ACTO DE REGISTO CIVIL
RECUSA DE ACTO DE REGISTO
RECURSO HIERÁRQUICO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
Sumário

I – Proferida pelo Conservador do Registo Comercial decisão de recusa da prática de ato de registo nos termos requeridos, pode o interessado optar por impugnar a decisão através da interposição de recurso hierárquico ou por via de impugnação judicial; tendo sido interposto recurso hierárquico e vindo o mesmo a ser julgado improcedente, a lei faculta ainda ao interessado a possibilidade de impugnar judicialmente a decisão de qualificação do ato de registo;
II – Tratando-se de impugnação judicial subsequente a recurso hierárquico, a impugnação tem por objeto a própria decisão de qualificação do ato de registo proferida pelo conservador de registos, e não, a título principal, a decisão de indeferimento do recurso hierárquico;
III – Estando em causa um pedido de registo apresentado por representante de determinada sociedade, não tem a herança apelante legitimidade para impugnar judicialmente a decisão de recusa da prática do requerido ato de registo, proferida por Conservador do Registo Comercial.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 1567/23.0T8SLV.E1
Juízo de Comércio de Lagoa
Tribunal Judicial da Comarca de Faro


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

Herança de (…), melhor identificada nos autos, na sequência da rejeição pelo Presidente do Instituto dos Registos e do Notariado do recurso hierárquico, que interpusera, do despacho proferido em 10-02-2023 pela Sra. Conservadora do Registo Comercial de Silves – que recusou o pedido de conversão em definitivo do registo de designação de membros de órgãos sociais e alterações ao contrato de sociedade, efetuado provisoriamente por dúvidas, sob as apresentações 2 e 3 de 01-06-2022 da indicada conservatória, relativo à sociedade (…) – Atividades Turísticas, Lda. –, impugnou judicialmente este despacho de recusa, pedindo: a) se conheça imediatamente do mérito do despacho de rejeição da conversão da provisoriedade do registo em definitividade; b) se revogue a decisão proferida pelo Instituto dos Registos e do Notariado e se ordene a apreciação do recurso hierárquico; c) caso assim se não entenda, se revogue a decisão proferida pela Sra. Conservadora do Registo Comercial de Silves, que recusou a conversão do registo provisório em definitivo, substituindo-a por outra que admita a conversão do registo, por supridas as dúvidas que levaram à provisoriedade.
O Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a decisão impugnada e a subsequente decisão de rejeição do recurso hierárquico.
Por despacho de 15-04-2024, o Tribunal de 1.ª instância ordenou a notificação da impugnante para se pronunciar, querendo, quanto à questão da exceção de ilegitimidade para a presente impugnação judicial.
A impugnante não emitiu pronúncia.
(…), advogado, invocando a qualidade de apresentante do pedido de conversão do registo em definitivo, veio aos autos requerer a sua intervenção espontânea, manifestando adesão ao articulado apresentado pela impugnante Herança de (…).
O Tribunal de 1.ª instância, em 14-05-2024, decidiu o seguinte:
Em face do exposto, decido:
1. Não admitir a impugnação apresentada pela Herança de (…), por falta de legitimidade;
2. Não admito o incidente de intervenção principal espontânea deduzido por (…).
Custas da impugnação a cargo da impugnante.
Custas do incidente a cargo do requerente, fixando-se a taxa de justiça em ½ Uc.
Registe e notifique - artigo 106.º, n.º 2, do Código de Registo Comercial.

Inconformada, a impugnante interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação e substituição por outra que revogue a decisão de rejeição do recurso hierárquico e ordene a respetiva apreciação ou, caso assim se não entenda, que revogue a decisão de recusa e admita a conversão do registo provisório em definitivo, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«I – O que está em causa é o conceito de legitimidade para impugnar actos do registo comercial (no caso o registo de alterações societárias, em sociedade por quotas plural– interesse directo em demandar ou em contradizer (artigo 30.º do NCPC);
II – Havendo normas especiais, típicas do direito registral comercial, não se vê a razão pela qual, mudando de paradigma, o Tribunal foi desembocar no critério de legitimidade registral predial, do artigo 141.º, n.º 4, do Código do Registo Predial, que refere: «Tem legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial o apresentante do registo ou a pessoa que por ele tenha sido representada».
