CONFIANÇA A INSTITUIÇÃO COM VISTA A FUTURA ADOÇÃO
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário


1. Não há violação do contraditório nem do direito de audição e informação, se a progenitora esteve presente, após notificação para o efeito e acompanhada de defensora nomeada, no debate judicial, onde foi ouvida e apresentou prova testemunhal e documental.
2. Quando impugna a matéria de facto, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de imediata rejeição nessa parte.
3. A confiança judicial com vista à adopção, tendo como pressuposto a inexistência (ou ruptura) de um quadro familiar, visa a defesa dos direitos e interesses da criança.
4. A prevalência dos interesses da criança coloca esta (e o seu tempo, não o dos adultos) como elemento nuclear de qualquer observação que deva fazer-se e referência de toda a ponderação sobre a medida a aplicar.
5. A continuação da institucionalização da criança, pretendida pela recorrente, constituiria o verdadeiro risco de reduzir perigosamente a possibilidade daquela (atenta a sua idade) de ter um projecto de vida claro e sadio que corresponda ao seu superior interesse.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral

Apelação n.º 1091/22.9T8AMD.E1
(1.ª Secção)


Relator: Filipe Aveiro Marques
1.º Adjunto: Ricardo Miranda Peixoto
2.º Adjunto: António Marques da Silva


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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO:
I.A.
AA, na qualidade de progenitora e requerida no processo de promoção e proteção relativo à menor BB (nascida a ../../2012), interpôs recurso do Acórdão proferido pelo Juízo de Família e Menores local 1, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca Local 1, que terminou com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto: decide o Tribunal Colectivo:

I. Aplicar a favor da criança BB a medida de confiança a Instituição (no caso, “Casa 1 ", em Local 1) com vista à adopção nos termos dos artigos 35.º, n.º 1, alínea g), 38.º-A, 62.º-A e 121.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, bem como do artigo 1978.º do Código Civil.

II. Declarar ao abrigo do disposto no artigo 1978.º-A do Código Civil, ficar a progenitora inibida do exercício das responsabilidades parentais relativamente à criança, com a consequente proibição de visitas ou de quaisquer contactos por parte daquela com a menor (artigo 62.º-A, n.º 6, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo).

III. Nomear como curador provisório da criança. o(a) Director(a) da Casa de Acolhimento, o qual exercerá tais funções até ser decretada a adopção.

IV. Comunicar a presente decisão à Casa de Acolhimento, bem como à Segurança Social (neste último caso, observando o disposto nos n.º 2 e 3 do artigo 39.º da Lei 143/2015 de 8/9 que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Adopção).”

Este processo de promoção e proteção foi instaurado em 25/05/2022 por iniciativa do Ministério Público (no Juízo de Família e Menores Local 2), que pediu a aplicação à menor da medida de promoção e protecção de acolhimento residencial. Alegou, para tanto, que a menor se encontrava a beneficiar de acolhimento desde 04/06/2021 com o consentimento da progenitora que, entretanto, veio a retirar esse consentimento e que não existia alternativa familiar ao acolhimento residencial (uma vez que os comportamentos da progenitora incomodam a menor e causam-lhe desequilíbrio emocional).

Em 9/06/2022, após a audição da mãe da menor (que concordou com a proposta de medida de promoção e protecção), foi declarado o encerramento da instrução, realizada uma conferência com vista à obtenção de um acordo de promoção e proteção e ordenada uma perícia às competências parentais da progenitora da menor. Nos termos do acordo de promoção e proteção firmado nessa mesma data, a menor BB ficou sujeita à medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, concretamente, na “Casa 1”, pelo período de seis meses.

Mediante despacho proferido em 23/01/2023 foi decidido manter a medida de acolhimento residencial.

Por despacho de 31/01/2023 decidiu-se a incompetência territorial do Juízo de Família e Menores Local 2 e remeteram-se os autos ao Juízo de Família e Menores local 1. Já neste último Juízo, por despacho de 25/05/2023, foi designada data para a audição da menor, que ocorreu a 14/06/2023. De seguida, por despacho de 16/08/2023, decidiu-se suspender, pelo período de 3 meses, as visitas da progenitora à sua filha, passando os contactos telefónicos a ter a periodicidade de uma vez por semana.

Por despacho de 15/11/2023 insistiu-se pelo envio do relatório social e mais se determinou que, uma vez o mesmo junto, se notificasse a progenitora para se pronunciar em sede de revisão da medida.

Tal notificação ocorreu por ofício de 27/11/2023.

O Ministério Público, em 15/12/2023, por entender que decorre dos autos a impossibilidade de integração da BB na sua própria família, promoveu a aplicação da medida de confiança a instituição com vista à sua adopção por ser a única que se mostra adequada e suficiente para lhe proporcionar a segurança, bem estar, educação, formação e desenvolvimento integral.

O despacho de revisão da medida de 18/12/2023 terminou com o seguinte dispositivo: “mantém o Tribunal a medida de acolhimento residencial aplicada à criança, BB, apenas a título provisório pelo prazo de 6 meses com revisão no final do prazo de 3 meses (artigos 35º nº1 alínea f), 37º e 62º nº3 alínea c) da LPCJP. Mais se determina a realização de debate judicial, tendo em vista a eventual aplicação da medida de confiança a instituição com vista à adopção nos termos do artigo 35º nº1 alínea g) da LPCJP. Nomeie defensores diferentes à mãe e à criança (artigo 103º da LPCJP), notificando-os do último relatório social. Após tal nomeação, notifique os mesmos, bem como a mãe e o Ministério Público para apresentarem alegações nos termos do artigo 114º nº1 da LPCJP”.

Nesse mesmo dia foi comunicado ao processo que havia sido nomeada defensora à ora requerida/recorrente.

Esse despacho foi notificado à requerida e ora recorrente por ofício de 18/12/2023. Nesse mesmo ofício foi-lhe comunicada a nomeação de defensora. A carta de notificação não veio devolvida.

Após alegações do Ministério Público (a 28/12/2023, defendendo a aplicação da medida de confiança com vista à adopção) e da defensora da menor (a 03/01/2024, pugnando pela adopção), foi proferido despacho de 8/01/2024, que admitiu meios de prova e designou data para a realização de debate judicial.

A requerida e sua defensora foram notificadas desse despacho (ofícios de 9/01/2024), com cópia das alegações e prova apresentada pelo Ministério Público. Uma vez que este ofício de notificação da requerida veio devolvido, foi enviada notificação, em 22/01/2024, para o email que a requerida havia indicado no processo.

A 18/03/2024 realizou-se o debate judicial (com presença da requerida e ora recorrente, que prestou declarações e apresentou prova, designadamente testemunhal e documental).

A 4/04/2024 foi proferido acórdão elaborado em conformidade com a deliberação do Tribunal Colectivo (Juiz Presidente e Juízes Sociais).

Em 19/04/2024 a requerida/recorrente apresentou recurso, que veio a dar lugar a Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 6/06/2024 (proferido no apenso A) a estes autos) que declarou a nulidade daquela decisão de 4/04/2024 e ordenou a reabertura do debate judicial com audição da menor quanto à alteração da medida e possibilidade de lhe vir a ser aplicada medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção.

Por despacho de 03/07/2024 foi designada nova data para continuação do debate judicial com audição da criança.

