanto sujeitos de direito, mecanismos de proteção, podendo os filhos deles serem separados – o que decorre do disposto no n.º 6 do artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa que estabelece que “Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial”.

Assim, as crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, e têm direito a especial proteção do Estado as crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal, como decorre do disposto nos artigos 65.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa.

A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo [Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro] tutela as situações de crianças e jovens que vivenciam situações de perigo, enumeradas de forma exemplificativa no n.º 2 do artigo 3.º, a que o sistema social e judiciário tenta pôr cobro, proporcionando-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, bem-estar e desenvolvimento integral. Assim é que, no seu artigo 35.º, prevê um conjunto de medidas de promoção e proteção com o objetivo, expressamente assinalado no artigo 34.º, de afastar o perigo em que estes se encontram [alínea a)], proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral [alínea b)], garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso [alínea c)].

Cumpre, ainda, referir que todas as medidas consignadas na Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo têm subjacentes a proteção judiciária dos menores e a defesa dos seus direitos e interesses.

O interesse do menor apresenta-se como o valor primordial do processo em que está em causa o seu destino, sobrepondo-se a quaisquer valores de diferente natureza. Além disso, o interesse da criança justifica sempre uma intervenção judiciária quando a criança se encontra em perigo quanto à sua formação, educação, segurança e saúde e, em caso de conflito familiar, quando o destino e as questões relacionadas com o exercício das responsabilidades parentais necessitam de ser reguladas.

Mostra-se determinada a realização de perícia aos progenitores e aos menores.

Em face do exposto, por entender necessário e proporcional a colocar termo a situação de perigo vivenciada pelos menores, decide-se cautelarmente determinar a imediata suspensão dos contactos e convívios entre os menores e o progenitor (salvo se por vontade e iniciativa dos menores).

Mais se determine ao progenitor que entregue à família materna, os pertences dos menores (roupas/brinquedos/material escolar) e o animal de estimação do BB – o galo.

Notifique, sendo o progenitor com a cominação da prática do crime de desobediência.”.

6.2. A decisão supra não foi precedida de audição do progenitor, não lhe tendo sido notificado nem o relatório da ATT a que nela se alude, nem a promoção do Ministério Público que a antecedeu.

6.3. No dia 23.5.2024 havia tido lugar uma conferência de pais no âmbito do apenso B (alteração das responsabilidades parentais) na qual foi obtido acordo entre os progenitores nos seguintes termos:

1- O pai poderá estar/contactar com o menor BB desde que o menor manifeste vontade, de forma a combinar entre estes.
a. A progenitora deverá, junto da psicóloga que acompanha o menor, solicitar que o acompanhamento incida, ainda, sobre os contactos do menor com o pai;
b. O menor deverá contactar telefonicamente com o progenitor às terças-feiras, sextas-feiras e domingos às 18:30 horas.
2- O pai irá buscar a menor CC à escola, às terças-feiras, quartas-feiras e às quintas-feiras (à hora da saída), lancha e janta com a menor e entrega-a à avó materna, no Largo 1, às 20:30 horas.
a. Quando a menor estiver de férias escolares a entrega será às 21:00 horas.
3- A menor CC passará o dia de sábado com o progenitor, de 15 em 15 dias.
a. O pai irá buscar a menor ao Largo 1 às 10:00 horas e entregar a mesma à avó materna, no mesmo local, às 20:30 horas.
b. O pai compromete-se em levar a menor à atividade de zumba às 11:30 horas.
c. No dia de aniversário da menor (próximo dia 29/05) a mesma irá lanchar com o pai, o progenitor irá buscar a menor à escola às 16:20 horas e entregar, à avó materna, no Largo 1, às 19:00 horas.
4- Às segundas-feiras, sextas-feiras e domingos a menor deverá contactar telefonicamente o progenitor às 18:30 horas.
5- A título de pensão de alimentos devidas aos menores, o pai contribuirá com €150,00 (cento e cinquenta euros), por cada menor, paga até ao dia 8 de cada mês mediante transferência ou depósito bancário para a conta da mãe ( ...20).
6- As despesas médicas, de saúde, medicamentosas, escolares (material escolar, livros de atividades, explicações e visitas de estudo) e extracurriculares (comummente aceites) dos menores serão suportadas por ambos os progenitores, na proporção de metade, mediante prévia apresentação dos respetivos documentos comprovativos (via e-mail se
pela progenitora, entregues à avó materna aquando da entrega da menor se pelo progenitor), até ao último dia do mês a que respeitam, e pagas nos 8 dias subsequentes à apresentação.
7- A pensão de alimentos referida no ponto 9, será atualizada todos os anos no valor de €5,00 (cinco euros) sendo a primeira atualização em janeiro de 2025.