III – A Herança (…), ainda não alvo de partilha, note-se, onde já foram habilitados e identificados três herdeiros (filhos, …, … e …), tinha e tem, contrariamente ao afirmado, legitimidade, logo pelos segmentos do artigo 29.º do Código do Registo Comercial, quer porque foram “os próprios”, ainda que por meio de mandatário judicial (o Dr. …) a apresentar, quer porque fez uso da sua representante e executora testamentária – a Dra. (…) que exerce a testamentaria e cabeçalato.
IV – A presente impugnação poderia ser levada a cabo:
i) Pela Herança (património autónomo, com capacidade judiciária, demandar e ser demandado);
ii) Pela Herança, representada pela cabeça de casal e/ou exercente do cargo de testamentaria;
iii) Pelos Doutores (…) e/ou (…);
iv) Por algum dos herdeiros (ou seus mandatários judiciais) da herança (…);
v) Pelo outro sócio da sociedade comercial «(…) », visada no acto registral societário;
vi) Por qualquer pessoa que possa “solicitar junto da conservatória que esta promova o registo por depósito de factos relativos a participações sociais e respectivos titulares” (artigo 29.º-A, n.º 1, do Código do Registo Comercial).
V – Ao ter concluído – erroneamente, no nosso entendimento – que existia uma lacuna, ao nível da legitimidade processual para a impugnação, indo resguardar-se no conceito “comprometido registral predial” do artigo 141.º, n.º 4, do Código do Registo Predial, o Tribunal incorreu em erro.
VI – Tendo sido proferido Despacho de Qualificação do registo apresentado pelo Advogado como provisório por dúvidas, e perante a inércia deste, a titular adquirente na relação substantiva, ora recorrente, e sócia, tem legitimidade para impugnar o despacho de qualificação.
VII – A não ser assim, cabendo por imperativo legal a obrigação de apresentar o registo e perante a inércia do Advogado apresentante do registo em face do Despacho de Qualificação de provisório por dúvidas, não o impugnando, ficaria a recorrente privada de reagir perante facto que a desfavorece.
VIII – O registo comercial não se destina apenas a dar publicidade à situação jurídica das sociedades, mas ele é também materialmente constitutivo de direitos, pois, se bem que a impugnante haja sido constituída proprietária da quota, instituído o princípio do registo comercial obrigatório, a titular adquirente não pode efetivar o seu direito sem que a nomeação da Gerência esteja definitivamente registada.
IX – A leitura efetuada na Decisão sob Recurso do artigo 141.°, n.° 4, do Código do Registo Predial, é que, em caso de ser o Advogado o sujeito obrigatório do dever de submeter o facto a registo, representando o titular de tal dever, sendo o único com legitimidade para recorrer do Despacho de Qualificação do registo, desfavorável para ela, sob pena de, retirando-se do citado preceito, que a impugnante não tem legitimidade para impugnar o referido despacho, serem violados, com a aplicação do preceito, os princípios da justiça e da proporcionalidade e o acesso ao Direito e à Justiça, todos consagrados na Constituição da República, razões por que, no caso dos autos, deve ser desaplicada a regra do n.° 4 do artigo 141.° do Código do Registo Predial.
Sem prejuízo do acima referido e caso assim V. Ex.ª não o entenda,
X - Decorre do disposto no artigo 115.º do Código do Registo Comercial, que é direito subsidiário o Código do Registo Predial, o qual, por sua vez, estipula no artigo 156.º que é direito subsidiário o Código de Processo Civil quanto a actos, prazos e processos, tendo aqui aplicação subsidiária, com as necessárias adaptações o disposto nos artigos 311.º, 312.º e 313.º do Código de Processo Civil quanto à intervenção espontânea do Advogado, por o recurso jurisdicional interposto da Decisão da Conservador / Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. ter estrutura semelhante a um processo de partes e a uma ação declarativa e pela razão do que se pretende assegurar a legitimidade ativa da ora recorrente, que tem um interesse directo na impugnação do Despacho por ser titular de quota representante de parte significativa do capital social da sociedade.