Em 26/08/2024 foi reaberto o debate judicial com audição da menor.

Em 27/08/2024 foi proferido o Acórdão do Tribunal Colectivo (constituído por Juiz Presidente e Juízes Sociais) recorrido.


*
I.B.
A autora/apelante apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

“I. O douto tribunal a quo veio a considerar, outrossim, que os laços afectivos entre mãe e filha se mostram, não só séria, como irremediavelmente comprometidos em face das características de personalidade e de comportamento da progenitora;

II. Porquanto, ademais, considerando que se afigura inviável o retorno da criança à sua família natural, e não existirem também outros familiares que pudessem constituir-se como alternativas ao cenário de adopção, e relevando também a vontade da criança de ver o seu direito a uma família respeitado, pelo que assim o vem a entender como “ forçoso” o ter que “ concluir pela aplicação da medida de confiança a instituição com vista a adopção.”;

III. Resultando pontos da matéria de facto que se consideram incorrectamente julgados, e cujos meios probatórios, ou ausência dos mesmos, impunham decisão necessariamente diversa da recorrida;

IV. Designadamente, os pontos 2, 13, 29, sem que tenha existido prova cabal e suficiente que possa ter relevado para a decisão proferida;

V. Um dos princípios orientadores da intervenção a fazer com vista à promoção dos direitos e protecção da criança ou do jovem em perigo é, segundo o estatuído no art.º 4.º, al.) g) da LPCJP, o de dar prevalência a medidas que integrem aqueles na sua família;

VI. Mas qualquer das medidas enunciadas nas várias alíneas do n.º 1 do art.º 35.º do mesmo diploma visa, em satisfação do superior interesse da menor- outro dos princípios orientadores da intervenção, nos termos do citado art.º 4.º, al. a), designadamente, proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral- al. b) do art.º 34.º da LPCJP;

VII. Prevalência que ainda não se pode deixar de aqui justificar, através de um juízo de prognose favorável, com base nos factos conhecidos, de que ainda se não mostra possível vir a alcançar, de firma imediata, esse fim, mas sim com o restabelecimento das visitas presenciais da mãe à aqui sua única filha, e sujeição daquela a terapia e acompanhamento psicológico, e educação parental e promoção de parentalidade positiva;

VIII. Mostram-se, assim, violados os princípios orientadores da intervenção, previstos no art.º 4.º da LPCJP, designadamente, do seu superior interesse- al.a), da intervenção mínima- al.d), da proporcionalidade e actualidade- al.e), da responsabilidade parental- al.f), da prevalência da família- al.h) e da obrigatoriedade da informação e audição obrigatória e participação- als. i) e j;

IX. Mostra-se, ainda, violado, na pessoa da progenitora, aqui recorrente, o direito de informação, previsto no art.º 4.º, al. i) da LPCJP, porquanto até à data designada para o debate, fase derradeira e consequente, a progenitora não viria a entender/ conhecer os seus direitos, designadamente ante a prévia proposta de que o projecto de vida da criança passasse já a ser a adopção, pela EMAT e Ministério Público;

X. E que a medida de acolhimento residencial havia sido mantida agora já a título provisório (conforme despacho de fls…, de 18/12/2023);

XI. Verificando-se uma diminuição considerável das garantias da progenitora, e em contraste ao prescrito no art.º 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, que se encontra assim em manifesta violação;

XII. Sendo que um dos princípios orientadores da intervenção, previsto na al.) e) do art.º 4.º da LPCJP é o da proporcionalidade e actualidade, a mesma deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança se encontra no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;

XIII. E que a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção tem de assentar no rompimento ou sério comprometimento dos laços afectivos próprios da filiação ( n.º 1 do art.º 1978.º do CC), só devendo ser decretada perante quadro factual que mostre com certeza e segurança que a relação parental se esvaziou de forma absoluta ou quase absoluta;

XIV. O que, salvo melhor entendimento, não sucede ainda;

XV. Mostrando-se a medida de acolhimento em Instituição, como a que decorre, ainda ser a única necessária e adequada à situação de perigo em que a menor se encontra no momento da decisão;

XVI. Nesta senda, somos de crer, que sobre as questões de facto impugnadas, e ante os preceitos legais violados, deveria ser proferida diversa decisão, no sentido de ser mantido o acolhimento residencial por mais seis meses, medida prevista na alínea f) do n.º 1 do art.º 35.º da LPCJP, e melhor caracterizada no art.º 50.º e seguintes da mesma Lei;

XVII. Com reforço nas obrigações da progenitora, designadamente de se sujeitar a educação parental e terapêuticas que se reputarem necessárias e adequadas;

XVIII. Forcejando-se, ante a actual situação da mesma, para que, em cooperação, e com apoio, as condições da mãe se vejam já alteradas para melhor;

XIX. E se estando a criança bem adaptada à instituição em que se encontra, não há fundamento legal para a confiança para adopção (art.º 1978.º do CC);

XX. Configurando-se, assim, a medida de confiança judicial com vista a futura adopção, ora aplicada, por excessiva e desproporcional, em face dos princípios orientadores da intervenção, previstos no art.º 4.º da Lei n.º 147/99, de 01/09, mormente o interesse superior da criança, e os princípios basilares da intervenção mínima, da proporcionalidade e actualidade, da responsabilidade parental e da prevalência da família.

Nestes termos, e nos mais de Direito, e porque se entende que a aplicação de uma medida que ainda permita uma derradeira providência, em que seja mantida a medida de acolhimento residencial desta jovem, com reforço da intervenção junto da progenitora, continuará a servir as finalidade das Medidas de Promoção e Protecção, revogando-se a medida aplicada de confiança judicial com vista a futura adopção, nos termos do art.º 35.º, n.º 1, al. g) da LPCJP, da sua única filha, a aqui menor BB, ademais com a inerente decorrência desta decisão de que a progenitora fica inibida do exercício das responsabilidades parentais relativamente à mesma ( art.º 1978.º-A do CC), e cessando quaisquer contactos, porquanto medida de última ratio, Assim determinada no douto acórdão, assim protegendo e salvaguardando o desenvolvimento integral da menor, e bem assim o seu superior interesse, nos termos do art.º 35.º, n.º 1, al. f) da Lei n.º 147/99, de 01/09,

Pelo que, assim fará este Venerando Tribunal a devida JUSTIÇA que se pede e espera!”


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I.C.
O Ministério Público apresentou resposta onde, em suma, “entende que a sentença preferida não carece de qualquer reparo ou censura, porquanto a mesma salvaguarda o superior interesse da BB, devendo a mesma manter-se”.

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I.D.
O recurso foi devidamente recebido pelo Tribunal a quo.

Após os vistos, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO:

II.A.
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).

No caso, impõe-se apreciar:
a) Eventual violação do “direito de informação” da recorrente e do contraditório;

b) Impugnação da matéria de facto;

c) O preenchimento dos requisitos da medida de confiança com vista à adopção, bem como a sua necessidade e proporcionalidade.


*
II.B. Questões prévias:
Nas conclusões IX a XI a ora recorrente parece invocar (embora sem concretizar) uma eventual violação procedimental (essencialmente violação do contraditório) que, em tese, poderia levar à nulidade da decisão recorrida. Importará, por isso, tomar conhecimento desta questão pois que, pela sua eventual procedência, ficaria prejudicado o conhecimento das demais.