6.4. Este acordo foi homologado por sentença proferida nesse mesmo dia, precedido de parecer favorável do Ministério Público.

7. Do mérito do recurso

7.1. Da violação do contraditório

Volvido cerca de um mês e meio sobre o acordo alcançado pelos progenitores do BB e da CC no processo de alteração das responsabilidades parentais, entendeu o Tribunal “a quo”- sufragando promoção do Ministério Público que, por seu turno, se ancorou num relatório da ATT - suprimir todo e qualquer contacto e convívio entre os menores e o progenitor.

A justificação dada para tão gravosa medida é a de que tais convívios não estão a salvaguardar os interesses destas duas crianças, essencialmente o seu bem-estar psicológico.

Porém, percorrendo o relatório junto aos autos, o que deles se extrai é que tal mal-estar das crianças é essencialmente motivado pelo discurso e postura do pai em relação à mãe e à família da mãe.

Refere o Ministério Público nas suas contra-alegações que: “Podem ser tomadas medidas cautelares, sempre que importe a tomada de uma medida imediata, a título precário e provisório, de modo a remover, atempadamente, o perigo a que as crianças estejam sujeitas.

Importou remover uma situação de perigo atual e iminente, que os menores vivenciavam, ao contactar com o pai, já que o comportamento deste representava uma situação de perigo para o sadio desenvolvimento psicológico dos menores.

As medidas cautelares podem ser aplicadas em qualquer fase do processo.

A decisão de aplicação de medida cautelar deverá conter os factos que a fundamentam, não dependendo da prévia observância do contraditório”

Vejamos.

Dispõe o nº1 do art.º 28º da Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro ( REGIME GERAL DO PROCESSO TUTELAR CÍVEL ) que: “ Em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, a requerimento ou oficiosamente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efetiva da decisão”.

Acrescenta o nº2 que: “Podem também ser provisoriamente alteradas as decisões já tomadas a título definitivo.”

E estabelece o nº4 que: “O tribunal ouve as partes, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.”.

Efectivamente, a lei prevê que ocorra a dispensa do contraditório. Porém, só o legitima quando o mesmo “puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.”.

No caso, não vem sequer justificada pelo Tribunal “a quo” a razão da dispensa do contraditório, como a nosso ver se impunha.

De igual sorte, o nº 1 do art.º 37º da Lei nº 147/99, de 1 de Setembro prevê que : “A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.”.

No nosso caso não foi tomada nenhuma das medidas aí previstas mas, sim, a supressão total das visitas e convívios das crianças com o progenitor, susceptível, portanto, de ser enquadrada no citado normativo do RGPTC.

Trata-se, como dissemos, de uma medida gravosa que amputa o progenitor de um direito que é simultaneamente um dever de conviver com os filhos em ordem a participar no seu crescimento e desenvolvimento.


Sendo a medida adoptada justificada essencialmente com o comportamento maledicente do progenitor relativamente à mãe das crianças e sua família, o que as perturba, não vemos que a audiência prévia daquele fosse, de alguma sorte, susceptível de comprometer, de forma irremediável e definitiva, o efeito útil da providência.