XI – Também não se vê a razão pela qual o Tribunal, tendo concluído, a dada altura, que o Dr. (…) era o apresentante, não lhe tenha permitido “regularizar a instância”, por meio da sua vinda (intervenção espontânea) à lide, assim desfazendo a lide, encurtando as garantias de defesa, atrasando a justiça e fazendo impender sobre o recorrente, inusitado e escusados custos.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
i) a título de questão prévia, determinar o objeto da apelação aferindo, designadamente, da admissibilidade e do âmbito da reapreciação do despacho de rejeição do recurso hierárquico proferido pelo Presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, bem como da admissibilidade da reapreciação da decisão de não admissão do incidente de intervenção espontânea proferida pela 1.ª instância;
ii) aferir se assiste à apelante legitimidade para impugnar a decisão da Sra. Conservadora de Registos e, em caso afirmativo, se é de revogar tal decisão e deferir o pedido de conversão do registo lavrado provisoriamente por dúvidas.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto
A 1.ª instância considerou provados os factos seguintes:
1. A sociedade (…) – Atividades Turísticas, Lda., através do seu mandatário Dr. (…), requereu junto a Conservatória do Registo Comercial de Silves, o registo da cessação da gerência do sócio (…), por óbito, a nomeação de nova gerência e a alteração dos artigos 4º e 5º do Contrato de Sociedade;
2. A 25.8.2022 a Sra. Conservadora do Registo Comercial proferiu o seguinte despacho:
“Provisório por Dúvidas – ao analisar o pedido verificou-se que existem divergências entre os documentos juntos (habilitação de herdeiros e testamento), os registos efetuados e ata n.º 10 quanto aos titulares da/s quota/s da sociedade. Da acta resulta como único herdeiro da quota de (…) o seu filho (…). Consequentemente, o mesmo detém duas quotas, conforme resulta da referida acta e do pacto social. Contudo, da habilitação de herdeiros e do testamento juntos com o pedido de registo resulta que existe uma reserva de usufruto de 50% das quotas a favor de (…) e (…). Verificou-se, também, que a Dra. (…) é identificada na ata como testamenteira e cabeça-de-casal, agindo em representação de todos os sucessores de (...) mas quem assina a acta é o herdeiro … (bem como o pacto social). Feito o suprimento não foram supridas as dúvidas, razão pela qual o registo será lavrado Provisório por Duvidas – artigos 49.º e 52.º do Código do Registo Comercial, artigo 85.º, n.º 2, 246.º, n.º 1, alínea h), do Código das Sociedades Comerciais, 1467.º do Código Civil.”
3. Por requerimento expedido pelo correio, com data de 3.1.2023, a sociedade, através do mesmo mandatário, requereu à referida Conservatória do Registo Comercial de Silves a conversão do registo provisório em definitivo, juntando, para suprimento das dúvidas suscitas pelas apresentações 2 e 3, de 1.6.2022, ata da assembleia geral de 30.12.2022 que retificou a ata n.º 10 de 25.5.2022;
4. A 10.2.2023, Sra. Conservadora do Registo Comercial proferiu o seguinte despacho:
“Recusado o pedido de conversão nos termos do artigo 48.º, n.º 1, alínea e), do Código do Registo Comercial.
Analisados os documentos juntos verificamos que a acta continua com as mesmas deficiências (continua o sócio … como o único e exclusivo titular das quotas pertencentes a … quando é apenas nu-proprietário); continua sem identificar as quotas de cada titular – artigo 63.º, n.ºs 1, alínea c) e n.º 3, do Código do Registo Comercial.
A acta n.º 10 (o mesmo documento sem qualquer acto posterior) foi novamente apresentada com a menção de retificação e agora também assinada pela cabeça de casal.
Os usufrutuários continuam a não intervir na deliberação em que o voto pertence conjuntamente ao usufrutuário e ao proprietário de raiz – artigos 23.º, 85.º, 246.º, n.º 1, alínea h), do Código das Sociedades Comerciais e 1467.º, n.º 1, alínea b) e 2, do Código Civil (o voto vale como um só relativamente à sociedade).