Na verdade, os princípios da audição e contraditório são muito relevantes nesta matéria (ver, a este propósito, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-01-2012, processo n.º 3649/10.0TBBRR.L1-7[1]: “O atendimento dos princípios de audição e contraditório, na sua efetiva concretização, não se consubstancia em mero formalismo, antes se traduz numa atividade tida por essencial para aferir da adequação da medida ao caso concreto, na consideração do superior interesse da criança, nomeadamente levando em linha de conta as diligências probatórias que possam ser solicitadas pelos pais, na medida em que se mostrem relevantes”).

No entanto, face ao elenco dos trâmites processuais feito no relatório (onde avulta a existência da notificação de 18/12/2023, não devolvida e uma posterior dupla notificação da requerida/recorrente em 9/01/2024 e 22/01/2024 – via postal e por email – que ocorreu antes do debate, com o envio dos documentos pertinentes, como a proposta do Ministério Público e de que a requerida teve conhecimento, como se comprova pela sua comparência à diligência agendada) não se vislumbra como possa ter ocorrido qualquer violação do contraditório ou do direito de informação da requerida (que até estava, como está, acompanhada pela assistência técnica de defensora nomeada).

Tanto estava a requerida (e ora recorrente) preparada e informada nessa diligência judicial, que se fez acompanhar de documentos (e mesmo de testemunhas) que foram considerados pelo Tribunal a quo (a testemunha foi inquirida e admitiu-se a junção do documento, tendo sido tais elementos considerados na decisão recorrida na sua motivação da decisão de facto).

Improcede, por isso e sem necessidade de outros considerandos, esta parte do recurso.


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II.C. Fundamentação de facto:
II.C.1 Impugnação da matéria de facto:
Nas conclusões III e IV a recorrente pretende impugnar a matéria de facto provada (mas limitando-se a dizer que sobre os pontos 2, 13 e 29 se impunha decisão diversa).

Ora, quando impugna a matéria de facto, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.

De tal preceito decorre que, na impugnação da matéria de facto, a lei exige o cumprimento pelo Recorrente de requisitos cumulativos.

O Supremo Tribunal de Justiça tem distinguido um ónus primário e um ónus secundário para o recurso da matéria de facto: o ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, e o ónus secundário de facilitação do acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida, consagrado no n.º 2.

O ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, analisa-se ou decompõe-se em três:
- Primeiro, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
- Segundo, o recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova que constam do processo ou que nele tenham sido registados que determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; e
- Terceiro: o recorrente deve indicar, na motivação, a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Em complemento do ónus primário de especificar os meios de prova, o artigo 640.º, n.º 2, alínea b), coloca a cargo dos recorrentes o ónus secundário de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Estes requisitos impostos para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto têm em vista garantir uma adequada delimitação do objecto do recurso, não apenas para circunscrever o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso, mas também para que a outra parte tenha a possibilidade de exercer o contraditório com o âmbito previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 640.º, designadamente indicando os meios de prova que, a seu ver, infirmem as conclusões do recorrente.

O que se visa é circunscrever a reapreciação do julgamento efetuado a pontos concretos da matéria controvertida, uma vez que os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto não visam a realização de um segundo julgamento de toda a matéria de facto, devendo consequentemente recusar-se a admissibilidade de recursos genéricos contra uma invocada errada decisão da matéria de facto.

Quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deve ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos (ver Abrantes Geraldes[2]).

Como se sumariou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2022 (processo n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1[3]):

“I. Os ónus primários previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 640.º do CPC são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto.

II. O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.”

Não está prevista a possibilidade de convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações de recurso quanto ao incumprimento dos ónus impostos a quem impugne a decisão relativa à matéria de facto.

De resto, a circunstância de se tratar de processo de jurisdição voluntária não dispensa a recorrente de cumprir esses ónus. Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/10/2024 (processo n.º 145/21.3T8STB.E1.S1[4]), o artigo 986.º do Código de Processo Civil, ao consagrar o princípio inquisitório, em nada exclui ou limita os ónus de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação

No caso, não resulta do recurso (conclusões ou motivação), sem margem para dúvidas, a indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados. Sobretudo não indica a recorrente, sem margem para dúvidas, a decisão que deveria ser proferida quanto aos indicados pontos da matéria de facto (limita-se a pedir, nas conclusões, decisão diversa: ficando por se saber se os pontos deveriam ser dados como não provados totalmente ou em parte e, nesse caso, qual parte; ou se tinham de ter outra redacção alternativa).

No corpo das alegações e quanto ao ponto 2 apenas se encontra o seguinte: “Tendo presente que a criança BB tem actualmente 12 anos de idade, porquanto nascida a ../../2012, em território nacional, sendo a mãe de nacionalidade 1, e sendo filha de pai incógnito, resulta que a mesma esteve acolhida no Centro de Acolhimento A..., situada no Local 3, no período que mediou entre 19/12/2104 a 06/04/2018 ( pontos 1 e 2 da matéria de facto provada). Não resultando, desde logo, da fundamentação de facto, qualquer alusão à concreta premência sentida para que a intervenção nesse período tenha ocorrido e, mormente, se decorrente de acordo firmado, em que termos, com a respectiva progenitora, aqui recorrente, em face das eventuais dificuldades constatadas (e quais), nos primeiros anos de vida da criança, por parte da mãe.”. Fica sem se saber, desde logo, qual a decisão pretendida quanto a este ponto 2.

Nas alegações e quanto ao 13 apenas se encontra o seguinte: “A antecedente medida de apoio junto da mãe, aplicada em 30/06/2020 (ponto 4 da matéria de facto), nessa decorrência, e até à aplicação, ainda que por acordo, de medida de acolhimento, a 04/06/2021, alicerça a sua oportunidade e conveniência baseada em critérios que o douto tribunal a quo explana nos pontos 5 a 13, designadamente a uma precariedade no trabalho, ou ausência deste, por banda da progenitora, assim como na manutenção de uma habitação nos mesmos moldes e morada e contactos pouco estáveis. E o que dificultaria, assim, igualmente a cooperação com o CAFAP. Depoimentos tidos em conta prestados por outros inquilinos e senhorio, mas dos quais se depreende outrossim, a premente busca da progenitora, numa inconformidade, também por melhores condições ou mesmo busca de oportunidades. Não resultando que, designadamente, o vertido no ponto 13, tenha resultado de constatação pelos serviços da Segurança Social in loco.”. Não resulta das alegações nem a decisão pretendida nem, na verdade, quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre esse ponto.

Finalmente, quanto ao ponto 29, consta do corpo da alegação do recurso o seguinte: “Sendo certo que não resulta da prova, dos autos e do debate, quanto ao ponto 29, que tenha existido participação criminal ou condenação, por forma a acreditar no seu valor probatório, em face de alegada conduta da aqui recorrente; E o que aqui, se impugna”. Mais uma vez, não se pode retirar qual a decisão pretendida quanto ao ponto 29 (parecendo que trata a decisão do Tribunal Colectivo como uma alegação de facto que lhe cabe, simplesmente, impugnar) mas, sobretudo, quais os meios probatórios em que se baseia para a pretensão de alterar a decisão sobre esse facto.