Aliás, cremos que o contraditório sempre permitiria sopesar argumentos contrários e, quem sabe, poderia ter levado o Tribunal a “quo” a enveredar por uma medida alternativa que acautelasse os vários direitos em presença, designadamente o das crianças a não serem transformadas em “órfãs de pai”.

Entendemos, assim, que o direito ao contraditório do apelante foi indevidamente postergado.

“Este direito não se confunde com o direito de defesa uma vez que assiste a ambas as partes – autor e réu. Trata‑se de assegurar a participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o processo, permitindo‑lhes, em condições de plena igualdade material, influir em todos os seus aspetos (alegação dos factos, proposição e produção da prova e discussão das questões de direito). O princípio do contraditório reflete‑se:
a) no plano da alegação dos factos
Os factos alegados por uma parte devem poder ser contraditados pela outra parte, o que explica a existência dos sucessivos articulados. O direito ao contraditório justifica que a parte possa ainda responder a exceções no início da audiência prévia ou da audiência final (art. 3.º, n.º 4, do CPC).
b) no plano da proposição e da produção da prova
As partes têm ao seu dispor meios de prova das afirmações sobre os factos que alegaram. As provas podem ser produzidas no processo (provas constituendas) ou serem
“pré‑constituídas” (meios de prova que são juntos ao processo).
O princípio do contraditório pressupõe nesta sede o tratamento igual das partes. Por exemplo, são idênticos os momentos da produção da prova e os limites a ela impostos (cfr., por exemplo, o artigo 511.º do CPC para a prova testemunhal). Além disso, aquele princípio implica que toda a prova produzida no processo esteja sujeita a contraditório, quer no que respeita à sua admissibilidade quer quanto à sua força e eficácia probatória (cfr.,por exemplo, o art. 415.º do CPC). No final da produção da prova, ambas as partes têm o direito de se pronunciarem, através de debates orais, sobre os termos em que, no seu
entender, a matéria de facto deve ser julgada (cfr. arts. 3.º, n.º 3, e 604.º, n.º 3, e), do CPC).
c) no plano da discussão das questões de direito
Nos termos dos artigos 604.º, n.º 1, e), do CPC, antes de proferida a sentença, é facultada às partes a possibilidade de discutirem os fundamentos de direito. Este contraditório no plano do direito está, também, acautelado no âmbito dos recursos (art. 638.º, n.º 5, do CPC).[1]”.

Como de disse, o apelante não foi não só notificado do relatório da ATT como também não o foi da promoção do Ministério Público que deram origem à decisão recorrida.

Resta retirar as consequências de tal constatação.

O não cumprimento do princípio do contraditório prévio à prolação da decisão em apreço configura, no caso, uma nulidade processual, visto ter sido omitida a prática de um acto ou formalidade legalmente prescrita – audição do progenitor- fora dos casos em que a lei permite a sua dispensa (art.º 28º, nº4, 1ª parte, do RGPTC e artº195º, nº1 do CPC).

A omissão de tal acto reflecte-se na decisão proferida, cuja anulação determina, devendo ser o progenitor notificado da promoção do Ministério Público para se pronunciar, dando-se, assim, cumprimento ao contraditório omitido.
Também não pode deixar de ser notificado do relatório da ATT que esteve na origem da promoção do Ministério Público e que ampara igualmente a decisão recorrida.

Fica, por consequência, prejudicada a apreciação da segunda questão enunciada.

III. DECISÃO
Por todo o exposto se acorda em dar provimento ao recurso, anulando-se a decisão recorrida e determinando-se que previamente a outra que, em sua substituição venha a ser tomada, se notifique o progenitor da promoção do Ministério público para se pronunciar, assim como do relatório da ATT a que se alude supra.
Sem custas (art.º 4º, nº1, alínea i) do RCP).

Évora, 21 de Novembro de 2024
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Ana Pessoa
José António Moita
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[1] Rita Lobo Xavier e outros em ELEMENTOS DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL TEORIA GERAL PRINCÍPIOS PRESSUPOSTOS, 2.ª edição, Universidade Católica Editora Porto, pag.135 e seguintes.