A acta n.º 12 refere que o usufrutuário foi regularmente convocado por correio eletrónico, contrariamente ao artigo 248.º, nº 3, do Código das Sociedades Comerciais.
Nestes termos o registo é recusado”;
5. Tal despacho foi notificado a 16 de Fevereiro de 2023;
6. A 27.3.2023 a Herança de (…) apresentou recurso hierárquico da decisão da Sra. Conservadora do Registo Comercial que recusou a conversão em definitivo do registo provisório lavrado por dúvidas;
7. Tendo tal recuso sido indeferido por extemporâneo por despacho de 14.6.2023.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Questão prévia
Está em causa a impugnação da decisão de recusa da conversão em definitivo de registo lavrado provisoriamente, proferida em 10-02-2023 pela Sra. Conservadora do Registo Comercial de Silves.
Regulando as formas de impugnação da decisão de recusa da prática de ato de registo nos termos requeridos, o artigo 101.º do Código do Registo Comercial estabelece, no n.º 1, que tal decisão pode ser impugnada mediante a interposição de recurso hierárquico para o presidente do Instituto dos Registos e do Notariado ou mediante impugnação judicial para o tribunal da área da circunscrição a que pertence a Conservatória.
Permite o artigo 104.º do Código do Registo Comercial, ainda, a impugnação judicial subsequente a recurso hierárquico, dispondo o seguinte: 1 - Tendo o recurso hierárquico sido julgado improcedente, o interessado pode ainda impugnar judicialmente a decisão de qualificação do ato de registo. 2 - A impugnação judicial é proposta mediante apresentação do requerimento na conservatória competente, no prazo de 20 dias a contar da data da notificação da decisão que tiver julgado improcedente o recurso hierárquico.
Decorre deste regime que, proferida decisão de recusa da prática de ato de registo nos termos requeridos, pode o interessado optar por impugnar a decisão do conservador de registos através da interposição de recurso hierárquico ou por via de impugnação judicial; acresce que, tendo sido interposto recurso hierárquico e vindo o mesmo a ser julgado improcedente, a lei faculta ainda ao interessado a possibilidade de impugnar judicialmente a decisão de qualificação do ato de registo.
No caso presente, a ora apelante começou por impugnar a decisão proferida pela Sra. Conservadora do Registo Comercial de Silves mediante a interposição de recurso hierárquico para o presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, recurso este que foi indeferido, com fundamento em extemporaneidade, por despacho de 14-06-2023.
De seguida, perante a decisão de indeferimento do recurso hierárquico, a apelante deduziu a presente impugnação judicial, sobre a qual incidiu a sentença ora recorrida, em que a 1.ª instância decidiu não admitir a impugnação apresentada pela Herança de (…), por falta de legitimidade, condenando-a nas custas respetivas.
Discordando da decisão proferida, a apelante interpôs o presente recurso de apelação, defendendo se revogue a decisão de rejeição do recurso hierárquico e ordene a respetiva apreciação ou, subsidiariamente, se revogue a decisão de recusa e admita a conversão do registo provisório em definitivo, com a consequente revogação da decisão recorrida, proferida pela 1.ª instância.
Tratando-se de impugnação judicial subsequente a recurso hierárquico, a impugnação tem por objeto a própria decisão de qualificação do ato de registo proferida pelo conservador de registos, conforme dispõe o n.º 1 do supra citado artigo 104.º, e não, a título principal, a decisão de indeferimento do recurso hierárquico, o que impede a procedência da pretensão, deduzida pela impugnante nas alegações da apelação, de que se revogue a decisão de rejeição do recurso hierárquico e ordene ao presidente do Instituto dos Registos e do Notariado a respetiva apreciação, assim improcedendo, nesta parte, a argumentação da recorrente.
Tendo-se concluído que a impugnação judicial subsequente a recurso hierárquico tem por objeto a decisão de qualificação do ato de registo proferida pelo conservador de registos, há que apreciar a pretensão formulada a título subsidiário pela apelante, averiguando se é de revogar a decisão de recusa e determinar a conversão do registo, o que naturalmente exige a prévia reapreciação dos fundamentos pelos quais foi recusado o recurso hierárquico, no caso, a extemporaneidade da respetiva interposição, com relevo para a apreciação da tempestividade da subsequente impugnação judicial.