Não será, consequentemente, de reapreciar no presente caso a decisão proferida sobre a matéria de facto, impondo-se a imediata rejeição do recurso nessa parte.

Pelo exposto, rejeita-se o recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto, mantendo-se a decisão de facto expressa na decisão recorrida.


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II.C.2 Factos provados:
Considera-se provada, assim, a seguinte factualidade tal como consta da decisão recorrida:

1. A criança BB, nasceu a ../../2012, sendo filha de AA e de pai incógnito.

2. No período entre 19/12/2014 a 6/4/2018, a criança, BB, esteve acolhida no Centro de Acolhimento A..., situada no Local 3.

3. Em 29/10/2019 foi instaurado novo processo de promoção e protecção na CPCJ Local 4 em razão de sinalização de violência doméstica de que a progenitora seria vítima por parte do seu companheiro na altura;

4. Na sequência de avaliação diagnóstica, foi aplicada inicialmente à criança a medida de apoio junto da mãe em 30/6/2020;

5. Sendo que, segundo a avaliação da CPCJ datada de 3/3/2022, durante o período que mediou a execução de tal medida até 4/6/2021, a progenitora não cooperava com o CAFAP, chegando atrasada às sessões ou não comparecendo e não avisando previamente, em todo o caso, estando constantemente a alterar o seu número de telefone, o que dificultava tais contactos.

6. Do ponto de vista da organização da sua vida, a progenitora oscilava entre trabalhos precários e situações de desemprego;

7. Vivendo com a criança em casa arrendada por senhorio (Senhor CC), o qual também arrendava a referida habitação a outros inquilinos, tendo assim a mãe e a BB de conviver com tais pessoas.

8. Nesse período de tempo, a progenitora incompatibilizava-se com tais outros inquilinos, os quais eram obrigados a sair da habitação.

9. A progenitora, nesse período de tempo, também mudou de casa, mas voltava de novo à habitação arrendada pelo senhorio, de nome, CC;

10. Tendo saído mais uma vez de tal habitação e estado com a criança a viver em casa de um outro senhor que, no entanto, comunicava à CPCJ que já estava cansado e que "ia meter a progenitora e a criança na rua".

11. Durante esse período, a progenitora mudava constantemente de localização (tendo estado no Local 3 e depois em casa de amigos) e depois referia-se aos sítios onde havia estado como sítios "onde as coisas não tinham corrido bem".

12. Segundo ainda a CPCJ, a progenitora sempre revelara ser uma pessoa muito religiosa, referindo constantemente "ter recebido uma bênção e ter encontrado o seu caminho", que "recebeu um dom da Igreja para lutar e ter força", frequentando na altura a Igreja A... e a Igreja B....

13. De acordo com as pessoas que acolhiam a mãe e a criança nos termos referidos em 6) a 10), a progenitora não apresentava higiene, não tinha a capacidade de "fazer nada", incompatibilizando-se sempre com as pessoas que a acolhiam ou com quem vivia.

14. Em função do referido em 4) a 12), em 4/6/2021 a CPCJ por acordo com a progenitora aplicou à criança, BB, a medida de acolhimento residencial executada na Casa 1, em Local 1,

15. Já depois de ser acolhida e em ambiente escolar, a criança revelava aplicação e bons resultados, frequentando ainda o andebol e os escuteiros.

16. Tinha visitas na lnstituição com alguma regularidade (6 visitas quinzenais durante o período de janeiro a abril de 2021) por parte da progenitora, no entanto, esta, aquando desses momentos, tinha para com a filha um discurso repetitivo sobre o poder e a bondade de Deus, sobre as qualidades da BB e a importância de estar sempre alegre e esperançada no futuro, fazendo orações durante o tempo do convívio e trazendo outras orações escritas que levava para a filha, dizendo-lhe que as tinha de ler todos os dias.

17. Ainda durante tais visitas, a progenitora manifestava comportamentos afectivos intrusivos, estando o tempo todo do convívio abraçada à filha e a dar-lhe beijos, passando-lhe a mão pelo corpo, trazendo roupas e obrigando a criança a vesti-las, pedindo à filha para fazer pose, algo que visivelmente incomodava a criança, mas que a mesma consentia para corresponder às expectativas da sua mãe.

18. Quando a criança queria fazer um desenho ou uma actividade durante tais visitas, a mãe não a deixava, agarrando-a e abraçando-a.

19. Quando os técnicos da casa de acolhimento lhe chamaram a atenção para tais comportamentos mais desadequados, a progenitora passou a colocar a criança de costas para as técnicas.

20. Numa ocasião, quando uma técnica lhe disse para não agarrar tanto a filha, a progenitora, visivelmente alterada, pegou num caixote de lixo e atingiu a referida técnica com tal instrumento na cabeça, pegando ainda num segundo caixote de lixo, altura em que a BB começou a chorar, abraçando a mãe para ela parar com tais agressões. Nessa altura, a progenitora agarrou a filha, tendo-lhe a técnica dito que tinha de largar a criança por ser tempo de parar com a visita, o que aquela recusou, tendo a técnica dito que iria chamar a polícia, o que fez com que a BB implorasse que a mesma não o fizesse, tendo sido chamado um outro técnico que conseguiu acalmar a situação.

21. Na sequência do episódio descrito em 20) e em 3/3/2022, a CPCJ remeteu os autos ao Tribunal a fim de que este passasse a tramitar o processo.

22. Em 9/6/2022, o Tribunal de Família Local 2 - J2 ouviu a progenitora, tendo esta aceite proposta de acordo de promoção e protecção homologado nessa data, nos termos do qual a mesma assumia as seguintes obrigações: a) - manter ocupação profissional que permitisse a satisfação das necessidades do seu agregado (incluindo a criança, caso fosse viver com a mãe); b) - manter a habitação limpa e higienizada; c) - cooperar com a casa de acolhimento, respeitando as regras da instituição; d) - colaborar com os outros serviços que acompanham a situação da filha; e) - visitar a criança de acordo com as normas da casa de acolhimento; f) - esforçar-se por reorganizar a vida de forma a poder acolher de novo a filha.

23. No ano lectivo de 2022/2023, a criança transitou de escola para a Escola Básica ..., Local 1, tendo inicialmente tido algumas dificuldades de adaptação, mas depois tendo feito amigos.

24. Durante esse período entre junho de 2022 e dezembro de 2022 ocorreram visitas quinzenais da progenitora, nas quais ocorreram as seguintes situações descritas pela Casa de Acolhimento nos seguintes termos em relatório junto em 22/12/2022 nos autos:

17/06/2022 - Visita conjunta com a presença da Dra. DD. A mãe apresentou um comportamento adequado.

30/06/2022 - A visita teve apenas uma duração de 30 minutos devidos aos comportamentos desadequados da mãe. A BB ficou aliviada com o final da visita.

05/07/2022 - Dia do Aniversário da BB. A mãe trouxe um bolo de anos e algumas colegas da BB foram à sala de visitas para lhe cantalros parabéns. A BB estava envergonhada porque a mãe tinha-lhe feito uns totós e obrigado a vestir uma blusa com folhos. Mas a BB ficou feliz por a mãe de ter trazido o bolo.

19/07/2022 - A mãe puxou a BB do banco para dançar com ela no meio da Sala. A BB ficou com um ar muito triste.

29/07/2022 - A mãe deu dois pares de ténis para a BB. A BB gostou apenas de um dos pares. A mãe deu-lhe também uns ganchos para o cabelo muito infantis.

11/08/2022 - A BB tentou falar sobre a sua experiência no Local 5 (Local 5), em que participou na semana anterior, mas sem sucesso, a mãe interrompia sempre, dando respostas às suas próprias perguntas.

26/08/2022 - A mãe trouxe roupas de verão para a BB, algumas não serviam à BB e também não iam ao encontro dos gostos da BB.

20/09/2022 - A mãe chegou quase uma hora depois da hora agenda para a visita. A visita teve que ser mais curta. A mãe aparentava estar desorientada.

12/10/2022 - A mãe trouxe um caderno e propôs à BB escreverem uma oração cada uma. No final a mãe rasgou a folha da BB e disse para ficar com a sua folha e que lesse a oração que ela havia escrito todos os dias à noite, antes de se deitar.

26/10/2022 - A mãe trouxe materiais para realizarem uma atividade conjunta (cartolina, tesoure, cola, canetas de feltro). A mãe pediu à BB para desenharem na cartolina um jardim.

10/11/2022 - (Progenitora) chegou muito atrasada à visita. A mãe trouxe uma caixa de cartão para forrar, que seria um presente de aniversário da BB para si. A caixa continha uns papéis com adjetivos sobre a BB. Em seguida a mãe pediu para tirar fotos com a BB, dizendo que eram para enviar para às suas sobrinhas que residem no País 1. A BB verbalizou descontentamento, mas foi forçada a tirar as fotos. A BB ficou a jogar no telemóvel da mãe o resto da vista, procurando ignorar a mãe.

25/11/2022 - A mãe havia solicitado antes da visita que a BB levasse a cartolina que havia deixado numa vista anterior, para continuarem a desenhar, o que aconteceu por pouco tempo. Praticamente em todo o tempo da visita a mãe da BB proferiu um discurso de manipulação afetiva e mental e alusão a questões de teor espiritual, forçando a BB ao contato físico.

20/12/2022 - A mãe trouxe três prendas de Natal para a BB, verbalizando que em casa teria mais. Estes embrulhos continham uma camisola de lã cor-de-rosa, que estava larga para a BB; umas calças de ganga cheia de florzinhas vermelhas bordadas; um vestido axadrezado preto e branco de flanela. Discurso da mãe excessivamente manipulador, verbalizando que iria oferecer um telemóvel à BB (presente de Natal pedido pela BB) se a BB passar a ser mais simpática e obediente para a mãe.

25. Ainda durante as referidas visitas a mãe dirigia-se à filha com as seguintes expressões: "Pensas na mamãe com carinho?", "Tens que sorrir para a mãe senão não vais conseguir coisas boas", "A BB tem que pensar que se for boazinha, se for esforçada, mais coisa boa vai ganhar"; "A mãe agora está curada, já tem as energias positivas, não está mais com aquelas energias negativas."; "A BB é uma boa menina, tem que obedecer à mãe e agradecer a Deus pela mãe que tem, que é do bem e gosta da BB"; "A BB é uma menina amiga, simpática, obediente, amorosa, que gosta da mãe que tem"; "A mãe e a BB se relacionam bem, de forma natural, normal, saudável, capaz, simples"; "Se a BB não for boazinha para a mãe, Deus não vai trazer coisa boa para a BB." (sic).

26. Do mesmo modo, em algumas visitas, no momento da saída e quando a BB já havia saído do local, a mãe pedia à técnica presente que lhe dissesse a verdade sobre a saúde da BB e se na Casa de Acolhimento lhe estavam a dar alguma medicação, designadamente, calmantes, pois que a BB já não seria a criança que era antes do acolhimento, alegre e amorosa para com a progenitora.

27. Nessas ocasiões, as técnicas da casa de acolhimento procuravam assegurar à mãe da BB que a filha não tomava qualquer tipo de medicação e que, se nas visitas ficava sempre com o olhar mais triste, é porque sentia que a mãe não se relacionava com ela de uma forma adequada para a sua idade, não compreendendo a progenitora a referida crítica.

28. Segundo a Casa de Acolhimento: "As visitas da mãe da BB na CASA decorrem de forma negativa. Observamos que a mãe da BB tende a adotar sempre uma postura física muito abusiva, mostrando insensibilidade pelas necessidades da BB e indiferença perante a sua rejeição física a essa intrusão. A equipa técnica da Casa 1 sente muita dificuldade em ajudar a mãe a manter um relacionamento saudável para com o BB, por se afigurar que esta apresenta algumas disfunções ao nível mental, considerando-se o seu discurso e atitudes totalmente desapropriadas, alucinadas, abusivas e nocivas para com afilha. O discurso manipulador da mãe para com a BB, faz com que a BB adote perante a mãe uma postura submissa e de anulação da sua própria identidade, retraindo e evitando dizer algo contrário aos desejos da mãe com receio de a magoar ou entristecer. A BB consegue verbalizar que não pode contrariar a mãe, através da verbalização do seu desagrado perante algumas situações mais abusivas, porque a mãe irá ficar muito triste e a BB não quer fazer com que a mãe fique triste. A BB também consegue reconhecer que as atitudes e conversas da mãe não são adequadas, mas acaba por se resignar com a esperança de que um dia a mãe consiga agir de forma diferente. (...)"

29. Durante esse período entre junho e dezembro de 2022, a progenitora esteve a trabalhar a tomar conta de uma senhora idosa, tendo sido dispensada desse trabalho por o seu desempenho não ser considerado satisfatório, tendo um parente da referida senhora idosa mencionado à Casa de Acolhimento que a progenitora teria levado umas jóias e outros bens da referida habitação.

30. Em 23/1/2023, o Juízo de Família e Menores Local 2 decidiu manter a medida de acolhimento residencial aplicada à criança.

31. Em 31/1/2023, o processo foi remetido ao Juízo de Família e Menores local 1 (J...).

32. Em 27/4/2023, em função do referido em 24) e 25), a EMAT sugeriu a suspensão das visitas da progenitora à criança, tendo o Tribunal determinado a audição da BB sobre tal questão.

33. Na audição da criança ocorrida em I4/6/2023, a BB referiu o seguinte: tem 10 anos, vive na casa da EE, dizendo que gostava de lá estar. Referiu que tinha visitas, que se dava bem com a mãe, mas que esta dizia coisas que não gostava durante esses convívios e que lhe dava demasiados abraços nesses momentos, sentindo-se desconfortável e não gostando disso. Referiu que a mãe tinha uma religião. Perguntada se tinha religião, referiu que era cristã. Esclareceu que queria continuar a ter visitas, mas de 15 em 15 dias, mencionando, por um lado, que queria estar com a mãe, mas, por outro, que a incomodava a maneira como os convívios decorriam, nomeadamente, a questão do contacto físico excessivo da progenitora. Esclareceu que falava com a mãe por telefone 3 vezes por semana, mas que a mãe tinha sempre a mesma conversa e que não gostava muito desses contactos telefónicos. Referiu, neste contexto, que, quando tentava acabar o telefonema, a mãe não a deixava terminar a conversa.