Antes, porém, face ao teor da decisão proferida pela 1.ª instância, que não admitiu a impugnação apresentada com fundamento em falta de legitimidade da impugnante, há que reapreciar esta questão, que vem posta em causa na apelação e que constitui uma questão prévia relativamente à aferição da tempestividade da interposição do recurso hierárquico e ao subsequente conhecimento do mérito da impugnação da decisão proferida pela Sra. Conservadora do Registo Comercial de Silves.
A 1.ª instância proferiu, igualmente, decisão de não admissão do incidente de intervenção espontânea requerido por Dr. (…), advogado, que da mesma não interpôs recurso.
Nas alegações da apelação, a recorrente tece considerandos sobre a decisão de rejeição do incidente de intervenção de terceiros, apesar de não formular qualquer pretensão relativamente a tal matéria.
A apelante interpôs recurso da parte da sentença em que ficou vencida – relativa à impugnação judicial –, não tendo o requerente, por seu turno, interposto recurso da parte da decisão em que ficou vencido – relativa ao incidente de intervenção de terceiros –, pelo que se reporta o recurso interposto apenas ao segmento decisório que não admitiu a impugnação apresentada pela apelante e a condenou nas custas da impugnação.
Explica António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 114) o seguinte: “Seja qual foi o objeto do processo (mesmo relativo a direitos indisponíveis ou em que se coloquem em causa questões de interesse geral), a impugnação da decisão carece sempre da iniciativa do interessado a quem é conferida a legitimidade direta ou extraordinária. A possibilidade de qualquer tribunal hierarquicamente superior reapreciar decisão que tenha sido proferida por tribunal de categoria inferior está dependente em absoluto da mobilização do mecanismo processual ajustado, ou seja, da interposição de recurso, não assumindo jamais cariz oficioso”.
Dispondo o artigo 627.º, n.º 1, do CPC, que as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recurso e não tendo sido interposto recurso da decisão de não admissão do incidente de intervenção espontânea, não se procederá à reapreciação de tal decisão.
Em conclusão, cumpre aferir se assiste à apelante legitimidade para impugnar a decisão da Sra. Conservadora de Registos e, em caso afirmativo, verificados os demais pressupostos exigidos para a interposição da impugnação judicial, se é de revogar tal decisão e deferir o pedido de conversão do registo lavrado provisoriamente por dúvidas, improcedendo, no mais, a argumentação da apelante.

2.2.2. Legitimidade da impugnante
Vem posta em causa na apelação a decisão de não admissão da impugnação judicial apresentada pela Herança de (…), por falta de legitimidade da impugnante.
A fundamentar tal decisão, consta da sentença recorrida, além do mais, o seguinte:
(…)
No que respeita à legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial da decisão de recusa do registo, o código de Registo Comercial nada estabelece.
Aplicando-se, por força do artigo 115.º desse Código, o estabelecido no Código de Registo Predial.
Este último código prevê no artigo 141.º, n.º 4, que tem legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial o apresentante do registo ou a pessoa que por ele tenha sido representada.
Com a alteração introduzida a este artigo pelo Decreto-Lei n.º 125/2013, de 30 de Agosto, pôs-se termo à divergência até então existente sobre a legitimidade para o recurso hierárquico ou de impugnação judicial por parte interessados que, tendo legitimidade para requerer o registo dos atos, não o requereram e que, perante a recusa do registo a pedido de outros legitimados, impugnavam essa decisão pela via hierárquica ou judicial.
Este entendimento assenta na diferença entre a relação registral e a relação que está subjacente ao ato de registo.
A relação de registo é a relação que se estabelece entre o requerente do registo e a conservatória de registo respetiva com o pedido de registo.
Assim, não obstante os artigos 29.º e 29.º-A do Código de Registo Comercial atribuam legitimidade para requerer registo comercial de atos a ele sujeitos a diferentes interessados, a relação registral apenas se estabelece com aquele que promoveu e desencadeou o procedimento respetivo e ao qual é dado conhecimento da recusa ou da qualificação do registo, assistindo-lhe, assim, legitimidade para impugnar o ato.
A intervenção de terceiros, na relação de registo, ainda que tenham tido intervenção na realização dos atos subjacentes ao pedido de registo, se não interveio na relação registral, por não ter promovido o registo do mesmo, apresenta-se como terceiro nessa relação registral, não sendo titular de qualquer interesse em conflito ou sequer da relação de direito substantivo implicada e a tutelar, não se podendo considerar vencido ou prejudicado com a decisão – cfr. neste sentido Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 19.12.2012 e Ac. Tribunal da Relação de Évora de 8.2.2018, in www.dgsi.pt.
Interposto recurso hierárquico ou impugnação judicial, o que se impugna é a decisão sobre a realização do ato de registo, ou seja, a decisão qualificadora do registo, visando-se a obtenção de uma sentença judicial que julgue procedente ou improcedente a impugnação da qual resulta, respetivamente, a subsistência ou insubsistência da recusa do ato nos termos que foram requeridos.
No caso em apreço, embora a impugnante, Herança de (…), titular de uma quota na sociedade (…), Atividades Hoteleiras, Lda. a que respeita o registo possa ter interesse nesse registo, a verdade é que não foi a requerente do registo, pelo que carece de legitimidade para a impugnar.
Discordando deste entendimento, a apelante defende a inaplicabilidade do critério estabelecido no artigo 141.º, n.º 4, do Código do Registo Predial, afirmando que existem normas especiais relativas ao registo comercial aplicáveis ao caso presente, pelo que carece de justificação a aplicação a título subsidiário do regime previsto para o registo predial.
Sustenta a apelante que o artigo 29.º do Código do Registo Comercial lhe atribui legitimidade para deduzir a impugnação em causa e que o artigo 29.º-A do mesmo Código, por seu turno, atribui legitimidade a qualquer pessoa para solicitar junto da conservatória que esta promova o registo por depósito de factos relativos a participações sociais e respetivos titulares, no caso de a sociedade não promover o registo, nos termos do n.º 5 do artigo anterior.
Vejamos se lhe assiste razão, verificando se a Herança de (…) tem legitimidade para impugnar judicialmente o despacho proferido em 10-02-2023 pela Sra. Conservadora do Registo Comercial de Silves, que recusou o pedido, formulado pela sociedade (…) – Atividades Turísticas, Lda. através do respetivo mandatário, Dr. (…), de conversão em definitivo do registo de designação de membros de órgãos sociais e alterações ao contrato de sociedade, efetuado provisoriamente por dúvidas.
É sabido que o registo comercial é regulado pelo Código do Registo Comercial (aprovado pelo DL n.º 403/86, de 03-12), e pelo Regulamento do Registo Comercial (aprovado pela Portaria n.º 657-A/2006, de 29-06), ambos objeto de diversas alterações.
Sob a epígrafe Direito subsidiário, o artigo 115.º do Código do Registo Comercial (aditado pelo DL n.º 349/89, de 13-10) dispõe o seguinte: São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo comercial, na medida indispensável ao preenchimento das lacunas da regulamentação própria, as disposições relativas ao registo predial que não sejam contrárias aos princípios informadores do presente diploma.
Considerou a 1.ª instância que a regulamentação própria aplicável ao registo comercial nada estabelece quanto à legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial da decisão de recusa da prática do ato de registo nos termos requeridos, pelo que considerou aplicável, por força do estatuído no artigo 115.º do Código do Registo Comercial, o disposto no artigo 141.º, n.º 4, do Código do Registo Predial, com a redação seguinte: Tem legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial o apresentante do registo ou a pessoa que por ele tenha sido representada.
Face à alegação do apelante, cumpre aferir se a matéria em apreciação se encontra regulada no Código do Registo Comercial, designadamente nos artigos 29.º e 29.º-A, pelo mesmo invocados, que integram o Capítulo III, intitulado Processo de registo.