34. Em16/8/2023, o Tribunal determinou a suspensão das visitas da progenitora pelo período de 3 meses.

35. Na casa de acolhimento, e mesmo em 2022, antes da referida suspensão das visitas da progenitora, a criança integrou o projecto "Familias Amigas" permitindo-lhe conviver com duas famílias distintas, o que lhe proporcionou momentos agradáveis e gratificantes, gostando a BB muito de tais convívios.

36. A criança é acompanhada na especialidade de Medicina Geral e Familiar - Unidade de Saúde 1 Local 6, sem médico de Medicina Geral e Familiar atribuído e na especialidade de Psicologia Clínica - Clínica A, pela Dr.ª FF. Entre Outubro de 2022 e Outubro de 2023, a BB beneficiou de acompanhamento psicológico por parte da Dr.ª GG.

37. A progenitora foi submetida a exame pericial de avaliação psicológica realizado no INML, tendo o perito constatado o seguinte: "AA (...) evidencia um discurso desorganizado, centrado em temas religiosos e na intencionalidade negativa dos intervenientes no processo em curso, sobretudo nas 2 primeiras entrevistas, quando se abordam antecedentes. (...) Da avaliação psicológica realizada sobressai uma organização da Personalidade marcada pela impulsividade, imprevisibilidade, comportamento errático, não conformista, compatível com perturbação emocional significativa. A examinanda poderá ter sofrido maus tratos e rejeição no seu percurso de desenvolvimento o que a leva a desenvolver uma atitude de desconfiança em relação ao mundo que é percecionado como frio e perigoso. HH revela estar muito centrada sobre si mesmo. Considera que os problemas dos outros não são da sua responsabilidade e, por isso, raramente ajuda os outros e desconfia das pessoas que solicitam ajuda. Por outro lado, não se interessa por escutar perspetivas distintas das suas, e por isso, rejeita-as. Não suporta que alguém a contrarie, que tenha de alterar planos à última hora, e que as coisas não corram como desejaria. Não muda de opinião independentemente dos argumentos que os outros proporcionam, e acredita que existe apenas uma maneira de fazer bem as coisas, a sua. Sente-se sobrecarregada perante os imprevistos, e mostra-se muito intranquila e incapaz de responder às situações que perturbam a sua vida quotidiana. Evidencia, ainda, elevada irritabilidade, dificuldades no controlo dos impulsos, flexibilidade reduzida e pouca tolerância à frustração.(. )" no âmbito das competências parentais, a examinanda apresenta dificuldades ao nível do exercício da parentalidade adotando um estilo parental negligente marcado pelas dificuldades na imposição de regras e limites e dificuldades no reconhecimento das necessidades emocionais da criança. No domínio das crenças associadas ao exercício da parentalidade apresenta rigidez relativamente às expectativas sobre o comportamento das crianças. Revela reduzida capacidade para interpretar de forma adequada as necessidades e interesses da criança adotando comportamentos intrusivos e um discurso manipulador e, por vezes, desorganizado nas interações com BB. Revela pouca crítica face às suas dificuldades e uma atitude de desconfiança em relação aos técnicos, fator de mau prognóstico para a aquisição/desenvolvimento de competências parentais adequadas. As visitas da mãe em nada contribuem para o bem-estar emocional da BB, pelo contrário, apenas contribuem para acentuar na BB vivências traumáticas.”

38. Segundo a psicóloga da criança, Dra. GG, em relatório junto nos autos: "Parece existir uma vinculação insegura / ambivalente relativamente à figura materna. A BB relata sentir-se mais ansiosa quando sabe que terá uma visita da mãe. Após a mesma, não relata sentimentos de bem-estar e/ou maior conforto. Fazendo referência à última visita da mãe, BB relatou sentimentos de desconforto, parecendo ter havido uma descompensação por parte da mãe, sendo as visitas temporariamente canceladas."

39. No dia de aniversário da criança em 2023, a progenitora não telefonou à filha, tendo esta ficado triste e tendo comentado o assunto com as técnicas da casa de acolhimento.

40. Passados dois dias, a progenitora ligou, mas não mencionou o aniversário da criança, não se apercebendo de que se tinha esquecido, tendo a BB optado por não falar do assunto à progenitora e passando esta a proferir o habitual discurso autocentrado e de contornos religiosos, nesse contexto, dizendo à criança que, muito em breve, mãe e filha estariam reunidas, pois todas as suas ações estavam centradas nesse objetivo e ambas seriam merecedoras que isso acontecesse.

41. Na sequência do telefonema, a BB refugiou-se no quarto para chorar.

42. Em data não concretamente apurada, numa das visitas da progenitora à criança na Instituição e como a BB não estaria a corresponder às expectativas da sua mãe, tendo feito um comentário que desagradou a esta, a progenitora, de resto, gritou: "Sai!", tendo depois explicado à técnica da casa de acolhimento, já depois de o convívio ter terminado, que a filha estaria possuída por um espírito e que a mesma estaria a tentar expulsar tal espírito da criança.

43. Em setembro de 2023, a progenitora esteve acolhida no Local 7 (Local 7).

44. À data do debate judicial, a progenitora estava a viver numa casa arrendada à Igreja Evangélica da Assembleia de Deus na Local 8, o que sucedia há cerca de 2 meses.

45. Fazia limpezas nas casas de acolhimento da referida Igreja, mormente em Local 9 onde passou a viver, pagando € 160,00 de renda.

46. A criança, BB, a frequentar o 6.º ano, possui notas de 4 e 5, sendo uma aluna com desempenho escolar elevado, tendo participado com empenho e assiduidade, bem como de forma excelente nos treinos e encontros do Grupo 1..., no escalão de Infantis B, inserido no Clube de Desporto Escolar da escola, participando igualmente em torneios.

47. Em reunião com a Dra. II, técnica da EMAT, a criança verbalizou, em novembro de 2023, o desejo de ter uma família.

48. Aquando da realização do debate judicial, foi proferido por este Tribunal acórdão, nos termos do qual foi aplicada à criança, BB, a medida de confiança a Instituição com vista à adopção.

49. Na sequência de recurso interposto pela progenitora, o Venerando Tribunal da Relação de Évora anulou o acórdão referido em 48), determinando nova audição da criança especificamente sobre a questão do seu projecto de vida e, mais concretamente, sobre a possibilidade de a mesma poder vir a ser adoptada.

50. Ouvida novamente pelo Tribunal em 26/8/2024 e questionada sobre como havia decorrido o ano anterior em termos escolares, a criança, BB, mencionou ter o ano corrido bem, esclarecendo manter apenas contactos telefónicos com a progenitora nos últimos tempos. Quanto à experiência de passar férias com famílias amigas, mencionou ter passado um período de férias no ano anterior (2023) com uma família em Local 10, tendo gostado da experiência. No que concerne os contactos telefónicos com a mãe, a BB mencionou que a mãe apenas tinha conversas consigo sobre religião, sendo raro perguntar-lhe sobre a escola ou sobre os seus amigos. Questionada sobre se sabia o que significava o conceito de adopção, referiu ter uma ideia, não conseguindo traduzir a mesma em palavras. Nessa sequência e depois de explicado à criança pelo Tribunal que a adopção significaria ter novos pais, irmãos e restantes familiares, bem como passar por diferentes fases do processo administrativo e judicial correspondente, o qual a ser levado a cabo implicaria a cessação de contactos com a mãe, a BB referiu pretender ser adoptada, não manifestando tristeza ou pesar por tal significar deixar de poder falar com a progenitora.