Sob a epígrafe Legitimidade, o artigo 29.º dispõe o seguinte:
1 - Para pedir os atos de registo respeitantes a comerciantes individuais, salvo o referido no n.º 2, e a pessoas colectivas sujeitas a registo têm legitimidade os próprios ou seus representantes e todas as demais pessoas que neles tenham interesse.
2 - O registo do início, alteração e cessação de atividade do comerciante individual, bem como da mudança do seu estabelecimento principal, só pode ser pedido pelo próprio ou pelo seu representante.
3 - Para o pedido de registo provisório do contrato de sociedade anónima com apelo a subscrição pública de ações só têm legitimidade os respetivos promotores.
4 - O Ministério Público tem legitimidade para pedir os registos das ações por ele propostas e respetivas decisões finais.
5 - Salvo no que respeita ao registo de ações e outras providências judiciais, para pedir o registo de atos a efetuar por depósito apenas tem legitimidade a entidade sujeita a registo, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.
O artigo 29.º-A, por seu turno, com a epígrafe Registo de factos relativos a participações sociais e respetivos titulares a promover pela sociedade, dispõe o seguinte:
1 - No caso de a sociedade não promover o registo, nos termos do n.º 5 do artigo anterior, qualquer pessoa pode solicitar junto da conservatória que esta promova o registo por depósito de factos relativos a participações sociais e respetivos titulares.
2 - No caso previsto no número anterior, a conservatória notifica a sociedade para que esta, no prazo de 10 dias, promova o registo sob pena de, não o fazendo, a conservatória proceder ao registo, nos termos do número seguinte.
3 - Se a sociedade não promover o registo nem se opuser, no mesmo prazo, a conservatória regista o facto, arquiva os documentos que tiverem sido entregues e envia cópia dos mesmos à sociedade.
4 - A oposição da sociedade deve ser apreciada pelo conservador, ouvidos os interessados.
5 - Se o conservador decidir promover o registo, a sociedade deve entregar ao requerente as quantias por este pagas a título de emolumentos e outros encargos e, no caso de o conservador indeferir o pedido, deve este entregar à sociedade as quantias por esta pagas a título de emolumentos e outros encargos.
6 - A decisão do conservador de indeferir o pedido ou proceder ao registo é recorrível nos termos dos artigos 101.º e seguintes.
Analisando estes preceitos, desde logo que constata que se reportam à legitimidade para pedir os atos de registo respeitantes a comerciantes individuais e a pessoas colectivas sujeitas a registo, não regulando a matéria relativa à impugnação das decisões que venham a ser proferidas pelo conservador na sequência do pedido formulado.
Afirma Joaquim de Seabra Lopes (Direito dos Registos e do Notariado, 12.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, pág. 157) o seguinte: «Quem são os interessados ou, por outras palavras, quem tem legitimidade para pedir os atos de registo? (…) Têm legitimidade, diz-nos o artigo 29.º, os próprios comerciantes individuais, os representantes das pessoas colectivas sujeitas a registo, bem como as demais pessoas que tenham interesse nesses atos».
Ora, a decisão do conservador de registos, que recuse a prática do ato de registo nos termos requeridos, pode ser impugnada nos termos previstos nos artigos 101.º e seguintes do Código do Registo Comercial, conforme se expôs em 2.2.1., mediante a interposição de recurso hierárquico para o presidente do Instituto dos Registos e do Notariado ou mediante impugnação judicial para o tribunal da área da circunscrição a que pertence a conservatória.
Os preceitos invocados pela apelante não se reportam à impugnação da decisão de recusa proferida pelo conservador de registos, mas apenas ao pedido dos atos de registo, estabelecendo critérios de legitimidade para formulação desse pedido e não para a subsequente impugnação da decisão que sobre o mesmo venha a incidir.
Mostra-se acertada a sentença recorrida, ao considerar que o Código do Registo Comercial nada estabelece no que respeita à legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial da decisão de recusa do registo, e ao decidir que é aplicável ao caso presente, por força do estatuído no citado artigo 115.º, o disposto no artigo 141.º, n.º 4, do Código do Registo Predial.