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II.B.3. Factos não provados:
Tal como na decisão recorrida, não existem factos não provados

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II.D. Fundamentação jurídica:
Não está em causa nestes autos e neste recurso a necessidade de intervenção do Estado[5] para proteger os interesses da menor.

Decorre das alegações apresentadas pela recorrente que esta, enquanto mãe da criança que se visa proteger, concorda com a aplicação de uma medida de protecção, mas apenas coloca em dúvida a necessidade e proporcionalidade da concreta medida aplicada: a confiança com vista à adopção.

Na consecução do princípio constitucional plasmado no artigo 36.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa[6], assim como de outros paralelos de índole internacional (como o plasmado nos artigos 4.º e 5.º da Declaração dos Princípios Sociais e Jurídicos Relativos à Proteção e ao Bem-Estar das Crianças, com Especial Referência à Adopção e Colocação Familiar, a Nível Nacional e Internacional[7] e o que decorre dos artigos 9.º e 20.º da Convenção sobre os Direitos da Criança[8]) estatui o artigo 1978.º Código Civil que:

1 - O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações:

a) Se a criança for filha de pais incógnitos ou falecidos;

b) Se tiver havido consentimento prévio para a adopção;

c) Se os pais tiverem abandonado a criança;

d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;

e) Se os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por família de acolhimento tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.

2 - Na verificação das situações previstas no número anterior, o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança.

A confiança judicial com vista à adopção, tendo como pressuposto a inexistência (ou ruptura) de um quadro familiar, visa a defesa do menor, ou seja, deverá atender-se na aplicação desta medida, prioritariamente, aos direitos e interesses deste (e não de outros).

Na verdade, para um pai ou mãe e o seu filho, o direito a estar juntos representa um elemento fundamental da vida familiar (entre outros, o Acórdão do Tribunal dos Direitos Humanos de 10/07/2002, processo n.º 46544/99, Kutzner c. Alemanha[9], § 58 e jurisprudência aí citada).

Uma medida que os impeçam de usufruir desse direito pode constituir uma ingerência no direito protegido pelo artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem[10] salvo se, estando prevista pela lei, ela prosseguir um ou mais dos fins legítimos do n.º 2 dessa disposição e for necessária, numa sociedade democrática para os atingir. A noção de necessidade implica uma ingerência fundada sobre uma necessidade social imperiosa e, nomeadamente, proporcional à finalidade legítima pretendida (Acórdão do Tribunal dos Direitos Humanos de 10/07/2004, processo n.º 64796/01, Couillard Maugery c. França [11], § 237).

Nos processos de perda do poder paternal, o interesse da criança pode sobrepor-se a qualquer outra consideração, como decorre do artigo 21.º da Convenção das Nações Unidas relativa aos Direitos da Criança (ver, neste sentido, o Acórdão do Tribunal dos Direitos Humanos de 7/08/1996, processo n.º 17383/90, Johansen c. Noruega[12], § 78 e Acórdão do Tribunal dos Direitos Humanos de 15/09/2011, processo n.º 35348/06, R. e H. c. Reino-Unido[13], §§ 73 e 81).

A apreciação do interesse da criança baseia-se em duas considerações fundamentais: primeiro, é no interesse da criança que devem manter-se os laços com a sua família biológica, que não poderão ser quebrados senão em circunstâncias excepcionais; segundo, é do interesse da criança que seja educada num ambiente saudável e equilibrado (Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos de 6/07/2010, processo n.º 41615/07, Neulinger e Shuruk c. Suíça[14], §§ 134 e 136).

Não será o facto de uma criança poder ser acolhida num quadro mais propício à sua educação que pode justificar, por si só, que possa ser retirada aos cuidados dos seus pais biológicos; tal medida tem, ainda, de se revelar “necessária” à luz de outras circunstâncias (Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos de 12/07/2001, processo n.º 25702/94, K. e T. c. Finlândia[15], § 173).

Mas no caso em que a manutenção dos laços da criança com a sua família biológica possa ser nociva ao seu desenvolvimento e à sua saúde, os pais biológicos não podem pretender ter o direito a gozar de uma vida familiar com o seu filho (Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos de 6/07/2010, processo n.º 41615/07, Neulinger e Shuruk c. Suíça, supramencionado, § 136).

Ao impor-se a prevalência dos interesses da criança, coloca-se esta como elemento nuclear de qualquer observação que deva fazer-se e referência básica de toda a ponderação sobre a medida e conteúdo da intervenção.

O conceito de interesse do menor tem de ser entendido em termos absolutamente amplos de forma a abarcar tudo o que envolva os legítimos anseios, realização e necessidades daquele nos mais variados aspectos: físico, intelectual, moral, religioso e social. Como é consabido é na infância e na adolescência que a personalidade da criança se constrói e se desenvolve, sendo fundamental que o seu crescimento decorra num ambiente saudável e equilibrado para que, quando adulto, seja um ser equilibrado, feliz e integrado nos valores sociais (ver, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-07-2013, processo n.º 2325/08.8TBCSC.L1-1[16]).

Por outro lado, importa sempre ter presente o tempo da criança. O processo de crescimento rápido e da consequente formação de personalidade das crianças não permite esperas longas para que os adultos tenham, eventualmente, tempo ou disponibilidade para criarem condições para cuidarem e acompanharem esse processo. São particularmente negativos para o desenvolvimento de uma personalidade segura, pais que não atendam as necessidades básicas de amor e não estabeleçam relações de confiança.

Ora, no presente caso, impressiona que tendo a BB 12 anos, 4 meses e 16 dias (na data deste Acórdão) tenha passado institucionalizada mais de metade da sua vida (3 anos, 3 meses e 18 dias de uma vez – de 19/12/2014 a 6/04/2018 –, mais 3 anos, 5 meses e 17 dias – desde 4/06/2021 até ao presente).

E, a verificar pelas alegações de recurso, a recorrente pretende a manutenção do internamento numa instituição, longe da mãe e de qualquer família que estruture o presente e acompanhe o futuro da BB.

Ora, são susceptíveis de pôr em perigo a criança ou o jovem não só os comportamentos dos pais que se consubstanciem em maus-tratos (físicos ou psicológicos) ou negligência, mas também podem consubstanciar um perigo concreto para a criança ou jovem, designadamente para a sua formação e educação, “o insucesso na garantia do bem-estar material e psicológico da criança, necessário ao seu desenvolvimento saudável e harmonioso” (ver o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/07/2013, processo n.º 2325/08.8TBCSC.L1-1).

É, sobretudo, neste particular domínio que se estabelece o cerne da questão a decidir: como se refere na decisão recorrida (citando Beatriz Marques Borges) “devem ser considerados actos de manifesto desinteresse (…) as situações em que os centros de acolhimento são vistos pelos pais, não como situações excepcionais, mas como a forma de permitir a recuperacão dos progenitores a assumir as suas responsabilidades parentais, deixando os filhos nos centros de acolhimento, só os visitando esporadicamente, a ponto de mal reconhecerem o seu desenvolvimento físico”.

Assim, sempre que os factos demonstrem, seja o desinteresse, seja a falta de capacidade dos progenitores para assumir plenamente este papel de pais da criança, é de concluir que não existem ou estão seriamente comprometidos, para os efeitos da norma do artigo 1978.º do Código Civil, os “vínculos afectivos próprios da filiação” (ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/07/2021, processo n.º 1906/20.6T8VCT.G1.S1[17]).

Além da excessiva institucionalização da criança, os factos demonstram que os laços afectivos entre mãe e filha se mostram irremediavelmente comprometidos em face das características de personalidade e de comportamento da progenitora. O simples convívio entre as duas constitui um perigo para a estabilidade emocional da criança.

A requerida evidencia manifesta incapacidade para cuidar da filha, no sentido do artigo 1878.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil.

Desde logo, o relatório pericial (ver ponto 37 dos factos provados onde, além do mais, resulta que a ora requerida “apresenta dificuldades ao nível do exercício da parentalidade adotando um estilo parental negligente marcado pelas dificuldades na imposição de regras e limites e dificuldades no reconhecimento das necessidades emocionais da criança” e que “As visitas da mãe em nada contribuem para o bem-estar emocional da BB, pelo contrário, apenas contribuem para acentuar na BB vivências traumáticas”) dá conta das limitações muito significativas das capacidades parentais da requerida.

Impressiona negativamente (sobretudo pelos efeitos de desvinculação emocional associados a tal comportamento) que a ora requerida esqueça o aniversário da BB (ver ponto 39 a 41 dos factos provados).

Os factos denotam uma manifesta incapacidade da requerida, com perigo para o desenvolvimento emocional da sua filha, que bem exprime o comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação.

Estão, por isso, preenchidos os requisitos da medida de confiança com vista à adopção.

Quanto à necessidade e proporcionalidade da medida só pode concordar-se com a decisão recorrida quando diz: “Não existindo também outros familiares que pudessem constituir-se como alternativa ao cenário de adopção e considerando também a vontade da criança de ver o seu direito a uma família respeitado por via de uma futura adopção, dúvidas não subsistem que a BB merece pais que sejam capazes de lhe dar os cuidados e os afectos que todas as crianças merecem”.

A BB não vê as suas necessidades correspondidas pela progenitora (que, por força das referidas características de personalidade, ignora os seus gostos, bem como os seus desejos). E resulta dos factos um importante contraste entre a sua tristeza perante os comportamentos da mãe e a sua satisfação manifestada pelo convívio com uma família (ponto 50 dos factos provados – resultante da audição da criança).

À progenitora foram dadas oportunidades para assumir, de forma responsável, o seu dever paternal, mas sem sucesso.

Finalmente, dir-se-á que a aplicação da medida não é uma sanção para a mãe (não se visou apurar a sua culpa), mas a consideração do superior interesse da criança.

No caso, resulta dos factos que a manutenção dos laços da criança com a sua mãe será nociva ao seu desenvolvimento.

A medida de confiança com vista à adopção deve considerar-se, por isso, uma medida adequada, necessária e proporcionada para realizar o superior interesse da BB.

Pelo contrário, a continuação da institucionalização da menor pretendida pela recorrente constituiria o verdadeiro risco de reduzir perigosamente a possibilidade daquela (atenta a sua idade) de ter um projecto de vida claro e sadio que corresponda ao seu superior interesse.

Deverá manter-se o Acórdão recorrido e, consequentemente, improceder o recurso.

Custas:

Conforme estabelecido no artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a regra geral na condenação em custas é a de condenar a parte vencida no recurso.

A parte vencida é a requerida/recorrente, tudo sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.


***


III. DECISÃO:

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Condena-se a requerida/recorrente nas custas do recurso, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Notifique.

Évora, 21/11/2024
Filipe Aveiro Marques
Ricardo Miranda Peixoto
António Marques da Silva
__________________________________________________
[1] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/2b3a28fe09a2acdd8025799c004469d8.
[2] Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, pág. 200 e ss..
[3] Acessível em https://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/526a06e36e808e84802587e3003cb7ce.
[4] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8d6216382c66b5dd80258bc5005cc790.
[5] Intervenção que, de todo o modo, sempre se respalda no artigo artigo 69.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa que estipula que “O Estado assegura especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal”.
[6] O artigo 36.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa estabelece que: “Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial”.
[7] Artigos 4.º e 5.º da Declaração dos Princípios Sociais e Jurídicos Relativos à Proteção e ao Bem-Estar das Crianças, com Especial Referência à Adoção e Colocação Familiar, a Nível Nacional e Internacional (Resolução 41/85, de 03 de Dezembro de 1986 da Assembleia Geral das Nações Unidas, acessível em https://dcjri.ministeriopublico.pt/sites/default/files/declaracaoadocao.pdf), onde se pode ler “...que se a criança não pode ser educada pelos seus pais naturais ou estes não a podem educar como convém, (...) se deve encarar a possibilidade de a confiar a membros da família , uma família de substituição, por exemplo adoptiva, ou instituição adequada” e que “Em todas as questões relativas à colocação de uma criança ao cuidado de outras pessoas que não os seus pais naturais, o interesse superior da criança, particularmente a sua necessidade de afeto e o direito à segurança e a cuidados contínuos, deverão ser a consideração primordial”.
[8] Artigo 9.º, da Convenção sobre os Direitos da Criança (Assinada em Nova Iorque a 26/01/1990 e aprovada para ratificação em Portugal pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12 de Setembro) estabelece que “Os Estados Partes garantem que a criança não é separada dos seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial e de harmonia com a legislação e o processo aplicáveis, que essa separação é necessária no interesse superior da
criança. Tal decisão pode mostrar-se necessária no caso de, por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança ou no caso de os pais viverem separados e uma decisão sobre o lugar da residência da criança tiver de ser tomada”, sendo que do seu artigo 20.º, n.ºs 1 e 3 se retira que “A criança temporária ou definitivamente privada do seu ambiente familiar ou que, no seu interesse superior, não possa ser deixada em tal ambiente, tem direito à protecção e assistência especiais do Estado” e “A protecção alternativa pode incluir, entre outras, a forma de colocação familiar, a kafala do direito islâmico, a adopção ou, no caso de tal se mostrar necessário, a colocação em estabelecimentos adequados de assistência às crianças. Ao considerar tais soluções, importa atender devidamente à necessidade de assegurar continuidade à educação da criança, bem como à sua origem étnica, religiosa, cultural e linguística”.
[9] Acessível em versão inglesa em https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-60163.
[10] Com a epígrafe “Direito ao respeito pela vida privada e familiar”, estabelece o artigo 8.º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (adoptada em Roma a 4/11/1950, aprovada em Portugal para ratificação pela Aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13/10) que: “1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.”
[11] Acessível em versão francesa em https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-66433.
[12] Acessível em versão inglesa em https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-58059.
[13] Acessível em versão inglesa em https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-104972.
[14] Acessível em versão inglesa em https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-99817.
[15] Acessível em versão inglesa em https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-59587.
[16] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/B21F5CABC976C37C80257CCF003710DE.
[17] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/010cf9c76a16b4b780258714004d138.