Encontram-se assentes, entre outros, os elementos seguintes:
- a sociedade (…) – Atividades Turísticas, Lda., através do seu mandatário Dr. (…), requereu, junto da Conservatória do Registo Comercial de Silves, o registo da cessação da gerência do sócio (…), por óbito, a nomeação de nova gerência e a alteração dos artigos 4.º e 5.º do Contrato de Sociedade;
- em 25-08-2022, a Sra. Conservadora do Registo Comercial proferiu despacho em que determinou que o registo requerido seja lavrado provisório por dúvidas;
- por requerimento expedido pelo correio, aquela sociedade, através do mesmo mandatário, requereu à referida conservatória a conversão do registo provisório em definitivo, juntando documentos para suprimento das dúvidas suscitas pelas apresentações 2 e 3 de 01-06-2022;
- em 10-02-2023, Sra. Conservadora do Registo Comercial proferiu despacho de recusa do pedido de conversão em definitivo do registo de designação de membros de órgãos sociais e alterações ao contrato de sociedade, efetuado provisoriamente por dúvidas, sob as apresentações 2 e 3 de 01-06-2022;
- em 27-03-2023, a apelante – Herança de (…) – impugnou esta decisão da Sra. Conservadora, primeiro mediante a interposição de recurso hierárquico e depois, após o indeferimento deste, através da presente impugnação judicial.
Decorre destes factos que o despacho impugnado incide sobre um pedido formulado pela sociedade (…) – Atividades Turísticas, Lda., através do seu mandatário Dr. (…), e que a impugnação foi deduzida pela Herança de (…), ora apelante.
Face ao disposto no artigo 141.º, n.º 4, do Código do Registo Predial – Tem legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial o apresentante do registo ou a pessoa que por ele tenha sido representada –, dúvidas não há de que a Herança de (…) não tem legitimidade para impugnar, mediante recurso hierárquico ou impugnação judicial, a decisão proferida pela Sra. Conservadora, conforme considerou a 1.ª instância.
A apelante invoca a inconstitucionalidade da interpretação da norma do artigo 141.º, n.º 4, do Código do Registo Predial, no sentido de «em caso de ser o Advogado o sujeito obrigatório do dever de submeter o facto a registo, representando o titular de tal dever, sendo o único com legitimidade para recorrer do Despacho de Qualificação do registo, desfavorável para ela, sob pena de, retirando-se do citado preceito, que a impugnante, não tem legitimidade para impugnar o referido despacho», invocando a violação dos «princípios da justiça e da proporcionalidade e o acesso ao Direito e à Justiça, todos consagrados na Constituição da República» e pugnando pela desaplicação daquela regra.
No entanto, analisando a decisão recorrida, não se vislumbra que o preceito tenha sido interpretado com o sentido indicado pela apelante, isto é, da atribuição de legitimidade exclusiva para a impugnação ao representante que tenha apresentado o pedido recusado, sendo certo que se considerou que a impugnação pode igualmente ser apresentada pela pessoa representada.
Porém, analisando as alegações de recurso, verifica-se que não é suscitada, de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, considerando que a apelante não indica, de modo expresso, o critério normativo a apreciar, antes se limitando à enunciação do aludido preceito do Código do Registo Predial e à alusão genérica a princípios que afirma consagrados na Constituição da República Portuguesa.
A recorrente suscita a inconstitucionalidade de determinada interpretação do artigo 141.º, n.º 4, do Código do Registo Predial, sem especificar o fundamento pelo qual entende que tal viola determinadas normas constitucionais.
Não especificando a apelante o fundamento em que baseia a inconstitucionalidade que argui, tal impede a apreciação da questão suscitada, por falta de objeto, sendo que não se vislumbra que a interpretação efetuada de tal preceito do Código do Registo Predial viole normas constitucionais, pelo que improcede, nesta parte, a argumentação apresentada.
Em síntese, tendo-se concluído que não assiste à apelante legitimidade para interpor a impugnação judicial, mostra-se improcedente a apelação, cumprindo confirmar a decisão recorrida.

Em conclusão: (…)

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
Évora, 05-12-2024
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Vítor Sequinho dos Santos (1º Adjunto)
Eduarda Branquinho (2ª Adjunta)